A pressão do mercado financeiro, por Paulo Nogueira Batista Júnior.

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PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.*

A Terra é redonda – 05/12/2022

O presidente eleito enfrenta, ao mesmo tempo, pelo menos três blocos hostis; o mais perigoso é formado pelo mercado financeiro e a mídia tradicional

Só o Lula mesmo! Imagine, leitor, a eleição de 2022 sem ele na disputa. Estaríamos neste momento diante de mais quatro anos de desastre e desagregação. Agora, leitor, imagine o dificílimo quadro pós-eleitoral sem Lula. Digo isso sem nenhuma satisfação ou idolatria. A nossa dependência em relação a um só homem é altamente problemática. Muito pior do que a dependência da seleção brasileira jamais foi em relação a Neymar.

Friedrich Nietzsche dizia que a capacidade de suportar sofrimento é o que determina a hierarquia. Lula tem essa capacidade em altíssimo grau. E é com ela que estamos contando (de novo!) para tentar superar os imensos desafios pós-eleição. Imensos porque a sociedade brasileira está profundamente degenerada. Não apenas os bolsonaristas estacionados em frentes aos quartéis ou bloqueando rodovias, mas grande parte das camadas dirigentes, do Congresso, do empresariado e da mídia. Há muitas exceções a isso, felizmente, mas o quadro geral é desolador.

O presidente eleito enfrenta, ao mesmo tempo, pelo menos três blocos hostis a ele e ao que ele representa: a extrema direita (rebelada contra o resultado das eleições com apoio de parte das Forças Armadas), a direita fisiológica que domina o Congresso (o chamado Centrão) e, last but not least, o capital financeiro. Este último, referido impropriamente como “mercado”, tem estreita ligação com a finança internacional e domina amplamente a mídia tradicional, que em geral vocaliza de modo automático e monótono seus interesses e preconceitos. A direita fisiológica e o capital financeiro são mais hipócritas e disfarçam sua hostilidade, mas ela é real e não deve ser subestimada.

Evidentemente, os três blocos não são estanques. Colaboram com frequência, e não raro ativamente. Aliaram-se, por exemplo, para patrocinar a devastação bolsonarista. Agora tentam inviabilizar ou capturar o novo governo. Estou exagerando? Não creio.

O bloco mais perigoso talvez seja aquele formado pelo capital financeiro e a mídia tradicional. É dele que gostaria de falar um pouco hoje.

Para além do óbvio – o nexo dinheiro/poder/influência – o perigo reside no fato de que boa parte desse bloco embarcou na famosa Arca de Noé do Lula. Em outras palavras, aderiu à frente ampla formada para derrotar o bolsonarismo nas eleições. Agora querem cobrar caro pela sua participação. Era previsível.

Imediatamente depois das eleições, sem dar tempo para a poeira baixar, promoveu-se uma campanha midiática para intimidar e enquadrar o presidente eleito. E a campanha continua. Uma verdadeira inquisição financeira, como notou Luiz Gonzaga Belluzzo.

O mote é a “responsabilidade fiscal” e as supostas indicações que Lula teria dado, depois da vitória eleitoral, de não entender a importância desse princípio. Ora, ora, nada que Lula tenha declarado depois das eleições diverge do que ele disse, repetidamente, durante a campanha. Ou ele não avisou, várias vezes, que não conviveria com o teto constitucional de gastos? E que o enfrentamento da crise social seria a prioridade número 1 do seu governo?

O debate econômico quase desapareceu da mídia tradicional. Há muito tempo. O que se tem, na maior parte do tempo, é a repetição monocórdia de uma mesma mensagem, dos mesmos slogans, transmitidos por economistas e jornalistas a serviço da turma da bufunfa. Não são muito frequentes os lampejos de inteligência ou criatividade. Como dizia Nelson Rodrigues, subdesenvolvimento não se improvisa. É obra de séculos.

O que está por trás do barulho todo? Em uma frase: o capital financeiro quer povoar o futuro governo Lula de funcionários do status quo. Como Lula não entregou, ou ainda não entregou os pontos, o barulho continua. Temos de tudo: entrevistas, editoriais, noticiário editorializado, opiniões, artigos e, de quebra, cartas abertas ao presidente eleito. O Banco Central já está sob comando do capital financeiro, graças à lei de autonomia, aprovada durante o governo Bolsonaro.

Não é o suficiente, porém, para eles. Querem também o comando do Ministério da Fazenda e tentam induzir o presidente Lula a colocar lá alguém palatável, que não desafie seus interesses e privilégios. Alguém que dance conforme a música.

No entorno de Lula, no campo da esquerda ou da centro-esquerda, há muita gente de alto nível e espírito público. Por outro lado, há também gente ansiosa para agradar e se mostrar “responsável”, buscando viabilizar projetos individuais de poder. Instala-se assim uma race to the bottom, um nivelamento por baixo, com algumas pessoas disputando para ver quem se mostra mais confiável aos olhos do capital financeiro e da mídia corporativa.

É a síndrome de Palocci. O que o capital financeiro busca, na verdade, é um novo Palocci. E seus representantes manifestam, abertamente, o desejo de que o Lula 3 seja parecido com o Lula 1, isto é, aquele Lula dos anos iniciais de governo, mais dócil, enquadrado, com Antônio Palocci na Fazenda e Henrique Meirelles no Banco Central. Meirelles era um típico executivo do mercado financeiro, mais ou menos equivalente a Roberto Campos Neto, o atual presidente do Banco Central. Palocci era um político do PT que se viabilizou dando todas as garantias de que nada faria contra os poderes estabelecidos. E copiou descaradamente a política que vinha sendo seguida por seu antecessor, Pedro Malan, o ministro da Fazenda de Fernando Henrique Cardoso – sem nunca pagar os devidos direitos autorais. Colheu todos os elogios da Faria Lima e da mídia. Deslumbrou-se. E terminou melancolicamente, na traição mais abjeta.

Lula prometeu que voltaria “para fazer mais e melhor”. Não conseguirá se perder o controle da área macroeconômica do governo.

*Paulo Nogueira Batista Jr. é titular da cátedra Celso Furtado do Colégio de Altos Estudos da UFRJ. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai. Autor, entre outros livros, de O Brasil não cabe no quintal de ninguém (LeYa).

A democracia militante, por Paulo Sérgio Pinheiro

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PAULO SÉRGIO PINHEIRO*

A Terra é redonda – 08/12/2022

Após quatro anos de pregação e práticas neofascistas, a sociedade e o Estado terão de definir de que forma a militância poderá ser exercida na defesa da democracia

Uma das mais precisas análises do efetivo funcionamento do regime do Estado Novo no Brasil está em Brazil under Vargas (Russell and Russell, 1942), obra do filósofo e cientista político alemão Karl Loewenstein (1891-1973). É na conclusão desse livro – aliás, dedicado a Thomas Mann e lamentavelmente até hoje não traduzido para o português – que é proposto um conceito inovador, na época, para caracterizar aquela ditadura: “Reduzido aos mais simples termos de análise, o regime de [Getúlio] Vargas não é democrático, nem uma democracia “disciplinada”; não se trata de totalitário nem de fascista; é uma ditadura autoritária, para a qual a teoria constitucional francesa criou o termo régime personnel”. Mais tarde, em 1975, na Conferência Internacional sobre História e Ciências Sociais, na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o cientista político Juan Linz, de Yale University, retoma o conceito de autoritarismo para caracterizar o regime da ditadura militar de 1964.

Mas Karl Loewenstein, além de produzir uma influente obra em direito constitucional, em 1937, quando o nazismo estava longe de estar consolidado, criou o termo de “democracia militante”. Em dois seminais artigos, “Militant Democracy and Fundamental Rights” (Democracia Militante e Direitos Fundamentais) I e II, examina de que modo a democracia constitucional é capaz de proteger as liberdades civis e políticas, por meio de limitações das instituições democráticas, para conter o fascismo de então. Para Karl Loewenstein, “a democracia e a tolerância democrática estariam sendo usadas para sua própria destruição. Sob a cobertura dos direitos fundamentais e do Estado de direito, a máquina antidemocrática pode vir a ser construída e posta em marcha legalmente”.

Ele lamenta “o exagerado formalismo do estado de direito que, sob o encantamento da igualdade formal, não julga adequado excluir do jogo os partidos que renegam a existência de suas regras”. Alerta igualmente que a desobediência perante as autoridades constitucionais naturalmente tende a transbordar para a violência, a violência se tornando nova fonte de “emocionalismo disciplinado”, no qual se fundam os regimes fascistas. E cita um exemplo relevante de como uma democracia pereceu, justamente por não ter essa proteção militante: “Na República de Weimar [na Alemanha de 1919 a 1933], a falta de militância contra os movimentos subversivos, mesmo tendo sido claramente reconhecidos como tal, foi ressaltada tanto como um dilema da democracia no pós-guerra, quanto como ilustração e advertência”.

O momento presente no Brasil
Por que as reflexões de Karl Loewenstein são relevantes para o momento presente no Brasil? Ao contrário do que se alardeou, as instituições do Estado brasileiro não funcionaram diante da escalada de extrema direita com conteúdo neofascista, liderada pelo presidente da República. Essa desconstrução do Estado de direito contou com a cumplicidade das Forças Armadas e com a inércia, tanto da Procuradoria Geral da República, para processar os crimes de responsabilidade do presidente, quanto do Congresso Nacional, especialmente da Câmara de Deputados, que ignorou mais de uma centena de pedidos de impeachment.

A situação somente não está pior porque as eleições presidenciais derrotaram o líder da extrema direita, graças à anulação, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), dos processos crimes contra o então ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva e à sua soltura da iníqua prisão, reavendo seu direito de se candidatar – decisão que foi corroborada, em 2022, pelo Comitê de Direitos Humanos da ONU, que reconheceu a violação de direitos do ex-presidente pelo Estado brasileiro, por negar-lhe acesso a um processo justo e à presunção de inocência.

Porém, o ex post da eleição nos deixa um inusitado cenário de veículos em chamas interditando estradas e milhares de cidadãos orando por intervenção militar nas portas dos quartéis. A autoridade que mais atuou na proteção do Estado de direito e em resistência a esse movimento golpista foi o ministro Alexandre de Moraes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Com firmeza, ele rebateu os ataques da extrema direita antes, durante e depois das eleições; defendeu as urnas eletrônicas, enfrentou corajosamente a litigância golpista, articulou a atuação das Polícias Militares e da Polícia Rodoviária Federal contra os bloqueios de vias, aplicando multas e congelando ativos de financiadores das badernas.

No dia 12 de dezembro, com a diplomação do presidente eleito, o presidente do TSE não tenderá a atuar de modo tão incisivo quanto atuou durante o último trimestre de 2022. Além dos bloqueios, como lembrou Camila Rocha (Folha de São Paulo, em 3.12.2022), há registros de vandalismo, saques, incêndios, sequestros, a maioria desses casos nos estados de Mato Grosso, Rondônia e Santa Catarina, organizados e financiados por empresários ricos que atentaram contra a democracia, acobertados por generalizada impunidade por parte das autoridades estaduais.
Após a eleição de Luís Inácio Lula da Silva como presidente da República, crimes contra a Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito (4.5.2021) se sucederam e continuam. Assim, a sociedade e o Estado terão de definir, portanto, de que forma a militância poderá ser exercida, na defesa da democracia, depois da nova era que começará em 1º de janeiro de 2023.

Após quatro anos de pregação e práticas neofascistas, é urgente refletir: o que fazer para que, gradualmente, os brasileiros que caíram nessa esparrela da “intervenção militar” e acreditaram nas bravatas do bolsonarismo possam tornar-se cidadãos republicanos de novo?

*Paulo Sérgio Pinheiro é professor aposentado de ciência política na USP; ex-ministro dos Direitos Humanos; relator especial da ONU para a Síria e membro da Comissão Arns. Autor, entre outros livros, de Estratégias da ilusão: a revolução mundial e o Brasil, 1922-1935 (Companhia das Letras).

Dívida pública, inimigo oculto, por José Álvaro de Lima Cardoso.

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Enquanto afirmam que “não há recursos” para reconstruir o país, neoliberais festejam a montanha de dinheiro que recebem do Estado, na forma de juros. Governo Lula precisará enfrentar este fantasma – e o primeiro passo é revelá-lo à sociedade

José Álvaro de Lima Cardoso, Economista, doutor em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina, supervisor técnico do escritório regional do DIEESE em Santa Catarina

Outras Palavras – 08/12/2022

O Brasil vem de cinco anos de estagnação do Produto Interno Bruto (PIB), possivelmente o pior desempenho do produto que se tem registro nas contas nacionais, fruto da crise mundial e das políticas recessivas adotadas a partir do golpe de 2016. Isso leva a um círculo vicioso: baixos níveis de crescimento do PIB conduzem a uma queda na arrecadação de impostos com aumento proporcional da dívida pública. Esse fenômeno foi verificado recentemente na Europa: os países que apostaram em maior austeridade e cortes de despesas públicas, como Grécia e Itália, acabaram aumentando seus níveis de dívida pública e pagam o preço disso.

Neste momento assistimos no Brasil a um debate sobre as dificuldades de continuar pagando o auxílio emergencial, mecanismo fundamental para evitar que milhões de compatriotas passem fome. Críticos da proposta alegam que o pagamento de R$ 600 para os pobres, compromete a “saúde fiscal” do país. Mas o país transfere todo ano 5% ou mais do PIB para os credores da dívida pública, comprometendo mais de 50% do orçamento federal executado, sem praticamente ouvirmos um pio desses críticos da proposta de um novo Bolsa Família.

Como item integrante desse método de exploração colonial, o Brasil pratica há anos o maior juro real (taxa de juros descontada da inflação prevista para os próximos 12 meses) do mundo. O fato da taxa básica de juros do Brasil estar muito acima da média mundial (neste momento bem acima do segundo lugar da lista, o México) seguindo uma receita que nunca funcionou – tentar controlar com juros altos uma inflação que não decorre de excesso de demanda – não tem nada de “opção técnica”. Antes de mais nada, é uma decisão política do Banco Central.

O orçamento federal destinou míseros R$ 139,9 bilhões para saúde neste ano e R$ 62,8 bilhões para a educação, que são uma fração dos quase dois trilhões destinados aos juros da dívida em 2021. Mas quase ninguém fala disso, é como se esses pagamentos fossem uma determinação vinda dos céus. Ao longo dos anos vários mecanismos foram montados para garantir aos banqueiros o recebimento fácil dos juros, o que praticamente ninguém questiona. As vozes que denunciam esse assalto sistemático ao país não têm espaço na grande imprensa, que está ao serviço desse sistema.

Os mecanismos de favorecimento dos credores vêm sendo construídos há anos. Ainda em 2000 foi votada a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), uma imposição do Fundo Monetário Internacional (FMI) para conceder empréstimos ao Brasil, que em 1988 tinha quebrado financeiramente mais uma vez, no governo de Fernando Henrique Cardoso. A LRF impõe limites ao poder público com os gastos com pessoal, de forma a garantir os polpudos juros aos banqueiros. O teto de gastos, vindo com a Emenda Constitucional 95, de 2016, uma das primeiras medidas do golpe, garante que o orçamento destinado a todas as despesas do governo com infraestrutura, salários, aposentadorias, saúde, educação, transportes, etc. não ultrapasse um valor determinado, garantindo que a parcela destinada ao pagamento de juros da dívida não seja afetada.

Para garantir o modesto auxílio de R$ 600 no ano que vem, a equipe de transição está propondo na PEC encaminhada ao Congresso, ultrapassar o limite (teto) de gastos previsto no Orçamento. Recentemente Armínio Fraga, Edmar Bacha e Pedro Malan, que foram do governo FHC, todos ligados à fina flor dos especuladores mundiais, lançaram uma carta aberta (em 17.11.22) posicionando-se em relação ao comentário de Lula que disse que “Se eu falar que será preciso ultrapassar o teto de gastos para colocar os programas sociais prometidos vai cair a bolsa, vai aumentar o dólar. Paciência. Porque o dólar não aumenta e a bolsa não cai por conta das pessoas sérias, mas é por conta dos especuladores que vivem especulando todo santo dia” (fala na COP 27).

Na Carta Aberta criticam a fala acima e saem em defesa da “sagrada” responsabilidade fiscal e do teto de gastos. Ou seja, o teor da Carta revela que os banqueiros até aceitam que o futuro governo combata a fome e a pobreza, desde que isso não diminua em um centavo os ganhos que extraem sistematicamente do Brasil, através do sistema de pagamento da dívida pública.

A capacidade de apropriação de riqueza por parte desses banqueiros, de extrair todo ano 5% ou mais do PIB brasileiro, lhes fornece um poder que permite controlar sistematicamente os processos políticos e, assim, muitas vezes os próprios governos que se revezam no poder. Essa reação dos porta-vozes dos credores revela o grau de pressões que o novo governo já está enfrentando, que certamente se aprofundarão nos próximos meses.

A pancadaria da imprensa à decisão de Lula de furar o teto de gastos para atender aos famintos corre solta. Matérias nos jornais especializados, já afirmam que se furar o teto de gastos (estimativas apontam um valor de menos de 200 bilhões anuais) talvez Lula nem consiga terminar o seu governo. Ou seja, a chantagem já está de vento em popa, pela medida mais simples possível, que é atender aos miseráveis, proposta que compõe o núcleo central do programa do futuro governo.

No início do Plano Real, em julho de 1994 (28 anos atrás), a dívida pública (dívida externa e interna) era de cerca de R$ 60 bilhões. Fechou o ano de 2021 em R$ 5.613 trilhões. Somente no ano passado o estoque da dívida brasileira teve um aumento de R$ 604 bilhões. Ou seja, é um sistema infinito de exploração do povo brasileiro, que é quem sustenta essa festa toda. Não existe país no mundo que transfira tanto recurso para os banqueiros quanto o Brasil. O país sofre um processo de desindustrialização há décadas, mas não há recurso para reerguer a indústria porque não sobra dinheiro (dentre outras razões).

No Brasil os especuladores levam todo ano mais da metade do Orçamento Federal. Nos EUA, que têm um orçamento federal de 6 trilhões de dólares (cerca de 8,2 vezes superior ao brasileiro) a dívida pública custa 12% do Orçamento. Isso com uma dívida pública bruta, de 31,2 trilhões de dólares (outubro de 2022), que representou mais de 124,9% do PIB norte-americano no ano passado (23 trilhões de dólares). Claro, temos que considerar que os EUA dispõem de uma condição única no mundo, típica do maior império terreno, que a de contar com uma moeda com “aceitação” mundial (forçada), uma espécie de “padrão dólar” no qual essa moeda é utilizada no mundo inteiro para comércio entre as nações. Este é um privilégio equivalente, na área econômico-financeira, ao de ser a principal potência militar do planeta. A transição para outras moedas, como já está ocorrendo gradativamente, significa um duro golpe para os EUA, que há décadas imprime em casa a moeda que possui utilização mundial (em declínio).

A dívida pública é uma síntese de um sistema de parasitagem que os pobres do país suportam. Manter a maior taxa de juros do planeta e transferir fortunas para os banqueiros todo ano, não tem nada a ver com decisões técnicas. A dívida é um sistema extraordinário de transferência de riqueza para pessoas jurídicas e físicas muito ricas, residentes no país, ou não. Como é um sistema complexo, afeito aos especialistas, a população não entende. Como quem controla tudo é gente ligada aos próprios banqueiros, é um sistema fora do controle das estreitas instâncias democráticas da sociedade.

Os especialistas no tema denunciam sistematicamente que não há transparência nenhuma nos dados da dívida pública. Mas imaginem se um processo de desvio de 5% do PIB nacional, para um grupo de bilionários, em nome de uma dívida ilegítima poderia ter transparência? Se a população entendesse que o país que deixa 33 milhões de brasileiros passar fome, tem ruas esburacadas e gente morrendo na fila do SUS, transfere diariamente bilhões para super-ricos? Isso em nome de uma dívida, inclusive, que no fundo, já foi paga várias vezes? Por isso mesmo, esses processos não poderiam ser transparentes.

A Eletrobras, que o governo Bolsonaro entregou neste ano, foi “doada” por cerca de um sétimo dos juros pagos aos banqueiros no ano passado. A maior empresa de energia da América Latina foi entregue, praticamente em troca de bananas. O que revela que a história de privatizar empresas públicas para pagar a dívida, repetida tantas vezes por Paulo Guedes e outros, é uma conversa fiada que não tem limites.

A situação do Estado brasileiro é radicalmente complexa e, portanto, requer ações determinadas. Os capitalistas não investem em obras de infraestrutura, seja porque não têm dinheiro (no caso dos pequenos e médios), seja porque podem ter muito mais retorno especulando com papéis da dívida pública (no caso dos grandes capitalistas). Por outro lado, a sucção de recursos provocada pela dívida pública, faz com que o Estado fique trabalhando o tempo todo somente para engordar os especuladores. Não sobra dinheiro para mais nada. Quando acontece uma enchente, como há poucos dias no Sul do Brasil, o povo pobre fica debaixo de água, porque o Estado não tem dinheiro para fazer obras fundamentais para um mínimo de bem-estar da população. Isso em um país onde a estrutura de arrecadação é regressiva, ou seja, feita através de impostos indiretos, pagos pelo povo.

Do ponto de vista econômico algumas medidas não poderiam faltar em um processo de reconstrução econômica do Brasil, cuja economia foi quase destruída pelos golpistas: retomada do crescimento; programa vigoroso de combate à fome; programa de investimentos em infraestrutura urbana; recuperação do mercado consumidor interno; revogação do Teto de Gastos; nova política de preços dos derivados do petróleo; amplo programa de recuperação da indústria e inovação; política de exploração mineral do país; política pública e integrada de segurança hídrica para o país; reversão das privatizações na Petrobrás e na Pré–Sal Petróleo S.A. (PPSA); reversão de todas as privatizações ocorridas desde o golpe de 2016; estruturação de uma política de defesa da Amazônia.

A implementação dessas medidas – e tantas outras essenciais – depende de alteração na correlação de forças, e não apenas de competência técnica. Ademais, o encaminhamento das medidas elencadas implica na retomada do papel que foi retirado do Estado brasileiro, principalmente a partir do golpe, de indutor do crescimento e do desenvolvimento nacional. O país precisará ser reconstruído. Lula, em entrevista coletiva no dia 02 de dezembro último, repetiu o que já tinha dito em outras ocasiões: “ganhei as eleições para governar para o povo pobre mais humilde deste país. Esta é a minha missão”. Esta genuína convicção do futuro presidente, para se tornar ação concreta, terá que encarar o problema da dívida pública e os seus beneficiários, que são muito poderosos.

Educação sob Lula: os consensos e as polêmicas, entrevista com Daniel Cara

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Equipe de transição parece concordar sobre recomposição orçamentária, fim das escolas militarizadas e revisão do “Novo Ensino Médio”. Mas como tratar as escolas privadas – em especial por meio do Fies e Prouni? Aí despontam as próximas disputas

Daniel Cara em entrevista a Thalita Pires, no Brasil de Fato. Outras Mídias – 08/12/2022

O Grupo de Trabalho de Educação da transição é composto por atores diversos: gestores, fundações empresariais, membros de universidades, representantes de trabalhadores e parlamentares. Entre eles, está em disputa o tipo de projeto de educação que o Brasil terá nos próximos quatro anos: investimento em educação 100% pública ou parcerias com a iniciativa privada.

Em entrevista ao Brasil de Fato, Daniel Cara, integrante do GT, dirigente da Campanha Nacional pelo Direito à Educação e coordenador do curso de licenciaturas da Universidade de São Paulo, afirma que, apesar disso, o grupo está em acordo sobre a revogação de uma série de políticas destrutivas aplicadas pelos governos Bolsonaro e Temer.

Entre elas está o fim das escolas cívico-militares, da alfabetização focada em um aplicativo, da atual política de formação de professores e da Política de Educação Especial, considerada excludente.

Outro ponto, esse ainda em discussão, é a aplicação de mudanças no Novo Ensino Médio, aprovado no governo Temer. “É preciso, no mínimo, reformar a reforma do Ensino Médio. Ela é catastrófica, caótica, foi uma irresponsabilidade promovida pelo Michel Temer junto a vários aliados e fundações e associações empresariais”, diz Cara. “Todos hoje reconhecem que ou a reforma é reformada ou ela tem que ser revogada. Então a sentença está dada, estamos discutindo a dosimetria.”

Cara afirma, ainda, que o próprio presidente Lula pautou suas prioridades. “Na educação básica, ele quer fazer uma recuperação de aprendizagem pós-pandemia e recompor o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae)”, afirma. “Em relação à educação superior, ele exige que o grupo de transição se paute essencialmente sobre a recomposição orçamentária das universidades e institutos federais de educação superior.”

Confira a entrevista na íntegra:

O que existe até agora de diagnóstico em relação à educação no GT? Qual é o resumo do governo Bolsonaro em relação a esse tema?

O governo Bolsonaro, na prática, desligou o Ministério da Educação da tomada. Foi uma das áreas mais atacadas pelo governo, junto com ciência e tecnologia, pelo fato de que, para o governo Bolsonaro, essas áreas têm que servir como uma caixa de ressonância à propaganda bolsonarista.

Com isso, o Ministério da Educação foi completamente debelado. O último fato que ocorreu [na semana passada] foi um bloqueio dos recursos das universidades federais. Ele bloqueou os recursos, em sequência, por conta da pressão dos reitores e da sociedade civil, desfez o bloqueio para seis horas depois refazer o bloqueio. Então é um governo que de fato não se preocupa com a educação, pelo contrário, ataca a educação, porque sabe que tanto a educação quanto as ciências servem como espaços de racionalidade, de construção democrática, construção republicana. É exatamente isso que o governo Bolsonaro não quer que aconteça.

Numa primeira análise, entregue no dia 30 de novembro, apresentamos um relatório com quatro tópicos: alertas a respeito da desconstrução que foi feita da política educacional, com relatórios do Tribunal de Contas da União (TCU), do Parlamento, do Ministério Público Federal (MPF) e de órgãos de controle externo, pautados pela sociedade civil; sugestão de reorganização da estrutura do Ministério da Educação; recomposição orçamentária e revogaço de medidas tomadas pelo governo que precisam ser extirpadas.

São políticas totalmente equivocadas, como a educação cívico-militar, de uma lógica absurda, que faz uma oposição equivocada entre a disciplina autoritária, que não funciona em termos de ensino-aprendizado, e as ciências pedagógicas que de fato funcionam. Nesse sentido nós já tomamos algumas decisões. A escola cívico-militar é um caso do revogaço.

Desses pontos que vocês já analisaram e entregaram para Lula, quais são os piores diagnósticos?
São muitas coisas, então vou falar aquilo que interessa objetivamente às pessoas. Um ponto é a Política Nacional de Alfabetização. O governo Bolsonaro acreditou que era possível alfabetizar uma criança por um aplicativo em seis meses. Utilizavam um aplicativo que é um dos componentes do processo de alfabetização na Finlândia, o mais irrelevante, diga-se de passagem.

Trouxeram esse aplicativo da Finlândia e fizeram uma propaganda absurda de que o aplicativo pode substituir professoras e professores. Então a política de alfabetização é toda pautada em uma ciência antiquada, num método antiquado, que é o método fônico. Inclusive cientificamente já vem sendo comprovado como um método ineficaz especialmente para línguas complexas e irregulares como a língua portuguesa. Para dar um exemplo bem fácil: no método fônico é muito difícil a criança perceber a diferença entre ‘osso’ e ‘aço’. São palavras com grafias completamente distintas e a separação silábica não é simples.

Outra política que tem que ser revogada é a Política Nacional de Educação Especial, que Bolsonaro transforma em uma política discriminatória, não em uma política inclusiva. A gente também está revendo essa questão.

Há outro debate que não é simples no grupo. É preciso revogar a Política de Formação de Professores proposta pelo Conselho Nacional de Educação na forma da Resolução 02/2019 (Base Nacional Comum Formação). Por que é preciso revogar essa medida? Porque ela sequer foi implementada, de tão ruim que ela é. Quem propôs essa política nunca formou um professor sequer.
Nesse momento sou professor da Universidade de São Paulo, essa é a minha filiação principal em termos profissionais. Sou coordenador do curso de licenciaturas de toda a USP pela Faculdade de Educação. Nesse semestre nós formamos 2.761 professores que vão trabalhar nas redes públicas brasileiras. Já as fundações e associações empresariais e também as pessoas do Conselho Nacional de Educação não podem falar sobre algo que elas desconhecem, que é formação de professores.

Para além disso, há uma preocupação enorme na recomposição orçamentária das universidades e Institutos Federais [IFs] de educação superior. Os IFs são o nosso ponto estratégico para democratizar o acesso ao ensino, são as instituições que de fato vão fazer com que o acesso ao ensino seja nacionalizado, pois conseguem regionalizar.

É claro que Lula e Dilma criaram muitas universidades e as interiorizaram. Mas os IFs têm demonstrado uma capacidade mais eficaz de interiorização, porque é uma estrutura mais dedicada ao ensino. Eles têm também um trabalho efetivo e qualificado de pesquisa e extensão, mas em relação ao ensino são imbatíveis, conseguem chegar a lugares em que as universidades não chegam.

Então a gente precisa recompor esse orçamento. E aí tem uma grande facilidade, porque essa é a obsessão do presidente Lula. Se tem um presidente da República com a compreensão de que o Brasil precisa da educação, ciência e tecnologia para se desenvolver é o Lula. Nesse sentido a gente está tranquilo. O nosso trabalho é muito mais indicar caminhos porque a agenda está estabelecida por quem foi eleito.

Considerando o histórico dos governos Lula e Dilma, que você mencionou, existe a necessidade de alguma mudança de rota daquilo que já foi realizado nas administrações do PT?

Na educação básica, há algumas coisas, como a primazia das avaliações de larga escala na educação. O Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), índice que é fruto de um exame, o Sistema de avaliação da Educação Básica (Saeb), e outras avaliações de larga escala precisam ser redimensionadas em relação ao seu tamanho dentro da área de educação.

O Brasil, desde 2007, se acostumou a fazer política de educação orientada para a avaliação, sendo que deveria ser o contrário, a avaliação deveria mostrar como foi aplicada a política de educação. Ou seja, quando você transforma a avaliação, que é um instrumento, no fim da política,

o resultado é que você faz tudo, menos educar com qualidade as crianças, adolescentes, jovens adultos e idosos que cursam a educação básica. O Brasil tem uma grande quantidade de adultos e idosos que não completaram a educação básica, cerca de 30 milhões de brasileiros já têm mais de 15 anos e estão em uma situação de analfabetismo funcional.

Outro tema que tem que entrar na agenda é discutir Fies e Prouni. São programas que devem ser tratados como emergenciais, mas precisam ter forte regulação do Governo Federal em termos de qualidade. Especialmente nos governos Temer e Bolsonaro, serviram essencialmente para enriquecer as universidades [privadas]. Já tinha acontecido esse problema com o Lula, mas com Temer e Bolsonaro isso se tornou muito pior, até pela relação que o governo Bolsonaro tem com o setor privado.

A família do Paulo Guedes e o próprio Paulo Guedes investem ou já investiram na área. Hoje outros membros da família dele investem na área, são lideranças da área da educação superior privada. Isso precisa ser revisto. Não porque eu estou aqui querendo dizer que a educação privada não tem que existir, não é disso que eu estou falando. Eu estou dizendo que a educação superior privada precisa ter qualidade. E se ela recebe apoio do poder público, ela precisa ter duas vezes mais qualidade, porque é o dinheiro do contribuinte que financia o Fies e o Prouni. O Prouni é de forma indireta, porque é uma renúncia fiscal, é um dinheiro que deixa de ser arrecadado, e o Fies é um sistema de empréstimo que tem um impacto muito grande no Tesouro Nacional.

O Tesouro Nacional pertence a todas e todos nós. Nós construímos o Tesouro Nacional. Em termos de contribuição, as pessoas mais pobres do Brasil contribuem mais do que as mais ricas, porque mais do bolso delas é retirado para o financiamento das políticas públicas. Então as políticas públicas têm que priorizar as pessoas que mais contribuem para o orçamento público, que são os mais pobres. Por isso é preciso rever a forma como se dá a regulação do Fies e também do Prouni.

A gente tem uma perspectiva de atualização das políticas do governo Lula e Dilma, mas não adianta pensar só no passado, olhar só para o retrovisor, a gente precisa começar a construir o futuro, e é nisso que estou dedicado dentro da área da educação na transição governamental.

Hoje na educação existe disputa pelo recurso público. Muitas vezes se defende que ele vá de fato para as empresas privadas. Isso vem acontecendo em alguns estados, há projetos de lei para que a gestão seja privatizada. Existe essa disputa dentro do grupo de transição?

Tem pessoas que pensam isso, mas não têm coragem de dizer. Só que é importante frisar uma realidade: Lula teve 58 milhões de votos no primeiro turno. Bolsonaro teve isso no segundo turno. Com 900 mil votos a mais, Lula já venceria o Bolsonaro, mas ele teve três milhões a mais.

Aliados que chegaram no segundo turno não podem querer determinar toda a agenda do que vai ser o futuro governo, não em relação só à educação, mas a toda a transição.

Espero que o Lula nomeie Fernando Haddad como ministro da Fazenda, porque é um sinal claro de quem vai comandar o governo, de quem tem a responsabilidade de fazer um processo de gestão com aquilo que foi votado pelo eleitor. O eleitor indicou o Lula no primeiro turno. É importante frisar que o anti-Bolsonaro é o eleitor do segundo turno, não o do primeiro. Então nesse sentido, quem defende a educação privada tem que saber lidar com o tamanho que eles têm, um tamanho muito menor do que quem defende a educação pública de qualidade. É claro que nesse momento não estou querendo criar uma cisão, só estou dizendo que as forças têm que ser dimensionadas, porque esse é nosso compromisso com o eleitor, quem votou no Lula não quer educação privatizada, mas educação pública de qualidade.

Quais são os principais pontos que a equipe de transição já entrou em acordo para as sugestões para o futuro governo Lula?

Nesse momento nós acordamos a revogação da política de escola cívico-militar, revogação da Política Nacional de Alfabetização, revogação da Política de Educação Especial. Nós acordamos que é preciso debater a revogação da formação de professores conforme o Bolsonaro propôs, que é uma desconstrução dos de licenciaturas e de pedagogia. Nós também acordamos que é preciso, no mínimo, reformar a Reforma do Ensino Médio. Essa reforma é catastrófica, caótica, foi uma irresponsabilidade promovida pelo Michel Temer junto a vários aliados e fundações e associações empresariais. Todos hoje reconhecem que ou a reforma é reformada ou ela tem que ser revogada. Então a sentença está dada, estamos discutindo a dosimetria.

Há ainda duas políticas que o presidente Lula agendou em relação à educação básica e uma terceira em relação à educação superior. Ele quer fazer uma recuperação de aprendizagem pós-pandemia e recompor o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae). Em relação à educação superior, ele exige que o grupo de transição se paute essencialmente sobre a recomposição orçamentária das universidades e institutos federais de educação superior.

O custo do ‘não à educação’ para o desenvolvimento do Brasil, por Guggenberger .

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Teremos apagão de mão de obra qualificada sem os investimentos necessários para formar bons profissionais

Luís Fernando Guggenberger, Executivo de marketing, inovação e sustentabilidade da Vedacit, participa do Conselho de Governança do Gife – Grupo de Institutos, Fundações e Empresas, do Conselho Consultivo da GRI Brasil e do Conselho Fiscal do ICE

Folha de São Paulo, 08/12/2022

Você já parou para pensar na receita de sucesso de grandes indústrias e startups? Um dos fatores é a junção de conhecimentos técnicos, seja em linguagem de programação e outros ligados ao universo da tecnologia, ou nas diferentes disciplinas das engenharias, assim como é estratégico o estudo em negócios, finanças, recursos humanos, vendas e marketing.

Proponho então uma reflexão necessária sobre o futuro do ambiente de negócios no Brasil com a falta de investimento público na educação.

Cada vez que esse investimento é negligenciado, das universidades públicas às escolas técnicas, empresas são impactadas com a falta de mão de obra qualificado e com a necessidade de desenvolver mais pessoas dentro das organizações.

A criação de startups e novas tecnologias, que demandam estudos especializados, também diminui, em contraponto ao trabalho informal que cresce vertiginosamente.

Com o anúncio recente do governo do bloqueio de R$ 2,4 bilhões do orçamento do MEC (Ministério da Educação) deste ano, os institutos da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica terão uma perda de R$ 300 milhões, somando os cortes anteriores.

Nas universidades federais, a soma anual até o momento é de uma perda de R$ 763 milhões, com relação ao orçamento aprovado para 2022. Esses desinvestimentos terão impacto direto nas futuras gerações, que sofrerão com a falta de qualificação profissional.

Anunciar cortes nas universidades não é uma questão ideológica de “tirar dinheiro dos pesquisadores das áreas humanas”. Florianópolis é um exemplo concreto de como esse investimento faz a diferença.

Conhecida como uma das cidades do “Vale do Silício Brasileiro”, Santa Catarina reúne cerca de 19 mil startups, resultado da visão de futuro de antigos governantes.

Há cerca de 40 anos, professores universitários, especialmente nas áreas de engenharias e afins, fizeram cursos no exterior. O objetivo era fortalecer a vocação industrial do estado, mas os frutos colhidos foram além, com o desenvolvimento tecnológico de toda a região.

Afinal, as competências básicas para criação de uma startup incluem empreendedorismo, visão de negócios e a parte de programação, habilidade técnica que envolverá a solução.

Desta forma, ao diminuir os investimentos nas universidades agora, estamos enfraquecendo a capacidade empreendedora do país nos próximos anos. Desenvolveremos menos competências técnicas nos futuros profissionais e, consequentemente, teremos um apagão de mão de obra qualificada e de habilidades técnicas.

Atualmente, o mercado de trabalho já demonstra esse impacto especialmente na área de digitalização, na qual sobram vagas e faltam profissionais.

Pesquisa realizada pela Agência Alemã de Cooperação Internacional (Giz), em parceria com o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), mostra especialmente as novas necessidades no setor agrícola, com vagas para operador de drones, engenheiro agrônomo digital, cientista de dados e engenheiro de automação.

Outra pesquisa do Senai indica que nos próximos dois anos o setor de tecnologia contratará mais de 400 mil profissionais, mas atualmente há apenas 106 mil trabalhadores capacitados.

Nas empresas, os investimentos em treinamentos técnicos são, em sua maioria, para colaboradores de nível não gerencial, segundo o estudo “O Panorama do Treinamento no Brasil”, da Associação Brasileira de T&D (ABTD) em parceria com a Integração Escola de Negócios.

A distribuição do investimento em treinamento e desenvolvimento de competências técnicas é de 47% para operação e indústria, 46% para áreas administrativas e 43% para equipe comercial.

As porcentagens só são invertidas, com o aumento no incentivo das competências comportamentais, para a alta liderança, com 52%, e para gerentes e supervisores, com 48%.

Já estamos pagando um preço alto pelo descaso histórico de governos anteriores, que não priorizaram como deveriam a educação, e o buraco fica cada vez mais profundo, com impacto direto na mão de obra qualificada em diversas carreiras não operacionais. Empresas podem até absorver parte desse custo, mas não é o suficiente.

É urgente olharmos e cobrarmos comprometimento de nossos governantes com a educação, especialmente se os projetos e planos de governo propostos durante as campanhas —seja de deputados, senadores, governadores ou do presidente— , serão realmente colocados em prática a partir do próximo ano.

Com profissionais preparados, aliados à inteligência e criatividade do brasileiro, as possibilidades de crescimento do país serão infinitas.

Transição

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Estamos vivendo momentos de grandes alterações na sociedade, neste cenário, a palavra transição tem grande relevância para a sociedade, um momento de grandes modificações, novos movimentos e novos horizontes, criando espaços de melhoras de um lado e perdas de outro, vivemos momentos de grandes transições sociais, econômicas, culturais, tecnológicas e políticas.

Vivemos momentos de medos e desesperanças convivendo lado a lado com espaços de confianças, solidariedade e esperanças, onde os seres humanos vislumbram melhoras na qualidade da vida, crescimento econômico e incrementos culturais convivendo com desequilíbrios sociais e degradação democrática. Vivemos num mundo marcada por grandes transições, que nos leva a refletir sobre conceitos fundamentais para a convivência social.

Dentre as grandes transições em curso na sociedade, encontramos transições de governos, mudanças políticas, novas construções sociais, novas agendas econômicas, novos modelos produtivos, novos modelos energéticos e o surgimento de pautas que geram perspectivas para uns e pesadelos para outros, com reivindicações legítimas e confrontos abertos, que geram guerras declaradas e desequilíbrios que levam a comunidade a momentos de caos generalizados.

Nestas transições, os agentes econômicos buscam garantir seus ganhos imediatos, a manutenção de seus patrimônios monetários, buscando blindar suas influências políticas e incrementar seus repasses materiais que garantem a perpetuação de seu poder visível e invisível, que perpassa anos, décadas… e, em muitos casos, milênios. Vivemos um momento de grandes transições produtivas, neste momento os grandes bilionários internacionais possuem grandes impérios de tecnologia, controlam dados e conhecimentos e garantem, com isso, o comando das estruturas sociais, dominam setores financeiros, controlam as mídias e influenciam as estruturas do poder político.

As novas formas de poder da sociedade contemporânea diferem enormemente das estruturas de poder convencional, cinquentas anos atrás os grandes detentores do poder econômicos eram os conglomerados siderúrgicos, automobilísticos e varejistas. Na contemporaneidade os donos do poder são os grupos de tecnologia, as chamadas big techs, grandes conglomerados que controlam todos os espaços no mundo digital e definem os pensamentos, criam valores, padrões de comportamento e novas formas de socialização dos seres humanos, vivemos num momento de grandes transições, que geram incertezas, medos e violências crescentes.

Os ventos da transição estão gerando novas formas de convivência social, aproximando os indivíduos no espaço virtual e afastando pessoas dos espaços físicos, gerando novas formas de relações sociais. A tecnologia nos aproxima no mundo virtual, mas ao mesmo tempo, gera distanciamento real, estamos cada vez mais sozinhos, solitários, individualistas, imediatistas, frios e, neste cenário, nos assustamos com os comportamentos do indivíduo na sociedade contemporâneo, que dissemina inverdades, degradação e ressentimentos.

Neste momento, estamos naturalizando a violência, cultuando a ignorância, defendendo a segregação, fomentando a degradação do mercado de trabalho, cultuando o deus mercado mas, neste momento de grandes transições, utilizamos seus lobbies para garantir suas benesses tributárias e suas isenções, falamos da ineficiência dos governos mas não refletem sobre suas ineficiências, sua incompetências e só prosperam degradando os direitos alheios, pouco investem na qualificação de sua mão de obra e criam novas obrigações e sem contrapartidas.

Vivemos numa sociedade marcada por grandes transições e de contradições, o Brasil vive sempre em transições inacabadas, transitando do trabalho escravo para o modelo de assalariamento e, na contemporaneidade, estamos nos organizando para retornar um novo modelo de trabalho escravo. Estamos transitando de uma educação feudal para uma educação fordista e, não percebemos que vivemos no mundo do conhecimento. Sem projeto nacional, sem visão de nação, continuaremos transitando sem norte, sem rumo e perpetuando as misérias morais e a insensibilidade social.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Sociologia do Trabalho e Exclusão Social, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 07/12/2022.

Safatle: Anistia nunca mais

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Democracia foi dilapidada. Reconstruí-la exige punir os crimes de Bolsonaro, as chantagens dos militares e a politização das políticas. Primeiros meses do novo governo serão essenciais para isso. Senão estaremos fadados a repetir o passado…

Vladimir Safatle – Comissão Arns – OUTRA MÍDIAS – 01/12/2022

Muitas vozes alertam o Brasil sobre os custos impagáveis de cometer um erro similar àquele feito há 40 anos. No final da ditadura militar, setores da sociedade e do governo impuseram o silêncio duradouro sobre crimes contra a humanidade perpetrados durante os vinte anos de governo autoritário. Vendia-se a ilusão de que se tratava de astúcia política. Um país “que tem pressa”, diziam, não poderia desperdiçar tempo acertando contas com o passado, elaborando a memória de seus crimes, procurando responsáveis pelo uso do aparato do Estado para prática de tortura, assassinato, estupro e sequestro. Impôs-se a narrativa de que o dever de memória seria mero exercício de “revanchismo” – mesmo que o continente latino-americano inteiro acabasse por compreender que quem deixasse impunes os crimes do passado iria vê-los se repetirem.

Para tentar silenciar de vez as demandas de justiça e de verdade, vários setores da sociedade brasileira, desde os militares até a imprensa hegemônica, não temeram utilizar a chamada “teoria dos dois demônios”. Segundo ela, toda a violência estatal teria sido resultado de uma “guerra”, com “excessos” dos dois lados. Ignorava-se, assim, que um dos direitos humanos fundamentais na democracia é o direito de resistência contra a tirania. Já no século 18, o filósofo John Locke, fundador do liberalismo, defendia o direito de todo cidadão e de toda cidadã matar o tirano.

Pois toda ação contra um estado ilegal é uma ação legal. Note-se: estamos a falar da tradição liberal.

Os liberais latino-americanos, porém, têm essa capacidade de estar sempre abaixo dos seus próprios princípios. Por isso, não é surpresa alguma ouvir um ministro do Supremo Tribunal Federal, como Dias Toffoli, declarar, em pleno 2022, pós-Bolsonaro: “Não podemos nos deixar levar pelo que aconteceu na Argentina, uma sociedade que ficou presa no passado, na vingança, no ódio e olhando para trás, para o retrovisor, sem conseguir se superar (…) o Brasil é muito mais forte do que isso”.

Afora o desrespeito a um dos países mais importantes para a diplomacia brasileira, um magistrado que confunde exigência de justiça com clamor de ódio, que vê na punição a torturadores e a perpetradores de golpes de estado apenas vingança, é a expressão mais bem acabada de um país, esse sim, que nunca deixou de olhar para o retrovisor. Um país submetido a um governo que, durante quatro anos, fez de torturadores heróis nacionais, fez de seu aparato policial uma máquina de extermínio de pobres.

Alguns deveriam pensar melhor sobre a experiência social de “elaborar o passado” como condição para preservação do presente. Não existe “superação” onde acordos são extorquidos e silenciamentos são impostos. A prova é que, até segunda ordem, a Argentina nunca mais passou por nenhuma espécie de ameaça à ordem institucional. Nós, ao contrário, enfrentamos tais ataques quase todos os dias dos últimos quatro anos. Nada do que aconteceu conosco nos últimos anos teria ocorrido se houvéssemos instaurado uma efetiva justiça de transição, capaz de impedir que integrantes de governos autoritários se auto-anistiassem. Pois dessa forma acabou-se por permitir discursos e práticas de um país que “ficou preso no passado”. Ocultar cadáveres, por exemplo, não foi algo que os militares fizeram apenas na ditadura. Eles fizeram isso agora, quando gerenciavam o combate à pandemia, escondendo números, negando informações, impondo a indiferença às mortes como afeto social, impedindo o luto coletivo.

É importante que tudo isso seja lembrado neste momento. Porque conhecemos a tendência brasileira ao esquecimento. Este foi um país feito por séculos de crimes sem imagens, de mortes sem lágrimas, de apagamento. Essa é sua tendência natural, seja qual for o governante e seu discurso. As forças seculares do apagamento são como espectros que rondam os vivos. Moldam não apenas o corpo social, mas a vida psíquica dos sujeitos.

Cometer novamente o erro do esquecimento, repetir a covardia política que instaurou a Nova República e selou seu fim, seria a maneira mais segura de fragilizar o novo governo. Não há porque deleitar-se no pensamento mágico de que tudo o que vimos foi um “pesadelo” que passará mais rapidamente quanto menos falarmos dele. O que vimos, com toda sua violência, foi o resultado direto das políticas de esquecimento no Brasil. Foi resultado direto de nossa anistia.

A sociedade civil precisa exigir do governo que se inicia a responsabilização pelos crimes cometidos por Bolsonaro e seus gerentes. Isso só poderá ser feito nos primeiros meses do novo governo, quando há ainda força para tanto. Quando falamos em crimes, falamos tanto da responsabilidade direta pela gestão da pandemia, quanto pelos crimes cometidos no processo eleitoral.

O Tribunal Penal Internacional aceitou analisar a abertura de processo contra Bolsonaro por genocídio indígena na gestão da pandemia. Há farto material levantado pela CPI da Covid, demonstrando os crimes de responsabilidade do governo que redundaram em um país com 3% da população mundial contaminada e 15% das mortes na pandemia. Punir os responsáveis não tem nada a ver com vingança, mas com respeito à população. Essa é a única maneira de fornecer ao estado nacional balizas para ações futuras relacionadas a crises sanitárias similares, que certamente ocorrerão.

Por outro lado, o Brasil conheceu duas formas de crimes eleitorais. Primeiro, o crime mais explícito, como o uso do aparato policial para impedir eleitores de votar, para dar suporte a manifestações golpistas pós-eleições. A polícia brasileira é hoje um partido político. Segundo, o pior de todos os crimes contra a democracia: a chantagem contínua das Forças Armadas contra a população. Forças que hoje atuam como um estado dentro do estado, um poder à parte.

Espera-se do governo duas atitudes enérgicas: que coloque na reserva o alto comando das Forças Armadas que chantageou a República; e que responsabilize os policiais que atentaram contra eleitores brasileiros, modificando a estrutura arcaica e militar da força policial. Se isso não for feito, veremos as cenas que nos assombraram se repetirem por tempo indefinido.

Não há nada parecido a uma democracia sem uma renovação total do comando das Forças Armadas e sem o combate à polícia como partido político. A polícia pode agir dessa forma porque sempre atuou como uma força exterior, como uma força militar a submeter a sociedade. Se errarmos mais uma vez e não compreendermos o caráter urgente e decisivo de tais ações, continuaremos a história terrível de um país fundado no esquecimento e que preserva de forma compulsiva os núcleos autoritários de quem comanda a violência do Estado. Mobilizar a sociedade para a memória coletiva e suas exigências de justiça sempre foi e continua sendo a única forma de efetivamente construir um país.

A “austeridade” acampa nas portas dos quartéis, por Gilberto Maringoni

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O fascismo e a “disciplina fiscal” dos mercados caminham de mãos dadas. Ambos clamam por soluções não-racionais, não institucionais e não-democráticas. É impossível estabelecer políticas neoliberais sem romper com a democracia

Gilberto Maringoni – Outras Palavras – 28/11/2022

Austeridade fiscal não é uma iniciativa episódica ou um freio de arrumação nas contas públicas. Austeridade fiscal é a forma perene de se administrar o capitalismo do século XXI através da ameaça infindável de mais cortes e mais constrangimentos aos orçamentos públicos. As políticas de austeridade fiscal são sempre brandidas pelo “mercado” e por seus representantes no aparelho de Estado como uma espécie de castigo bíblico contra o pecado capital (!) da gastança, que pode ser tanto o investimento em obras de infraestrutura, quanto o de levar comida ao prato dos miseráveis. A austeridade fiscal age como ameaça punitiva preventiva contra tentações de expansão de tarefas do Estado, como espada desembainhada sempre pronta a ser manuseada contra os inimigos da boa governança. Austeridade fiscal é a doutrina do choque aplicada à economia.

ESTAMOS EM CRISE, estamos em crise, estamos em crise e é preciso pagar por isso!

A AUSTERIDADE FISCAL é o complemento teoricamente racional ao bolsonarismo de porta de quartel, à chantagem de que se meu candidato não ganhou é porque fraude houve. O apelo positivista-jagunço à ordem equivale à criminalização de políticas fiscais expansivas. O golpismo dos ressentidos não nasceu junto das políticas de austeridade, mas na quadra histórica de esgarçamento do tecido social e fragmentação do mundo do trabalhoo austericismo retroalimenta a busca por soluções mágicas na esfera política.

A AUSTERIDADE COMO MODO DE GESTÃO embute um componente profundamente fatalista e mítico à gestão pública. Depois do infindável sacrifício da contenção de dinheiro, eis que os céus se abrirão e a redenção do crescimento, do emprego e do dinheiro no bolso surgirá por encanto. O austericismo nos levará a uma solução mágica equivalente à do sebastianismo fardado resultante de vigílias coletivas por 7 dias e 7 noites em frente às tropas enfileiradas ou do socorro que virá dos ETs conectados aos celulares em nossas cabeças. A partir daí, o fogo purificador do golpe nos conduzirá à vida eterna.

AUSTERICÍDIO E FASCISMO caminham, pois, de mãos dadas. Ambos clamam por soluções não-racionais, não institucionais e não-democráticas. Pinochet (e Milton Friedman) cantaram a pedra há quase meio século: é impossível estabelecer políticas alucinadamente liberais na economia sem romper com a democracia. É preciso queimar pneus, é preciso bloquear estradas, é preciso vaiar Gil, é preciso metralhar alunos e professores em sala de aula, é preciso matar petralhas, é preciso escrever editoriais ameaçadores, é preciso manter o teto, é preciso privatizar, é preciso escrever cartas com conselhos arrogantes a Lula, é preciso lembra-lo que assim ele não vai governar, é preciso lembrar de fazer todos esquecerem as 700 mil mortes, é preciso, é urgente fazer alguma coisa!

AS POLÍTICAS DE AUSTERIDADE – com seu entulho modernizante de teto de gastos, responsabilidade fiscal, superávit primário, entre outras pérolas – são formuladas a partir da teoria econômica do celular na cabeça. E ai dos que não se enquadrarem em suas tábuas da lei: serão condenados ao déficit eterno e à eliminação do mercado, o nirvana dos bobos. Vigiar e punir é pouco. Austeridade e fascismo significa punir e punir em busca da redenção nas quatro linhas de qualquer coisa que surja a cada momento.

Tudo o mais é populismo, e será condenado aos infernos!

Contemporaneidade

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São inúmeros os desafios para a sociedade brasileira contemporânea que exigem grandes capacidades de organização social, planejamento econômico e liderança política. Vivemos numa sociedade marcada por grandes desequilíbrios e conflitos políticos, esgotamento do modelo econômico, aumento da desesperança, degradações ambientais, negacionismo científico, crescimento da pobreza e da violência e o aumento acelerado da população global, gerando incertezas nos agentes econômicos, redução dos investimentos produtivos, desagregação dos laços sociais, com aumento do individualismo, do imediatismo e degradação ambiental.

Dentre estes desafios contemporâneos, precisamos destacar as rápidas transformações demográficas, o aumento dos idosos, a longevidade dos indivíduos e uma redução do número de crianças, exigindo da sociedade a consolidação do planejamento estratégico e uma grande capacidade de vislumbrar os desafios futuros, preparando as organizações, qualificando o capital humano e criando espaços de atuação social e política, fortalecendo os conselhos como local de discussão democrática e participativo da comunidade, contribuindo para a construção e a consolidação da cidadania.

No século XIX, um economista inglês chamado Thomas Robert Malthus defendia a tese de que estávamos nos aproximando de uma grande fome, isso aconteceria porque a população mundial estava crescendo rapidamente e a oferta de alimentos não conseguiria acompanhar este crescimento, com isso, a fome deveria assolar a sociedade, aumentando os conflitos sociais, incrementando as guerras e as instabilidades políticas. Suas teses não se efetivaram, apesar do crescimento populacional a oferta de alimento cresceu mais rapidamente do que a demanda, em decorrência do aumento tecnológico, do incremento das técnicas de produção e dos avanços das pesquisas científicas em insumos, fertilizantes e adubos.

Na contemporaneidade percebemos que as mazelas da fome crescem em todas as regiões do mundo, não pela falta da oferta de alimento, mas sim pela ausência da renda dos trabalhadores, todo este cenário impacta sobre as alterações na estrutura populacional, exigindo políticas públicas para garantir segurança alimentar para as comunidades mais carentes e fragilizadas.

O novo perfil populacional da sociedade nacional necessita de uma ampla reformulação das formas de sociabilidade humana, uma ampla alteração dos modelos econômicos e produtivos, uma reestruturação intensa no mundo do trabalho e a criação de espaços para absorver indivíduos mais experientes que, muitas vezes, são preteridos pelos mais jovens, com isso, precisamos incrementar os investimentos da chamada economia criativa, que tem grande potencial para alavancar a economia brasileira e, infelizmente, na história nacional é muito negligenciada, com poucos recursos investidos na cultura, no audiovisual e nas artes cênicas.

As alterações populacionais tendem a demandar mais profissionais em detrimento de outros, com isso, novos cursos e formações específicas ganham relevância como forma de absorver todos os trabalhadores, buscando melhores condições de trabalho, melhorando a capacitação da mão-de-obra, fomentando a flexibilidade e o dinamismo para se adaptar para as transformações cotidianas.
Os avanços tecnológicos, nas mais variadas áreas de conhecimento, estão gerando transformações silenciosas, desestimulando atividades e consolidando novas formas de trabalho, novas habilidades comportamentais ganham centralidade, a inteligência emocional ganha relevância e os investimentos em capital humano, exigindo uma sociedade consciente para compreendermos os desafios na sociedade contemporânea, levando oportunidades para todos os indivíduos e para todas as comunidades, evitando que os conflitos econômicos e desequilíbrios políticos não fragilizem as bases que sustentam a sociedade, degradando a democracia e gerando mais espaço de violência, medo e desesperanças.

Os desafios populacionais devem crescer nos próximos anos, exigindo novas configurações produtivas e lideranças conscientes nas organizações. A tecnologia aumenta a produção, mas degrada o meio ambiente, aumenta a desigualdade e podem acabar com as esperanças no futuro.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa; Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 30/11/2022

É proibido governar, por Igor Grabois

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Por IGOR GRABOIS* – A Terra é redonda – 27/11/2022

Considerações sobre a captura pelo neoliberalismo da máquina pública
Impressionante o que o neoliberalismo fez com a máquina pública brasileira. O presidente eleito tem, na prática, de pedir para governar. E não estou falando de aprovação de leis no Congresso e que tais. Estou falando das atribuições do Poder Executivo.

Uma série de órgãos públicos tem “mandato”, que blindam seus dirigentes do voto popular. O Banco Central independente – deve ser do pai e da mãe, porque é dependente do mercado – é o caso mais gritante. Bob Fields Neto, parça do sinistro Paulo Guedes, tem dois anos ainda para sabotar a política econômica do governo.

A Aneel, a agência capturadíssima pelos regulados, as empresas do setor elétrico, avisa o governo de transição que a energia vai aumentar 5,3%, em algumas distribuidores mais de 10%. Por cálculos que ninguém sabe quais. Bastaria trocar os dirigentes da Aneel e implantar a modicidade tarifária. Só que não. A Aneel tem “mandato”. O setor está todo privatizado e é necessário “respeitar os contratos”. Danem-se os consumidores residenciais e empresariais.

A situação se repete em um monte de outros setores como aeroportos, telefonia, portos. Até a Embratur tem “mandato”. Bozo nomeou o Sanfoneiro Gilson para quatro anos (!) de mandato. O próximo governo está impedido, de fato, de implantar uma política para o turismo. O Sanfoneiro Gilson, é de conhecimento geral, acha que turismo é jogo e turismo sexual.

Na Petrobras, com um estatuto que favorece os acionistas minoritários, o presidente da empresa, ex-secretário de Paulo Guedes, anuncia que ficará até abril de 2023, até a nova Assembleia de acionistas. Vai aproveitar para vender mais alguns pedaços da companhia.

O vice-presidente Geraldo Alkmin negocia com o Sebrae para que adie a eleição de sua direção para fevereiro. O Sebrae faz parte do sistema S, mas recebe caminhões de dinheiro público para não apoiar, com medidas concretas, a micro e pequena empresa.

A maioria do povo não sabe disso. O aumento da energia elétrica vai para o colo do novo presidente. O aumento de juros e política monetária contracionista vão fazer o Tesouro e a política fiscal enxugar gelo, com efeitos devastadores nos preços e nos empregos. A conta também será paga por Lula.

O tal mercado tem as agências, o Banco Central e os tais “contratos” que só beneficiam as empresas. E ainda querem impor um nome de seu agrado no Ministério da Fazenda e ditar a política fiscal. A política fiscal é a única que o presidente, no momento, pode implementar, já que a monetária e a cambial estão a cargo do Banco Central “independente”.

Para implantar o programa escolhido pelas urnas é mandatório que os arranjos institucionais implantados desde o governo FHC sejam rediscutidos, com o retorno para os ministérios o poder usurpado pela miríade de agências regulatórias que trabalham a favor dos regulados privados.

Saltos tecnológicos dependem de apoio estatal à inovação, afirma economista

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Anglo-venezuelana Carlota Perez deu aula sobre nova economia a convite do FolhaLab+ iFood

27/11/2022

Philippe Scerb

SÃO PAULO Economista anglo-venezuelana e professora honorária da University College London (UCL) e da Universidade de Sussex, no Reino Unido, Carlota Perez é considerada uma das grandes especialistas nas relações entre as mudanças tecnológicas e a economia e os seus consequentes impactos políticos e sociais.
Convidada pelo FolhaLab+ iFood, ela ministrou a aula inaugural do curso Nova Economia para Jornalistas, com a participação online de cerca de uma centena de inscritos.

A programação do curso, voltada para profissionais e estudantes de comunicação, se estendeu por dois meses e contou com especialistas e professores convidados, que discutiram os principais aspectos e desafios da chamada nova economia.

Também participaram executivos e CEOs de empresas e startups, que falaram de suas trajetórias e analisaram perspectivas para o futuro.

Falando de Londres, Carlota Perez dividiu sua aula em três partes intercaladas por perguntas dos alunos. Na primeira delas, a professora abordou os padrões recorrentes das revoluções tecnológicas, entendidas como passagens para outro paradigma técnico e econômico, em que o sistema anterior se torna obsoleto e emerge outra forma de pensar e operar as empresas.

De acordo com ela, atualmente nós viveríamos a quinta revolução tecnológica, iniciada ao longo dos anos 1970 com o surgimento dos microprocessadores e dos computadores pessoais.

Para Perez, o barateamento de algo sempre está no centro de uma revolução tecnológica. Se a diminuição dos custos de exploração do petróleo foi crucial para a quarta revolução, da produção em massa, a que vivemos hoje teve seu impulso com o barateamento dos microchips.

São esses microchips que, por meio do desenvolvimento das telecomunicações e da internet, têm permitido a passagem para uma era da produção barata e flexível, com economias de escala e grande variedade de produtos e serviços. As oportunidades para um salto de produtividade e desenvolvimento são enormes, mas, de acordo com a professora, é preciso saber como e onde aproveitá-las.

“Podemos ter pela frente uma época de bonança depois da turbulência política que temos vivido com o aumento da desigualdade e o populismo. Hoje, como nos anos 1930 do século passado e na década de 1890, o desemprego é estrutural, ainda que oculto pelo fato de haver muita gente empregada ganhando muito menos do que antes”, diz ela.

Para a professora, a situação atual se assemelha aos períodos citados por causa de estagnação econômica, recessões, xenofobia, especulação financeira, agitações sociais, divisão política e o surgimento de líderes políticos messiânicos. “É sempre bom lembrar que Mussolini e Hitler foram eleitos”, afirma.

Na opinião da estudiosa, a superação da instabilidade só teria sido possível por meio de um papel proativo por parte do Estado, embora nenhum país tenha feito isso sem um setor privado dinâmico. A mesma fórmula teria sido aplicada em todos os casos.

“Um Estado voltado para a promoção do desenvolvimento, mais empreendimento, inovação, educação e mercado. Tudo junto. Os padrões da revolução tecnológica são difundidos a partir de determinados países, mas todos têm que aproveitar as oportunidades que emergem”, diz.

Na segunda parte da aula, Perez mostrou como as possibilidades de desenvolvimento se transformam ao longo das décadas e defendeu a necessidade de serem aproveitadas a tempo para não serem perdidas.

Como exemplo, mencionou a Industrialização por Substituição de Importações (ISI). “Uma política que permitiu o crescimento da América Latina e a criação de uma classe média. Depois, ela se tornou um obstáculo para darmos outro salto, mas foi uma oportunidade naquele momento.”

Quase toda a região teria aproveitado, entre os anos 1950 e 1970, uma circunstância favorável para aumentar a produtividade. Embora tenha se dado com a expansão da desigualdade, o Brasil, com seu gigantesco mercado interno, se beneficiou particularmente dessa iniciativa e teve um salto geral de possibilidades.

No entanto, a América Latina não soube aproveitar, como os asiáticos fizeram entre os anos 1980 e 1990, a passagem da ISI para a exportação competitiva. “Os países latino-americanos não aprenderam a inovar como forma de crescer. A globalização e o livre mercado não resultaram em uma oportunidade aproveitável. O livre mercado funciona para outras coisas, mas não para dar salto de produtividade e desenvolvimento.”

O resultado é que a América Latina está na última posição do mundo quando o assunto é aumento da produtividade de 1980 para cá. “Nós não soubemos aproveitar a instalação da revolução informática, portanto não podemos perder as oportunidades que estão se abrindo agora”, afirma Perez.

Para a professora, a América Latina, e especialmente o Brasil, podem se beneficiar de uma economia globalizada que, de um lado, precisa de recursos naturais e energéticos e, de outro, tem mercados segmentados com requisitos de equidade social e compromisso ambiental —já realidade no mundo das finanças.

O desafio da revolução atual consistiria, sobretudo, em aliar mais recursos naturais, tecnologia e inclusão social para um desenvolvimento ambiental e social sustentáveis.

Afinal, embora alguns ainda possam ver a preservação como um entrave ao desenvolvimento, ela abre oportunidades importantes. E o Brasil, para Perez, pode liderar o salto para o desenvolvimento com qualidade de vida. Para isso, contudo, são necessárias políticas adequadas.

Grandes companhias ainda continuam relevantes, mas há espaço, segundo a economista, para diferentes grupos locais de empresas médias e pequenas, de pesquisa e de serviços de alta tecnologia, que possam gerar mercados adicionais para as grandes.

Diferentemente do modelo de produção em massa, do paradigma anterior, leis inteligentes e apoio técnico e financeiro têm condições de criar uma “multidão de pequenas e médias empresas rentáveis e empregadoras em cada canto do território, produzindo desde ultraprocessados até alimentos orgânicos, de produtos padronizados aos feitos sob medida”.

Para isso, porém, é preciso que Estado e mercado estejam bem articulados, tema da terceira parte da aula, intitulada “Nem Estado nem Mercado, Ambos ao Mesmo Tempo”.

“Mais Estado ou mais mercado? Antes não perguntava isso. Entendia-se que ambos iam juntos. Desde Milton Friedman [economista americano, 1912-2006], passou-se a acreditar em coisas que não são verdade. A história mostra que nenhum país deu um salto para o desenvolvimento sem intervenção estatal.”

Para ela, projetos nacionais de sucesso obedecem a um padrão: identificam-se oportunidades e criam-se instituições adequadas para a sua promoção, elevando a capacidade técnica do Estado. O ponto-chave é o financiamento.

“É imprescindível que haja uma direção clara para a priorização dos recursos financeiros, o que depende de políticas fortes e de um consenso entre a sociedade e o mundo dos negócios.”

Perez lamenta, de um lado, que hoje muitos governos e políticos continuem presos ao modelo centralizador da produção em massa e os Estados sejam permeados por um excesso de regulações; de outro, que elites econômicas permaneçam agarradas à ilusão do Estado mínimo e do livre mercado. “Uma ilusão que não funcionou”, avalia.

Os governos dos países que mais se desenvolvem atualmente apoiam e financiam avanços tecnológicos em infraestrutura, educação, ciência, tecnologia etc. “Não há grandes saltos sem forte apoio público à inovação. Elon Musk, embora hoje esconda isso, teve seu primeiro investimento financiado com dinheiro estatal.”

O desenvolvimento, alertou a professora, deve estar atrelado ao pleno emprego e bem-estar para todos. Para ela, o progresso econômico desprovido de progresso social é instável.

A atual revolução tecnológica, porém, favorece esse equilíbrio na medida em que está apoiada no aproveitamento dos recursos naturais, na melhoria da vida rural e na redução do fluxo populacional rumo às cidades, na redução da economia informal, no resgate de valores comunitários e locais e em atrativos ao trabalho à distância.

“Nos anos 1960 e 1970, tivemos Estado protecionista. Dos anos 1980 para cá, um Estado não interventor. De 2020 em diante, precisamos de um Estado promotor, ativo e inovador. Mas o sucesso dependerá de esforço de inovação institucional, baseado em consenso entre governo, negócios, sistema educativo, sindicatos e organizações sociais”, diz.

“A nova era acelerará mudanças em métodos de produção com aumento da demanda por uma economia verde e estilos de vida sustentáveis. Temos que aproveitar a oportunidade”, completa.

RAIO-X
Carlota Perez, 83
Economista anglo-venezuelana e professora honorária da University College London (UCL) e da Universidade de Sussex, no Reino Unido, é considerada uma das grandes especialistas nas relações entre as mudanças tecnológicas e a economia e os seus consequentes impactos políticos e sociais. Convidada pelo FolhaLab+ iFood, ela ministrou a aula inaugural do curso Nova Economia para Jornalistas, com a participação online de cerca de uma centena de inscritos

Financismo: austeridade para quem? por Paulo Kliass

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Até manuais ortodoxos de economia pregam investimentos públicos para combater crises. Mas elites brasileiras se aferram à responsabilidade fiscal para enquadrar Lula – e sabotar PEC da Transição, primeiro passo para reconstruir o país

Paulo Kliass – PUTRAS PALAVRAS – 22/11/2022

Não existe nenhum exagero em se afirmar que boa parte dos problemas econômicos e sociais que o Brasil tem vivido ao longo dos últimos anos encontram no chamado “Novo Regime Fiscal” (NRF) uma de suas causas principais. Esse eufemismo foi concebido por Henrique Meirelles e sua equipe logo depois da consumação do “golpeachment” perpetrado contra Dilma Rousseff em 2016. Com o afastamento da presidenta, Michel Temer aboletou-se rapidamente para ocupar o cargo – usurpado ao arrepio da legalidade e da constitucionalidade – no Palácio do Planalto.

Assim, no apagar das luzes daquele ano, no dia 13 de dezembro, o Senado Federal aprovou em segundo turno a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) n° 55, concluindo a tramitação que já havia sido iniciada anteriormente na Câmara dos Deputados. A partir de então, o texto da nossa Carta Magna passava a incluir a Emenda Constitucional (EC) n 95. O NRF nada mais é do que uma forma mais “elegante” de tratar da política do teto de gastos. De acordo com o texto, aprovado no mesmo dia em que a ditadura militar havia promulgado o AI-5 em 1968, o governo federal fica proibido de promover qualquer elevação no nível das despesas orçamentárias observadas no exercício de 2016 durante vinte longos anos. Uma loucura!

Pelo disposto no texto, a única correção possível de ser efetuada nos gastos primários seria a aplicação do índice de inflação relativo ao período anterior. Assim, não importaria se houvesse aumento da arrecadação ou se surgisse alguma necessidade emergencial a ser atendida. Os únicos itens de gastos que não estavam sob essa restrição de crescimento eram as rubricas financeiras.

Ou seja, os valores atribuídos a pagamento de juros da dívida pública poderiam aumentar sem nenhum problema. Já as despesas com previdência, saúde, assistência social, pessoal, saneamento e outras estariam congeladas por duas décadas.

Teto de gastos: Brasil na contramão
Essa proposta veio se somar ao elenco das jabuticabas que o Brasil tem a oferecer ao resto do mundo. É impressionante como nossas elites não sentem a menor vergonha em apresentar esse tipo de desastre como sendo um arremedo de solução para nossos problemas econômicos. Afinal, não faz o menor sentido impedir que o Estado seja chamado a recuperar seu protagonismo na esfera da economia, em especial nos momentos de crise. Essa havia sido, aliás, a linha adotada pelos governos dos países mais desenvolvidos do capitalismo a partir da eclosão da crise financeira de 2008/9. Ao invés do Estado mínimo, por lá o caminho foi o da expansão dos gastos públicos e do aumento da presença governamental na seara da economia.

Mas o financismo tupiniquim pensa diferente e tem outras estratégias para viabilizar o crescimento de seus ganhos fáceis e parasitas, de forma absolutamente desconectada de qualquer atividade produtiva. Ao martelar de forma insistente na necessidade de se apertar ainda mais o ferrolho da austeridade fiscal irresponsável, o sistema financeiro ocupa todos os espaços nos grandes meios de comunicação para criar o clima de catástrofe anunciada, caso não seja reduzido o volume de gastos públicos no país. Esse mantra criminoso contra toda e qualquer elevação no sacrossanto “índice de endividamento” ignora as reais necessidades da maioria da população. A necessidade de arregimentar recursos para combater a pandemia de covid-19, o retorno do Brasil ao Mapa do Fome, a explosão dos indicadores de miséria e outros aspectos dramáticos da nossa profunda crise social pouco importam para esse pessoal.

No entanto, o financismo jamais deixa de revelar de forma escancarada suas preferências políticas e ideológicas. Caso seja necessário introduzir alguma pitada de pragmatismo em sua cruzada em prol da redução do Estado e em defesa de um fiscalismo extremado, então seus escribas favoritos são chamados a elencarem argumentos oportunistas e casuístas em defesa de alguma flexibilização observada. No entanto, que isso fique bem claro, essa desculpa toda só é válida se o comando da economia estiver nas mãos de algum aliado e pessoa de sua total confiança. Esse é o caso, obviamente, da dupla Paulo Guedes & Bolsonaro, grandes responsáveis pelo quadro da desgraça generalizada em que nos encontramos nos tempos atuais.

Financismo não reclamou de Guedes
É interessante registrar que em nenhum momento ao longo dos quatro anos deste desgoverno houve qualquer manifestação mais dura do povo do financismo para “denunciar” as tentativas do superministro da Economia de passar ao largo do teto de gastos. Mas vamos lembrar aqui que, em todos os exercícios do mandato que se encerra no final do ano, Guedes deu um jeitinho de executar despesas acima do que era previsto nas regras rígidas do NRF. No total, esse valor chegou a quase R$ 800 bilhões ao longo do quadriênio. Foram R$ 54 bi em 2019, R$ 508 bi em 2020, R$ 117 bi em 2021 e R$ 116 bilhões neste ano. Em cada caso havia uma justificativa para burlar o disposto na determinação contracionista introduzida na Constituição. Mas ninguém se levantou para acusar qualquer “licença para gastar” ou ameaça de quebra do país em cada uma destas iniciativas sugeridas por Guedes.

Mas quando se trata de aprovar uma autorização para que o governo eleito consiga realizar alguns pontos mais emergenciais de seu programa de governo, aí tudo muda de figura. A chamada “PEC da transição” ainda nem foi apresentada ao Congresso Nacional em sua forma definitiva. Mas a berraria do financismo em favor de reforçar a austeridade não perde tempo nem espaço. A equipe de Lula aponta a correta e compreensível necessidade de retirar itens como elevação dos valores do auxílio emergencial, retorno do programa Farmácia Popular e previsão de aumento do salário mínimo do cálculo do teto. Nada mais justo e adequado, tanto em termos da urgência social como do impacto macroeconômico positivo. Mas como o governo não é de sua confiança, agora o financismo volta a recuperar o conceito da responsabilidade fiscal de forma despropositada, exatamente como não o fez em nenhum momento durante o reinado de Bolsonaro.

Austeridade: cobrança só vale para Lula
Segundo o conceito de austeridade do financismo a ser aplicado ao período de Guedes, o fato de ele ter comandado o furo ao teto por quatro anos consecutivos não é relevante. Segundo os especialistas de plantão, não havia ali nenhum sinal de irresponsabilidade fiscal ou gastança irresponsável. Talvez pelo fato de Paulo Guedes ser um cupincha da plena confiança do povo do sistema financeiro, tudo era justificado por necessidades imprevistas anteriormente. Até mesmo em favor da “PEC do Desespero” houve argumento encomendado sob medida, ainda que estivesse ali escancarado o objetivo oportunista e eleitoreiro de último minuto. Há quem diga que essa cara de paisagem do povo da finança tenha alguma relação com o seu desejo de que Guedes continuasse à frente da economia, com a reeleição de capitão.

Porém, já de acordo com o conceito de austeridade a ser aplicado ao presidente eleito, bom aí a coisa toda muda de figura. A gritaria patrocinada pelo financismo se esgoela antes mesmo da posse de Lula e o valor previsto de R$ 200 bi para tornar exequíveis algumas promessas básicas de campanha é objeto de bombardeio permanente na grande imprensa. Convenhamos que coerência não é propriamente um atributo que possa ser aplicado a quem se move na lâmina entre defender seus interesses imediatos e militar em favor de um Brasil ainda mais desindustrializado, dependente,
inanceirizado e empobrecido.

Qualquer manual básico de macroeconomia, ainda que de viés conservador, nos ensina a respeito da importância de medidas anticíclicas, a serem adotadas pelos governos para se contrapor a situações de crise, desemprego e recessão. Estes seriam os momentos em que o Estado deveria, ao contrário do que prega o senso comum, aumentar os seus gastos. Pois o teto de gatos impede qualquer iniciativa neste sentido. Ou seja, o NRF é um fator que permite a perpetuação da condição estagnacionista. Mas para o financismo, o que é importa é exigir sempre mais e mais austeridade. Em especial de um governo que promete “heresias”, tais como a recuperação do protagonismo do Estado, o fim do ciclo de privatizações, a retomada de um programa desenvolvimentista e a adoção de políticas de redução da desigualdade social e econômica.

Investimentos

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A economia brasileira perdeu o dinamismo desde os anos 1980. Depois de sermos vistos como uma economia marcada por alto crescimento econômico, com transformações estruturais, perdemos o fôlego, amargando uma estagnação econômica, desindustrialização crescente e perdemos a relevância no cenário internacional e passamos a se transformar numa economia agroexportadora centrada em produtos de baixo valor agregado. Dentre os indicadores macroeconômicos mais importantes para o sistema econômico e produtivo de uma sociedade, os investimentos devem ser vistos como o mais relevante para movimentar o ciclo da economia, estimulando a geração de emprego, melhorar o salário, além de aumentar a renda, o consumo e a produção.

Podemos definir investimento como a despesa em bens e serviços que serão utilizados futuramente na produção de outros bens e serviços. Também designado por formação bruta de capital, o investimento faz aumentar os recursos produtivos de uma economia e, portanto, as suas possibilidades de produção. Sem investimentos, os ciclos econômicos não se completam, as estruturas produtivas não geram empregos, aumentando a desocupação da sociedade, reduzindo a renda agregada, diminuindo o consumo, precarizando as condições sociais e exigindo a intervenção dos agentes econômicos para movimentar o ciclo econômico.

Os investimentos produtivos tem uma grande centralidade na estrutura econômica, os agentes produtivos investem quando acreditam que terão retornos interessantes, quando acreditam que as regras serão estáveis e aceitáveis, com isso, são estimulados a tomarem riscos pois acreditam que serão agraciados com lucros e rentabilidades ascendentes. Quando encontramos países ou nações que não conseguem garantir retornos e credibilidade, que possuem instituições instáveis e turbulentas, os investidores tendem a se distanciar, gerando graves constrangimentos econômicos, inviabilizando os investimentos, limitando o “espírito animal” dos empreendedores, restringindo novos negócios e retardando possíveis ciclos econômicos e produtivos.

Numa sociedade internacional centrada por grandes instabilidades e incertezas, percebemos que o Estado vem ganhando relevância nas principais nações, neste cenário, percebemos que o neoliberalismo vem perdendo espaço, motivados por três grandes transformações: a ascensão chinesa centrada no intervencionismo governamental, a crise imobiliária dos Estados Unidos, de 2008, que fragilizou o modelo centrado no predomínio do capital financeiro e, por último, a pandemia que assolou a sociedade internacional, gerando milhões de mortes e dinamizou os investimentos governamentais como forma de reduzir os estragos econômicos e produtivos.

Historicamente, destacamos os investimentos governamentais que foram imprescindíveis para alavancar a estrutura produtiva, vivemos momentos de grandes saltos tecnológicos, cujos recursos dos Estados Nacionais foram fundamentais, como foi descrito pela economista italiana Mariana Mazzucato que se tornou mundialmente conhecida depois de publicar o livro “O Estado Empreendedor”, descrevendo o papel crucial dos investimentos dos governos para estimular novos avanços tecnológicos, sem estes investimentos dificilmente teremos acesso aos novos modelos de negócios que estão sendo construídos, sem internet, sem GPS, dentre outros produtos que fazem parte do cotidiano da comunidade.

Nos últimos anos os investimentos produtivos na economia brasileira estão em níveis baixíssimos, as incertezas institucionais assustam os investimentos, políticas ambientais confusas afastam investimentos, sem educação de qualidade afastam os investimentos, ataques constantes a democracia afastam os investimentos, com salários reduzidos e mercado de consumo comprimido afastam os investimentos, conflitos entre os três poderes afastam investimentos, neste ambiente, como acreditar que estamos caminhando para o tão sonhado desenvolvimento econômico?

Neste ambiente, percebemos apenas o crescimento e o enriquecimento de uma elite rentista, improdutiva e imediatista, sem compromisso com a nação, que acumula fortunas com a ciranda financeira, ganhos com juros elevados e usam seu poder político para perpetuar seu poder que remontam a colonização e o escravismo.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Comportamental, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 23/11/2022.

Apocalipse à brasileira, por Joel Birman

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Entra em cena a atmosfera lúgubre do delírio, marcada por transe e possessão

Joel Birman, Psiquiatra e psicanalista, é professor titular do Instituto de Psicologia da UFRJ

Folha de São Paulo, 21/11/2022

No dia seguinte à eleição presidencial, bolsonaristas derrotados deram início ao “Capitólio brasileiro” parando as
estradas do país, com a colaboração ativa da Polícia Rodoviária Federal. Em seguida, as massas se aglutinaram em
frente aos quartéis, demandando intervenção militar para a manutenção de Lair Bolsonaro (PL) no poder.

A característica e o estilo uniforme das ocupações ilegais do espaço público, nos dois cenários, evidenciam de forma eloquente que são ações programadas e financiadas por empresários da extrema direita, já que a massa reunida não pode parar de trabalhar e tem sido alimentada pelos organizadores dos atos.

Além disso, o fervor religioso permeia os discursos registrados em ambos os cenários, marca saliente da extrema direita do país que não se encontra em nenhum outro lugar do mundo, pois a eleição brasileira foi transformada numa luta do bem contra o mal.

Destacam-se, assim, certas cenas de “Apocalypse Now”, com pneus transformados em altares para o exorcismo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), imagens evocando o Muro das Lamentações como santuário e mulheres em roda, cobertas com a bandeira brasileira, orando como um corifeu grego que o “diabólico STF” não vai calá-las. A retórica religiosa se espalha, portanto, como a litania dos fiéis, com a “defesa” grotesca da liberdade de expressão, apesar das palavras de ordem antidemocráticas. Enfim, entra definitivamente em cena a atmosfera lúgubre do delírio (místico), marcado pelo transe e pela possessão entre os arruaceiros operísticos.

A questão que se impõe de forma inequívoca, contudo, é como chegamos a esse ponto teológico-político após quatro anos de Bolsonaro no poder. O que ocorreu conosco nesse tempo nefasto foi a tortura diária por meio das falas do presidente nas redes sociais e na televisão, numa pregação antidemocrática contra o Poder Judiciário, com a cumplicidade remunerada do Congresso Nacional (orçamento secreto), do Ministério Público e da Polícia Federal, buscando tornar viável o mito do presidente “imbrochável” e as práticas sistemáticas da necropolítica nos menores detalhes, indo da destruição da Amazônia à política armamentista da população, sem esquecer o genocídio perpetrado na pandemia de Covid-19.

É claro que os laços sociais fundantes da política passaram decididamente a se inscrever nas redes sociais, num país campeão de consumo de smartphones, de forma que a realidade virtual passou a se impor de forma clandestina, incidindo sobre corações e mentes de maneira maligna.

Com isso, as informações apuradas pela grande imprensa não foram mais ouvidas. A massa bolsonarista passou a alimentar as suas convicções e crenças num sistema perverso de informação que bloqueava e não queria saber de nada que colocasse em questão as versões propaladas pelos seus redutos, disseminando a céu aberto a dissonância cognitiva (Festinger), que promoveu estragos consideráveis no espírito dos brasileiros.

Além disso, dois outros mecanismos psíquicos nos acometeram de forma devastadora: a dupla mensagem (Bateson) —quando alguém fala algo e tem ao mesmo tempo uma atitude oposta, como ocorre com as mães esquizofrenogênicas— e o desmentido (Ferenczi) —quando alguém é abusado por um Outro que não reconhece e não admite o que faz.

Planeta pode aguentar 8 bilhões, mas temos feito as escolhas erradas, diz matemático.

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Para Joel E. Cohen, manutenção da vida na Terra depende de como sociedades agirão quanto a guerras e produção

THIAGO AMÂNCIO – FOLHA DE SÃO PAULO – 20/11/2022

WASHINGTON O planeta alcançou 8 bilhões de pessoas, o que não será um problema para a Terra se fizermos as escolhas certas, defende o matemático biológico Joel E. Cohen. O problema é que, até aqui, não temos feito as escolhas certas.

Para ele, que leciona em duas universidades americanas, a continuidade da vida no mundo dependerá de alguns fatores —se países continuarão a entrar em guerras, se fronteiras serão mantidas abertas, que uso será dado ao que for plantado e a quem destinar a produção.

Autor de “How Many People Can the Earth Support” (quantas pessoas a Terra pode aguentar), Cohen afirma que escolhas individuais são importantes para o futuro do planeta e que é preciso ter em mente que o que acontece do outro lado do mundo afeta a vida de todos.

A certa aura de pessimismo do especialista hoje guarda semelhança com 2011, quando a Folha o ouviu por ocasião da marca de 7 bilhões de habitantes atingida então. À época, ele alertou que o planeta segue uma “receita para o desastre” e lamentou o que considerava uma situação global instável ecológica, política, econômica e socialmente.

Afinal, quantas pessoas a Terra pode aguentar? Há quatro coisas que precisamos considerar para essa resposta: população, economia, ambiente e cultura.

População não é só a quantidade de gente, mas se são jovens ou velhos, se vivem nas cidades ou em áreas rurais. Economia envolve distribuição de riqueza, tecnologias, quem decide como ela vai ser gerida. Ambiente, tanto seres vivos quanto não vivos, cidades em áreas de terremotos, atmosfera, bioma, pestes. E o que conecta isso tudo é a cultura: linguagem, comunicação, instituições, religião, mitologia, arte.

Esses elementos são interligados. Se você ignora essas conexões, vai fazer a coisa errada. A resposta é que depende das conexões que faremos envolvendo economia, ambiente, cultura e as populações.

Vamos permitir o comércio entre países ou usá-lo como arma? A vida na Terra será melhor se ele acontecer. Vamos decidir conflitos na base do diálogo ou matar uns aos outros? Há muitas escolhas a fazer, não consigo prever quais serão feitas. O mundo pode aguentar 8 bilhões de pessoas tranquilamente, mas até agora estamos fazendo um péssimo trabalho.

E como o sr. avalia as escolhas feitas até aqui? Há boas e más notícias. A boa é que há mais crianças nas escolas do que nunca. A má é que a quantidade do ensino em muitos casos é terrível. A capacidade das crianças em leitura e matemática em alguns países é miserável, não só em nações pobres da África, mas em lugares ricos e industrializados como os EUA.

Estima-se que exista 800 milhões de pessoas no mundo com fome crônica, subnutrição a longo prazo. Elas não podem ter uma vida normal, ir ao trabalho. Entre elas, há 150 milhões de crianças com menos de cinco anos; 22% de todas as crianças do planeta com essa idade estão atrofiadas. São crianças que terão doenças infecciosas, não crescerão o suficiente, não se tornarão adultos produtivos —se sobreviverem. Não vão conseguir aprender nada mesmo se forem à escola.

Nós produzimos comida suficiente no mundo. No ano passado, foram 2,8 bilhões de toneladas de grãos, o suficiente para alimentar até 14 bilhões de pessoas. Então por que há fome? Porque os pobres não podem comprar comida. Isso acontece porque preferimos alimentar animais e máquinas, na produção de combustível, a alimentar pessoas. Estamos jogando fora um quinto de nossas crianças. Que tipo de futuro queremos?

O que é preciso fazer, então? Você pode começar por não criar conflitos. O mundo gastou no ano passado US$ 2,1 trilhões em esforços militares. Esse dinheiro seria muito mais produtivo se fosse gasto de outra maneira, com bem-estar humano, proteção ambiental, produtividade econômica. Se encontrássemos uma maneira de pararmos de matar os outros, liberaríamos muitos recursos para outros propósitos.

É preciso também cuidar e prover nutrição suficiente para crianças pequenas, mulheres grávidas e lactantes; métodos contraceptivos para os 200 milhões de mulheres que desejam e não têm acesso a eles; informação para adolescentes. Cuidando desses grupos, podemos transformar a vida na Terra.

Produzimos muitos grãos, e o mundo não sabe que arroz e feijão são um superalimento proteico. É a base da alimentação no Brasil, mas em muitos lugares culturalmente o feijão é visto como comida para pobres. Se as pessoas comerem arroz e feijão, a vida na Terra vai melhorar.

É preciso dar informação para as pessoas reduzirem o consumo de açúcar. O tabaco mata 8 milhões de pessoas todos os anos, mais do que a Covid. E quem está prestando atenção? As empresas envenenam as pessoas e o governo permite, porque recebe impostos. É preciso educar as pessoas, que desperdiçam suas vidas com a quantidade de álcool que consomem. Se fizerem um pouco de exercício físico, pararem de fumar e de beber, se alimentarem melhor e dormirem o suficiente, nada mais é preciso.

Mas mudanças no plano individual poderão mudar o futuro do planeta? Se as pessoas promovem uma mudança de comportamento maciça e em escala, os governos e as grandes empresas vão ter que acompanhar. O Walmart é uma das maiores empresas dos EUA, e quando você vai lá vê corredores e corredores lotados de porcarias cheias de sal e gordura.

Quais os desafios para o futuro? Ninguém sabe até onde a população vai crescer. Há projeções que vão até o fim do século. Mas temos alguma ideia sobre o futuro. Se não houver uma catástrofe nuclear ou uma nova peste pior do que a Covid, em 2050 a população mundial terá 1 bilhão a mais de habitantes, com uma proporção maior de pessoas mais velhas. Você tem mais idosos hoje do que em qualquer período da história. E pessoas nas cidades; dois terços do planeta vivem nas cidades.

Por outro lado, em muitos lugares a população vem caindo, o que se tornou um problema econômico. Como conciliar a explosão populacional em alguns locais e a escassez de gente em outros? A primeira coisa que me vem à cabeça é a migração. Mas muitos governantes impõem barreiras, porque não estamos falando só de demografia, de pessoas se mudando do Mali ou da Nigéria para Brasil, EUA ou Holanda. É uma pessoa com uma cultura, religião, linguagem e história diferentes indo para outro lugar. E muitos países não aprenderam a acomodar diferenças culturais.

Os governos que não querem imigrantes também poderiam entender que pessoas bem alimentadas, bem educadas e com oportunidade em seus países tendem a emigrar menos. Então, se não querem imigrantes, podem investir no desenvolvimento econômico das nações com alto crescimento populacional. Não levamos a sério o fato de que o bem-estar das populações de lugares mais pobres afeta o das populações de lugares mais ricos. Simplesmente fechamos as portas, construímos um muro, sem entender que tudo está interligado. O que acontece na África ou no sul da Ásia vai me afetar pessoalmente.

Há pessoas capacitadas em todos os lugares, só é preciso dar o suficiente para que o cérebro delas possa trabalhar. Investindo em educação, nutrição e desenvolvimento econômico, o planeta pode suportar 8 bilhões de pessoas sem problemas.

RAIO-X | JOEL E. COHEN, 78

Matemático biológico, é diretor dos laboratórios de populações das universidades Rockefeller e Columbia. É autor de “How Many People Can the Earth Support” (quantas pessoas a Terra pode aguentar), entre outras obras consideradas referências na área

Responsabilidade fiscal deve ser também social, por André Roncaglia.

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A dívida pública não explodiu e a hiperinflação não veio quando Paulo Guedes explodiu o teto

André Roncaglia, Professor de economia da Unifesp

Folha de São Paulo – 19/11/2022

O primeiro teste de fogo do novo presidente eleito ocorre antes mesmo de sua posse em janeiro de 2023. A equipe de transição apresentou ao Congresso no último dia 16 uma minuta pedindo uma licença (waiver) para efetuar gastos sociais fora do teto para 2023.

A fatura total deste pedido beira R$ 200 bilhões por ano, de forma permanente. A negociação com o Congresso Nacional provavelmente limitará o valor e o prazo de vigência deste waiver.

Para 2023, a aprovação da PEC implicará aumento de 2% do PIB em gastos públicos e abrirá um espaço de R$ 105 bilhões no orçamento de 2023. Com este valor, o novo governo pretende recompor verbas de programas essenciais e ampliar investimentos públicos em áreas sensíveis, como saúde, educação e infraestrutura.

Como esperado, o mercado financeiro reagiu mal. Engana-se, todavia, quem acredita que o mau humor se deve ao risco de hiperinflação e a carga de juros que acompanharia a estabilização dos preços. Isto está fora de questão, ao menos nos meios acadêmicos especializados.

Já a alta finança brasileira equiparou seu conceito de responsabilidade fiscal a mera apologia ao teto de gastos. Esta quimera tecnocrática é a raiz de uma profunda dissonância cognitiva. Vejamos.

Paulo Guedes admitiu ter violado o teto, e o fez pelo menos uma vez… por ano, somando R$ 795 bilhões em gastos extrateto ao longo dos quatro anos. O mercado chiou algumas vezes, mas com leniência beneditina.

A dívida pública não explodiu, a hiperinflação não veio e até se observou um superávit primário em 2022, fruto de receitas não recorrentes. O mercado aplaudiu a gambiarra fiscal-eleitoral de Guedes –afinal, há enorme distância entre o teto e o descontrole inflacionário– e agora transfere o ônus da irresponsabilidade fiscal do atual governo para o governo eleito.

A despeito do empurra-empurra, a reforma do marco fiscal pode melhorar a qualidade tanto do gasto quanto da tributação, equilibrando respeito aos contratos e responsabilidade social. Este é o caminho para uma responsabilidade fiscal que atenda a toda a população.

Se aprovada no valor atual, a PEC da transição elevará as despesas primárias do governo em 2023 para 19,5% do PIB, um pequeno acréscimo sobre os 19% em 2022 (podem guardar as imaginárias impressoras de dinheiro!).

A PEC reorganiza o orçamento e viabiliza gastos que estimulam a economia (ganhos reais ao salário mínimo), aliviam a pobreza (Bolsa Família), reforçam a cidadania (creches e farmácia popular etc.), reduzem custo Brasil (infraestrutura) e podem atrair recursos de bancos multilaterais (programas de recuperação e defesa do meio ambiente).

As transferências de renda podem estimular a economia, que hoje flerta com a estagnação em 2023, com expressiva ociosidade na indústria. Neste ínterim, a definição de um novo marco fiscal pode ajudar a estabilizar a economia em 2024 em bases mais promissoras, a partir de uma reforma tributária que reduza a ineficiência alocativa e a regressividade na tributação da renda pessoal.

É fundamental que a negociação da PEC seja transparente e observe a estabilização das contas públicas de forma gradual e com previsibilidade. Com isso, o mercado financeiro não verá motivos para estressar as taxas de juro de longo prazo, encarecendo o crédito ao setor produtivo e a rolagem dos títulos longos da dívida do Tesouro.

Um governo ainda não empossado não pode praticar política pública; tudo que pode fazer é apresentar um conjunto de princípios. Cabe ao Congresso estabelecer os meios.

Por isso, é preciso um pouco mais calma e, certamente, um pouco mais de alma.

Bauman: assim chegamos à Retrotopia

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Sai em breve livro póstumo do filósofo. Numa das últimas entrevistas, ele alerta: estamos involuindo de uma crença tola no futuro para a mistificação do passado

OUTRAS PALAVRAS – Zygmunt Baumann – 05/05/2017

Sai em breve, em português, livro póstumo do filósofo, morto em janeiro. Numa de suas últimas entrevistas, ele alerta: estamos involuindo de uma crença tola no futuro para a mistificação infantil do passado

As nove décadas de Zygmunt Bauman foram vividas próximo à medula da história. Nascido em 1925 de pais judeus poloneses não-praticantes em Poznan, sua família foi para União Soviética em 1939, quando os tanques nazistas invadiram a Polônia. Tendo servido no Exército Vermelho com distinção, retornou à Polônia depois da Segunda Guerra Mundial para estudar sociologia na Universidade de Varsóvia. Mas, com o comunismo tendo há muito perdido seu brilho e sua carreira impedida pelo antissemitismo, ele emigrou para a Grã Bretanha em 1968, onde assumiu uma cadeira de sociologia na Universidade de Leeds.

Mas foi depois de sua aposentadoria, em 1990, que sua inteligência inquisidora, pela qual ele é tão renomado,
começou a gerar livro após livro. “O Mal Estar da Pós-modernidade” (1992); “Ética pós-moderna” (1993),

“Globalização: as Consequências Humanas” (1998), “Modernidade Líquida” (2000), “Amor Líquido” (2003); “Ensaios sobre o conceito de Cultura” (2012)… A lista é enorme. De fato, no último quarto de século ele publicou cerca de 40 livros, não por escrever, mas porque o mundo como ele é não é como ele sente que deveria ser. Ou, como afirmou em 2003: “Por que escrevo livros? Por que eu penso? Por que eu deveria ser apaixonado? Porque as coisas poderiam ser diferentes, deveriam ser melhores.”

A conversa abaixo aconteceu no ano passado. Instigada por uma questão sobre o Brexit, acabou levando a um diálogo sobre o futuro, o passado e o destino do projeto iluminista.

“Retrotopia”, obra póstuma de Bauman que a Editora Zahar promete publicar em breve, em português

Você falou sobre a desilusão popular com a política nacional num mundo globalizado, e o sentimento popular de que políticos nacionais não têm poder para influenciar mudanças. Suas posições mudaram à luz do referendo sobre a União Europeia na Inglaterra, e a perspectiva do Brexit?

Acredito que o colapso da confiança na capacidade de todo o establishment político, em todo o mundo desenvolvido, para realizar as mudanças desejadas (ou qualquer mudanças prometida) é o que, paradoxalmente, sedimentou o fenômeno Brexit.

Com a completa frustração dos eleitores com a elite política, e sua recusa total de investir confiança em qualquer segmento da elite política, o referendo ofereceu uma oportunidade sem precedentes para as escolhas em votação coincidissem com os sentimentos que precisavam exprimir-se. Foi uma ocasião única, nesse sentido, e tão diferente das eleições parlamentares de rotina!

Numa eleição geral, você pode expressar sua frustração e raiva contra o mais recente de uma longa linhagem de detentores de poder e fazedores de promessas. Mas o preço que se paga por esse alívio emocional é meramente convidar a Oposição, parte inseparável do establishment político, a assumir os gabinetes ministeriais como o Governo. Nesse infinito jogo de cadeiras, você não chega nem perto de expressar a natureza geral da sua discordância.

A oportunidade oferecida pelo referendo sobre o Brexit foi completamente diferente. Com quase todos os setores do establishment político posicionados em favor da permanência na União Europeia, podia-se usar um único voto, Sair, para descarregar, de uma só vez, a raiva contra todos eles. Quanto mais abrangente a frustração, mais tentador torna-se fazer exatamente isso — agarrar essa oportunidade única para desabafar.

Você tem escrito sobre o fim do progresso e a perda da crença na ideia de que o futuro será melhor que o passado. Há algo no fenômeno do Brexit (e, por certo, em outros movimentos populistas do continente) que promete uma era nova, talvez melhor, para a Europa?

Nós ainda acreditamos em “progresso”, mas agora o vemos tanto como bênção quanto como uma maldição — com o aspecto de maldição crescendo progressivamente, enquanto o lado bênção fica menor. Compare isso com a atitude de nossos ancestrais mais recentes – eles ainda acreditavam que o futuro seria o espaço mais promissor para as esperanças.

Nós, contudo, tendemos a projetar nossos medos, ansiedades e apreensões no futuro: um futuro de crescente escassez do emprego; de queda da renda e portanto também de declínio das oportunidades de vida, nossas e dos nossos filhos; de crescente fragilidade das nossas posições sociais e da provisoriedade de nossas realizações na vida; de uma fenda que aumenta desenfreadamente entre as ferramentas, os recursos e as competências à nossa disposição e a enormidade dos desafios colocados pela vida; do controle de nossas vidas, que escapa das mãos. É como se nós, indivíduos, estivéssemos sendo rebaixados ao status de peões, à margem de um jogo de xadrez entre pessoas desconhecidas. Elas são indiferentes às nossas necessidades e sonhos, quando não francamente hostis e cruéis, e estão todas completamente prontas a nos sacrificar para alcançar seus próprios objetivos.

O que o pensamento do futuro tende a trazer à mente hoje, portanto, é a crescente ameaça de ser descoberto e rotulado como inapto para a tarefa, com seu valor e dignidade negados, marginalizados, excluídos e banidos.

Uma crescente maioria de pessoas já aprendeu, a essa altura, pela própria experiência e pela dos que lhe são próximos e caros, a desacreditar de um futuro desigual, instável, imprevisível e notoriamente decepcionante, como o lugar para investir esperanças. Meu último livro, Retrotopia, aborda precisamente essas questões. Permita-me citar um trecho de sua introdução:

Eis o é o que Walter Benjamin tinha a dizer em suas Teses da Filosofia da História, escritas no início dos anos 40, sobre a mensagem transmitida por Angelus Novus (renomeado Anjo da História), uma pintura de 1920 de Paul Klee:
“A face do Anjo da História está voltada para o passado. Onde nós percebíamos uma cadeia de eventos, ele vê uma catástrofe única que continua empilhando destroços e jogando-os diante dos seus pés. O anjo gostaria de ficar, acordar os mortos, e tornar inteiro o que foi esmagado. Mas uma tempestade está soprando do paraíso; o anjo ficou preso em suas asas com tal violência que não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impulsiona irresistivelmente em direção ao futuro, para o qual ele dá as costas, enquanto a pilha de escombros cresce, diante dele, rumo ao céu. A tempestade é o que chamamos progresso.”

Fosse alguém olhar de perto a pintura de Klee, um século, quase, depois que Benjamin produziu seu insight insondável e incomparavelmente profundo, poderia mais uma vez capturar o Anjo da História em pleno voo. O que mais pode impactar, a ele ou a ela, é o anjo mudando de direção – o Anjo da História apanhado no momento de uma volta de 180º. Sua face está girando do passado para o futuro, suas asas sendo puxadas para trás pela tempestade, golpeando esse tempo do futuro imaginado, precipitado e antecipadamente temido em direção ao paraíso do passado (ele próprio imaginado retrospectivamente, depois de ter sido perdido e reduzido a ruínas). E as asas estão agora sendo pressionadas, como eram pressionadas antes, com violência igualmente poderosa, de modo que agora, como então, “o anjo não pode mais fechá-las”.

Passado e futuro, pode-se concluir, estão no processo de trocar seus respectivos vícios e virtudes, relacionados – como sugeriu Benjamin – por Klee há cem anos. Agora, o futuro é que está marcado no lado do débito, denunciado inicialmente por sua não-confiabilidade e por ser incontrolável, com mais vícios que virtudes; enquanto a volta ao passado, com mais virtudes que vícios, é marcada na coluna do crédito – como um lugar ainda de livre escolha e do investimento ainda não-desacreditado de esperança.
Penso que o episódio Brexit, assim como “outros movimentos populistas no continente” são manifestações da “tendência à retrotopia” discutida acima. Na ausência de ferramentas efetivas de ação capazes de enfrentar os problemas de nossa presente situação, e dado o crescente desapontamento trazidos por sucessivos futuros creditados com o desenvolvimento dessas ferramentas de ação, não surpreende que a proposta de exploração do giro de 180º pareça ilusoriamente atrativa. A possibilidade de “uma nova, talvez ainda melhor era para a Europa” que emerge do resultado do Brexit, pode ainda aparecer, como sua consequência não-antecipada, embora plausível. Mas isso ocorrerá porque nos frustramos com o uso de tribalismos antiquados para lidar com os desafios do presente, gerados pela emergente condição humana de interdependência mundial.

Faz sentido a ideia de uma tendência retrotópica, dado o medo generalizado do futuro. Mas como você considera a tendência coexistente de ver o passado como uma moral absolutamente negativa, um tipo de moralidade, se você quiser, que orienta o presente dizendo “sabemos que somos contra aquilo” ou “nunca mais”? Estou aqui pensando na centralidade do Holocausto na política contemporânea e no discurso histórico, nos últimos 20 anos. E estou também pensando no recente, mas contínuo foco nos crimes sexuais históricos do Reino Unido, onde frequentemente parece que o passado relativamente recente está se transformando numa visão de corrupção e imoralidade difíceis de acreditar, e contra o qual nos afirmamos no presente. O futuro certamente parece desacreditado, hoje, mas o passado não o é igualmente?

Isaac Newton insistiu em que cada ação dispara uma reação… E Hegel apresentou a história como um conflito/fricção entre oposições, que provocam e reforçam mutuamente oposições (o processo interconectado de dissolução e absorção conhecido por “dialética”). Se vocês fossem partir de Newton ou Hegel, chegariam à mesma conclusão: ou seja, de que seria de fato bizarro se a tendência retrotópica não fosse alimentada por e alimentadora da entronização e destronamento do futuro (sua pergunta, aliás, é um bom exemplo dessa dialética).

A retrotopia, assim como a utopia-Futura ortodoxa, refere-se a uma terra estrangeira: um território desconhecido, não-visitado, não-testado e, em suma, não-experimentado. Essa é precisamente a razão pela qual se recorre a retrotopias e utopias, de forma intermitente, sempre que se procura uma alternativa ao presente. Ambas são, por essa razão, visões seletivas, e em ambos os casos são visões seletivas passivamente e obedientemente suscetíveis de manipulação. Em ambos os casos, os holofotes da atenção são focalizados em alguns aspectos de, para citar Leopold von Ranke, como era realmente (wie es ist eigentlich gewesen), mas numa densa sombra. Isso possibilita a ambos ser territórios ideais (imaginados) onde localizar o estado de coisas (imaginado) ideal, ou ao menos uma versão corrigida do presente estado de coisas.

Até aqui, utopia e retrotopia não diferem – pelo menos em seus processos e na parcialidade dos resultados. O que realmente separa os dois é a mudança de lugar entre confiança e desconfiança: a confiança sendo movida do futuro para o passado, a desconfiança na direção oposta. Seu próprio exemplo captura esse processo, implicando que a inevitabilidade da “tendência retrotópica” coincide com a popularidade do “nunca mais”. Afinal, a retrotopia deriva sua atração, entre outros fatores, do senso de que o futuro pode “nunca mais”, e é provável que “faça isso novamente”. Aquela “centralidade do Holocausto na política contemporânea e no discurso histórico, que realmente manifestou-se nos últimos 20 anos”, como você notou tão corretamente, de outra forma não teria acontecido. Ela testemunha o colapso da confiança na capacidade do futuro elevar os padrões morais.

Você fala corretamente, acredito, dessa intensa desconfiança do futuro, que por sua vez gera esses sonhos retrotópicos de um passado que nunca foi. Mas, por que o futuro deixou de ser o lugar de nossas esperanças, o espaço em que imaginamos e prevemos as coisas como deveriam ser? Você responde a isso parcialmente, quando nota que “uma grande e crescente maioria de pessoas… aprendeu… a desacreditar do futuro desigual, inconstante, imprevisível e notoriamente desapontador”. Mas a história europeia está marcada pela experiência de diversos eventos horrendos, que não necessariamente resultaram numa perda de fé generalizada no futuro. Por exemplo, a Guerra dos Trinta Anos foi seguida pelas primeiras inspirações do Iluminismo, um dos momentos culturais mais otimistas e orientados ao futuro. Até mesmo depois da catástrofe das Guerras Mundiais e do Holocausto, no período pós-guerra, até os anos 1970, foi seguramente marcado por um grau de otimismo, de que as coisas estavam melhorando, de fato, “de que você nunca esteve tão bem”. Então, é claro, houve os anos sessenta, um momento de grande experimentação social e política.

Então, o que acontece na vida em sociedade hoje que transformou o futuro em algo a se desconfiar, a temer?
Pensar no futuro “como alguma coisa suspeita, a ser até mesmo temida”, não é de forma alguma novo na história humana. De fato, remonta aos tempos pré-socráticos, mais precisamente ao século 8 AC – ao Trabalhos e os Dias de Hesíodo, particularmente à sua história “Idades dos Homens”. É uma história de contínua decadência, corrupção e degradação, do pico dos “anos de ouro” aos “anosde ferro”, o fundo dos fundos, no qual Hesíodo se coloca junto com seus contemporâneos. Sua descrição da condição e dinâmica dos habitantes dos anos de ferro era marcantemente reminiscente das características que nossos próprios contemporâneos imputam às condições do nosso próprio século 21, quando embarcamos na jornada retrotópica; ou seja, era atroz, horripilante e repulsiva.

Na visão de Hesíodo, a “raça do ferro” estava destinada a “nunca descansar do trabalho e da tristeza durante o dia, e da destruição à noite”. Na idade do ferro, “o pai não concordará com seus filhos, nem seus filhos com seus pais, nem hóspedes com seu anfitrião, nem companheiros com companheiros” e “não haverá privilégio para o homem que mantém seu juramento ou para o justo ou para o bom; mas, ao contrário, os homens vão louvar os malfeitores e seus negócios violentos. A força será certa, e não haverá mais reverência. E os ímpios ferirão o homem digno, falando falsas palavras contra ele, e jurarão infâmias sobre eles”. Na idade do ferro, aidos (a palavra grega para o sentimento de reverência, e também para a vergonha que coíbe as pessoas de cometerem malfeitos) será cada vez mais notória, apenas por sua ausência.

Em sua reação à herança da Grécia pagã, a Europa cristã introduziu um terceiro elemento ao ciclo Hesiodíaco de declínio e queda: a redenção, a perspectiva de reversão cronológica das eras de ouro e de ferro. Santo Agostinho, por exemplo, introduziu um conceito linear de tempo que fluía da Cidade do Homem inferior, devorada por traços indeléveis de pecado original e, como a era de ferro de Hesíodo, endemicamente corrupta, à perfeição da Cidade de Deus, guiada pela igreja cristã, a vanguarda e a praça das armas. Da Idade Média até a Idade Moderna, contudo, o modelo predominante do fluxo de tempo estava mais próximo de Hesíodo do que de Santo Agostinho.

Durante a Renascença, as coisas mudam. Francis Bacon ousou visualizar a casa da lei de Salomão, a faculdade ideal em seu trabalho utópico New Atlantis, como a culminação da longa, vacilante e espinhosa escalada ascendente da humanidade a uma nova era de ouro. E numa tentativa de ir além da disputa entre antigos e modernos (querelle des anciens et des modernes), Isaac Newton tentou colocar varas em dois formigueiros em guerra, proclamando, numa carta a Robert Hooke em 5 de fevereiro de 1675: “Se vi mais longe, foi por me colocar sobre ombros de gigantes”.
Interessados em simplificar esta complicada história de entrecruzamentos, geminação, linhas de pensamento mutuamente inspiradoras e reciprocamente depreciativas, sugiro o ano de 1755 como o marco que separa as duas visões em competição. De um lado, a de declínio apocalítico, desde o início, de uma história projetada e guiada pelos homens. De outro, a emergência, isto é, a visão de progresso contínuo, essencialmente incontrolável. Naquele ano, a combinação de um terremoto, seguido de fogo e sucedido por um tsunami apagou a cidade de Lisboa da face da terra.

Àquela altura, Lisboa era admirada e reverenciada como uma das cidadelas mais ricas e poderosas econômica e culturalmente daquilo que, por sua própria definição, constituía a vanguarda do mundo civilizado. Em poucas palavras, a natureza, agora acusada por sua indiscriminação endêmica, entorpecimento e estupidez moral, bem como indiferença à ética e valores humanos – aquela ordem estabelecida por Deus precisava ser tomado sob nova gestão humana.

A nova administração olhava à frente firme e resolutamente. “Novo” transformou-se na tautologia de “maior” e “melhor”, da mesma forma que “velho” tornou-se um pleonasmo para “fora de moda” e “ultrapassado”. No processo, isso transformou o vigente e vir-a-ser velho no reino da imperfeição condenável, destinado à deposição de lixo. E expandiu o espaço de novidades desejáveis e bem-vindas até que os mercados consumidores fizessem tudo instantaneamente. A vida tornou-se orientada para o futuro e ainda mais apressada.

Mas progressivamente, os sintomas sugerem que aquela era de gestão humana é mais uma aberração temporária do que um novo paradigma. Eu me sinto tentado a sugerir que quando percebida com o benefício da retrospecção, a “vida voltada ao futuro”, como posto por Ernst Block, entrará para os anais da história humana como um episódio na verdade pouco usual e por certo atípico – uma aventura romântica, fervorosamente apaixonada, mas breve.

Você está certo sobre quão significativo foi o terremoto de Lisboa. Talvez a resposta mais famosa – e que ecoa sua afirmação de que a resposta ao terremoto era para tomar a natureza abandonada por Deus sob gestão humana – é o Cândido, de Voltaire. A linha final, uma resposta aos apóstolos do progresso panglossiano, ressoa aqui: “Precisamos cultivar nosso jardim.” Ela exprime bem a ideia do Iluminismo, seugndo a qual a humanidade pode emergir de sua “tutela autorrealizada”, como colocado por Kant, a noção de que por meio de nossa própria razão (e não há/havia maior autoridade que nossa própria razão!) podemos agarrar as leis do mundo natural e social, e modelar o mundo de acordo com os nossos objetivos racionalmente escolhidos. Por que, então, no século 21, num tempo em que é nossa habilidade de administrar a natureza “para cultivar nosso jardim” para “viver voltados ao futuro” é mais forte que nunca, o projeto do Iluminismo (se é que posso chamá-lo assim) aparece como um “breve” interlúdio?

George Steiner disse certa vez que o privilégio de Voltaire, Diderot, Rousseau, Holbach, Condorcet e sua turma era sua ignorância: eles não sabiam o que sabemos e não podemos esquecer. A descendência da “Nova Jerusalém” de Isaias – relutantemente e não sem resistência – do futuro paradisíaco, fará isso a partir de Auschwitz, Kolyma e Hiroshima. Tudo isso foi fruto do cultivo entusiasmado e engenhoso do “nosso jardim”.

Você mesmo compara a relação progressiva com o tempo, e com a natureza, a um caso apaixonado. Você acha que, depois desse caso, estamos retornando à nossa prolongada relação com a temporalidade, o antigo, concepção de tempo quase teológica e alegórica, de queda e apocalipse, de decadência e redenção? Afinal, tanto ao ambientalismo quanto ao radicalismo islâmico, não falta a ideia de Fim dos Tempos.

Repito o que disse antes: o futuro (outrora a aposta segura para o investimento de esperanças) tem cada vez mais sabor de perigos indescritíveis (e recônditos!). Então, a esperança, enlutada, e desprovida de futuro, procura abrigo num passado outrora ridicularizado e condenado, morada de equívocos e superstições. Com as opções disponíveis entre ofertas de Tempo desacreditadas, cada qual carregando sua parte de horror, o fenômeno da “fadiga da imaginação”, a exaustão de opções, emerge. A aproximação do fim dos tempos pode ser ilógica, mas por certo não é inesperada.

Grande mídia ou grande terrorismo? por Leda Maria Paulani

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Leda Maria Paulani – A Terra é redonda – 15/11/2022

A reação à fala de Lula no encontro com deputados em Brasília é exemplo gritante desse vergonhoso papel desempenhado pela grande mídia corporativa

Não sei localizar em meus escritos quando foi que falei a primeira vez em terrorismo econômico. Mas falo disso tem muito tempo, pelo menos umas duas décadas. Nestes primeiros dias de transição do desgoverno de Jair Bolsonaro ao futuro governo Lula, o terrorismo econômico ganhou vestes e cores equiparáveis aos dos bandos de zumbis alucinados que ainda permanecem em frente aos quartéis.

O terrorismo consiste em brandir ameaças de caos e horror ao menor sinal de que algo será feito, pelas mãos do Estado, para amenizar, por menos que seja, as mazelas produzidas dia a dia por um sistema cego e que dá as costas aos cadáveres que vai empilhando pelo caminho. Ameaçam com o horror, como se horror não fosse ter o país 33 milhões de criaturas passando fome, ter uma legião de crianças e adolescentes com desnutrição – que atingiu em setembro seu maior nível em sete anos, ter mais de 200 mil pessoas perambulando pelas ruas sem um teto que as abrigue.

Evidente que constrangimentos macroeconômicos reais podem existir, como os que decorrem de um país ter passivos externos que sua geração de divisas não é capaz de sustentar (caso da Argentina, por exemplo). Mas não é esse, nem de longe, o caso do Brasil. Há risco zero hoje, a menos que ocorra uma hecatombe mundial, de um default externo de nossa economia. Temos mais de 300 bilhões de dólares de reservas e nossas exportações vão bem, obrigada. Ah, mas a relação dívida bruta/PIB não pode crescer indefinidamente, propalam os terroristas: a do Brasil está em torno de 75%, a do Japão passa dos 200% – e já faz muito tempo! Só se um bando de lunáticos aterrizasse no Ministério da Economia e resolvesse brincar de confiscar poupanças, para haver algum problema nessa área.

Tudo isso sabe qualquer economista minimamente informado e minimamente razoável, que não sofra de delirium tremens ao ouvir o termo “gasto público”. Alguns existem, porém, que sofrem desse mal e surtam! Não são todos, talvez não sejam nem a maioria, mas existem. Eles representam interesses claramente configurados? Sim, mas não é esse o ponto aqui. O ponto aqui é: como é possível que alguns poucos economistas de certo renome e vinculados a umas poucas instituições sejam capazes de produzir tamanho terror? A resposta é simples: eles têm uma caixa de ressonância inacreditavelmente ampla e forte – a imprensa.

A reação à fala de Lula no encontro com deputados em Brasília é exemplo dos mais gritantes desse vergonhoso papel desempenhado sobretudo pela grande mídia corporativa. As manchetes prognosticavam o apocalipse. Uma das mais escandalosas foi a do Valor Econômico: “Dólar dispara e bolsa derrete, após fala de Lula sobre gastos”, numa interpretação claramente exagerada do que ocorreu com essas duas variáveis. Não foram só as manchetes, diga-se. Os editoriais fizeram coro em uníssono com o assim dito “mercado”, em chamadas sombrias: “foi um mau começo”, opinou a Folha, “Lula precisa descer do palanque”, exigia o Estadão, para ficar só em dois dos mais importantes jornalões. E o samba de uma nota só foi, claro, a responsabilidade fiscal, detratada, segundo os editoriais, pelo presidente eleito.

Vou me deter aqui no editorial da Folha de 11 de novembro, um dia depois da fala de Lula que tanta revolta gerou. A escolha não se deve a uma preferência qualquer, mas ao fato de tal periódico ser muito mais insistente do que, por exemplo, o Estadão ou o O globo, em sua postura de imprensa “responsável”, “moderna”, que não só dá voz a todas as partes em qualquer que seja o embate, como se alinha aos melhores princípios democráticos.

Vejamos a primeira frase do texto: “Em apenas duas semanas desde o desfecho das eleições, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) conseguiu derrubar grande parte das esperanças de que seu governo vá adotar uma política econômica racional e socialmente responsável”. Tradução: criticar o teto de gastos é irracional! Tal tipo de argumento joga para o limbo do negacionismo e do anticientificismo qualquer contestação a essa regra fiscal, que, diga-se, não existe dessa forma em nenhum outro lugar do mundo. Pior ainda, confere o mesmo destino a quaisquer posições teóricas que questionem o sentido exato do termo “responsabilidade fiscal”, posturas por sinal que andam em alta internacionalmente, a exemplo da Modern Money Theory.

O texto diz que Lula não apresentou até agora nenhum plano de ação, a não ser uma PEC capaz de liberar uma “gastança sem precedentes”. Reproduzindo in totum o argumento supostamente científico empunhado pelos próceres do mercado, o editorial diz ainda que, “se colocar em prática seu falatório, a sangria dos cofres do Tesouro não tardará a alimentar a inflação (…) os juros (…) e a dívida pública”. Em suma: terror em estado puro.

E não se informa o distinto público que, desde que o teto foi implantado, no governo de Michel Temer, a relação dívida líquida/PIB subiu de 38 para 58%, ou seja, a existência de uma regra fiscal, mesmo tão radical e estúpida quanto a nossa, não é garantia alguma de queda da dívida em proporção do PIB. Se o produto não cresce, mesmo que a dívida caia por força do sacrifício de milhões de pessoas, a relação pode continuar a subir. Do mesmo modo, a inflação subiu justamente no período de vigência do teto, por constrangimentos externos e choques de oferta provocados pela pandemia e pelo conflito na Ucrânia. Mais uma vez, a existência de regra fiscal prejudicando boa parte da população pelas restrições que traz à plena operação das políticas públicas não constitui garantia de inexistência de problemas inflacionários.

E é a tal casta de argumento capcioso que se deve o mote, repetido algumas vezes ao longo do texto, segundo o qual “responsabilidade fiscal é responsabilidade social”. Querem, com isso, guarnecer de vestes palatáveis a defesa de uma política que atinge diretamente as camadas mais baixas, enquanto busca preservar a riqueza financeira de uns poucos. E dá-lhe terror! Na esteira dos resultados tenebrosos já enunciados, o editorial acrescenta também o colapso do crescimento, a escalada do desemprego e o aumento da miséria e da fome, caso o “falatório” de Lula venha a se efetivar.

Numa postura que chega a ser insultuosa com um cidadão que teve mais de 60 milhões de votos, o editorial do “democrático” jornal afirma que Lula deseduca, que fala tolices e que resmunga contra o mercado. Que educação dá um jornal como a Folha que não admite se chame Jair Bolsonaro de extrema direita? Como a imprensa e o mercado trataram o genocida? Só para lembrar, ele furou várias vezes o teto de gastos – na última das vezes para, afrontando a Constituição, criar vergonhosamente benefícios em ano eleitoral, e deixou de pagar precatórios (quase um pecado capital para os cânones neoliberais), e isso para não mencionar a ignomínia do orçamento secreto, o maior escândalo de corrupção que já teve este país e efetivado pelo dito incorruptível.

Não se ouviu então, nem do mercado, nem da imprensa, não digo gritaria, não se ouvia ninguém levantando a voz. Os dois sócios passaram pano o tempo todo. Afinal de contas era preciso preservar o ultraliberal Paulo Guedes, que estava fazendo direitinho o serviço e defendia os “princípios macroeconômicos corretos”.

Num programa recente na Globonews, o comentarista Octávio Guedes disse, num arroubo de sinceridade, e para certo espanto dos demais comentaristas presentes, que o mercado é bolsonarista. Quem leu o artigo até aqui há de concordar que ele está coberto de razão. Mas o mercado não passou pano sozinho pra Jair Bolsonaro. Contou sempre com a inestimável ajuda da grande mídia, dos programas de especialistas da TV, dos grandes jornalões. Sabemos todos que comportamentos como o de Octávio Guedes são antes exceção do que regra. Certamente escapou das orientações gerais do canal para programas ao vivo e não deve ter agradado nem um pouco aos Marinhos.

É verdade que a mídia alternativa, que se multiplicou com o advento da internet, salva um pouco a lavoura, mas não é menos verdade que o pouco de grande jornalismo que havia ficou de vez comprometido com a ascensão do neoliberalismo e do neofascismo, numa comunhão estranha só em aparência. Se aos poucos devemos nos livrar do terrorismo bolsonarista, o contrário deve acontecer com o terrorismo econômico. Ele vai recrudescer e não seria tão bem-sucedido sem a ajuda do parceiro de sempre… uma mídia a serviço do Brasil, para poucos.

*Leda Maria Paulani é professora titular sênior da FEA-USP. Autora, entre outros livros, de Modernidade e discurso econômico (Boitempo).

Descarbonizar a economia global, por Mariana Mazzucato

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Mariana Mazzucato – A Terra é redonda -13/11/2022

Apenas o setor público pode mobilizar e coordenar investimentos na escala necessária para descarbonizar a economia global

Nas últimas semanas, vários membros da Aliança Financeira de Glasgow Financial para Emissões Zero (GFANZ) – um grupo de 450 instituições financeiras – pularam fora devido a preocupações a respeito do custo de cumprir seus compromissos climáticos. Ao desistir, eles desmentiram a noção de que as instituições financeiras privadas podem liderar a transição para uma economia neutra em carbono. O que a transição realmente precisa é de Estados mais ambiciosos que vão além da regulação dos mercados para se tornarem formadores de mercado.

A abordagem liderada pelo mercado está enraizada na crença de que as instituições financeiras privadas alocam capital de forma mais eficaz do que qualquer outra instituição. A implicação é que os Estados devem abster-se de “escolher vencedores” ou “distorcer” a concorrência de mercado e limitar-se a “reduzir os riscos” das oportunidades de investimento verde para torná-las mais atraentes para os principais investidores privados.

Mas a história econômica moderna traz um relato diferente. Em muitos lugares e em muitas ocasiões, são os atores públicos que assumiram a liderança na formação e criação de mercados que, a partir de então, trazem benefícios tanto para o setor privado quanto para a sociedade em geral. Muitos dos grandes avanços tecnológicos que hoje achamos que são parte da vida aconteceram apenas porque entidades públicas fizeram investimentos que o setor privado considerou muito arriscados.

A história real é, portanto, bem diferente do mito predominante. Devemos muitos sucessos econômicos não a atores públicos que saíram do caminho, mas a um Estado empreendedor que assumiu a liderança. Além disso, a abordagem em que o mercado lidera está em desacordo com o objetivo de produzir uma transição verde global justa, na qual os custos e riscos sejam compartilhados de forma justa dentro dos e entre os países. “Reduzir os riscos” pressupõe uma estratégia que socializa os custos e privatiza os lucros.

O financiamento privado ainda tem um papel crucial a desempenhar, é claro. Mas apenas o setor público pode mobilizar e coordenar investimentos na escala necessária para descarbonizar a economia global. A questão, então, é o que essa abordagem deve incluir.

Primeiro, os Estados devem assumir seus papéis como “investidores de primeiro recurso”, em vez de esperar para intervir apenas como “credores de último recurso”. Em todo o mundo, as instituições financeiras públicas empregam muitos bilhões de dólares a cada ano e, devido ao seu design distinto e estruturas de governança, podem disponibilizar um tipo de finanças de longo prazo, paciente e orientado para as missões que o setor privado muitas vezes não está disposto a prover. As evidências mostram que empréstimos diretos de bancos públicos com boa governança podem desempenhar um poderoso papel de moldagem de mercado, informando percepções de futuras oportunidades de investimento.

Em segundo lugar, devemos repensar a relação entre o setor público e o privado, especialmente quando se trata de compartilhar riscos e recompensas. Quando entidades públicas assumem riscos para atingir objetivos sociais, o setor privado não deve se apropriar dos resultados financeiros.

Por exemplo, se um governo está financiando grandes projetos de energia renovável e outros investimentos verdes, pode ter uma participação acionária neles. Os retornos também podem ser socializados pela atribuição de uma proporção dos direitos de propriedade intelectual ao Estado, permitindo que os lucros sejam reinvestidos em novos projetos verdes. É importante ressaltar que as empresas que se beneficiam de finanças públicas devem estar sujeitas a condições que alinhem suas atividades comerciais com os objetivos da política industrial verde, práticas trabalhistas justas e outras prioridades.

Terceiro, para direcionar o investimento privado para atividades verdes e para reduzir o investimento em atividades prejudiciais, os Estados devem fortalecer e atualizar as regras que regem os mercados financeiros. Tal regime poderia incluir bancos centrais introduzindo políticad alocativas de crédito verde e regras e padrões como reforço regulatório para evitar lavagem verde e arbitragem regulatória.

Quarto, os formuladores de políticas devem reconhecer que o financiamento da dívida – fornecido tanto pelo setor público como pelo privado – não é necessariamente um substituto dos gastos fiscais diretos. A lógica dos instrumentos financeiros reembolsáveis não se concilia facilmente com as características de bem público de alguns investimentos relacionados ao clima. Investimentos em justiça climática e reflorestamento trarão retornos de longo alcance, mas não necessariamente do tipo que pode ser usado para pagar um empréstimo. Navegar por essas questões e entregar investimentos na escala necessária exigirá coordenação estratégica em todas as áreas de formulação de políticas sociais, ambientais, fiscais, monetárias e industriais.

Finalmente, deve-se fazer mais para fornecer espaço fiscal suficiente para que os países do Sul Global busquem suas próprias agendas domésticas de descarbonização e adaptação. Muitos países, incluindo aqueles que estão mais expostos ao colapso climático acelerado, estão enfrentando dívidas pendentes significativas. Agora é imperativo que os países devedores do Norte Global – que são responsáveis pela maior parte das emissões na atmosfera – ajudem a reduzir esses encargos por meio de cancelamentos de dívidas, reestruturação de dívidas, compensação de perdas e danos ou substituindo empréstimos climáticos por concessões climáticas.

Para limitar o catastrófico aquecimento global, o financiamento para mitigação e adaptação climática deve ser aumentado drasticamente. Mas a qualidade do financiamento também é importante. Em vez de manter a esperança de que as instituições financeiras privadas traduzam suas super-propagandeadas promessas de trilhões de dólares em emissões zero em ações críveis e responsáveis, devemos exigir que os Estados assumam o papel que lhes cabe. Isso significa mobilizar e direcionar as finanças para metas climáticas claras e ambiciosas e moldar os mercados financeiros para se alinharem a essas metas. Cobrir a lacuna de financiamento requer uma reformulação radical da arquitetura financeira e uma mudança substancial nos fluxos financeiros. Nenhuma das duas coisas vai acontecer sem intervenções políticas.

Para especificar as mudanças necessárias, vou moderar um painel só de mulheres na COP27 com a primeira-ministra de Barbados Mia Mottley, a diretora geral da OMC Ngozi Okonjo-Iweala, a ministra egípcia de Planejamento e Desenvolvimento Econômico Hala El Said e a primeira-ministra escocesa Nicola Sturgeon. Os desafios são urgentes. Se os Estados não assumirem a liderança no financiamento climático, a transição verde permanecerá fora de alcance.

*Mariana Mazzucato é professora de economia na Universidade de Sussex (EUA). Autora, entre outros livros, de O Estado empreendedor (Companhia das Letras).

Tradução: Maurício Ayer para o site Outras Palavras.

Ansiedades econômicas

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Como definido pela Organização Mundial de Saúde (OMS), a ansiedade pode ser descrita como um sentimento ligado à preocupação, nervosismo e medo intenso. Apesar de ser uma reação natural do corpo, a ansiedade pode virar um distúrbio quando passa a atrapalhar nosso cotidiano. Neste ambiente de grandes transformações e incertezas crescentes, onde as bases da sociedade vem passando por grandes alterações, mudanças no mundo do trabalho, surgimento de novos modelos de negócios, crescimento do individualismo, negacionismos e medos crescentes, grande parte da população se sente assolado pela ansiedade, cujos transtornos são mais comuns do que se imagina.

Neste ambiente, percebemos um crescimento da ansiedade econômica dos agentes produtivos e financeiros para que o novo governo defina os nomes da equipe econômica, responsáveis pela política econômica, suas visões macroeconômicas, suas respostas fiscais e monetárias, além de suas credenciais, seu histórico e as predileções teóricas. Vivemos um momento de ansiedades crescentes, onde os agentes econômicos e setores financeiros se utilizam de seu poder político e sua pressão econômica para impor seus princípios e defender seus interesses.

O poder destes agentes econômicos e financeiros são elevados, pressionam os investimentos, estimulam a entrada e a saída de recursos monetários, gerando instabilidades, volatilidades e aumento das dívidas governamentais, forçando o incremento de seus rendimentos financeiros, ganhando com altas taxas de juros, pressionando as despesas públicas, forçando políticas de austeridade fiscal e garantindo lucros estratosféricos e a perpetuação de seu poder financeiro e controle dos setores governamentais.

Quando o mercado consegue sinalizações positivas, conseguindo emplacar seus prepostos para os altos cargos da hierarquia governamental fazem grandes festas, regadas por bebidas sofisticadas, exaltando as credenciais de seus indicados e, posteriormente, fortalecem seus interesses financeiros e seus ganhos adicionais, se preparando para angariar ganhos elevados, norteando a política econômica e aumentando seu patrimônio, estimulando a compra de ativos públicos, vistos como sucateados e poucos interessantes, mas são adquiridos na bacia das almas, controlando os mercados, criando verdadeiros oligopólios e dominando a estrutura econômica e produtiva.

Se os indicados para os cargos econômicos do novo governo forem vistos como intervencionistas e defensores de políticas Keynesianas, as reações são diferentes, a ansiedade cresce, as retaliações e as chantagens aumentam e o terrorismo financeiro cresce, dificultando a adoção de políticas mais intervencionistas e buscando tutelar os gestores financeiros que usam cartilhas ideológicas diferentes, pressionando o dólar e gerando quedas das Bolsas de Valores, no limite gerando caos generalizados e, através deste cenário, conseguem o incremento de seus rendimentos e aumentando os lucros de investidores internos e externos.

O caos econômico perpetrados pelos donos do capital podem ser vistos como um instrumento para fragilizar as novas ideias econômicas e levar os atores políticos a adotarem medidas “prudentes” e comedidas, prudentes devem ser vistas como aquelas que garantem seus ganhos crescentes e a manutenção de seus poderes políticos, evitando políticas redistributivas e tributação progressiva que podem reduzir os ganhos financeiros dos grupos mais abastados.

A ansiedade econômica é pensada pelos grandes conglomerados econômicos e financeiros para garantir lucros estratosféricos para os seus, usando a influência do capital para enquadrar medidas econômicas heterodoxas e intervencionistas, com isso, estes atores não se sensibilizam com mais de 33 milhões de pessoas passando fome e com a degradação de políticas públicas e sociais, cujos recursos monetários foram reduzidos imensamente, gerando incremento nas fragilidades de partes consideráveis da população.

A racionalidade econômica descrita pelos economistas ortodoxos e seus representantes defende interesses imediatos, restringe intervenções governamentais, limitando estratégias ousadas, incrementando lucros e perpetuando misérias e indignidades.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 16/11/2022.