Sem ciência não há futuro, por Márcia Castro

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O atual corte de verbas em pesquisa e em educação progressivamente afundará o Brasil na ignorância

Márcia Castro, Professora de demografia e chefe do Departamento de Saúde Global e População da Escola de Saúde Pública de Harvard

Folha de São Paulo, 25/07/2022

Imagine, por um minuto, sua vida sem os benefícios das descobertas científicas dos últimos dois séculos…

A importância da ciência passa despercebida. Mas não deveria.

A ciência é fundamental para a construção e manutenção de uma sociedade saudável e para o desenvolvimento de uma nação. Hoje desfrutamos de vidas mais longas e melhores do que nossos antepassados. No Brasil, a esperança de vida ao nascer era cerca de 30 anos em 1900 e a cada mil nascidos vivos em 1940, cerca de 200 morriam antes de completar um ano de idade. Avanços na medicina, saúde pública, comunicação, transporte e energia, dentre outros, mudaram esse cenário.

Historicamente, alguns casos ressaltam a importância da ciência na saúde pública.

Primeiro, o desafio da ausência da ciência, exemplificado pela mais letal pandemia da história, a peste bubônica, que se estendeu de 1347 a 1351. Àquela época, não se conhecia a forma de transmissão da doença. A ausência do conhecimento científico deu espaço para crenças de que a doença tinha origens sobrenaturais, que era uma punição divina, uma retribuição por pecados contra Deus, como ganância, blasfêmia, heresia e mundanismo. Cerca de um terço da população da Europa morreu nessa pandemia.

Em contraste, o suporte político e o investimento em pesquisa no Brasil no início do século 20 exemplificam a importância da ciência para o desenvolvimento e para uma sociedade mais justa. Carlos Chagas, por exemplo, foi pioneiro ao propor que a transmissão da malária era domiciliar e o primeiro a usar borrifação intradomiciliar como estratégia de controle vetorial. Hoje, as principais medidas de controle da malária no mundo são fruto dessa descoberta.

O mesmo Carlos Chagas descobriu a doença que carrega seu nome e, até hoje, é o único cientista no mundo que descreveu por completo o ciclo de uma doença infecciosa: o agente causador, o vetor de transmissão, os hospedeiros, as manifestações clínicas e a epidemiologia.

Expedições lideradas por Oswaldo Cruz, Carlos Chagas, Artur Neiva e Belisário Pena mudaram o curso da saúde pública ao expor o abandono do Brasil rural, com péssimas condições sanitárias e carência de assistência governamental.

O contexto rural foi considerado um problema econômico e social, cuja mitigação impulsionou o movimento sanitário e a criação de centros de profilaxia rural e do Departamento Nacional de Saúde Pública. Sem apoio político e investimento em ciência, nada disso teria sido possível.

A pandemia de Covid-19 é um exemplo do custo social de se ignorar a ciência. Ao contrário da pandemia de peste bubônica, o conhecimento foi gerado de forma rápida, mas foi ignorado por muitos governantes. Prevaleceram opiniões, e não a ciência. A pandemia de Covid-19 ocorreu em um cenário político que exemplifica como o desgoverno aniquila o conhecimento e a descoberta científica.

Como disse Hipócrates, considerado o pai da medicina, “Há, de fato, duas coisas: ciência e opinião; a primeira gera conhecimento; a última, ignorância”.

Sem ciência não há futuro. O atual corte de verbas em pesquisa e em educação progressivamente afundará o Brasil na ignorância com um custo social inadmissível. Que em outubro a ciência vença a opinião, e o Brasil escolha o caminho do conhecimento e não da ignorância.

Esta coluna foi escrita para a campanha #ciêncianaseleições, que celebra o Mês da Ciência. Em julho, colunistas refletem sobre o papel da ciência na reconstrução do Brasil.

Gastança como bandeira eleitoral, por Rolf Kuntz.

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Candidatos prometem eliminar ou reformar o teto de gastos, sem discutir questões fiscais mais importantes e sem cuidar da credibilidade.

Rolf Kuntz, O Estado de São Paulo – 24/07/2022

Pior que a saúva, a taxa de juros e o verbo no subjuntivo, o maior inimigo do povo brasileiro é o teto de gastos, a julgar pelas promessas dos mais vistosos candidatos à Presidência da República. Liberdade para gastar é uma grande bandeira comum. Não se discutem, no entanto, velhos e bem conhecidos problemas, como o engessamento das finanças federais. Mais de 90% das verbas orçamentárias são comprometidas com despesas obrigatórias. Mas ninguém fala em eliminar as vinculações, tornar o Orçamento mais flexível e usar o dinheiro público de modo mais eficiente.

Vinculação torna o dispêndio inevitável, mesmo sem planejamento, e escancara porteiras para corrupção e para malandragens. Se a Constituição manda gastar xis por cento em saúde, vamos cumprir a obrigação e comprar ambulâncias superfaturadas. Se é preciso destinar recursos à educação, que tal comprar um monte de computadores para uma escola onde faltam até banheiros? Nenhum dos dois exemplos é imaginário.

Criado em 2016, depois de uma enorme lambança fiscal e de uma dura recessão, o teto de gastos foi concebido para durar 20 anos, com uma reforma possível no meio do caminho. Sua principal função seria restabelecer, na rotina do poder público, o respeito à disciplina financeira. Limitar a variação do dispêndio à inflação do ano anterior seria parte do esforço de reconstrução. Seria uma forma de carimbar, na administração brasileira, a marca da seriedade na gestão de suas contas. Seriedade é diferente, nesse caso, de mero conservadorismo. Denota, além de outros predicados, credibilidade.

Credibilidade é fundamental para quem deve cuidar do Tesouro e, portanto, dos custos de seu financiamento. Comparem-se as condições do poder público brasileiro e as de governos da Zona do Euro, onde os Tesouros se financiam, facilmente, a taxas muito moderadas e até inferiores à inflação.

Na quinta-feira o Banco Central Europeu (BCE) anunciou um aumento dos juros básicos. A elevação – de 0,5 ponto porcentual – afetou imediatamente a remuneração dos títulos públicos. Papéis alemães de dez anos passaram a render 1,352% ao ano. Títulos franceses com igual vencimento passaram a pagar 1,928%. No caso dos italianos, a alta foi para 3,614%.

No Brasil, a taxa básica de juros, a Selic, está em 13,25%. No fim do ano deverá estar em 13,75%, talvez 14%, segundo projeções de economistas do setor financeiro. A mediana das estimativas para 2023 apontou 10,75%, segundo levantamento do Banco Central divulgado na segunda-feira passada. Em abril, 63,6% da dívida líquida do governo federal eram vinculados à Selic.

Os Tesouros europeus pagam a seus financiadores, normalmente, juros inferiores às taxas de inflação, mas oferecem segurança. Assemelham-se, nesse ponto, ao Tesouro dos Estados Unidos. Títulos públicos americanos atraem capitais de muitos outros mercados, incluído o Brasil. Confiabilidade é um valor muito importante, com potencial para atrair grandes volumes de recursos, mesmo quando os juros são baixos e até negativos em termos reais. A atração tende a aumentar quando a incerteza cresce em outros países.

Incerteza tem sido, no Brasil, um poderoso espantalho de capitais. O dólar supervalorizado reflete, com frequência, os sustos impostos ao mercado pelo presidente Jair Bolsonaro. Não há escassez de reservas cambiais nem desajuste importante nas contas externas, mas as cotações são instáveis.

A balança comercial continua superavitária, como há muitos anos, graças ao agronegócio e à mineração. Há um volume razoável de reservas e as transações correntes, mesmo deficitárias, permanecem seguras e administráveis. Surtos de insegurança, no entanto, são rotineiros, provocando saídas de capitais e fortes oscilações do câmbio. Ao mesmo tempo, o mercado impõe ao Tesouro custos mais altos, encarecendo a rolagem dos títulos públicos e amarrando parcelas maiores do Orçamento a despesas financeiras.

O pacote eleitoreiro recém-aprovado é mais um importante fator de insegurança, por seus efeitos imediatos e, principalmente, por seus desdobramentos no próximo ano. O presidente Bolsonaro e aliados do Centrão preparam um perigoso legado para quem ocupar o Palácio do Planalto em 2023.

A isso é preciso somar o risco político. O presidente atacou o sistema eleitoral e o Judiciário perante embaixadores estrangeiros. Ficou claro o perigo de repetição, no Brasil, da convulsão provocada por Donald Trump, quando tentou impedir a confirmação, pelo Congresso, da eleição de Joe Biden.

Não há como separar, na gestão de Bolsonaro, a incerteza fiscal, a irresponsabilidade econômica e a tensão política permanente. Um novo mandatário contribuirá, quase certamente, para algum apaziguamento e para a retomada de metas econômicas e sociais de médio e de longo prazos. Mas terá de enfrentar, de imediato, inflação e desarranjos fiscais legados pela atual administração. Credibilidade será essencial. Mas terá credibilidade suficiente quem chegar defendendo, como alguns candidatos, livre gastança, controle de juros e intromissão nos preços da Petrobras?

JORNALISTA

Bolsonaro é reação de elite que não precisou da lei para ser racista, diz historiadora.

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Em livro, Ynaê Lopes dos Santos explora a teia de relações entre a formação do Estado brasileiro e a opressão racial

Yasmin Santos – Folha de São Paulo, 23/07/2022

RIO DE JANEIRO

Vinte cinco de maio de 2020. George Floyd, um homem negro, é morto por um policial branco nos Estados Unidos. A imprensa brasileira recebe a notícia e repercute o crime como se a barbárie em Minneapolis fosse alheia a nós.

“Essa estranheza por boa parte da mídia me motivou a escrever”, diz Ynaê Lopes dos Santos, autora de “Racismo Brasileiro: Uma História da Formação do País”, publicado pela editora Todavia.

Segundo a professora do Instituto de História da Universidade Federal Fluminense, mal parecia que uma semana antes João Hélio, de 14 anos, havia morrido numa ação da Polícia Militar em São Gonçalo, na Baixada Fluminense.

É bem verdade que a segregação racial jurídica americana contrasta com o histórico brasileiro, que nunca adotou leis abertamente segregacionistas. No entanto, o Brasil nunca o fez porque nunca foi necessário. É sob essa perspectiva que a historiadora constrói seu texto.

“O Estado criou uma sistematização de exclusões sem as precisar racializar, embora a racialização estivesse na base dessa estrutura”, afirma. “No mito de origem da história brasileira, é reconhecida a existência de três raças, mas também é determinado o lugar de cada uma delas.”

A professora faz referência à tese vencedora do concurso promovido pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 1844. Von Martins explicou a formação do país a partir de três rios, que representariam as três raças, o grande rio branco e seus dois afluentes, o negro e o indígena.

Bebendo dessa fonte, a pretensa harmonia entre a casa-grande e a senzala foi aprimorada por Gilberto Freyre na década de 1930 e esteve nas bases da política durante a ditadura do Estado Novo, entre 1937 e 1945.

O livro mostra que a história do racismo brasileiro é a própria história do Brasil —desde a colônia à República. “Somos uma sociedade que escolheu o racismo em todos os momentos agudos de nossa história política”, diz.

“Por mais que a escravidão tenha durado quase 400 anos, o racismo atual não é fruto só dela. Tivemos mais de 130 anos de uma experiência republicana abertamente racista”, argumenta. “Enquanto não tivermos um enfrentamento efetivo do racismo a nossa democracia vai estar sempre em perigo. A titubeação democrática é consequência do racismo que nos estrutura”.

A professora entende a guinada à extrema direita no Brasil como um regresso conservador, em resposta aos avanços conquistados pelas minorias desde a Constituição de 1988, como a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial e a adoção da Lei de Cotas. Santos, contudo, afirma que esse movimento não é único na história brasileira.
“No século 19, o regresso conservador reabriu o tráfico negreiro na ilegalidade [após a proibição de 1831]. Essa forma da elite brasileira de atuar, bem conservadora, está aí desde que o Brasil é Brasil”, afirma. “Agora, as coisas estão mais escrachadas e o que temos é isto, uma parte da elite que não quer mudanças.”

Um dos primeiros atos que um governo verdadeiramente democrático deveria fazer ao assumir o Palácio do Planalto no ano que vem seria, segundo a historiadora, restaurar a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, extinta em 2015 e incorporada ao Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos. “A luta pela igualdade racial precisa estar no pilar de todos os ministérios”, afirma.

A professora celebra os dez anos da Lei de Cotas, mas diz que a política é insuficiente para combater o racismo. “É característico do Brasil ter, ao mesmo tempo, um número expressivo de jovens negros entrando na universidade e de jovens negros sendo mortos pela polícia”, diz.

Quando a mãe de um menino negro se preocupa se o filho está saindo de casa com um capuz —algo banal, mas que pode pôr o jovem sob suspeição da polícia—, significa que ela não é livre. Nem a mãe nem o filho são cidadãos plenos, diz a professora.

“Na sociedade em que vivemos hoje, neoliberal e individualista, não existe a possibilidade de pensar ações de transformação efetiva do ponto de vista racial”, afirma. “Propor uma mudança racial é propor uma mudança de sociedade.”

RACISMO BRASILEIRO: UMA HISTÓRIA DA FORMAÇÃO DO PAÍS

Ynaê Lopes dos Santos – Editora Todavia

Há risco real de autogolpe no Brasil, diz Levitsky.

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Marcela Villar e Hugo Barbosa, especiais para o Estadão

22 de julho de 2022

Steven Levitsky, autor do best-seller “Como as democracias morrem”. Foto: Jesika Theos/The New York Times
A menos de três meses das eleições e com a recente onda de ataques ao sistema eletrônico de votação, há no Brasil a possibilidade de acontecer um episódio semelhante à invasão ao Capitólio, em Washington, nos Estados Unidos, quando apoiadores do ex-presidente Donald Trump ocuparam o Congresso daquele país em janeiro de 2021, após o republicano não ser reeleito. O alerta é do cientista político americano Steven Levitsky, autor do best-seller ‘Como as democracias morrem’. “Bolsonaro parece ter se inspirado no 6 de janeiro”, avalia Levitsky ao Estadão.

De acordo com Levitsky, que também é professor de política em Harvard, construir uma grande coalizão, que envolva partidos de diferentes posicionamentos ideológicos, é fundamental para derrotar autoritários e evitar que a eleição brasileira seja subvertida. “A melhor maneira de fazer isso é por meio de uma ampla coalizão que inclua forças de esquerda, centro e direita”, analisa.

Confira a seguir a íntegra a entrevista concedida ao Estadão.

ESTADÃO: Como o senhor avalia o cenário atual do Brasil a poucos meses da eleição?
STEVEN LEVITSKY: É uma situação incerta, porque como a gente viu nos Estados Unidos, quando tem um presidente que não é comprometido com a democracia, há risco de crise. O presidente Bolsonaro pode se recusar a aceitar a derrota. Ele pode tentar subverter a eleição.

ESTADÃO: A democracia no Brasil está em risco? Existe a real chance de “autogolpe” ?
STEVEN LEVITSKY: Sim, claro. Sempre que você elege um presidente autoritário, a democracia está em risco. Vimos isso nos Estados Unidos, e o mesmo acontece no Brasil. Então, há uma chance real de um autogolpe. Não acho muito provável, e acho que se Bolsonaro tentasse provavelmente falharia (como Trump), mas o risco é real.

ESTADÃO: Na sua avaliação existe a possibilidade de acontecer um episódio semelhante à invasão do Capitólio no Brasil?
STEVEN LEVITSKY: Sim. Na verdade, Bolsonaro parece ter se inspirado em 6 de janeiro. Para ter sucesso onde Trump falhou, no entanto, ele precisaria de cooperação militar.

ESTADÃO: Assim como nos EUA, a integridade e segurança do sistema eleitoral brasileiro também estão sendo questionadas. Como as instituições podem proteger o sistema democrático contra esses ataques?
STEVEN LEVITSKY: O Brasil tem um sistema eleitoral muito bom, mais sofisticado e seguro que o dos Estados Unidos. Não há muito o que fazer quando alguém como Trump ou Bolsonaro tentam mentir descaradamente para enfraquecer a confiança no sistema. O mais importante é que os democratas no Brasil, de direita e de esquerda, defendam vigorosamente a democracia.

ESTADÃO: O quão importante é uma política de coalizão em casos em que a democracia está em risco? Por que acredita que a coalizão não funcionou aqui?
STEVEN LEVITSKY: A melhor maneira de derrotar uma figura ou partido autoritário é isolá-los, para derrotá-los politicamente, incluindo forças da esquerda, centro e direita. Não há garantia, mas há uma melhor chance de sucesso. Neste caso, o melhor caminho para assegurar que Bolsonaro não subverta a eleição ou acarrete uma crise como Trump fez é fazê-lo perder massivamente no primeiro turno. Isso pode acontecer se todas as forças políticas do Brasil se alinhassem contra ele. O motivo disso raramente acontecer, inclusive nos Estados Unidos, é que, infelizmente, a maioria dos políticos coloca seus interesses de curto prazo acima da defesa da democracia. Eles dizem que apoiam a democracia, mas não querem se sacrificar politicamente para defendê-la.

ESTADÃO: Na avaliação do senhor, as instituições no Brasil têm agido à altura com relação às ameaças à democracia?
STEVEN LEVITSKY: Eu diria que até agora as instituições do Brasil tiveram um desempenho muito bom. Não perfeito, é claro, mas até agora eles resistiram amplamente aos ataques de Bolsonaro. Uma instituição crítica, no entanto, continua sendo as forças armadas e o controle civil sobre ela. Isso enfraqueceu nos últimos anos, e a sobrevivência democrática do Brasil dependerá disso.

ESTADÃO: Como o senhor avalia o comportamento das Forças Armadas brasileiras neste ano eleitoral ?
STEVEN LEVITSKY: As forças armadas brasileiras entraram muito na política nos últimos anos – o julgamento de Lula foi um exemplo flagrante. E muitos oficiais estavam muito próximos do governo Bolsonaro. Mas até agora, o comando das Forças Armadas parece não cooperar com uma aventura autoritária liderada por Bolsonaro. Os generais mergulharam na política, o que é ruim, mas eles não parecem querer entrar de cabeça.

ESTADÃO: O senhor utiliza o termo ” jogo duro constitucional” para designar o uso das instituições como armas políticas contra oponentes. Para o senhor o Bolsonaro está utilizando as instituições dessa maneira ?
STEVEN LEVITSKY: Eu usaria o jogo duro constitucional para descrever alguns dos comportamentos da direita anti-PT antes de Bolsonaro chegar ao poder. Mais no caso da condenação de Lula. Toda a centro-direita no caso do impeachment de Dilma. Bolsonaro certamente empregou, ou tentou empregar, o jogo duro constitucional, mas na maioria das vezes ele não tem habilidade política ou alianças para realizá-lo com sucesso. Com Bolsonaro, me preocupo mais com o autoritarismo antiquado – coisas como golpes e violência. Não há nada de “constitucional” nisso.

ESTADÃO: Em “Como as democracias morrem” o senhor apresenta quatro indicadores para um comportamento autoritário. Em quais Bolsonaro se encaixa?
STEVEN LEVITSKY: Ele se encaixa em todos eles e tem se encaixado por vários anos. Ele tem abraçado abertamente um comportamento antidemocrático, tolerado violência e, cotidianamente, falhado em reconhecer a legitimidade de seus oponentes de esquerda. Assim como Trump, Bolsonaro é um fácil de reconhecer como autoritário. Ele não se esforça em esconder.

ESTADÃO: Qual a percepção da comunidade internacional em relação à instabilidade democrática e às eleições no Brasil?
STEVEN LEVITSKY: O Brasil é um grande país. Não sei se uma resposta internacional vai importar muito. Obviamente que é bom que Trump não esteja mais no poder nos Estados Unidos, então a administração de Biden iria se opor à aventura autoritária de Bolsonaro. Mas, a defesa da democracia brasileira está nas mãos dos brasileiros.

Precisamos de uma política de civilização, por Marco Aurélio Nogueira.

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Neste País carregado de possibilidades, estamos sem governo, há estímulos para a degeneração da convivência e se amontoam os problemas

Marco Aurélio Nogueira, O Estado de São Paulo – 23/07/2022

A nossa é uma época estranha. Todas as épocas talvez sejam assim: quem vive nelas sempre pode ter a sensação do inusitado, de algo que não se manifestou antes. Mas a nossa é paradoxal demais. Encanta e assusta. Confunde, perturba, excita. Parece vazia de esperança e otimismo, como se temêssemos o que nos aguarda à frente.

Há grandes margens de liberdade e autonomia. Podemos escolher como viver a vida. Mas não nos damos conta das orientações que, insidiosamente, valendo-se de algoritmos e estratégias mercadológicas, modulam e padronizam os comportamentos coletivos.

Misturam-se a isso a desinformação induzida e a atuação de líderes autoritários, que minam os valores democráticos e manipulam parcelas importantes da população. Há governantes que governam contra seu povo e outros que combatem o sistema eleitoral de seu próprio país, depois de terem dele se beneficiado.

Vivemos em redes. A cada dia, mais pessoas caem nelas. Redes são prisões ou estradas para a autonomia? Isolam-nos em bolhas e nos roubam do contato com o mundo exterior, alienando-nos? Ou são estratégias de sobrevivência, lugares de fuga de uma realidade sempre mais difícil de ser suportada e compreendida?

O que há de pernicioso e dispersivo nas redes pode ser contraposto ao que elas trazem de ativação de relacionamentos. Estar em redes é usufruir de contatos e oportunidades. É adquirir uma visibilidade que, bem dimensionada, nos retira da privacidade excessiva e da individualidade fechada. É poder trabalhar com maior agilidade e com menos deslocamentos. É poder interagir e dialogar.

O problema começa quando as redes trancam os indivíduos, os tornam dependentes delas, a ponto de romperem o contato com a realidade. Nesse ponto, as redes viram mecanismos de reforço da hiperpersonalização e do narcisismo. É ainda pior quando as redes se convertem em máquinas de compressão e modelagem de cabeças, o que ocorre quando “sistemas robóticos” são postos em ação para produzir fatos ou contaminar ambientes virtuais. A desinformação é veneno puro. Intoxica consciências e perturba a formação de decisões livres e críticas.

Hoje temos de responder a perguntas incômodas. Desejamos continuar a viver de modo tecnológico, digital, em redes?

Prosseguiremos aceitando o domínio do mercado? Continuaremos a assistir sem reação à destruição do planeta, ao aquecimento global, à crise climática? Como estamos assimilando as postulações identitárias e as lutas por reconhecimento? Temos à disposição um modelo alternativo de “boa vida” e “boa sociedade”? A democracia institucionalizada está nos ajudando? Estamos cooperando o suficiente?

As reflexões do pensador francês Edgar Morin nos ajudam a pensar. Morin acaba de completar 101 anos de idade. Uma bela idade para uma vida generosa e produtiva.

Em seu A via. Para o futuro da humanidade, de 2011, Morin reiterou a necessidade de pensarmos o mundo como “Unitas Multiplex”, unidade da multiplicidade e da diversidade humana. Seu universalismo concreto o levou a analisar a Terra-Pátria como uma “nave espacial” impulsionada por motores incontroláveis – a ciência, a técnica, a economia, o lucro –, que podem nos levar para futuros não desejáveis. Uma mudança de rota é nossa boia de salvação.

É onde estamos hoje: mudar ou sofrer, quem sabe perecer. Uma “política de civilização”, que também seja uma política de civilidade, é o caminho para resistirmos às catástrofes anunciadas, a corrosão da democracia, a violência, as epidemias virais, as guerras, a desigualdade, a fome, a emergência climática, o desemprego, as manifestações de ódio, as polarizações improdutivas. O descalabro é tão grande que parece faltar frestas por onde escapar.

Morin tem sido um crítico público da vida que se esparrama sem controle, um combatente contra a “crueldade do mundo”. Em 2020, apontou erros e acertos surgidos no modo como se enfrentou a pandemia. Agora, em 2022, repudiou a invasão russa da Ucrânia, propondo que se ponha em marcha uma “guerra contra a guerra”.

Sua hipótese é de que continuamos “à beira de um abismo, mergulhados na total incerteza do amanhã”. Enfrentamos problemas trágicos e perturbadores, com “múltiplas implicações entrelaçadas e outras tantas totalmente desconhecidas”. Mobilizar a indignação é preciso.

Morin nos ensina a “não ignorar as nossas ignorâncias” e a não perder a paixão pela diversidade e a esperança. Ele fala para os povos do mundo e, portanto, também fala conosco, brasileiros. Por aqui, neste país tão carregado de possibilidades, a crise é aguda. Somos afetados pelas “policrises” apontadas por Morin, mas temos a nossa versão particular delas, cujo agente principal é o próprio presidente da República. Estamos sem governo, há estímulos para a degeneração da convivência, problemas se amontoam sem solução.

Um bom momento para refletirmos sobre nossas opções, sobre decisões equivocadas, sobre arranjos políticos perversos. Um bom momento para dialogarmos com Edgar Morin.

PROFESSOR TITULAR DE TEORIA POLÍTICA DA UNESP

A Variante Bolsonaro, por Rodrigo Zeidan.

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Desastre do presidente vai muito além da inflação de milhões passando fome

Rodrigo Zeidan, Professor da New York University Shanghai (China) e da Fundação Dom Cabral. É doutor em economia pela UFRJ.

Folha de São Paulo, 23/07/2022

Contrafactual. Essa é das palavras mais importantes em economia aplicada. A ideia é que os efeitos de políticas públicas são estimados pela diferença entre o que aconteceu e o que deveria ter acontecido, se não houvesse a intervenção a ser estudada.

No caso da pandemia no Brasil, os resultados são claros: o governo brasileiro foi um dos piores do mundo na luta contra a Covid. Dezenas de milhares de brasileiros morreram desnecessariamente. A lista de erros é quase infinita: gripezinhas, venda de curas milagrosas, “não vai ter segunda onda”, briga com governadores, defenestração de ministros, corrupção na compra de máscaras e respiradores, desincentivo a medidas de distanciamento social, reação ao auxílio emergencial, atraso na compra de vacinas, discursos negacionistas e muito mais.

E não faltam evidências científicas dos efeitos nefastos do governo. Ajzenman e coautores mostraram que a retórica anticientífica do presidente brasileiro enfraqueceu o distanciamento social no Brasil, algo ainda mais danoso quando a vacina estava para chegar. Esse resultado foi corroborado por Bursztyn e colegas, assim como Block Jr. e coautores.

O discurso do Ministério da Economia de que não iria ter segunda onda em novembro de 2020, quando as vacinas estavam para serem aprovadas, parece criminoso, assim como as 11 recusas do governo em fechar contratos de vacinas com os principais fabricantes mundiais. Quantas vidas teriam sido salvas pelos 70 milhões de doses da vacina da Pfizer que o governo deixou de comprar quando mais precisávamos?

A isso se soma o papel do populismo na disseminação do discurso anticientífico, como mostram Peci e outros. O resultado é inequívoco. Almeida e coautores estimam o efeito da retórica populista no comportamento dos brasileiros e encontram que, a cada ataque a medidas de distanciamento social, a taxa de transmissão do vírus aumentava. A cada avanço contra os governos estaduais, mais gente morria de Covid-19.

O Brasil não foi o único país do mundo a ter políticas de combate à pandemia recalcitrantes. Mas foi o único país a sofrer com a disseminação da variante Bolsonaro da Covid-19. Os autores mostram que a variante Bolsonaro dominou todas as outras durante 2021; parece que mais gente morreu por ela que pela delta e pela ômicron. Mais de 300 mil mortes poderiam ter sido evitadas por uma gestão feijão com arroz.

Bastaria um governo federal que coordenasse medidas de distanciamento social e vacinação em massa. Um governo minimamente competente, com preocupação com aumento nas taxas de transmissão, requerimento de máscaras, especialmente antes de as vacinas ficarem prontas, e comunicação efetiva não seria diferente do que teve a maioria dos outros países.

Entretanto, em cada estágio da pandemia, o governo brasileiro atuou contra a população. É esse o legado que deve estar na cabeça de cada brasileiro na eleição de outubro.

Não faltam estudos para corroborar o desastre do governo federal brasileiro na gestão da pandemia. O governo tenta comprar a eleição através de uma PEC Kamikaze, mas não podemos esquecer que o desastre do presidente vai muito além da inflação de dois dígitos e de milhões de brasileiros passando fome.

Realmente, o presidente não é coveiro. Se fosse, ia ter que trabalhar 24 horas por dia para enterrar os mortos pelas suas políticas incompetentes. E provavelmente só acabaria no século que vem.

Bill Gates traz boas ideias contra pandemias, mas confia demais no capitalismo

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No livro ‘Como Evitar a Próxima Pandemia’, bilionário diz que é preciso enfrentar desigualdade, mas não aborda suas causas

Thiago Bethônico – Folha de São Paulo, 23/07/2022

A pandemia de coronavírus ainda não acabou, mas, segundo Bill Gates, a humanidade tem condições de fazer dela a última da história. Para isso, é necessário investir pesado em detecção precoce, fortalecer os sistemas de saúde pelo mundo e gastar alguns bilhões de dólares numa espécie de “corpo de bombeiros”, que lidaria só com esse tema.
Os detalhes sobre esse plano estão em “Como Evitar a Próxima Pandemia”, livro mais recente do cofundador da
Microsoft, que chega ao Brasil pela Companhia das Letras.

Desta vez, Gates não se apresenta como um “ricaço cheio de opiniões”, como fez na introdução de “Como Evitar um Desastre Climático” —lançado há pouco mais de um ano. Até mesmo porque seu trabalho com pandemias é de longa data.
Desde quando se afastou da Microsoft, em 2008, o bilionário passou a atuar como filantropo na Fundação Bill e Melinda Gates. Um dos focos da organização é investir em soluções para a Aids, doença que já matou 36 milhões de pessoas pelo mundo.

Mas não é só isso. Em 2015, Gates apresentou um TED Talk dizendo que a humanidade não estava preparada para uma próxima pandemia. Menos de cinco anos depois, o novo coronavírus começou a se espalhar pelo mundo, causando mais de 6,3 milhões de mortes.

No livro, Gates diz que doenças infecciosas são uma espécie de obsessão para ele, a ponto de precisar se controlar para não falar sobre malária e vacinas durante eventos sociais.

Considerando o atual ponto de maturação tecnológica e a disponibilidade de recursos, ele defende que o mundo pode se livrar das pandemias para sempre —e o objetivo é aproveitar que a Covid-19 está fresca na memória das pessoas para botar o plano em ação.

“Surtos são inevitáveis, mas pandemias são opcionais.” A famosa frase do epidemiologista Larry Brilliant está no cerne do argumento de Gates. Segundo ele, as doenças vão continuar se disseminando entre os seres humanos, mas não precisam se tornar desastres.

Para que isso aconteça, governos, cientistas, empresas e indivíduos precisam construir um sistema que conterá surtos inevitáveis. A detecção precoce é o primeiro ponto.

O mundo precisa melhorar a vigilância de doenças, o que envolve investir em sistemas de saúde robustos —principalmente nos países menos desenvolvidos. Outras soluções envolvem encontrar novos tratamentos; desenvolver vacinas; e vencer a disparidade sanitária entre países ricos e pobres.

A lógica é que algumas respostas já estão à mão, mas empresas, governos e sociedade civil precisam ajudar a dispersá-las pelo planeta. Para as soluções que ainda precisam ser desenvolvidas, a questão é canalizar esforços e recursos, investindo, por exemplo, em pesquisas sobre sistemas de diagnóstico e tratamentos inovadores.

Contudo, no coração do plano de Gates está uma organização que funcionaria como um corpo de bombeiros das pandemias. A esse grupo ele deu o sugestivo nome de Germ (Mobilização e Resposta Epidemiológica Global, na sigla em inglês).

A função do Germ seria ficar atento a possíveis surtos, mas também ajudar na contenção, criar sistemas para compartilhar informações, padronizar as recomendações políticas e pressionar países para implantar as medidas necessárias.

O grupo trabalharia sob os auspícios da OMS (Organização Mundial da Saúde) e seria formado por cientistas, diplomatas, epidemiologistas, especialistas de dados e em modelagem computacional.

Nas estimativas de Gates, o Germ precisaria de 3.000 funcionários em tempo integral a um custo de US$ 1 bilhão por ano. A equipe também ficará responsável por outra etapa essencial: os treinamentos periódicos.

Para que o plano dê certo, Bill Gates deixa claro a importância de governos e pesquisadores nesse processo. Por diversas vezes, o bilionário reconhece que o setor privado é incapaz de resolver todos os problemas do mundo.

No entanto, ele não nega seu entusiasmo com o modelo. “Como fundador de uma bem-sucedida empresa de tecnologia, acredito muito no poder do setor privado para impulsionar a inovação”, escreve.

“Nem todas as pessoas gostam desse arranjo, mas o lucro costuma ser a força mais poderosa do mundo para criar produtos com rapidez”, acrescenta.

No livro, Gates usa a pandemia de coronavírus para apontar erros e sugerir soluções. A disparidade entre países pobres e ricos é um ponto central.

É de esperar que um bilionário que foi recompensado por um modelo econômico evite criticá-lo. Mas estranha que, ao abordar desigualdades expostas durante a pandemia, ele não dedique alguns parágrafos para explicar o que pode estar por trás desses problemas.

Vencer esse desafio, aliás, é condição para evitar futuras crises, ele diz. Contudo, pouco se fala sobre a raiz das discrepâncias.

O cofundador da Microsoft lembra, por exemplo, que a pandemia foi pior para negros, latinos e indígenas. Que países pobres receberam menos vacinas e remédios. Mas até onde a lógica de mercado e a “força poderosa do lucro” que ele tanto valoriza não contribuíram historicamente para que isso viesse a acontecer?

Como Gates não aborda as causas do problema que critica, fica a impressão de que o objetivo é correr eternamente atrás de um prejuízo. Segundo o livro, fundações e governos de países ricos têm que se comprometer com a destinação de recursos para os locais que mais precisam. Em nenhum momento, enfrentar a raiz da desigualdade entra no plano.

No fim das contas, mesmo reconhecendo que a iniciativa privada não resolve tudo, o bilionário confia em excesso na lógica capitalista e filantrópica. O livro não parece suspeitar que esse sistema —que fez Bill Gates e outros bilionários ficarem mais ricos durante a pandemia — também pode ajudar a manter as desigualdades que agravaram os resultados trágicos da Covid.

COMO EVITAR A PRÓXIMA PANDEMIA – Bill Gates – Companhia das Letras

Fala de Bolsonaro a embaixadores foi farsa que envergonha o Brasil em escala global, por Hussein Kalout.

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Encontro solapou o que restava de dignidade internacional ao país

Hussein Kalout, Cientista político, professor de relações internacionais e pesquisador na Universidade Harvard; ex-secretário especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2017-2018, governo Temer) e ex-colunista da Folha

Folha de São Paulo, 22/07/2022

Há quatro anos o Brasil vive uma era psicodélica nutrida por uma pseudorrevelação social, política e econômica, comandada por uma trupe de revolucionários de araque. Da tal “economia liberal” à “nova política”, passando pelo “combate à corrupção” ao “fim da mamata”, o governo do presidente Jair Bolsonaro conseguiu tornar a mentira, a destruição e o vexame, em escala global, suas indeléveis marcas.

Entorpecido de ódio e medo, o presidente, em ato sem precedente na história, juntou o corpo diplomático estrangeiro na última segunda (18), no Palácio da Alvorada, para simplesmente achacar a República, as instituições e a Constituição, na tentativa de explicar o inexplicável: denunciar como fraudulento o processo eleitoral que o elegeu.

Reduzido ao patamar de uma republiqueta, o Brasil viveu na cerimônia do Alvorada uma das piores farsas de sua política internacional. Ao invés de utilizar o encontro para explicar como pretende, caso seja reeleito, equacionar a crise econômica, combater a inflação, gerar emprego, eliminar a fome, Bolsonaro usou as instalações presidenciais para desossar a reputação global de seu combalido governo e, de quebra, o que resta de dignidade internacional ao Estado brasileiro.

Obcecado com suas infindáveis teorias conspiratórias, o presidente não fala de pobreza, desigualdade, proteção dos trabalhadores ou dos vulneráveis. Afinal, ele quer mais um mandato para governar para quê e para quem?

Em um país de miseráveis, de famintos e de gente sofrida e desesperançada, Bolsonaro quer mais quatro anos para cuidar de quem nunca cuidou ou com quem nunca se importou? O fato é, caro leitor, que o comandante-em-chefe da nação nunca gostou de pobre e de igualdade de direitos; sempre zombou dos fracos, das minorias e dos necessitados.

E o mercado? Bom, os senhores da Casa Grande já precificam, entre uma calada da noite e outra, a derrota do “mito” antes do desembarque final do Titanic bolsonarista. Pular fora do navio se torna, cada vez mais, uma questão de tempo e oportunidade —e, para muitos, de sobrevivência.

O dinheiro não admite o triunfo da irracionalidade, da instabilidade e da imprevisibilidade. A regra de ouro que rege o interesse do capital edifica-se, primordialmente, sobre a tríade: estabilidade, previsibilidade e credibilidade —e isso o atual governante não consegue auferir.

Já o Itamaraty, abandonado ao relento, teve que cuidar de um triste circo, uma farsa diplomática inédita, digna de fazer o Hino Nacional tremer de vergonha.

Consternados e perplexos com o que viam e ouviam, embaixadores estrangeiros tiveram a inteligência e o bom senso aviltados. A farsa ficou constrita a conjecturação de teorias conspiratórias infundadas e desprovidas de provas críveis acerca do processo eleitoral do país, consagrado mundialmente por sua transparência e lisura. Não tardou e logo alguns países reagiram contra o golpismo presidencial.

Vale sublinhar que o Brasil nunca teve um déficit tão vigoroso na representação das chefias de missões diplomáticas em Brasília. Países importantes do entrono regional, como Argentina, Bolívia e Chile, estão sem embaixadores na capital federal.

China e EUA, as duas superpotências mundiais, seguem sendo representadas por seus respectivos encarregados de negócios, o que revela a irrelevância do governo. E isso para não mencionar que algumas embaixadas europeias estão às moscas.

Perdidos em sua própria incompetência e desespero, os agentes do governo já não inspiram integridade ou respeito à legalidade. O nível de desprestígio do Brasil atingiu o seu ápice. A diplomacia mundial aguarda em compasso de espera o fim do pesadelo brasileiro.

Faltam cerca de 70 tortuosos dias para decretar a decomposição final dessa distopia, no pleito eleitoral mais importante de nossa história.

Porém, infelizmente, muito estrago ainda está porvir. O certo é que o governo da “bozobanania” não poupará o Brasil e os brasileiros de mais e mais vergonha internacional.

O Brasil e seus inimigos, por Silvio Almeida.

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O presidente não quer dar o golpe; ele é o golpe

Silvio Almeida, Advogado, professor visitante da Universidade de Columbia, em Nova York, e presidente do Instituto Luiz Gama.

Folha de São Paulo, 22/07/2022

Por mais terrível que possa soar, por mais contraditório que pareça e por todas as consequências que traga, é preciso reconhecer que o presidente da República é um inimigo do povo brasileiro. Certamente alguém dirá —e com razão— que ele não está sozinho, que ele é apenas um lacaio de grupos empresariais e de militares que nunca aceitaram o fim da ditadura, mas o presidente da República é hoje a face mais visível do pior do Brasil.

Não que o Brasil já tenha sido um paraíso ou que algum dia o povo brasileiro tenha sido tratado pelo Estado com carinho e dignidade. Entretanto, é difícil pensar em outros momentos de tamanha indecência e descaramento, mesmo em um país cuja história é marcada de uma ponta a outra pela violência e pela desigualdade.

O governo de Jair Bolsonaro é a encarnação mais viva e apodrecida do que tenho chamado de “tendências estruturais da formação social brasileira”, a saber: o autoritarismo, a dependência econômica e o racismo. Estas “tendências” são forças constitutivas da vida nacional, que se manifestam mesmo diante de arranjos político-institucionais republicanos e democráticos, tal como o conferido pela Constituição de 1988.

Em outras palavras: mesmo quando o Brasil não estava tomado pela absoluta indigência política, jamais deixou de ser autoritário, racista e dependente. A diferença é que este governo, além de não fazer oposição a tais tendências, muito pelo contrário, trabalha ativa e orgulhosamente pelo aprofundamento do autoritarismo, pela disseminação do racismo e pela destruição de toda e qualquer possibilidade de soberania econômica. É um governo de antibrasileiros, racistas e entreguistas.

A esta altura do jogo, está evidente que Bolsonaro não apenas quer dar um golpe de Estado, mas que ele é o próprio golpe. Ele é o golpe nosso de cada dia. Sua sobrevivência política e a de seu grupo dependem do golpe e de golpes sucessivos.

Ele é a “vitória dos derrotados” pelo fim da ditadura e pela demissão de Sylvio Frota; ele é a bomba do Riocentro que explode todos os dias em nosso colo; ele é o grito dos grandes corruptos contra a corrupção, e que só tem por objetivo minar a confiança do povo na política; ele é a personificação da fome, da doença, do desemprego e da desigualdade que muitos cinicamente desejam para o país, tal como revelou o empresário que o apoio e que teria lhe apresentado sua cara-metade, o ministro da Economia.

Por estes motivos, o presidente e sua turma não podem se dar ao luxo de perder as eleições. A questão aqui não é ganhar, porque “ganhar” significa, talvez mais do que “perder”, submeter-se às regras do jogo constitucional, e isso ele nunca quis e não vai querer. Só o golpe, a fraude, a farsa, o caos e a violência sem limites interessam.

Ele não aceitará outra coisa que não seja sua permanência no poder, pois se for derrotado poderá (e deveria) ser processado criminalmente, e o bando de autoritários, corruptos e arautos da miséria que o acompanha deixá-lo-á na estrada, abandonado, assim como o próprio costuma fazer com muitos de seus antigos aliados.

Mas repetir à exaustão que Bolsonaro quer dar um golpe e nada fazer para impedi-lo só serve para naturalizar a presença de um golpista na cabeça do poder do Estado, além de plantar as sementes para que em alguns meses as pessoas assistam bestializadas a uma possível invasão do TSE ou do STF, como se fosse um seriado de TV.

Desse modo, tudo o que acontecer daqui para a frente e, especialmente, se custar sangue derramado por estes golpistas, será não apenas responsabilidade do golpista-em-chefe instalado na Presidência, mas também de todos aqueles que tendo o dever político e até jurídico de fazer algo para impedir que ele tenha sucesso, gostosamente, se omitem.

O aquecimento global pode escancarar as portas para novas pandemias, por E. Kallás.

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Muitos germes serão deslocados, franqueando a entrada de uma nova era de doenças transmissíveis

Esper Kallas, Médico infectologista, é professor titular do departamento de moléstias infecciosas e parasitárias da Faculdade de Medicina da USP e pesquisador na mesma universidade.

Folha de São Paulo – 20/07/2022

As consequências do aumento na temperatura do planeta são comumente exemplificadas com imagens de queimadas, derretimento de imensas placas polares e ondas gigantescas engolindo regiões costeiras e praias.

Há, porém, outras ameaças contidas nesse fenômeno. Alterações de temperatura levam à profunda desestabilização dos ecossistemas. As mudanças no comportamento de animais e germes podem acarretar aumento no risco de novos “saltos” de uma espécie para outra. Embora sejam eventos recorrentes, algumas vezes um germe pode encontrar condições ideais para seu alastramento levando a epidemia ou pandemia.

Exemplo desta ocorrência remonta ao ano de 536 d.C., após a erupção do vulcão Krakatoa. A temperatura da Terra caiu abruptamente devido à presença da fumaça densa que se espalhou pela atmosfera, diminuindo a penetração da luz solar.

Isto causou a mudança no comportamento de roedores que, à procura de alimentos, ampliaram seu raio de deslocamento, entrando em contato próximo com a população humana. Junto com os roedores vieram carrapatos contaminados pela Yersinia pestis, agente causador da peste negra. Em 541 d.C., a doença já havia matado ao menos um quarto da população do Império Bizantino.

Embora o que ocorreu no século 6 tenha sido um evento radical, com esfriamento da Terra pelo bloqueio da luz solar por 18 meses, as alterações resultantes do atual aquecimento global nos impõem uma séria reflexão sobre o tema.

Análise realizada por cientistas de vários países, publicada nos últimos dias, ajuda a compreender o problema. Embora já se saiba que há milhares de germes capazes de infectar humanos, a grande maioria habita silenciosamente animais selvagens, que têm pouco contato atual com as pessoas.

Carlson e seus colegas, em artigo publicado na revista científica Nature Climate Change, constroem um mapa que leva em conta a rede de interação entre mamíferos e vírus, nas diversas regiões do planeta. As análises projetam que os locais com mais probabilidade para que ocorram estes saltos de vírus entre diferentes espécies estão concentrados em regiões de clima tropical, onde há maior diversidade de espécies e grande proximidade com populações densas.

O Brasil, particularmente por suas extensas áreas de clima quente e com grande biodiversidade, é parte integrante do que muitos pesquisadores apelidaram de hot spots, ou seja, locais que apresentam condições mais propícias para que os saltos aconteçam.

Tais observações reafirmam o quanto é fundamental que o país dedique atenção prioritária ao tema. Especialmente pelo enorme contingente de mudanças que vêm ocorrendo nas regiões de florestas brasileiras nos últimos anos, bem como no Pantanal, no cerrado e na caatinga.

Dados recentes brasileiros, que registram a perda de área de floresta equivalente à extensão do estado do Rio de Janeiro, apontam para aumento na probabilidade de encontro entre vírus que andam silentes em espécies selvagens com os humanos.

É possível que a humanidade já tenha entrado na era das pandemias. Novas doenças estão se tornando mais comuns e colocarão à prova nossa capacidade de preparação e reação.

O sinal amarelo foi aceso há duas décadas. A humanidade está cada vez mais vulnerável. Torna-se imprescindível a discussão sobre emissão de gases de efeito estufa, aumento de temperatura e outras mudanças radicais que temos causado ao planeta, com o efeito que pode ter para as doenças infecciosas. É hora de lidar com o sinal vermelho.

Inadimplência

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A sociedade brasileira vive um momento de grandes instabilidades políticas e sociais, marcada pela degradação econômica, pelo incremento dos preços, redução da renda dos trabalhadores, altos índices de desemprego, números elevados de inadimplência, fome e violência crescentes, além do incremento de indivíduos vivendo ou sobrevivendo nas ruas, num momento de crescimento da desesperança, degradação do meio ambiente e perspectivas preocupantes de recuperação econômica que impedem os investimentos produtivos, a geração de empregos decentes, aumentando os conflitos políticos e as violências que se espalham na sociedade.

Neste cenário de incertezas crescentes na sociedade brasileira, percebemos o crescimento da inadimplência que limita o crescimento econômico, atingindo mais de 66 milhões de indivíduos, dados levantados pela Serasa, perfazendo mais de 30% da população e limitando a recuperação da economia. Os indicadores levantados pela agência de classificação de risco mostram que a recuperação da economia e a busca crescente pelo crescimento sustentável da economia brasileira estão cada vez mais distantes, exigindo uma política pública concatenada com os setores privados, direcionada para melhorar o ambiente de negócio, com estímulo dos investimentos produtivos, taxa de câmbio estável, redução das taxas de juros, tributação progressiva, geração de emprego e incremento da renda agregada. Sem resolver estes imbróglios que persistem no ambiente econômico o sonho do desenvolvimento econômico tende a se transformar em uma utopia impossível de ser alcançada.

Desde 2015, os indicadores econômicos se degradaram de forma acelerada, os investimentos se retraíram, o desemprego cresceu, a renda da classe trabalhadora piorou, elevando a inadimplência, os despejos aumentaram e a quantidade de pessoas vivendo nas ruas cresceram, aumentando a violência urbana, neste ambiente, percebemos uma inação crescente do Estado Nacional, piorando os indicadores econômicos e sociais, exigindo uma atuação crescente das autoridades com políticas públicas consistentes, estimulando empregos dignos e decentes, fortalecendo o mercado interno e reduzindo o contingente de desfavorecidos que chafurdam neste ambiente de degradação e que conhecem do Estado Nacional, apenas, os seus braços de repressão e se esquecem dos braços mais consistentes da educação, da saúde, da cultura e das políticas sociais que constroem mais espaço da cidadania, muito mais do que dos consumidores.

A inadimplência que vitima mais de trinta por cento da população brasileira impede a movimentação dos instrumentos econômicos e produtivos, deixando de lado um contingente de indivíduos que poderiam impulsionar novos negócios, novos empregos e movimentar a economia, aumentando a arrecadação de tributos e garantindo novos espaços de acumulação e geração de renda e riquezas. Todos os países que alcançaram o chamado desenvolvimento econômico, inicialmente, conseguiram inserir todos os grupos sociais mais vulneráveis no mercado de consumo de massa, garantindo renda digna e salários decentes para participarem deste mercado, movimentando a economia, garantindo a ascensão social, universalizando o ensino, acabando com a fome e a exclusão social, desta forma, estas nações foram definidas como países desenvolvidos.

Diante deste ambiente degradante e de desesperanças, onde os desafios são elevados e os recursos financeiros são limitados, exigindo ações mais ousadas e incisivas, os setores políticos deveriam se juntar para reconstruírem as estruturas produtivas e econômicas, garantindo que os setores mais vulneráveis da sociedade recebam maiores recursos, reduzindo os repasses para os grupos mais abastados da comunidade que, historicamente, se caracterizam por serem achacadores dos recursos públicos, garantindo o controle do Estado Nacional e garantindo seus prepostos em cargos mais influentes, impedindo transformações estruturais, garantindo uma estrutura tributária que lhes garantam benefícios crescentes e milenares, deslocando suas sobras monetárias e cultivando suas imagens de beneméritos, de líderes e de empreendedores.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Brasileira, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário de Região, Caderno Economia, 20/07/2022.

‘Não existe empreendedorismo, mas gestão da sobrevivência’, diz pesquisadora

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IHU – 27 de fevereiro de 2019

Incentivar o ‘espírito empreendedor’ do trabalhador é um meio para tornar legal a precarização do trabalho, aponta Fundação Perseu Abramo.

A reportagem é de Felipe Mascari, publicada por Rede Brasil Atual – RBA, 26-02-2019.

Jornadas longas, péssimas condições de trabalho, pouquíssimos direitos assegurados e insegurança sobre o futuro. Essas são as dificuldades apontadas por trabalhadores informais, que vivem sob a ótica do “incentivo empreendedor”.

Para pesquisadoras da Fundação Perseu Abramo (FPA), o termo “empreendedorismo” deveria ser substituído por “gestão da sobrevivência”.

O incentivo para que o trabalhador se torne “empreendedor” é um meio para formalizar a precarização do trabalho, aponta um estudo publicado pela FPA, que ouviu manicures, domésticas, motoboys, ambulantes, costureiras e trabalhadores do setor de construção civil.

A cientista social e coordenadora executiva da pesquisa, Léa Marques, explica que a precariedade do mercado se relaciona a diversos aspectos, como a “uberização” do emprego, a incapacidade de organização coletiva e os efeitos da reforma trabalhista.

“Esse discurso do tal empreendedorismo é mais uma forma da precarização do trabalho. Isso se dá para os trabalhadores das periferias, que estão longe dos centros comerciais e precisam lidar com o mercado de trabalho sem nenhum direito. Esse discurso do empreendedor é para que o Estado não tenha responsabilidade sobre políticas públicas de emprego e renda”, explica à RBA.

Já a socióloga e supervisora da pesquisa, Ludmila Costhek Abílio, lamenta que nos períodos de crise, a informalidade se torne a única opção para o trabalhador. “Nós vimos, por meio das entrevistas, que há uma ‘uberização’ do trabalho. São novas formas de organização da informalidade e que atingem diversas ocupações. É preciso desconstruir o discurso do empreendedorismo, de quem alcançaria o sucesso sozinho.”
Formal em um dia, informal no outro

A pesquisa da Fundação Perseu Abramo aponta que o trabalhador vive num trânsito constante entre o trabalho formal, informal e outras atividades remuneradas.

De acordo com Ludmila, o estudo mostra que o mercado formal e o informal são dois campos estáticos. “As pessoas fazem um monte de coisa ao mesmo tempo para garantir a sobrevivência. O motoboy usa o trabalho dele para ser sacoleiro também, a costureira abre um brechó na casa dela. São várias formas de garantir a própria sobrevivência”, pontua.

Outro aspecto levantado pela pesquisa é de que a figura do Microempreendedor Individual (MEI) funciona mais como veículo de informalização do que de formalização do trabalho. “As manicures e os motoboys viraram MEI. Estão formalizando a informalidade. O mercado se apropriou dessa brecha para precarizar mais o trabalho”, critica Ludmila.

Novas formas de organização

A Perseu Abramo também identificou que, com o aumento do trabalho informal, os trabalhadores, desamparados pela lei trabalhista, criaram suas formas de organização coletiva. Entretanto, não são todas as categorias que conseguem e as que alcançam têm dificuldade de mobilização.

Os motoboys, por exemplo, possuem formas de organização ativas por meio das redes sociais. “Mas vimos categorias que têm dificuldade de organizar, como as manicures e empregadas domésticas, porque estão em espaços privados”, conta a supervisora da pesquisa.

Por outro lado, Léa explica que é preciso entender como funcionam as novas relações de trabalho, já que a informalidade estimula o individualismo, sendo que as dificuldades devem ser enfrentadas coletivamente para serem superadas.

“Tem motoboy relatando (na pesquisa) que houve uma manifestação contra a empresa do aplicativo e ele foi, mas como recebe por dia, não ganhou nada na ocasião. Quando teve a segunda manifestação, não foi e ganhou o dobro do valor, porque todos estavam paralisados. Há uma organização, mas é difícil colocar em prática”, afirma Marques. “Os trabalhadores estão conectados, mas é difícil se organizar quando nada está garantido”, acrescenta Costhek.

O estudo também mostra que os trabalhadores não buscam se formalizar com medo de perder a renda e por conta da precarização do mercado formal. Porém, eles admitem querer os direitos previstos da CLT.

A cientista social acredita que o momento pede uma nova forma de articulação dos sindicatos para que representem os trabalhadores informais. “Isso mostra uma necessidade de os sindicatos criarem esse debate para incluir os informais nas suas formas de atuação”, diz Léa.

Com dólar fortalecido, moedas tendem a desvalorizar em todo o mundo, A. C. Pastore.

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Taxas de juros e risco global faz investidores olharem para Tesouro americano com mais expectativa

Afonso Celso Pastore – O Estado de São Paulo, 17/07/2022

Desde abril de 2021, o dólar vem se fortalecendo. No início, o movimento ocorreu devido à expectativa de que o Fed faria apenas uma pequena elevação da taxa de juros, e se acentuou quando, finalmente, a autoridade monetária reconheceu que a demanda superaquecida exigia aumento maior.

O fortalecimento do dólar pulverizou a previsão de que, com as sanções impostas pelos Estados Unidos à Rússia, o dólar rapidamente deixaria de ser moeda reserva. Pelo menos por enquanto, o que ocorre é o oposto. O aumento do risco global leva os investidores a sair dos ativos de maior risco, derrubando as Bolsas ao redor do mundo e elevando a demanda pelo ativo sem risco – os títulos do Tesouro dos EUA. A busca pela qualidade leva ao aumento da demanda por treasuries, o que reduz suas taxas de juros, impedindo que estas reflitam corretamente a expectativa de aumento da taxa dos fed funds.

Como um dólar mais forte significa moedas mais depreciadas de todos os demais países, estes terão de combater inflações ainda mais altas. A consequência é um aperto adicional das condições financeiras ao redor do mundo, o que acentua a desaceleração do crescimento mundial.

Finalmente, com preços denominados em dólares, transações financiadas e liquidadas em dólares, os preços de commodities caem com o fortalecimento do dólar. É isso que indica a elevada correlação negativa entre o dollar index e o índice CRB de commodities. O celebrado “superciclo de commodities”, entre 2002 e 2008, não veio apenas do crescimento do PIB da China, mas também da enorme e longa valorização do dólar.

Quais são as consequências para o Brasil? A mais recente depreciação do real, que o levou de R$ 4,60/US$ em abril para R$ 5,40/US$ na última semana, se deve apenas em parte ao fortalecimento do dólar. A depreciação acumulada nos dois últimos meses só não supera a de países em crise e vem ocorrendo com o aumento das cotações do CDS brasileiro de 10 anos, que já atingiu 400 pontos e que reflete o aumento dos riscos fiscais.

Resultados fiscais dependem das receitas tributárias. Somente tivemos resultados fiscais melhores em 2021 e 2022 em virtude de um aumento de receitas, que foi maior nos Estados do que na União, devido à sua maior sensibilidade aos preços do petróleo e das commodities em geral. Se estiver correto na minha avaliação, assistiremos em 2023 a uma piora no desempenho das receitas, limitando o espaço para os gastos. Não é um quadro animador para quem se preocupa com os riscos fiscais e seus efeitos.

Como educar para a democracia? por Renata Cafardo.

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Pesquisa recente demonstrou que é preciso ensinar cidadania na escola.

Renata Cafardo – O Estado de São Paulo, 17/07/2022

Parece chover no molhado, mas é preciso repetir que a educação que um país oferece às suas crianças e jovens tem muito a ver com esses tempos difíceis que vivemos. Crimes com motivação política, intolerância, desvalorização da democracia e dos direitos humanos, estupro até durante o parto.

Pesquisa recente do projeto Demos (Democratic Efficacy and the Varieties of Populism in Europe), que reúne professores de universidades europeias, analisou currículos de 14 países e demonstrou que é preciso ensinar cidadania na escola. O estudo sugere que deva haver um número mínimo de horas, até numa disciplina específica, para o tema.

Nessas aulas, os estudantes discutem processos políticos, conceitos da democracia e aprendem sobre sua participação na sociedade civil. Entre os países pesquisados estão Bélgica, Finlândia, França e Estônia, cujo desempenho dos alunos é o melhor do mundo no Pisa, a prova da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
O resultado dessa educação cívica são jovens com mais interesse por política, menos propensos a ideias populistas e com fortes valores de equidade, tolerância e autonomia.

O mesmo grupo analisou 18 países e também concluiu que o clima na escola é essencial para desenvolver atitudes democráticas. Para isso, a educação precisa ocorrer em ambientes onde as crianças sentem que são acolhidas e que fazem parte do grupo, onde a competição não é o principal e, sim, a cooperação. Quando há bullying e discriminação, o resultado é o oposto.

As escolas brasileiras têm muitas deficiências básicas, mas na educação é preciso atacar em muitas frentes para que haja resultado. Elas devem ensinar a ler e a escrever, mas também formar cidadãos. Não teremos um país melhor se acharmos que a criança pode sair da escola com o mínimo.

E é só mínimo, ou talvez nem isso, que haverá se for confirmado o corte de R$ 26 bilhões para a educação, decorrente da redução do ICMS para combustíveis. Ele é o imposto que sustenta as escolas públicas. Vem da arrecadação do ICMS o dinheiro para o Fundeb, o fundo de financiamento da educação, e o investimento constitucional de 25% feito por Estados e municípios.

Jair Bolsonaro diz que ajuda os pobres ao aumentar o Auxílio Brasil, mas tira da educação. Ele vetou a possibilidade, que estava na lei, de compensação aos Estados e municípios dessas perdas. Uma população que tivesse aprendido na escola o que é um populista e como se faz política pública na democracia não cairia nesse engodo.

Escolas devem ensinar a ler e a escrever, mas também precisam formar cidadãos

A razão da desigualdade, por Juarez Guimarães

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Por JUAREZ GUIMARÃES

A Terra é redonda – 16/07/2022

Não pode ser livre a pessoa submetida a uma desigualdade estrutural que a torna dependente, serva ou mesmo escrava

Em O crescimento da Escola de economia de Chicago e o nascimento do neoliberalismo, Hob van Horn e Philip Mirowski, documentam o papel protagonista de Friedrich Hayek na formação da principal matriz neoliberal estadunidense. E citam uma interessante observação do embaixador britânico nos EUA de março de 1945: “Wall Street olha para Friedrich Hayek como a mais rica mina de ouro jamais descoberta e estão mercadejando seus pontos de vista por toda parte”. A citação vale pela intuição de que os financistas estavam encontrando então e, depois, cada vez mais, uma nova razão liberal agressivamente formulada para atacar todos os que lutavam por justiça e reformas sociais. E para legitimar ostensivamente a concentração da riqueza, dos lucros e da renda.

Desde John Stuart Mill no século XIX, a desigualdade social gerada e multiplicada pelo mercado capitalista havia sido objeto de problematização e crítica. Uma teoria da justiça, de John Rawls, de 1972, talvez a mais influente obra da inteligência liberal da última metade do século XX, hoje deveria ser vista como um grito derradeiro de um liberalismo que se queria, em seus próprios termos, igualitário. Porque o argumento neoliberal radical contra a justiça social foi claramente e cada vez mais dominante nas democracias ocidentais e na própria apartação crescente entre o centro e as periferias do capitalismo.

Em Análise da crítica hayekiana da justiça social, tese defendida em 2019 na Universidade de Louvain, Simon Lefebvre sistematiza os principais argumentos que sustentariam este conceito de uma liberdade desigualitária. Para este novo argumento, até mesmo a liberal proposição de uma “igualação das oportunidades” dos indivíduos no mercado seria contestada.

O primeiro argumento de Friedrich Hayek contra a justiça social é da ordem da linguagem e da possibilidade do conhecimento. Falar em nome da “justiça social” seria um abuso da linguagem pois existem diferentes noções sobre este tema. Como só pode se estabelecer sentido à ação individual, não cabe falar em interesse público, em vontade geral e, muito menos, em justiça social.

Este abuso da linguagem procurava legitimar intervenções arbitrárias do Estado que visariam uma justiça distributivista por sobre as regras vigentes do mercado. Friedrich Hayek formula aqui uma razão estritamente comutativa: cada um deve receber o que deu em troca, segundo as regras de mercado. O injusto seria decidir contra os resultados alcançados no interior destas regras.

Até mesmo o mérito, difícil de ser consensuado em uma sociedade pluralista, não deveria servir de base para uma ideia residual de justiça social. Hayek vale-se aqui de uma metáfora futebolística: um time jogou melhor do que o outro, mas, ao final, por alguma razão ou fruto da sorte, outro foi o vitorioso. Segundo as regras do jogo, este resultado contingente é justo.

Mas o argumento final de Friedrich Hayek é de caráter moral. O apelo à justiça social seria proveniente de um ressentimento ou inveja, revelaria uma “moral dos fracos”. Aquele que ganha, segundo as regras do mercado, é quem merece o mérito.

Por esta nova linguagem do liberalismo dominante, os bilionários são os vencedores. Não cabe culpa, vergonha ou modéstia na exibição do seu triunfo. E devem, sem parcimônia, exibir seus troféus de luxo e riqueza publicamente, mesmo em uma sociedade de miseráveis.

Cinco linhas de ataque
Este ataque frontal à própria noção civilizatória de justiça social, legitimaria cinco mudanças fundamentais que estão na base do crescimento exponencial da desigualdade social, racista e patriarcal nas sociedades nas quais vivemos.

A primeira delas é na própria ordem fiscal: passou-se da cultura do imposto progressivo para a corrida competitiva das isenções fiscais favoráveis aos capitalistas. O próprio imposto passou a ser execrado, conferindo- se amplo trânsito à fuga dos capitais para os mal-chamados ” paraísos fiscais”.

A segunda foi a desestruturação dos orçamentos do Estado do Bem-Estar Social através da implementação de novos parâmetros legais e até constitucionais de uma compressão permanente de seus gastos. Não se pode falar rigorosamente da busca de equilíbrio orçamentário, mas de uma financeirização do orçamento, a sua funcionalidade para o pagamento das dívidas financeiras.

A terceira linha de ataque foi aos sindicatos de trabalhadores e à própria noção de emprego formal e dos direitos do trabalho. A cultura neoliberal constituiu toda uma ciência, toda uma estratégia de uma “guerra de saturação” ao mundo do trabalho.

A quarta linha de confronto neoliberal, em geral muito pouco conhecida, mas de efeitos devastadores, foi orientada a desconstituir as chamadas teorias do desenvolvimento dos países com passado colonial ou ainda semi-colonial. Uma nova cultura do colonialismo foi, assim, formada em pleno final do século XX para o século XXI.

Por fim, esta nova razão da desigualdade conformou uma nova tradição de ser mais livre em um mundo cada vez mais desigual. A noção de concorrência veio substituir no centro a ideia de solidariedade que sustentava as políticas que buscavam maior justiça social.

A “mina de ouro” de Friedrich Hayek, afinal, revelou-se mais profunda e mais rica exatamente porque inspirou uma nova era da razão da desigualdade.

Liberdade igualitária
Em Rousseau e Marx: a liberdade igualitária (1982), Galvano Della Volpe procurou responder ao desafio de pensar, na tradição socialista, a questão das relações entre liberdade e igualdade. Buscava um caminho diferente do lugar comum de um certo marxismo que, diante da apologia liberal da liberdade, posicionava-se unilateralmente em defesa da igualdade. Questionado sobre a desigualdade crescente nas sociedades contemporâneas, um neoliberal argumentaria que é a favor da liberdade e que a desigualdade é resultante inevitável da competição no interior das regras de mercado.

A luta pela hegemonia dos socialistas contra a ordem neoliberal passa centralmente pela demonstração de que a desigualdade estrutural de classe, de gênero ou racialista impede a liberdade. Não pode ser livre a pessoa submetida a uma desigualdade estrutural que a torna dependente, serva ou mesmo escrava.

*Juarez Guimarães é professor de ciência política na UFMG. Autor, entre outros livros, de Democracia e marxismo: Crítica à razão liberal (Xamã).

Um olhar da geração de 2013 sobre o Brasil de hoje, por Antônio Martins

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Rodrigo Nunes, um pensador ligado aos movimentos que sacudiram o país há nove anos, vê, em meio ao capitalismo financeiro em crise e à ameaça fascista, uma brecha. Mas opina: para aproveitá-la, esquerda precisa abandonar seu identitarismo e se abrir à “radicalidade programática”

Antônio Martins, editor de Outras Palavras

Resgate – 28/06/2022

1. Vivemos a vertigem da queda de um velho mundo – e os monstros de hoje emergem porque ainda não a compreendemos. A saída encontrada pelo capitalismo para a crise de 2008 – concentrar ainda mais a riqueza, proteger os cassinos financeiros que provocaram o colapso, punir as sociedades com políticas de corte dos direitos sociais (“austeridade”) – reduziram a política a um jogo de dados viciados. Mas embora tenha ficado claro para a sociedade, o fenômeno não foi capaz de tirar de seus lugares nem os partidos de centro, nem a esquerda institucional. Esta ausência de respostas, esta tentativa de praticar um “realismo” que se deslocava cada vez mais do novo real, abriu espaço para o declínio ainda mais acelerado da confiança na política, o ressentimento e… a extrema direita. Na Europa e EUA, os partidos de esquerda bloquearam o ascenso de políticos (como Jeremy Corbyn e Bernie Sanders) que poderiam dialogar com o desencanto das maiorias. No Brasil, o PT voltou as costas para os movimentos sociais que, em 2013, propunham ampliar o que até entrão parecia ser seu programa: mais Estado de bem-estar social, mais controle público sobre os mercados, mais direito à cidade e redistribuição de riquezas.

2. Mas, passada quase uma década, os “novos movimentos” que pareciam tão autoconfiantes em 2013, expressam também seus limites e insuficiência. Rodrigo é autor de outro livro [Nem horizontal, nem vertical, a ser lançado em breve no Brasil] em que expõe um dos traços desta insuficiência: a aposta absoluta na horizontalidade, na negação da forma partido, na emergência das questões comportamentais como centro da política). Elas acabaram se convertendo num dogma, tanto quando, segundo ele, eram os dogmas verticalistas do “socialismo real” do século XX. O insucesso da Primavera Árabe, dos Indignados, do Occupy Wall Street, do 2013 brasileiro e de outros movimentos semelhantes são um sinal deste limite. O livro traz, como nota provocativa, um vaticínio: 2011 [ano da Primavera Árabe e do Occupy] pode estar para 1968 como 1989 [queda do muro de Berlim] esteve para 1917… Rodrigo diz que escreveu o livro na esperança de que seja possível superar este impasse.

3. Agora, as condições se degradaram em diversos aspectos. Os sinais da crise climática são evidentes. A sombra do fascismo, que não fazia parte da paisagem política, espalhou-se pelo Ocidente. O Brasil, que vive há quatro anos sob este espectro, tem em Lula uma chance rara e complexa. O arco de alianças articulado pelo candidato do PT reúne boa parte das forças que foram incapazes de se mover do velho realismo. No entanto, há a consciência de que é impossível prosseguir na mesma rota.

4. Na hipótese – a mais favorável, e hoje muito possível – de uma vitória de Lula, como evitar um repeteco que nos conduza a um novo 2016? A volta ao passado é impossível. Rodrigo sugere o caminho da “radicalização programática”, que se opõe, segundo ele, à “radicalização identitária” da esquerda. Esta significaria limitar-se a cultivar as ideias, lemas, símbolos do passado. Já a “radicalização programática” implica admitir que, em meio à crise civilizatória, “as surpresas não cansam de se repetir” e, por isso, também a esquerda pode tentar o que há algum tempo parecia impossível. “O que é irrealista hoje: propor a transição energética, ou a redistribuição da riqueza social, ou pensar que o mundo pode continuar a evitá-las”, pergunta Rodrigo. Ao mesmo tempo, lembra ele, “cresce, em todo o mundo, a consciência de que o mercado é incapaz de oferecer as soluções de que a humanidade necessita quase em desespero”. Abre-se novamente, portanto, espaço para a política.

5. “Viveremos tempos interessantes”, finaliza Rodrigo, lembrando um mote chinês. Temos o direito de tentar. Nossos esforços podem ser vãos. Mas tudo dará errado, quase certamente, se não dialogarmos com as novas realidades e buscarmos novas respostas para elas…

Criptomoedas estão quebrando; onde estavam os reguladores? por Paul Krugman.

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Indústria teve um sucesso espetacular ao criar imagem de vanguardista e respeitável

Paul Krugman, Prêmio Nobel de Economia, colunista do jornal The New York Times.

Folha de São Paulo, 13/07/2022

Quando o Federal Reserve [banco central dos Estados Unidos] fala, usa uma linguagem própria, o “Fedspeak”. Uma frase concisa ou uma metáfora impressionante pode facilmente se transformar em manchete, causando grandes movimentos no mercado e uma reação pública.

Por isso, a linguagem técnica seca e os eufemismos geralmente são a forma escolhida. Dada essa realidade, a franqueza de um discurso recente sobre a regulamentação das criptomoedas feito por Lael Brainard, vice-presidente do Fed, é quase chocante. É verdade que Brainard não foi tão longe quanto Jim Chanos, o famoso vendedor a descoberto que chamou a criptomoeda de “lixão predatório”. Mas ela chegou perto.

O primeiro título de seus comentários foi “Distinguindo inovação responsável de evasão regulatória”, e ela sugeriu enfaticamente que grande parte do universo criptográfico é impulsionado pela última. A banca tradicional é regulamentada por uma razão; a criptomoeda, ao contornar esses regulamentos, disse ela, criou um ambiente sujeito a pânicos bancários, sem mencionar “roubos, invasões e ataques por resgate”, além de “lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo”.

Fora isso, está tudo bem.

O fato é que a maior parte da litania de Brainard já é óbvia há algum tempo para observadores independentes. Então, por que só agora estamos ouvindo pedidos sérios de regulamentação?

As criptomoedas existem desde 2009 e, durante todo esse tempo, nunca tiveram um papel importante nas transações do mundo real – a tentativa muito badalada de El Salvador de tornar o bitcoin sua moeda nacional foi um desastre.

Então, como as criptomoedas chegaram a valer quase US$ 3 trilhões (R$ 16,1 trilhões) em seu pico? (Dois terços desse valor já desapareceram.) Por que nada foi feito para conter as “stablecoins”, que supostamente estavam atreladas ao dólar americano, mas claramente sujeitas a todos os riscos de bancos não regulamentados, e agora passam por uma série de colapsos que lembram a onda de falências de bancos que ajudaram a tornar grande a Grande Depressão?

Minha resposta é que, embora a indústria de criptomoedas nunca tenha conseguido criar produtos que sejam muito usados na economia real, ela teve um sucesso espetacular no próprio marketing, ao criar uma imagem de vanguardista e respeitável. Fez isso, particularmente, cultivando pessoas e instituições importantes.

Não estou falando aqui sobre a adoção da criptomoeda por libertários e tipos “Faça a América Grande de Novo”, nem estou falando sobre episódios embaraçosos como aquele anúncio de criptomoeda estrelado por Matt Damon. O que me impressiona mais é até que ponto as criptomoedas ganharam reputação de respeitabilidade por meio da associação com instituições e indivíduos destacados.

Suponha, por exemplo, que você use um aplicativo de pagamentos digitais como o Venmo, que demonstrou amplamente sua utilidade em transações do mundo real (você pode até usá-lo para comprar produtos em barracas de frutas na calçada).

Bem, se você for à página inicial do Venmo, encontrará um convite para usar o aplicativo para “começar sua criptojornada”; no próprio aplicativo, uma guia “Cripto” aparece logo após “Início” e “Cartões”. Certamente, então, a criptomoeda deve ser um negócio sério.

Suponha que você queira aprender sobre criptomoedas. Muitas universidades famosas oferecem programas, normalmente cursos por assinatura online.

Suponha que você queira saber quem assessora os principais players da indústria de criptomoedas. Bem, o conselho do Digital Currency Group, um dos maiores atores, inclui um copresidente do conselho administrativo da Brookings Institution e um ex-secretário do Tesouro como consultor.

Dada essa aura de aprovação geral, quantas pessoas estariam dispostas a acreditar que o imperador digital estava nu? Mais precisamente, quantas estariam dispostas a aceitar uma contenção regulatória?

Por que essas instituições e pessoas tradicionais estavam dando cobertura ao que é, como Brainard deixou claro, uma indústria altamente duvidosa? Não acredito que tenha havido alguma corrupção (ao contrário do que acontece no próprio setor de criptomoedas, que é inundado por fraudadores).

Na verdade, sei por experiência própria que alguém pode ganhar dinheiro fazendo o que parece ser um trabalho honesto e só mais tarde descobrir que as pessoas que assinaram o cheque eram golpistas.

Ainda assim, claramente houve e há recompensas financeiras envolvidas. Não sei quanto a Venmo ganha com pessoas que compram e vendem criptomoedas em sua plataforma, mas certamente não está oferecendo o serviço por pura boa vontade. Se você quiser fazer, por exemplo, o curso de blockchain online do MIT, custará US$ 3.500.

A meu ver, a criptomoeda evoluiu para uma espécie de golpe da pirâmide pós-moderno. A indústria atraiu investidores com uma combinação de tecnoblablá e disparates libertários; ela usou parte desse fluxo de caixa para comprar a
ilusão de respeitabilidade, o que atraiu ainda mais investidores. E durante algum tempo, mesmo com a multiplicação dos riscos, tornou-se, de fato, grande demais para ser regulamentada.

Uma maneira de ler o discurso de Brainard é que ela estava dizendo que o crash das criptomoedas oferece uma oportunidade –um momento em que uma regulamentação efetiva se tornou politicamente possível. E ela nos exorta a aproveitar esse momento, antes que a criptomoeda deixe de ser um mero cassino e se torne uma ameaça à estabilidade financeira.

É um conselho muito bom. Espero que o Fed e outros formuladores de políticas o aceitem.

Senhores da guerra

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A sociedade internacional vive um momento de grandes conflitos militares que opõem nações, grupos sociais e segmentos culturais, buscando o aumento de seus interesses materiais e ganhos imediatos, visando a acumulação de recursos econômicos, políticos e sociais, se cegando para valores transitórios e deixando de lado valores centrais para a construção da civilização, de convivência humana e da solidariedade, com isso, percebemos o crescimento das violências, das degradações e da desesperança em toda a humanidade.

Embora saibamos que as guerras, as violências e os conflitos entre povos e nações sejam situações degradantes, que geram destruições, medos e desesperanças, percebemos que existem na sociedade global, indivíduos, instituições e grupos sociais que ganham com estas destruições, espalhando a instabilidade, as incertezas e as turbulências, angariando fortunas, acumulando riquezas, ganhando espaços na mídia e nas redes sociais.

Na contemporaneidade os conflitos militares cresceram de forma acelerada, nações são destruídas, milhares de pessoas são mortas, famílias são esfaceladas e seus sonhos ficam pelo caminho, gerando horrores e brutalidades, aumentando as fortunas dos senhores da guerra, especialistas em destruição em massa, que se comprazem com o estímulo dos conflitos militares, acumulando recursos com a venda de armas, de tecnologias militares, de equipamentos de espionagem e de treinamentos variados.

Neste momento, a comunidade internacional sente na pele os impactos sobre a guerra entre ucranianos e russos, que podem trazer desfechos preocupantes e assustadores. De um lado, percebemos os senhores da guerra estimulando o incremento do conflito militar, vendendo armas e tecnologias militares, além da venda de aviões de combate e alterando as estratégias militares de muitas nações, canalizando maiores recursos para a defesa; de outro lado, percebemos os clamores silenciosos da destruição e da devastação gerada pelo conflito, onde as mortes e os desesperos não mais sensibilizam a comunidade internacional.

O conflito na Ucrânia está mostrando os valores que dominam a comunidade internacional, governos se armam militarmente buscando uma suposta segurança, omitem informações relevantes, estimulam discursos inflamados e ofensivos que espalham rastros de ódio e ressentimento. Neste cenário, percebemos que os mais afetados são os mais pobres e fragilizados, que passam fome diuturnamente, perdem seus empregos e se percebem sem perspectivas, sem rendas e sem esperanças.

Na pós-pandemia, o mundo precisa reconstruir novos espaços de convivência pacífica entre os povos, compartilhando ideais que contribuam para a construção da humanidade, deixando de fomentar as guerras e os ganhos materiais num ambiente de destruição, degradação e de incivilidade.

Na contemporaneidade, precisamos reconstruir os Estados Nacionais, aumentando os investimentos em saúde pública, melhorando a comunicação entre as nações, aumentando os investimentos na educação e na formação dos cidadãos, além de garantir que as nações busquem espaços de convivência, garantindo que as políticas públicas melhorem as condições das pessoas e, evitem que estas políticas se concentrem nos mesmos grupos que vivem e sobrevivem parasitando os recursos públicos.

A sociedade internacional vem vivendo um momento de crescimento dos preços e da inflação, que se espalha para todas as regiões do mundo, fruto das guerras fratricidas que estão degradando as comunidades, gerando incertezas e instabilidades, mas, em contrapartida, garantem grandes lucros para poucos e a miséria para uma maioria dos indivíduos das nações.

Precisamos desestimular as escaladas armamentista que ecoam dos senhores das guerras e precisamos estimular as discussões diplomáticas e civilizadas, reduzindo os conflitos e estimulando as integrações comercial e produtiva, sem estes acordos, a sociedade internacional sentirá, rapidamente, que o crescimento das guerras e dos conflitos militares tendem a acelerar a destruição da civilização humana.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 13/07/2022.

Janine Ribeiro analisa a resistência científica no Brasil

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Cortes brutais solapam a pesquisa no país. Os impactos do Teto de Gastos. As chances desperdiçadas de diplomacia sanitária. Por que educação científica é crucial. Como a comunidade acadêmica impediu que a tragédia fosse pior

Outras Mídias – 11/07/2022

Renato Janine Ribeiro, em entrevista a ESPJV/Fiocruz

Nesta entrevista, o presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) Renato Janine Ribeiro, alerta, no Dia Nacional da Ciência – que marca a data da fundação da entidade, em 1948 – para o cenário precário da ciência no Brasil, em meio ao anúncio pelo governo federal de um bloqueio de R$ 2,5 bilhões no orçamento desse ano do Ministério da Ciência e Tecnologia. “Nós estamos em uma situação bastante crítica”, diz Ribeiro.

O Dia Nacional da Ciência esse ano acontece em meio a um contingenciamento anunciado pelo governo federal no orçamento de 2022 da ordem de R$ 2,5 bilhões na área de ciência e tecnologia. Em seguida vem a área de educação, com um bloqueio de R$ 1,6 bilhão e a saúde, com R$ 1,253 bi que não serão repassados. Como a SBPC vêm enfrentando esse cenário?

Essa data foi escolhida justamente porque foi a fundação da SBPC, em 1948. Nesses últimos 74 anos, a SBPC mudou muito, evoluiu, incorporou gente que não fazia parte dela, ajudou muitas sociedades científicas a nascerem. Hoje temos 170 sociedades científicas afiliadas à SBPC. O dia 8 é um grande dia de mobilização, um dia para fazermos atos públicos. Vamos reunir as principais entidades científicas do Brasil para discutir a situação da ciência, seus problemas. Em várias cidades vai haver a Marcha pela Ciência. Então nós pretendemos fazer deste um dia de luta mesmo em prol da ciência, como mobilização para nossa reunião anual, que acontece na Universidade de Brasília, com o tema: independência, ciência e soberania nacional. Estamos pontuando isso o ano todo, que você só pode ter independência de verdade se você tiver educação, ciência, cultura, saúde e preservação do meio ambiente.

Nós estamos diante de uma situação muito grave, de cortes de verbas. Não só para a ciência. O mesmo se dá na educação, na cultura, na saúde, no meio ambiente, nas políticas sociais. Em todas elas nós estamos diante de uma situação muito grave, de cortes de verbas e alocação delas sem critérios.

O bloqueio anunciado pelo governo na ciência e tecnologia afeta principalmente o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Em nota, a SBPC questionou a medida citando a Lei Complementar 177, de 2021, que supostamente protege as verbas do FNDCT de contingenciamento. Como isso se deu?

A lei complementar 177 foi votada no começo do ano passado, vetada pelo presidente e promulgada depois que o Congresso derrubou o veto. Ela determina que não pode ser cortada a verba do FNDCT, mas infelizmente esse assunto está numa lei complementar, que teoricamente é uma lei de hierarquia mais elevada, mas cujo próprio texto diz que partes da lei podem ser alteradas por lei ordinária, que requer um quórum menor. Então ficou uma fragilidade. E no ano passado, no dia 7 de outubro, o governo mandou ao Congresso um projeto de lei que tirava R$ 690 milhões do Fundo que deveriam ir para o CNPq, e pulverizava para outras destinações. Com muita luta a gente conseguiu recuperar R$ 150 milhões, de modo a poder pagar o edital Universal que o CNPq tinha lançado, e o pessoal do CNPq teve que correr contra o relógio para conseguir liberar o dinheiro a tempo para os que tinham sido contemplados com o edital. E agora nós temos isso de novo. Mais uma vez o governo suspende as normas da lei complementar 177. Nós estamos em uma situação bastante crítica.

Estamos completando cinco anos da entrada em vigor da emenda do teto de gastos (EC 95), que vem tirando recursos de inúmeras políticas, inclusive educação e ciência e tecnologia. Quais têm sido os efeitos dessa cronificação do subfinanciamento para a ciência?

É difícil você separar a área de ciência e tecnologia e a pós-graduação, apesar dela ser atribuição do MEC, como é o caso da Capes, e a ciência e tecnologia a gente associar mais ao MCTI, ao CNPq e outras agências de fomento. Mas é difícil separar porque a maior parte da pesquisa feita no Brasil é feita na pós-graduação, e portanto é orientada pela Capes. Quando nós temos uma queda no número de bolsas e uma redução brutal do valor real das bolsas de 2013 para cá, nós temos um desestímulo muito grande à opção por pesquisar. Então a renovação está ficando difícil, você tem pessoas que já tem doutorado, que estão participando de congressos importantes, publicando em revistas destacadas e que não conseguem uma vaga numa universidade. Consegue quando muito uma bolsa de pós-doutorado, que não conta para aposentadoria. São pessoas com mais de 30 anos, formadas, produzindo cientificamente, e que não estão contando o tempo de serviço. Com 15 anos um aluno de escola militar já está contando o tempo de serviço, tanto que você tem generais reformados, com menos de 50 anos de idade. Enquanto isso temos um país que desestimula a pesquisa científica, porque você vai ganhar um bolsa de doutorado, sem direitos trabalhistas. Então esse é um problema que está ferindo gravemente a pesquisa no Brasil.

Com todas as ressalvas que precisam ser feitas ao falarmos de uma pandemia que já vitimou quase 700 mil pessoas no Brasil, mas tendo em vista o papel central que as instituições públicas de pesquisa científica desempenharam no enfrentamento à pandemia, o senhor vislumbra um legado para a ciência a ser preservado daqui para a frente?

Esse papel da ciência foi absolutamente notável, porque permitiu salvar vidas. O Brasil teve uma taxa de mortalidade cinco vezes superior à média mundial. Nós teríamos muito menos mortos se tivéssemos tido uma política melhor de enfrentamento. Mas a ciência ajudou a reduzir esse impacto. Uma pena que o Brasil não tenha investido em uma vacina própria para valer. Houve esforços, mas praticamente sem apoio do governo federal. O caso da UFMG [Universidade da Federal de Minas Gerais], que inaugurou uma pesquisa nisso, mas o apoio foi muito aquém do necessário. Então com isso nós gastamos mais dinheiro porque tivemos que comprar. Fora isso nós perdemos a chance que também teria sido importante de fazermos uma espécie de diplomacia sanitária. Se o Brasil tivesse vacina própria poderia ter fornecido a países mais pobres do que nós, e dessa maneira teria fortalecido seu poder político internacional. Mas não houve interesse nisso.

O que eu acho importante e positivo é que a comunidade acadêmica e científica manteve a luta. Um grande número de cientistas, de pesquisadores, professores mantêm de pé a mobilização. E acho que o papel das sociedades científicas e da SBPC, como seu braço político, é justamente manter acesa essa luta da qual depende o futuro do Brasil.

Conseguimos também criar alianças, o apoio de uma fração razoável da opinião pública, sermos escutados pela mídia.

Tudo isso eu acho que tem um papel importante. Mas evidentemente nós estamos numa situação de míngua. O Brasil está à míngua. Nós temos uma quantidade grande de focos de pesquisa que estão minguados, com risco grande ou de estagnarem, ou até alguns deles de morrerem. No conjunto, eu acredito que nós estamos conseguindo manter a comunidade com uma disposição à luta. Isso é o que neste momento eu acho mais importante.

Um dos grandes desafios em nível global para a ciência tem sido o chamado o negacionismo. Na pandemia isso se expressou pelos movimentos antivacina, por exemplo. Como a SBPC vê esse problema? Quais as estratégias para combatê-lo e o papel do Estado?

Nós temos que fortalecer não apenas a divulgação científica, mas a educação científica também. Temos que fortalecer o espírito científico, que não é apenas o espírito de quem está num laboratório e quem está fazendo uma tese, é o espírito de quem acredita em evidências e em argumentos. Temos que fazer com que acabe esse espaço enorme das fake news. Temos que ser capazes de convencer as pessoas a não acreditarem em mentiras, esse é um ponto crucial.

O agronegócio e o futuro do Brasil, por José Reinaldo Lopes.

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Sucesso econômico do agronegócio não pode justificar dilapidação do patrimônio ambiental do Brasil

José Reinaldo Lopes, Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de “1499: O Brasil Antes de Cabral”.

Folha de São Paulo, 10/07/2022.

Um espectro ronda o futuro do Brasil: o espectro do agronegócio.

É, eu sei que vai ter gente querendo me enfiar numa camisa de força por escrever um negócio desses. Para usar o arremedo de inglês aportuguesado que hoje é a língua franca do mundo do marketing, o agronegócio é o popular “case (pronuncia-se ‘kêize’) de sucesso”. Conseguiu enfiar na cabeça de muita gente a ideia de que é o pilar da saúde econômica do país; que respeita o meio ambiente; que alimenta o Brasil, o mundo, quiçá até os famélicos da galáxia de Andrômeda.

Bem, mais ou menos. Seria mais intelectualmente honesto definir boa parte do agronegócio brasileiro não como “produtor de alimentos”, mas como produtor de insumos para a indústria alimentícia (e também para outros setores da indústria).

Ué, mas não é a mesma coisa? Não quando se considera, por exemplo, que apenas a soja corresponde a cerca de metade da safra anual de grãos do país nos últimos anos (o milho ocupa um distante segundo lugar). Caso o leitor não tenha reparado, quase ninguém come soja no Brasil, e nem uma dieta baseada exclusivamente em pastéis de feira para metade da população seria capaz de consumir tanto óleo de soja assim. Quanto ao milho, também seria impossível usar como alimento as quantidades astronômicas do grão que saem dos nossos campos.

A conta só fecha graças à demanda para a exportação desses cultivos, e ao fato de que eles são particularmente fáceis de transformar em insumos para a indústria, basicamente se metamorfoseando em porcari… Digo, em “alimentos industrializados” (capriche nas aspas) e aditivos de todo tipo. Comida mesmo, comida de verdade —arroz, feijão, frutas, legumes, verduras— é um negócio que ocupa escalões muito mais baixos no ranking do que produzimos.

Frequentemente vem de pequenas propriedades, e não das fazendas industriais geridas com suposta eficiência e modernidade pelos capitães do agronegócio.

Tudo isso ajuda a explicar por que “o país que alimenta o mundo” tem tanta gente passando fome neste momento. Longe de mim querer culpar o agronegócio por fazer bem aquilo que ele foi criado para fazer, ou seja, dar lucro. Mas cabe à sociedade estabelecer limites quando a busca por lucro deixa de encher a barriga de quem precisa.

E isso se torna ainda mais urgente num cenário em que os recursos hídricos e o solo, sem os quais não há agronegócio que aguente no longo prazo, estão se tornando agudamente frágeis graças à crise climática.

As cenas distópicas do interior de São Paulo em 2021, com tempestades de terra engolindo municípios onde a agricultura industrial basicamente faz o que quer há décadas, deveriam ter desmontado de vez a quimera do “case de sucesso”. Se o agronegócio brasileiro quer mesmo mostrar seu apego à racionalidade e à missão de alimentar as pessoas, precisa começar a ouvir a ciência e abandonar a ilusão de que pode se expandir indefinidamente com boi e soja em cima dos escombros da biodiversidade.

É preciso achar outro caminho, tanto em solo caipira quanto na Amazônia. Do contrário, o ciclo que combina o enriquecimento de poucos com a fome de muitos não será quebrado.