Recessão

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A pandemia está reestruturando todos os setores econômicos e produtivos, criando novas oportunidades e, ao mesmo tempo, novos desafios, exigindo uma grande capacidade de construirmos um consenso político, novos projetos de crescimento econômico, destravando os investimentos produtivos, aumentando emprego e criando novas perspectivas positivas, fundamentais para a retomada da economia. A pandemia nos traz oportunidades e, infelizmente, não percebemos as oportunidades que estão aparecendo e estamos perpetuando mais mediocridade política e baixo crescimento econômico, que permeia a economia brasileira desde o começo dos anos 1980.

Neste momento, percebemos que a recuperação da economia está distante, os indicadores são ruins, a instabilidade política aumenta, os desajustes sociais crescem e, tudo isso, contribui para gerar perspectivas negativas e o incremento da desesperança que domina a sociedade brasileira. Os dados macroeconômicos estão preocupantes, as taxas de juros estão elevadas e tendem a aumentar mais, o câmbio desvalorizado pressiona os custos e aumentam os preços na estrutura produtiva, as incertezas fiscais persistem e as respostas do governo são frágeis e inconsistentes, o desemprego está elevado, a retração da renda é uma realidade cruel para grande parte da população, aumentando a degradação social e elevando a fome, que geram constrangimentos para as classes sociais mais fragilizadas, afetando mais de 20 milhões de brasileiros e deixam claro a ausência de um programa econômico consistente, tudo isso, contribui para que o clima de desconfiança aumente e posterguem os investimentos produtivos, postergando a recuperação do emprego e vislumbrando ambiente mais favoráveis.

Ao mesmo tempo, a economia internacional vive momentos de grandes conflitos de hegemonias, antecipando confrontos geopolíticos entre os Estados Unidos e a China, visando o controle sobre a economia mundial pós-pandemia. Diante disso, percebemos que os governos atuam diretamente para proteger e fortalecer seus setores produtivos, despejando trilhões de dólares para estimular indústrias de semicondutores, inteligência artificial, 5G, biotecnologia, big datas, internet das coisas e impressão 3D, setores industriais que tendem a serem os grandes responsáveis para a economia do século XXI.

Neste ambiente, a sociedade se encontra em grandes desafios para os próximos anos, precisamos reencontrar o crescimento econômico e, ao mesmo tempo, repensar os instrumentos estratégicos mais consistente para compreender os grandes desafios do século XXI, criando espaços de atuação e de convivência política civilizada, retomar os princípios do planejamento do desenvolvimento econômico, retomando os investimentos públicos, retomando projetos e estimulando os investimentos da economia verde, utilizando as agências de fomentos nacional e internacional para dinamizar os investimentos que foram travados e fragilizando a recuperação dos setores produtivos, degradando os indicadores econômicos e conduzindo mais uma vez para um ano de recessão, mais desemprego, altos gastos necessários e queda na confiança dos setores produtivos que postergam os investimentos externos e internos.

Com o ambiente econômico que vislumbramos, a economia brasileira caminha para uma forte recessão nos próximos anos. Com taxas de juros em ascensão, o custo do crédito cresce de forma acelerada, elevando o endividamento das famílias e das empresas nacionais, aumentando as falências e a quebradeira dos setores produtivos, levando os grandes conglomerados econômicos internacionais a adquirirem grupos nacionais, elevando a desnacionalização da economia brasileira, fragilizando o centro de poder econômico nacional e transformando os grupos internacionais nos grandes responsáveis pelo crescimento econômico, como estes não tem interesse em estimular o desenvolvimento econômico dos países, perpetuamos nossa dependência externa e postergamos nossa capacidade de construirmos nossa autonomia. Diante disso, percebemos, claramente, que o nosso subdesenvolvimento econômico não é destino, mas está diretamente ligado à nossa incompetência, nosso complexo de vira-latas, representado magistralmente pelo escritor Nelson Rodrigues.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 01/12/2021.

Política industrial não pode ser guiada por populismo, por Rodrigo Zeidan.

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No Brasil, diretrizes para indústria só servem para transferir renda dos pobres para acionistas de grandes empresas

Rodrigo Zeidan Professor da New York University Shanghai (China) e da Fundação Dom Cabral. É doutor em economia pela UFRJ.

Folha de São Paulo, 27/11/2021

“O câmbio de equilíbrio da indústria deveria ser de mais de R$ 10”, disse Ciro Gomes no evento Brasil+China, em Pequim, em 2017, quando o dólar estava a R$ 3,31. Mas será que política industrial funciona mesmo? A resposta, como muitas vezes em ciências econômicas, é: depende.

Há evidências de que política industrial funciona em acelerar o desenvolvimento de um país (mas, sozinha, não serve de nada). Mas, no Brasil, é um desastre, servindo somente para transferir renda dos mais pobres para o bolso dos acionistas das grandes empresas do país. Quando um empresário ouve um político prometer incentivo à sua indústria, liga para seu corretor para reservar mais um apartamento em Miami.

São três as condições para que política industrial contribua para a sociedade: que a proteção à indústria seja bem desenhada, que os setores escolhidos sejam dinamicamente competitivos e que o apoio seja temporário. Grande parte da política industrial brasileira nos últimos 60 anos falha nos três critérios.
Grosso modo, há três opções para o desenho de política industrial: fechar o mercado interno, através de altas tarifas de importação, subsidiar produtores locais (de preferência com subsídios diretos) e fazer ambos ao mesmo tempo.

Já sabemos há décadas qual a melhor dessas opções: subsidiar a produção local, mas sem limitar importações. A razão para isso é simples: como consumidores locais têm a opção de comprar produtos importados pelo mesmo preço que no resto do mundo, os produtores locais necessariamente precisariam criar produtos competitivos com o dinheiro recebido pelo Estado. Além disso, subsídios diretos são gastos orçamentários. Se o Estado vai tirar dinheiro da sociedade para botar na mão de poucas empresas, que o faça de forma transparente.

Caso não haja recursos para esses subsídios, a melhor escolha é a proteção tarifária, mas sem subsídios do Estado.

Com importações limitadas ou zeradas por altas tarifas, empresas nacionais competiriam pelo mercado interno. A pior opção, de longe, é a combinação de subsídios e proteção à competição internacional: as empresas locais se lambuzam com recursos públicos e entregam produtos ruins.

É surpresa para alguém que nossa política industrial tenha sido a última e pior opção? E, para colocar a cereja no bolo, empresários nacionais usam parte dos recursos desviados dos mais pobres para fazer lobby e convencer a população de que essa excrescência de status quo beneficia a sociedade. À esquerda e à direita, temos políticos que defendem os “interesses nacionais” (das construtoras americanas na Flórida).

Em relação à escolha dos setores a receber recursos públicos, o ideal é que sejam exportadores ou com potencial para isso. No Brasil, fazemos o inverso: tentamos substituir importações com produtos locais, o que é muito mais arriscado e não cria uma forma transparente de medir o sucesso da política, que seria o valor exportado pelo setor.

O que acontece? Lobby recorrente dos empresários para “proteger empregos” (das empreiteiras nos Estados Unidos).

A China protegeu a indústria automobilística nos anos 1950, assim como a República Democrática do Congo. Senegal colocou parte significativa do PIB em montadoras de caminhão nos anos 1960, e a Zâmbia o fez nos anos seguintes.

Esses países abandonaram isso.

Se for para fazer política industrial (essa é outra discussão), é para fazer direito. E no Brasil? Vamos aprender quando?

China está convencida de que, ao se modernizar, não precisa deixar indústria no caminho

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Setor ficará mais competitivo porque passa a incorporar cada vez mais uso de inteligência artificial

Tatiana Prazeres Senior fellow na Universidade de Negócios Internacionais e Economia, em Pequim, foi secretária de comércio exterior e conselheira sênior na direção-geral da OMC.

Folha de São Paulo, 26/11/2021

Entre as várias crenças a respeito da economia da China, há a visão de que o país não tem como sustentar por muito tempo o título de “fábrica do mundo”.

O argumento é o de que, à medida que o PIB cresce e os salários sobem, a China invariavelmente perderá produção industrial para outras economias. Agora que a mão de obra no país é duas vezes mais cara que na Índia ou no Vietnã, sua etapa de líder fabril estaria com os dias contados.

A crença tem alguns elementos de verdade. O governo, porém, quer provar que a conclusão é errada. As autoridades pretendem que o país siga sendo uma potência manufatureira. Entendem que perder competitividade industrial não é inevitável —mas algo fruto de políticas equivocadas. A questão é que a competitividade não poderá mais vir do baixo custo do trabalho (ou à base de degradação ambiental).

Serão serviços e tecnologia que darão o impulso para a modernização industrial chinesa. O futuro da economia não passa por um dilema do tipo indústria versus serviços, como alguns com frequência caracterizam. É justamente o contrário. A indústria se tornará mais competitiva porque, partindo de uma base já robusta, passa a incorporar tecnologias de internet industrial, especialmente inteligência artificial, para ganhos de produtividade e competitividade.

Cada vez mais, o valor agregado da indústria chinesa virá de serviços tecnológicos, possibilitados pelo 5G.

Em 20 anos, a China liderará o mundo em manufatura avançada, com inteligência artificial (IA) promovendo melhorias em automação, prevê Kai-fu Lee, uma das grandes referências em IA. As fábricas chinesas já têm o maior número de robôs industriais, mas eles contam com um nível de inteligência relativamente baixo. No futuro, os robôs gradualmente atingirão outros patamares a partir de IA e serão empregados em mais cenários, estima o especialista.

Para que não haja dúvidas, o movimento de saída de investimento industrial da China por razões de custo de mão de obra é real e ocorre há mais de uma década. Setores como o de confecções e calçados, por exemplo, vêm encontrando opções mais atraentes no Vietnã, no Camboja e em Bangladesh.

Outras indústrias buscam alternativas à produção na China para mitigar riscos e custos associados a tarifas e sanções adotadas especialmente pelos EUA.

Se mudanças em cadeias de valor são, em algum grau, inevitáveis, a desindustrialização não precisaria ser. A percepção aqui é a de que a desindustrialização foi um erro dos americanos que Pequim não pretende repetir. A fatia da manufatura no PIB chinês tem caído desde 2015, totalizando um pouco mais de um quarto do total em 2020.

As autoridades querem conter esse movimento, que estaria ocorrendo “muito cedo, muito rapidamente”. O novo plano quinquenal 2021-2025 pretende estabilizar a participação da indústria no PIB.

Manter uma base industrial forte importa para a China não apenas por motivos econômicos ou tecnológicos. Há um valor estratégico em certas cadeias industriais, diante de um ambiente externo que Pequim caracteriza cada vez mais como hostil aos interesses chineses.

Os objetivos de reduzir a dependência externa e promover autossuficiência têm adquirido importância crescente. Na área de semicondutores avançados, por exemplo, Pequim sente a mão de Washington apertando-lhe o pescoço.

Em 2049, no centenário da fundação da República Popular da China, as autoridades pretendem que o país seja uma superpotência nas áreas de ciência, tecnologia e inovação, uma superpotência cibernética e, sim, também uma “superpotência manufatureira global”.

A China está convencida de que, ao se modernizar, não precisa deixar a indústria no caminho. Para isso, precisa que a indústria evolua junto —puxada por robôs.

Investimentos Públicos

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Os investimentos públicos são fundamentais para estimular o crescimento econômico, dinamizando a sociedade, gerando consumo, aumento do emprego e estimulando as cadeias produtivas, sem estes investimentos públicos a retomada da economia perde força e as perspectivas do próximo ano são preocupantes. Neste ambiente, confuso e fortemente polarizado, percebemos o crescimento da fome, aumento da exclusão social, retração dos investimentos produtivos, taxas de juros em ascensão e a ausência de um modelo econômico confiável para retomar o crescimento da economia.

Neste ambiente, percebemos que as maiores economias do mundo (EUA, Europa, Japão e China) estão adotando fortes estímulos fiscais para o aumento dos investimentos públicos, sabemos que sem investimentos governamentais as economias demorariam muito mais tempo para recuperar os sistemas produtivos, retomando os empregos e dinamizando os setores internos, isso acontece porque os investimentos privados se retraem fortemente em momentos de instabilidades e incertezas. A literatura nos mostra, que os grandes riscos são tomados pelo Estado Nacional, são eles os responsáveis pelos grandes ciclos tecnológicos da economia global, ao contrário daqueles que acreditam no poder da livre concorrência, da mão invisível, do empreendedorismo e da meritocracia, algumas das falácias sem comprovação científica.

As maiores economias do mundo estão despejando trilhões de dólares em investimentos públicos e estímulos tributários para estimular os gastos produtivos, retomando investimentos em infraestrutura, aumentando as contratações, elevando as obras públicas necessárias para capacitar as estruturas econômicas para competir neste ambiente de alta complexidade, fortalecendo os canais de distribuição, melhorando as cadeias produtivas, aumentando os investimentos em ciência e tecnologia, capacitando as universidades e os centros de pesquisa. Neste momento, embora atrasados, as novas tecnologias geradas pelas conexões de 5G estão abrindo novas perspectivas para a economia internacional, estamos diante de desafios enormes e oportunidades gigantescas, que podem configurar as próximas décadas, moldando o crescimento econômico e o desenvolvimento nacional e garantindo melhoras consideráveis para as futuras gerações.

A concorrência cresce em todas as regiões da sociedade global, por trás de discursos de abertura, privatização e desregulação econômica, os grandes ganhadores do cenário internacional fazem uma política diferente. Clamam pela abertura econômica e defendem os benefícios do livre comércio para os outros países, mas na verdade se esmeram nos altos subsídios de suas empresas, desonerações de plantas nacionais, proteção para seus setores produtivos, injetando recursos em investimentos de risco que os setores privados temem pelos riscos elevados.

A pandemia nos mostrou a pobreza material de muitas nações na sociedade internacional e desnudou de forma crua e evidente a pobreza intelectual do debate econômico. As visões equivocadas de grupos econômicos que se comprazem com a degradação da estrutura produtiva, defendendo a venda de patrimônios nacionais sem justificativas plausíveis, apenas para garantir maiores retornos monetários e financeiros em detrimento de grande parte da população, num momento de combustível em ascensão, alto preço da energia, moeda desvalorizada e ganhos estrondosos de poucos acionistas que conseguem através do poder político a isenção tributária e condenando milhões de brasileiros na fila do osso, do auxílio e da degradação como ser humano.

Os investimentos públicos são fundamentais para estimular o crescimento econômico, reduzindo o desemprego, criando demanda efetiva para movimentar os investimentos privados, melhorando uma infraestrutura degradante que restringe a produtividade dos setores econômicos e auxilia na retomada da economia. As grandes nações estão mostrando o caminho da retomada da economia, os investimentos públicos devem nortear os recursos privados, reduzindo os poderes dos grandes grupos econômicos e financeiros, planejando ações urgentes e preparando a sociedade para os grandes desafios contemporâneos.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 24/11/2021

‘Apoio a ditaduras revela esquerda anacrônica’, afirma historiador

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Alberto Aggio diz que Lula tem papel ambíguo entre a ideia da revolução e a social-democracia

Entrevista com: Alberto Aggio, historiador

Marcelo Godoy, O Estado de S.Paulo – 21/11/2021

O historiador Alberto Aggio acredita que parte do PT mantém a defesa da ideia da revolução em vez de se comprometer com a democracia como um valor universal. É essa opção, que se opõe à modernidade e não reconhece a necessidade das instituições do liberalismo político, que explica por que setores do partido apoiam ditaduras como a de Daniel Ortega, na Nicarágua, ou de Nicolás Maduro, na Venezuela. Ele aponta ainda o papel ambíguo desempenhado por Luiz Inácio Lula da Silva e diz que as eleições no Chile devem servir de alerta ao Brasil. Professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Aggio é especialista na história política da América Latina e autor de Um Lugar no Mundo: Estudos de História Política Latino-Americana. Leia, a seguir, sua entrevista.

Em que medida o modelo cubano de revolução ainda influencia setores da esquerda brasileira?
Se formos pensar nas forças principais da esquerda brasileira, o modelo cubano se espraia por diversos partidos e correntes e as mais expressivas delas são as correntes dentro do PT, embora o PT não seja inteiramente cubano. Há muita simpatia a esse nacionalismo também no PDT e no PSB. Eles guardam um certo espírito pré-1964. Aí o modelo cubano deita raízes e não desaparece porque a ênfase forte dessas correntes não é o tema político da democracia e das instituições, mas é o tema econômico, do desenvolvimento nacional. Ainda estão naquela chave de leitura das situações de dependência da América Latina e que só se pode sair disso confrontando o imperialismo. De certa forma, esse repertório dificulta alianças políticas. E quando elas ocorrem não são programáticas, mas superficiais.

Como a esquerda deveria se posicionar diante das manifestações que ocorrem em Cuba?
Se é verdade que a esquerda que apoia Cuba acredita na soberania dos cubanos sobre o território e o Estado, fica evidente que o comando do Estado cubano faz com que o próprio povo não tenha liberdade e soberania sobre esse Estado. A repressão que se estabelece permanentemente em Cuba é um atestado de que na Ilha os cubanos não têm soberania. Se é verdade que Batista usurpou a soberania popular, em Cuba há uma permanente usurpação dessa soberania. Cuba não tem representação democrática, a sociedade não se representa democraticamente no Estado.

Na semana passada, um dirigente do PT divulgou nota de apoio à eleição de Daniel Ortega, na Nicarágua. O que leva setores do partido a apoiar ditaduras na Nicarágua e na Venezuela?
O apoio a ditaduras parte de uma esquerda anacrônica e passadistas que ainda está dentro do paradigma da revolução, mas que sabe que a revolução não tem mais a perspectiva da guerrilha, do foquismo e da luta armada, tipo Carlos Marighella e Che Guevara, mas quer manter ainda uma perspectiva de emergência de massas na política com um programa cada vez mais radicalizado para acentuar contradições na expectativa de chegar a situações pré-revolucionárias.

Há dificuldade afetiva de setores da esquerda em criticar Cuba e Ortega?
Acredito que existe sim. Todo elemento de mito na esquerda provoca esse tipo de relação de afeto, que é um sentimento de defesa, quase se materializando na ideia de que tomar um caminho crítico seria uma traição à revolução, ou que seria fazer o jogo dos exploradores, dos opressores e da direita. Quando fiz um comentário crítico ao personagem do Marighella, recebi esse tipo de reação, contra o rompimento com o que chamo de teoria pura da revolução. Na medida em que o paradigma da revolução sobrevive, ele é tratado de diversas maneiras e uma delas é essa: a defesa de Cuba, da Venezuela. E lideranças políticas, movimentos e até intelectuais que atuam dessa maneira.

Qual o papel de Lula na forma como o PT enxerga Cuba, a Venezuela e a Nicarágua e como o partido se relaciona com a democracia?
O papel do Lula é fazer essa ponte com esse passado do paradigma da revolução sem assumi-lo. Lula negocia com os protagonistas desse paradigma, que buscam se adaptar. Ele faz uma ponte com a herança dessa esquerda, que está no PT, nos ex-integrantes da luta armada e na Igreja da teologia da libertação. Lula expressa o sindicalismo de resultados que negocia com esse campo. Ele nunca quis ser afiliado à social-democracia europeia, tanto é que o partido afiliado à Internacional Socialista era o PDT e não o PT. Ele não pode ser isso, pois, ao assumir isso, perderá o contato com os protagonistas do paradigma da revolução.

Lula manteria a ambiguidade ao viajar à Europa e se encontrar com líderes da social-democracia comprometida com a
globalização e com o liberalismo político, como Olaf Scholz?
Mas ele não fala nada nesse sentido (da social-democracia). O que ele fala é o que essa social-democracia lá quer ouvir, que ele aqui é o protagonista da luta contra as elites, contra as oligarquias, o atraso, a violência e a queima da Amazônia. Alguns temas se vinculam à social-democracia de lá, mas ele tem de ser um protagonista contra a injustiça que existe nos países subdesenvolvidos e, como a Europa não fará mais a revolução e não apoia mais um personagem que venha do atraso, a social-democracia europeia preza muito bem protagonistas como Lula, que são, na visão deles, a expressão da luta contra a miséria e a pobreza fora da Europa, algo que vem dos socialistas franceses de (François) Mitterrand e dos socialistas italianos, como Lelio Basso. Lula mantém essa ambiguidade. Ele não assume nem o discurso do paradigma da revolução nem a identificação com a social-democracia. Qual é a lógica da política internacional do Lula: é o capitalismo brasileiro ocupar um lugar no mundo, o que o Luiz Werneck Vianna chamou de ‘capitalismo grão-burguês’. E também não assume a lógica dos que falam na democracia como valor universal, que também tem como referência o socialismo. Lula sempre recusou as duas identidades gerais da esquerda: a comunista e a social-democrata. E nunca assumiu a identidade revolucionária guevarista, mas sempre transitou entre ela, o que faz com que ele seja o personagem que é. O projeto dele é fazer com que a economia cresça e o consumo se amplie e as classes populares cheguem a um patamar de classe média. O centro dessa política é o consumo. Não é educação, ciência, tecnologia ou o rearranjo dos vetores de mercado.

Temos eleições no Chile. Que tipo de implicações elas podem ter para o continente e o que podem ensinar para o Brasil em 2022, caso se confirme um segundo turno entre a extrema-direita e a esquerda?
A vitória da extrema-direita seria terrível, mas uma grande lição, que é a mesma lição do radicalismo jacobino na Revolução Francesa e, depois, a vitória da reação. Isso tem muito a ver com o comportamento das elites políticas. A rua, as mobilizações radicais e massivas que ocorreram no Chile não conseguem ser produtivas do ponto de vista político para avançar na democracia sem mudar as elites políticas e rejeitar o passado. A vitória do estalido em 2019 atacou um ponto: a Constituição de 1980, mas também a centro-esquerda concertacionista. Esse levante social acabou destruindo a política concertacionista e se representou em forças de esquerda. Essas forças foram nos últimos meses radicalizando cada vez suas posturas e isso fez com que uma parte da sociedade, que é forte no Chile, resgatasse o tema da ordem no cenário político. José Antonio Kast (Partido Republicano, extrema-direita) representa essa reviravolta, que é um apelo à ordem. Em relação a nós, fica evidente que a eleição chilena será uma advertência sobre como queremos o futuro da nossa democracia. A vitória de Kast significa fortalecimento de Bolsonaro. A fratura entre esquerda e centro-esquerda é desastrosa para a democracia. O Chile é o grande exemplo de como o paradigma da revolução se manteve subterraneamente. Como isso de traduz politicamente? Pode resultar em Kast, da extrema-direita ganhar a Presidência. A democracia na América Latina rejuvenesceu na luta contra o autoritarismo e começa a vivenciar os problemas teóricos políticos e sociais da integração de massas ao sistema democrático e da resolução dessa equação, de como conectar o social ao político na democracia. Uma história que mantém o tema da revolução como central gerou indefinições que não gera avanços democráticos. A confiança na democracia se estabelece com muita dificuldade, assim como as realizações da democracia são vistas com muita desconfiança. E aí chegamos no terreno da antipolítica, no qual o PT e Lula expressaram essa antipolítica. No fundo aqui a antipolítica é traduzida como antidemocracia pela direita bolsonarista ou como redenção de um único ator que é capaz de resolver os problemas da sociedade brasileira, na esquerda petista. Você tem mitos dos dois lados: o bolsonarismo, que é um regresso em si mesmo, e Lula, que acena com a volta do grande país e da sociedade. Bolsonaro é uma reação à democracia como um todo. Ele não é antipetista, mas antidemocrático. E Lula, como expressão dessa esquerda que ainda guarda relação com Cuba e Nicarágua, expressa essa ambiguidade de um paradigma que não foi ultrapassado em definitivo aqui, o da revolução.

Para superar esse risco seria necessário o comprometimento de todas as forças políticas com a democracia e o abandono da ideia de revolução?
Isso de saída, como pano de fundo, como cimento de uma nova cultura política. Abandonar o paradigma da revolução e se instalar definitivamente no paradigma da democracia, que é complexo como o nosso tempo. O tema democrático é um tema que exige uma atenção e uma dedicação, uma convergência e um diálogo de diversos atores, pois o tempo da democracia é de múltiplas dimensões dentro do presente. Não é o tempo agudo da revolução, do antes e depois. Produzir consenso é necessário na democracia. Nós sabemos que nossa democracia está em um ponto de mal-estar. A sociedade julga que as coisas não estão boas, com altos salários e o número excessivo de gente no Estado brasileiro. É extraordinário ver o número de pessoas no Brasil que está vivendo da política. É necessário pensar uma reforma política saneadora da nossa democracia? É evidente. A sociedade precisa ver que a democracia muda a vida num contexto de paz e não de exacerbação de contradições.

O senhor diz que a permanência do modelo da revolução na esquerda faz com que a política se torne um jogo de soma-zero. Não se produz consenso e a política acaba capturada pela antipolítica. É como se nossa esquerda não tivesse feito a reflexão sobre a democracia feita, por exemplo, na Itália, no pós-guerra?
Você colocou uma palavra-chave que é a ideia de consenso. Se você pensar no fim da Segunda Guerra, na Itália, com o (Palmiro) Togliatti voltando ao país e redefinindo o Partido Comunista na Itália, o que está na cabeça do Togliatti e do partido é o reerguimento da Nação por meio da República. Esse é o consenso. E ele tem uma chave: o antifascismo. Esse consenso permite com que forças políticas se digladiem – e isso aconteceu por décadas entre o PCI e a Democracia Cristã – porque havia um consenso e, assim, podiam divergir profundamente. No caso nosso, quando estamos superando o autoritarismo aqui, as forças políticas da esquerda, especialmente essas que ainda mantêm uma visão cubana da política, com a revolução como centro da sua representação, não permitem consenso, pois há uma oposição clara e profunda entre revolução e democracia. Há uma autor alemão, o Norbert Lechner, que matou a charada: os anos 1980 começam com uma mudança de paradigma na América Latina que ultrapassa o tema da revolução. O novo problema da esquerda e dos intelectuais é a democracia. Existem correntes aqui no Brasil que não assimilaram essa mudança de paradigma. E, se assimilaram, o fizeram de maneira precária e trabalham taticamente o tema da revolução no contexto da democracia. Essa utilização instrumental da democracia deriva de não ultrapassar o modelo cubano na América Latina.

Isso é que explica o surgimento de fenômenos como Maduro e Ortega?
Sim. Exato. Chávez, Ortega. É muito contraditório se você compreende e faz uma leitura da política latino-americana com esses dois eixos: revolução e democracia. A revolução exige uma ruptura, um antes e um depois. Ela tem uma noção de tempo político agonística enquanto a democracia, na medida em que ela supõe a valorização de instituições e o reconhecimento do outro, o tempo da política para ela é alargado e indefinido. Não tem teleologia na democracia, enquanto a revolução busca uma teleologia, um tipo de sociedade ideal e mobilizador.

A revolução tem uma visão escatológica da história?
Isso sim, do ponto de vista teórico, que guarda uma relação forte com a revolução. Mas a realidade se confronta com essa visão, esse bolchevique, esse guevarista, esses castristas que mantém essa visão vão ter de se moldar à realidade. Aí você vê os sintomas mórbidos, os fantasmas. O Lula é quê? Ele é um revolucionário? Aí você vê ele tirando uma foto em Cuba. Aí começam a aparecer essas figuras que se mostram indefinidas. E todo artifício é válido para justificar isso. Como no filme Marighella em que o sujeito pergunta ao personagem: e você o que é? É trotskista, stalinista, leninista? E o Marighella responde: “Não, eu sou brasileiro”. Quantas vezes a gente não viu o Lula responder da mesma maneira. Pois ele não pode enfrentar o problema. Essas questões todas se misturam e, como a realidade se apresentou de outra maneira, vem outro plano, que é dos interesses da sociedade capitalista e modernizada. Nos anos 1980 e 1990 havia um consenso da emergência da democracia com predomínio da esquerda que lutou pela democracia sem as armas e dos liberais, o que deu na Constituição de 1988. Muitos, no entanto, como (Francisco) Weffort e até FHC, defenderam a ideia de que o Brasil não precisa de consenso, mas de explicitar os conflitos. O processo de construção da democratização brasileira depois da ditadura tem o seu tempo, seu auge na Constituição de 1988, mas já carregando essa ideia de que quem fala em consenso é regime autoritário. Esse é um grande problema teórico que a democratização brasileira carregou. Ela se fixou na ideia de que superar a ditadura seria destravar os conflitos sociais que as instituições teriam de cuidar em vez de construir uma ideia de consenso. Por isso não houve na democratização brasileira um “partido” da Constituição democrática de 1988. Não teve esse consenso. Essa ambiguidade permanece e a origem dela é o pacto teórico e intelectual entre essas duas ideias: a de consenso e a de conflito. Houve um predomínio maior da ideia de conflito do que da ideia de consenso.

O PT é o partido que exacerba o conflito, condena o consenso e traduz o conflito na ideia de eleição. E não tem tido a capacidade para construir a ideia de consenso e resolve isso dizendo para a sociedade que com ele tudo será diferente. Aí chegamos na soma-zero: o Brasil só vai ter jeito conosco, nós que expressamos, no conflito, o povo justo e puro, seus interesses e, portanto, a nós é que deve caber a construção do Brasil, independentemente de outras forças. O PT não tem reconhecimento das outras forças do ponto de vista político. Escolhe-se para vice um empresário e não um partido no qual o setor empresarial aposte. Como se o único partido legítimo fosse nós. Aí, a teoria, epistemologia da revolução volta para o PT.

Como esse mito se relaciona com a modernidade?
Ele quer se combinar com interesses modernos da sociedade e vai merecer sempre uma espécie de composição estranha. Como é que faz? O Lula com os grandes empresários vão vender o Brasil para o mundo. O Lula vira um representante do capitalismo brasileiro, para ser um capitalismo de referência mundial. Mas ele não é o representante dos setores populares, dos trabalhadores? Acaba-se gerando um monstro, aquilo que o Chico de Oliveira chamou de ornitorrinco, um animal raríssimo que só existe em determinadas situações específicas. Combinamos o mito da revolução com os temas da modernidade e a expressão dos setores populares com os do capital e tudo vindo da sociedade e não do Estado, como expressão do processo de democratização brasileira. Isso significou o não abandono do mito da revolução e uma adesão pragmática ao novo paradigma da democracia, que resultou em uma combinação extravagante.
Existe um marco nessa discussão sobre a democracia na esquerda brasileira que é o texto do Carlos Nelson Coutinho sobre a democracia como uma valor universal. Nele, Carlos Nelson dizia que a democracia não tem delimitações geográficas. Disse isso em um tempo que o mundo era dividido em Ocidente e mundo socialista, dentro da visão do Enrico Berlinguer de que era necessário estabelecer uma visão nova entre socialismo e democracia…

A expressão “democracia como valor universal” é do Berlinguer (então secretário-geral do PCI), que ele pronunciou em Moscou, no 60.º aniversário da revolução bolchevique. Aquilo foi um espanto. E tomou como referência direta a chamada cultura política do comunismo italiano, como diferenciada do comunismo soviético. Essa ideia da democracia como valor universal tem grandes implicações para a mudança da história do comunismo. Depois de 60 anos, um líder de um partido comunista ocidental vai à Moscou e diz que o caminho, no fundo, não é do dos soviéticos, do stalinismo ou do stalinismo renovado do Kruchev etc. Ali há um desafio para o Berlinguer, que ele não conseguiu levar a bom porto. O Carlos Nelson publica esse ensaio em 1979, antes da queda do muro de Berlim. O Carlos Nelson traz esse tema para cá durante o processo de autorreforma do regime. O texto dele é chave. O PT ainda não havia nascido. Qual a grande orientação da esquerda? A esquerda tinha de mudar: o paradigma da democracia suplanta o paradigma da revolução? Para o Carlos Nelson Coutinho sim, mas para ele não suplanta o paradigma do socialismo e do comunismo. O texto dele tem essa ponta. Essa chave é complicada e tem a ver com a história posterior do Partido Comunista Brasileiro.

Para ele, a renovação democrática não podia ser um objetivo meramente tático, mas estratégico?
Sim, esse é o grande valor do texto. A esquerda que teria de nascer do texto do Carlos Nelson Coutinho teria de ser uma esquerda radicalmente democrática, que ultrapassasse o paradigma da revolução. Esse é o marco do texto do Carlos Nelson. Isso se verificou? Sabemos que não. Esse sonho dele, essa utopia, essa mudança profunda não se verifica. Não temos lideranças políticas a partir da esquerda naquele contexto que pudesse expressar isso. Não há um partido de esquerda da democracia como valor universal. Ela vira uma referência que se espraia pelos partidos de esquerda e pelos liberais. O Carlos Nelson insinua uma espécie de revolução democrática, que não deixa de ser problemática, tanto que a trajetória dele vai ser essa: depois de sair do PCB, ele vai para o PT e, depois, para o PSOL. Por isso o texto é datado. Tem um grande valor naquela conjuntura, mas o desenrolar da conjuntura política no plano da esquerda não levou a isso. A esquerda desloca o problema da democracia para um lado, como se fosse resolvido, e quer atacar o problema social e da economia com uma determinada visão. E a democracia fica mais como esperança do que como problema. Instalar a democracia, consolidar e conquistá-la é um problemão, ainda mais combinando com os temas sociais e econômicos, como é a América Latina.
O PT incorpora as massas não por meio da democracia, mas por meio do bem-estar econômico?
Exato. É um varguismo de outro tipo. Eu respondo à demanda da mesa, do bem-estar. É um PT Delfim Netto, que quer resolver o problema de quem quer tomar sua cervejinha vendo o jogo do Flamengo.

Como o coronavírus mudou o rumo da democracia no mundo, por Adam Tooze.

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Em entrevista ao ‘Aliás’, o historiador Adam Tooze diz que a pandemia foi um divisor de águas na questão das relações EUA-China

Guilherme Evelin, O Estado de S.Paulo – 13/11/2021

O historiador britânico Adam Tooze ganhou notoriedade global com a publicação em 2018 do livro Crashed- how a decade of financial crises changed the world (sem lançamento no Brasil), sobre a crise financeira internacional de 2008. Tooze acaba de publicar uma história da crise planetária provocada pela pandemia do novo coronavírus. O resultado do seu trabalho saiu no livro De Portas Fechadas- Como a Covid abalou a Economia Mundial, recém-lançado no País pela editora Todavia.

Em março de 2020, Tooze estava voltando para Nova York, onde dá aulas na Universidade Columbia, de uma viagem à Africa. No aeroporto de Istambul, na Turquia, ele se deu conta de como o pânico crescente em relação à pandemia estava levando as sociedades – e não propriamente os governos – a simplesmente parar e fechar as portas. Resolveu abraçar então a empreitada intelectual de contar a história desse fato sem precedentes. Ao esmiuçar desde os impactos nos números de pousos e decolagens no aeroporto de Heathrow, em Londres, reduzido ao movimento dos anos 50, até as intervenções do banco central americano, o Fed, para evitar um colapso dos mercados financeiros, Tooze faz a narrativa de 2020 com a lente de quem se assume como um “liberal keynesiano” e vê a pandemia como mais uma crise da era neoliberal iniciada nos anos 80. A seguir, trechos da sua entrevista para o Estadão

Qual é a melhor síntese para a pandemia: ela foi um divisor de águas na política e na economia global ou apenas intensificou tendências já existentes?
Se você pega o papel dos bancos centrais em administrar os mercados globais de finanças, a crise representou uma intensificação de tendências já existentes. Houve uma exacerbação da escala das intervenções dos bancos centrais nos Estados Unidos e na Europa. Em 2020, eles foram forçados a dobrar suas apostas. Um divisor de águas ocorreu nas relações entre Estados Unidos, Europa e a China. As tensões estavam aumentando há um tempo, mas essas relações tomaram uma nova, abrangente e militarizada perspectiva geopolítica. Eu acrescentaria um terceiro ponto. A crise teve também um aspecto de revelação. Ela revelou para nós claramente, com grandes letras em neon, o mundo em que nós estamos vivendo. Vejo o elemento revelatório no reconhecimento de que o problema ambiental, que muitos de nós achavam que estava concentrado na questão climática, tem também outras facetas, que são até mesmo mais amplas em termos dos danos que elas podem causar. A questão climática, a maior parte do tempo, representa uma crise local ou macroregional: os incêndios florestais, as secas, as grandes tempestades. A pandemia mostrou como um problema da relação do homem com o meio ambiente pode afetar todos no planeta.

Qual é a conexão entre seu novo livro e “Crashed”, seu livro sobre a crise financeira internacional? É o fim da ortodoxia que predominou nas políticas econômicas a partir de 1980?
“De Portas Fechadas” é uma espécie de sequência inesperada de Crashed. Eu não esperava tê-lo escrito. O que os une é que nós estamos em meio a um processo de busca por novos caminhos para administrar os riscos financeiros, geopolíticos, ambientais e as instabilidades políticas. Esse processo começou na Europa e nos Estados Unidos em 2008, mas nos mercados emergentes começou antes, na década de 90. Sim, o nível de ortodoxia nas práticas dos governos agora é muito difícil. Mas o que nós estamos vendo é uma evolução antes do que uma ruptura na forma como os governos fazem as coisas: há uma constante inovação com novas técnicas, novos meios de intervenção, novas políticas de administração de mercados financeiros. A nível de estrutura social, porém, há uma grande continuidade.

Todas as dramáticas intervenções dos últimos anos foram profundamente conservadoras. A razão delas não foi um projeto de transformação da sociedade, mas a manutenção do status quo.

Os estímulos fiscais e monetários adotados pelos governos e pelos bancos centrais foram enormes em 2020. Os governos colocaram em prática uma série de políticas há muito tempo reivindicadas por políticos de esquerda, assim como o adágio de John Maynard Kenyes: “Qualquer coisa que possamos realmente fazer, podemos pagar”. No entanto, como o senhor demonstra no livro, isso não representou uma vitória da esquerda. Por quê?
Há uma espécie de paradoxo. A esquerda é capaz de gerar diagnósticos, que são poderosos, atraentes e, muitas vezes, são os melhores em oferta. Mas ela não é capaz de reunir uma coalizão política para sustentá-los. Um diagnóstico correto não leva à necessária transformação. É preciso uma síntese dialética entre análise e poder político concreto. Muitas das políticas do repertório da esquerda foram adotadas por tecnocratas que estão no poder e têm condições de colocá-las em prática porque se sentem livres para fazer isso precisamente porque a esquerda é tão fraca. Se a esquerda fosse de fato um agente radical de mudança social, isso seria amedrontador para as pessoas no poder. Uma razão para que os bancos centrais independentes adotem ideias da Teoria Monetária Moderna não é porque eles acreditem que essa é a coisa certa a fazer. Na verdade, eles não sentem medo de que o radicalismo deles abra a porta para o radicalismo de outros ou para uma massiva insurgência de forças agressivas contra o sistema. Os bancos centrais operam com grande liberdade tecnocrática.

Como estamos vendo nos Estados Unidos, o presidente Joe Biden está tendo grandes dificuldades para conseguir apoio para seus planos de gastos trilionários com infraestrutura, programas sociais e ações de enfrentamento do aquecimento global. Isso não é a demonstração de que a ortodoxia econômica resiste?
Não acho que seja o neoliberalismo que esteja resistindo, mas o conservadorismo. O que nós estamos vendo nos Estados Unidos é o resultado do crescente fosso entre as forças que se reúnem em torno do Congresso e dos mecanismos eleitorais existentes em cada Estado e a opinião da maioria do eleitorado americano que vive nas cidades e tem se inclinado pelos candidatos presidenciais do Partido Democrata, de centro-esquerda. Esse drama representa mais a crise do sistema político americano do que uma história sobre o futuro do neoliberalismo. O ímpeto para gastar de pessoas como Chuck Schumer (líder do Partido Democrata no Senado) e Nancy Pelosi (presidente da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos) tem menos a ver com uma epifania para agir como social-democratas do que um medo genuíno em relação à preservação da democracia americana, pela qual eles temem caso eles sejam derrotados nas eleições para o Congresso em 2022. O que nós estamos vendo não é uma luta sobre neoliberalismo, mas uma luta sobre a Constituição americana, que tem um grande viés contra uma ordem majoritária, e como ela deve funcionar.

Ao resenhar seu livro, Robert Rubin, ex-secretário do Tesouro dos Estados Unidos, se perguntou se a democracia americana iria sobreviver. Qual é a sua resposta para essa pergunta?
Isso depende do que você entende ao perguntar se a democracia americana irá sobreviver. Eu espero uma guerra civil? Não. Espero que os mecanismos da Constituição americana se tornem disfuncionais? Sim. Espero que o sistema político americano produza uma governança consistente pela maioria? Não. O Partido Republicano está comprometido em garantir que esse não seja o caso. Será uma democracia funcional no sentido de produzir decisões rapidamente em resposta aos grandes desafios? Não. Isso, na verdade, já está acontecendo. A democracia americana não tem funcionado bem há décadas. Sabemos que, em termos de comparação com outros países de renda alta, por vários indicadores, como concentração de riquezas, os EUA não têm funcionado bem.Eu concordo com o espírito da pergunta, mas não sei qual é a resposta. Diria que a democracia americana vai sobreviver de algumas maneiras. Os americanos não conhecem outra forma de governo. A ideia de que Trump poderia ter-se transformado numa espécie de ditador é absurda. Mas os EUA vão se tornar crescentemente uma democracia disfuncional? Eles já estão bem à frente nesse caminho.

Seu livro é uma advertência de que nós devemos nos preparar para uma onda de crises. O senhor está vendo algum progresso real na Conferência do Clima (COP-16) em Glasgow para evitar uma grande crise ambiental?
Não quero parecer desdenhoso em relação ao que foi feito na COP. Não é a abordagem mais construtiva. Mas vimos o grande e decisivo avanço que seria um acordo coletivo de todos os grandes consumidores de carvão para acabar com o consumo de carvão? Não. Vimos uma grande promessa em relação ao deflorestamento, mas onde estão os detalhes, os compromissos? Há promessa de zerar as emissões de carbono em 2050, mas em 2050 a maioria das pessoas envolvidas nesses acordos não estará viva. É o tipo de acordo ou promessa fácil de fazer, mas que tem muita pouca substância.

Quando se trata dos compromissos em relação a dinheiro, eles estão raspando o tacho para juntar 100 bilhões de dólares, quando deveríamos estar ganhando trilhões a cada ano. Não é como Trump e Bolsonaro fingindo que o problema não existe, mas não é um compromisso de ação que ataca a severidade da crise existente. É uma espécie de negacionismo “de facto”, sem se engajar no absurdo de negar que o problema existe. Isso reforça a percepção de que a COP não deve ser o fórum de decisões para esse tipo de acordo e que deve ser dada mais atenção às políticas nacionais dos grandes emissores: China, Europa e Estados Unidos. Não houve um fracasso total, como na COP de Copenhague, mas, ao final do jogo, a reunião de Glasgow serviu para traduzir as promessas do Acordo do Clima de 2015 em metas ao nível das nações, onde poderemos ver, talvez, ações reais.

Quais serão as implicações do novo cenário geopolítico com o aumento da competição entre EUA e China? Pode haver uma guerra no futuro?
Existem pessoas nos Estados Unidos e na China, cujo trabalho é planejar para a guerra. Se você os ouve, a guerra é uma possibilidade nítida. E eles claramente consideram que em Taiwan há um casus belli (expressão latina para designar um fato considerado suficientemente grave pelo Estado ofendido, para declarar guerra ao Estado supostamente ofensor.) É difícil acreditar que os Estados Unidos se movimentarão decisivamente para uma confrontação militar por causa de Taiwan. Mas é preciso levar em consideração que as pessoas no Pentágono, num ecossistema de poder complexo como o dos Estados Unidos, vivem em seus próprios mundos à parte. Houve uma virada notável entre o começo e o último ano do governo Trump e o começo do governo Biden: as pessoas que conduzem a política para a China não são mais as pessoas do Departamento do Tesouro ou do Departamento do Comércio ou do Fed (o banco central americano). É agora o pessoal do Conselho de Segurança Nacional e do Pentágono. A narrrativa agora em Washington é que as pessoas da área econômica lideraram as relações com a China, e elas fracassaram porque não entenderam a natureza do problema. Agora, chegou a vez de outra turma jogar. Por causa dessa mudança, não sei como essa bola poderá agora ser devolvida. Uma vez que a bola foi passada para o pessoal militar e da segurança nacional, eles agora têm que jogar o jogo até que ele chegue a uma espécie de conclusão. Talvez não seja a velha política de segurança nacional que leve a uma guerra com a China, porque soldados sabem quão sérias as guerras são.

Mas as relações com a China foram profundamente militarizadas. Elas estão sendo tratadas agora na dimensão da segurança nacional – e o governo Biden tem sido muito relutante em mudar essa abordagem. Os chineses viram que o governo Biden não iria mudar a linha de atuação para uma abordagem econômica mais convencional. E não é por acaso que tenham ocorrido tão poucas interações de alto nível entre Washington e Pequim desde o início do governo Biden.

Também não é um acidente que Xi Jinping não tenha comparecido à COP-26. Xi não quer estar na mesma conferência em que esteja Biden. A questão central para Xi, claramente, é a competição entre regimes. Os americanos anunciaram isso, e os chineses levaram esse anúncio a sério.

A pandemia atingiu severamente a América Latina e aumentou a percepção da crise da região. Como vê o impacto da pandemia no Brasil e na região?
O fato de que a América Latina, por causa dos altos níveis de informalidade, de desigualdade social e do populismo de alguns expoentes da política da região, foi mais duramente atingida pela pandemia não é surpreendente, porque o vírus, precisamente, ataca com mais força onde há fraquezas. Um segundo aspecto que eu quis enfatizar no livro foi a competência, a capacidade, a sofisticação dos Estados latino-americanos, com a exceção da Argentina e talvez do Equador, de lidar com o stress financeiro gerado pela pandemia. Depois que Fed injetou liquidez nos mercados, os principais hubs financeiros latino-americanos foram capazes de escapar de uma maciça tempestade financeira. Isso não é novo, mas, antes, não poderia ser considerado como uma coisa certa. Isso é o resultado de acúmulo de reservas financeiras , de capacidades, de competências, de networking, de capital cultural e social das elites financeiras latino-americanos dentro do sistema global. Isso implica também conformidade aos parâmetros ditados por Wall Street. Não são mais os rebeldes dos anos 60. Isso é altamente significativo. Não confere uma soberania radical, mas um grau de autonomia e uma habilidade para amortecer e evitar o pior, que seria uma crise sanitária, uma crise social e, ainda por cima, uma crise financeira. Um terceiro aspecto dessa crise é o grande ponto de interrogação que ela deixa em relação ao futuro da América Latina. É uma questão que tem sido colocada por intelectuais na América Latina há mais de um século, mas que ganhou ainda mais proeminência depois desse choque.

‘Estamos colhendo o custo do populismo’, diz economista da FGV

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Para Silvia Matos, Brasil vive muita incerteza, com juros altos e pouco espaço para gastos públicos

Luciana Dyniewicz, O Estado de S. Paulo – 21/11/2021

O Brasil entrou na pandemia com uma economia mais frágil que a de outros emergentes, enfrentou o período sem planejamento e saiu dela desrespeitando regras fiscais, o que cria incertezas e reduz investimentos, segundo análise da economista Silvia Matos, do Instituto Brasileiro de Economia (FGV/Ibre).

Esse cenário levará o País a um desempenho fraco em 2022. “A incerteza na economia brasileira é muito alta e o contexto é de limitações do crescimento, com juro alto e sem espaço para gastos públicos”, diz ela, que prevê um PIB de 0,7% no ano que vem.

De acordo com a economista, a situação poderia ser mais positivo, pois algumas reformas foram feitas nos últimos anos e deveriam ajudar na retomada. Medidas populistas, como o Auxílio Brasil – criado sem planejamento e discussão –, no entanto, impedem uma melhora da economia. Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista:

O Brasil está entre os emergentes que devem registrar pior desempenho econômico em 2022. O que difere o Brasil desses países de perfil semelhante?
O desempenho depende de como eram as condições antes da pandemia, de como o País lidou com a pandemia e das consequências da pandemia. Antes da pandemia, já estávamos em uma situação complicada. O crescimento do Brasil nos três anos depois da recessão de 2015 e 2016 foi muito ruim. A produtividade estava estagnada, havia muita informalidade e desemprego alto. Tivemos o choque da pandemia em cima de uma economia com muitos problemas. Depois, pelo fato de não termos tido uma estratégia nacional de combate à pandemia, também temos um desempenho pior agora.

Poderíamos ter tido uma queda maior da economia no começo da pandemia devido a medidas de restrições mais rígidas, mas também uma melhora mais rápida. A gente não quis lidar muito em um primeiro momento com o problema. Teve ainda uma questão de fechar os olhos quanto a gravidade e a persistência da covid. Não nos preparamos para lidar com o Orçamento. Quando você vai para uma guerra, tem de se preparar. Não só se preocupar em vencer uma batalha. Aí criou-se, no início deste ano, uma expectativa de retomada, mas ela perdeu o fôlego, porque bateu em restrições.

O que devia ter sido feito?
(O País) tinha de ter se preparado: pensado em uma política de proteção social para os informais, por exemplo. O governo não fez isso e, agora, com as eleições chegando, resolveu não seguir regras fiscais. Se tivesse se programado tecnicamente para um programa social, discutido valores, o risco e a volatilidade poderiam ser menores agora. Como isso não ocorreu, o mercado avaliou que o governo não tem compromisso. O populismo tomou conta. Aí o risco é maior, e o juro tem de subir mais. Nesse meio tempo, vem também um problema estrutural: a questão hídrica. Se não chove, não temos como crescer.

O Ibre projeta alta de 0,7% no PIB para 2022. Quais serão os principais fatores responsáveis pelo desempenho fraco?
Parte importante vem do fato de não haver solidez fiscal. O Orçamento hoje é muito restrito e ainda tem eleição em 2022. Agora, a incerteza política e fiscal é muito grande desde o impeachment (de Dilma Rousseff), mesmo com o avanço de reformas microeconômicas. Esse cenário, aliado ao juro e ao câmbio altos, afetará o investimento e toda a economia. Resumidamente: a incerteza na economia brasileira é muito alta e o contexto é de limitações do crescimento, com juro alto e sem espaço para gastos públicos.

O cenário internacional, que afeta todos os emergentes de forma semelhante, também não deve ajudar o Brasil em 2022, certo?
No primeiro trimestre deste ano, houve uma ilusão de que o mundo e o Brasil iam bombar, de que a pandemia não teria maiores consequências econômicas. Mas hoje há uma inflação alta de oferta. A China, que antes contribuía para uma inflação baixa no mundo, não consegue mais fazer isso. Está com uma limitação em sua oferta por conta do problema de energia e também da pandemia. Estamos em um período de inflação alta em todo o mundo que já está afetando o crescimento. A festa vai acabar mais cedo porque o juro vai subir. Já está subindo em emergentes. Era para estarmos saindo da pandemia radiantes, mas a vida é dura. Ainda mais no Brasil, onde estamos saindo com um déficit primário maior. A festa durou só um semestre e não nos preparamos para o fim. Estamos colhendo menos do que plantamos, porque até fizemos algumas reformas microeconômicas, mas aí veio o custo do populismo: mais inflação, juro mais elevado e menor crescimento. A pandemia não é a culpada por tudo.

A nova economia do projetamento, por Elias Jabbour.

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Publicado em A Terra é Redonda – 03/11/2021

As premissas do arcabouço intelectual necessário para compreender a formação econômico-social chinesa
Desde que abandonei teorias consolidadas, e datadas, do desenvolvimento econômico em prol do conceito de formação econômico-social passei a usufruir de liberdade indescritível. Teorias datadas engessam análise e só podem entregar o “particular no geral”. Os economistas hoje, como acreditam que as teorias já estão aí e que o importante é aplicá-las bem estão esbarrando nos limites de acreditarem que ao estudarem as relações entre Estado e mercado conseguem entregar algo capaz de entender processos complexos. Eis o limite da heterodoxia econômica e que a faz se aproximar, no método, da ortodoxia.

Explico. Neste tipo de análise a totalidade é amplamente deslocada com a quase negação da política e da história. Entre os marxistas acadêmicos não e percebe que mudanças institucionais não somente têm garantido o desatamento cíclico de pontos de estrangulamento na economia; mas também o surgimento de novas relações de produção via novos aportes sob forma de mais e melhor regulação do trabalho quanto aumentos salariais médios de 280% nos últimos dez anos.

Não impede a China de se tornar, ainda, uma sociedade menos desigual, mas demonstra que o Estado chinês tem respondido às demandas dos trabalhadores com assertividade. Caso fosse um país capitalista a China poderia elevar a competitividade de seus produtos criando um desemprego artificial de ao menos 10%…

Retornando. Como toda teoria este tipo de abordagem perde sentido quando surgem mudanças qualitativas, como ocorrem na China hoje. Daí a pobreza de reduzir as reformas pelas quais estão passando a economia chinesa como “onda regulatória”, “novas fronteiras de acumulação de capital”. Nada mais estático e microeconômico. Na verdade, o que existe é um movimento real gerando novos conceitos. E acredito que decifrar o conteúdo desses novos conceitos seja o maior desafio presente às ciências sociais, pois a China suscita uma engenharia social de patamar superior comprovada pela vitória inconteste contra a pandemia – expondo as mazelas do capitalismo ocidental.

A percepção de que a estava emergindo na China uma nova classe de formações sociais me livrou das camisas de força das teorias estruturalistas e de Estado desenvolvimentista / empreendedor de desenvolvimento. A universalidade do marxismo de Vladimir Lênin e Inácio Rangel aplicado a uma realidade particular nos abriu possibilidades ainda a serem amplamente exploradas. Não fomos pegos de surpresa com a atual onda de inovações institucionais.

Rapidamente percebemos a natureza qualitativa e diferente do que estava acorrendo. A contradição entre forças produtivas e relações de produção chegou a outro patamar. Luta de classes. Uma visão de “bloco de poder” deverá ser desafio diante do que significa a força de mais de 130 milhões de trabalhadores urbanos, ontem camponeses no processo de pressão sobre o Partido Comunista, garantindo a manutenção de uma estratégia socializante ao país.

A “Nova economia do projetamento” derivada da dinâmica do “desenvolvimento desequilibrado” mediado por ondas de inovações institucionais têm sido uma descoberta fascinante. A criação do computador quântico mais rápido do mundo é passo decisivo na construção da liberdade humana. Nova economia do projetamento é sinônimo de ampliação da capacidade de planificar, de elevar o domínio humano sobre a natureza e entregar ao ser humano a possibilidade de ser o senhor do seu destino.

Confesso que seria mais fácil e prestigioso me apreender a alguns conceitos abstratos e aprioristas como valor, dinheiro, fetiche, mercado e alienação e utilizá-los arbitrariamente. Isso é zona de conforto intelectual. Não combina comigo. Prefiro outro caminho, talvez herético. Observar uma totalidade entre formação econômico-social, modo de produção, o meta modo de produção (quem ler China: o socialismo do século XXI irá entender esse conceito) e a lei do valor como uma totalidade.

Observando em conjunto esta totalidade é algo que ao se movimentar vai rearranjando as lógicas de funcionamento da sociedade, gerando formação econômico-social a partir de novos modos de produção a partir de combinações entre diferentes formas/relações de produção e troca. Os resultados até aqui têm sido promissores. Muito ceticismo de nossos interlocutores, mas muita gente já utilizando do arcabouço intelectual por nós construído para construírem suas próprias hipóteses sobre a China. Estamos apenas no começo.

*Elias Jabbour é professor dos Programas de pós-graduação em Ciências Econômicas e em Relações Internacionais da UERJ. Autor, entre outros livros, de China hoje – Projeto nacional de desenvolvimento e socialismo de mercado (Anita Garibaldi).

Reabilitação de Confúcio é cada vez mais evidente na China, por Tatiana Prazeres.

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Partido Comunista e autoconfiança cultural favorecem valorização do filósofo

Tatiana Prazeres Senior fellow na Universidade de Negócios Internacionais e Economia, em Pequim, foi secretária de comércio exterior e conselheira sênior na direção-geral da OMC.

Folha de São Paulo, 19/11/2021

Qufu é literalmente uma cidade de quarta ou quinta categoria na China. As cidades no país são informalmente classificadas em faixas, de acordo com sua importância. No entanto, em Qufu, na província de Shandong, há um museu de primeiríssimo nível, que visitei recentemente. A cidade natal de Confúcio, com pouco mais de 650 mil habitantes, é pequenina para padrões chineses, mas de um simbolismo cada vez maior para o país.

O confucionismo tem uma história de altos e baixos na China. Agora, no entanto, tem sido reabilitado pela sociedade e pelas lideranças chinesas. O Museu de Confúcio em Qufu, inaugurado em 2018, é sinal dos novos tempos. Tem mais de 17 mil metros quadrados de área de exposição (o Masp tem 10,5 mil metros quadrados).

O pensador nascido em 551 a.C. é associado a valores tradicionais do país, como a harmonia, a meritocracia, o respeito à hierarquia e à autoridade, a deferência aos idosos, além do comportamento ético. Com o tempo, valores confucionistas foram incorporados ao tecido social do país, servindo de substrato moral a uma sociedade desprovida de base religiosa forte.

Durante a Revolução Cultural (1966-1976), entretanto, o confucionismo sofreu um duro golpe. Foi visto como obstáculo à transformação social que se pretendia. O pensamento do filósofo foi classificado de conservador, retrógrado, burguês e, portanto, contrarrevolucionário —e muito. Combatê-lo era visto como essencial à causa comunista. Em Qufu, o túmulo de Confúcio e um templo em sua homenagem foram destruídos pela Guarda Vermelha.

Hoje, o partido fez as pazes com o confucionismo. Sua reabilitação ocorre gradualmente desde os anos 1980, mas foi nos últimos 15 anos que Confúcio readquiriu prestígio. Antes malditas, as ideias do filósofo passaram a figurar em discursos oficiais.

Não surpreende que o Partido Comunista, no comando há mais de 70 anos, valorize o respeito à autoridade e à harmonia social. Ao associar essas ideias a Confúcio, no entanto, o partido confere-lhes dose extra de legitimidade e valoriza o modelo político do país. Ademais, o confucionismo, além de milenar, é prata da casa —diferentemente do marxismo, importado.

Nem todas as ideias de Confúcio foram igualmente reabilitadas. A visão do pensador sobre as mulheres, em especial, é de tempos passados —e o partido sabe disso.

O resgate do filósofo fica evidente na política externa do país. Não é apenas à base de poderio econômico, tecnológico e militar que a China pretende projetar poder. Quando, em 2004, Pequim decidiu criar centros mundo afora para difundir a cultura e a língua chinesas, atribuiu-lhes o nome de Instituto Confúcio. Nenhum outro nome supera o do sábio da antiguidade em potencial de soft power para o país.

Para além da visão das autoridades, quão confucionista a China de 2021 realmente é? Muito, mais que nunca —respondeu-me uma professora chinesa. O confucionismo tem sido revitalizado na sociedade na esteira do crescimento do nacionalismo na China e das tensões externas envolvendo o país. Ganha importância com o aumento da autoestima dos chineses, com a valorização da história milenar e da cultura tradicional.

Jovens nacionalistas abraçam com gosto a ideia de autoconfiança cultural, que aliás tem outras manifestações visíveis. Volta à moda, por exemplo, o “hanfu”, o roupão tradicional chinês. O patriotismo favorece personalidades, ideias e mesmo produtos e marcas chineses. É o made in China, agora em alta.

O renascimento do confucionismo é simbólico de uma China que pensa já ter aprendido bastante com o resto do mundo.

Agora, sente-se também em condições de se promover e de ensinar. Se o museu em Qufu for indicativo da nova autoconfiança cultural dos chineses, ela é monumental.

O SUS diante da sua “janela histórica”, por Flávio Dieguez.

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Nelson Rodrigues dos Santos, um dos líderes da Reforma Sanitária, inaugura seção de artigos de Outra Saúde e sugere quatro rumos para defesa e ampliação da Saúde Pública, após a pandemia. Para ele, é hora de “otimismo da vontade”

Flávio Dieguez – OUTRA SAÙDE – 17/11/2021

Protagonista destacado da Saúde Pública brasileira e da construção do SUS, o epidemiologista Nelson Rodrigues dos Santos parece disposto, em tempos árduos, a continuar apontando caminhos na luta por esta causa. Outra Saúde publica hoje um texto cristalino, embora denso, em que ele vê uma “janela histórica” de oportunidade para retomar o projeto da Reforma Sanitária. O artigo foi publicado inicialmente pelo Centro de Estudos Estratégicos (CEE) da Fiocruz, em 4 de outubro. Professor da Unicamp e conselheiro do Idisa – Instituto de Direito sanitário aplicado – “Nelsão” aponta o enorme atraso do Estado brasileiro na implantação de políticas igualitárias de Saúde, nas últimas três décadas. Lamenta o avanço, no mesmo período, da medicina como atividade voltada para o lucro. Mas enxerga, no novo prestígio alcançado pelo SUS durante a pandemia, a potência necessária para uma nova onda de mobilizações sociais. E propõe quatro objetivos centrais que ela deveria perseguir.

O pesquisador aponta, no artigo, os entraves persistentes à efetivação do modelo de saúde constitucional, proposto pela Reforma. Seus argumentos são muito convincentes – mas não impedem a conclusão surpreendentemente positiva – que ele emoldura no conhecido dístico do filósofo italiano Antônio Gramsci: “Pessimismo da inteligência e o otimismo da vontade”. É fato que estamos imersos, especialmente no Brasil, em profundo retrocesso civilizatório. Mas em grande número de países, parece haver avanços.

Além disso, escreve Santos, a despeito da atual situação brasileira, “vale lembrar outros momentos históricos, como nos anos 1980 em nosso país, quando foi realizado, com crescente e grandiosa participação social, amplo debate rumo a um projeto de sociedade e nação, inverso ao projeto da ditadura que se extinguia”. De lá para cá, ao longo de 33 anos, não foi possível estabelecer um nível adequado de financiamento do SUS. A esfera executiva federal desconsiderou a recomendação constitucional de destinar para o sistema 30% do orçamento da seguridade social e negligenciou, desde então, oito oportunidades, ao menos, de corrigir essa deficiência.

Em vez disso, de fato, inverteu as prioridades constitucionais: deixou de gastar na capacidade do sistema público enquanto financiava – por exemplo por meio de isenções tributárias – o setor de seguros e planos privados, apenas incipiente no final dos anos 1980. No entanto, a experiência adquirida nesses anos não foi pequena, e compensou os impasses da esfera federal. Como diz Santos: “[…] a experiência acumulada da gestão descentralizada (estadual e municipal), contra-hegemônica mas junto a entidades da sociedade, academia, poder Legislativo e outras, vem compensando parcialmente o grande vácuo imposto pela esfera federal e sua influência na opinião pública”.

Notavelmente, Santos contabiliza muito positivamente o esforço feito pelo SUS no enfrentamento da pandemia, o que o tirou da invisibilidade e mostrou sua necessidade e valor às camadas da população que usualmente têm preferência pela saúde privada. Diante disso, e da conjuntura global, torna-se plausível esperar que se firmem pactos sociais mais avançados, inclusive no Brasil. A dinâmica nacional também abre espaço para avanço na democratização e em pactos federados, e para movimentos para a construção de uma “social-democracia brasileira”.

É nesses termos que o pioneiro do SUS conclui seus argumentos apontando para uma “janela histórica”: “reabrindo para mobilizações sociais, democratização do Estado [e] resgate do SUS constitucional”. Ele diz esperar quatro desdobramentos que, no estreito espaço desta nota se poderia resumir assim: elevação dos investimentos federais nos serviços públicos em todos os níveis; modernização da gestão pública em todos os níveis, visando cumprir o direito constitucional da universalidade, equidade e integralidade; regulação dos serviços privados complementares do SUS – “como se públicos fossem”; e reformulação dos planos e seguros privados, de modo a substituir seu financiamento público pelos procedimentos normais de mercado.

Brasil, vitrine do rentismo parasitário, por Márcio Pochman.

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Incapaz de gerar riqueza nova, a “elite-ralé” do país aliou-se ao bolsonarismo. Em 10 anos, inflaram suas fortunas a base de fraudes e da pilhagem do Estado. A vida de milhões foi precarizada enquanto o número de bilionários mais que dobrou

Márcio Pochman, Outras Palavras 16/11/2021

Em apenas dez anos, a economia brasileira desceu do posto de sexta maior do mundo, alcançado em 2011, para a décima terceira colocação no ranking projetado dos países para 2021. Com o decrescimento do PIB per capita na década passada acumulado em 4,7%, fica evidente o registro de que o país empobreceu, embora pouquíssimos e seletivos segmentos sociais privilegiados tenham continuado a enriquecer, sobretudo pela ascensão do sistema de pilhagem.

No ano de 2011, por exemplo, o Brasil tinha 30 pessoas com fortunas acima de um bilhão de dólares (5,5 bilhões de reais) segundo avaliação da revista Forbes, sendo que a metade delas declarou depender da herança familiar para alavancar seu patrimônio. Juntos, os 30 bilionários contabilizaram uma fortuna total estimada em US$ 131,4 bilhões, o que equivaleu a 5% do total do PIB brasileiro de 2011.

Dez anos depois, a mesma revista apontou a existência de 65 bilionários no Brasil, cujo valor total das fortunas alcançou a soma de US$ 223,3 bilhões, ou seja, 16% do PIB estimado para o ano de 2021. Enquanto o número de bilionários foi multiplicado por 2,2 vezes, o total das fortunas aumentou 70% e a participação relativa dos bilionários no PIB subiu 191% entre 2011 e 2021.

Para um país que demonstra não conseguir gerar riqueza nova, difundiu-se na borda da classe dominante a estética do dinheiro velho (Old Money), fundamentado no continuado processo de financeirização do estoque das fortunas derivadas de heranças. Acumuladas, em geral, no passado, por gerações que deixaram de existir, a linhagem atual dos enriquecidos se associa crescentemente à pilhagem do Estado como mecanismo necessário para prosseguir valorizando de forma fictícia o estoque da riqueza puída.

As reformas trabalhistas e previdenciárias, bem como a própria mudança constitucional para abrigar o teto de gastos públicos não financeiros, exemplificam o quanto a guerra de classes sociais se deslocou para o interior do fundo público. Diante da escassez de riqueza nova, a imposição de maior espaço fiscal transcorre através da pilhagem orçamentária em favor da ostentação da estética do dinheiro velho aos já muito ricos e novos enriquecidos no país.

Ao mesmo tempo, cresce de importância a cultura do “meu patrocínio primeiro” (Sugar Baby), rapidamente incorporada pela diversa classe dirigente que busca ascender, mais recentemente mobilizada por fraudes de toda natureza (titularidade acadêmica e curricular, negociatas e outros). Pelo impulso da ascensão social a qualquer preço, o país se transforma numa espécie de cercado a mercantilizar de tudo o que paira sob o sol, fazendo-o retroceder aos tempos da acumulação primitiva exercida pela pilhagem dos ativos nacionais e riquezas naturais.

É neste contexto de fortunas duvidosas e de origem controversa, em fomento por uma elite-ralé, que o lumpesinato brasileiro ganha maior dimensão, reproduzindo-se em marcha forçada. Ao contrário da classe trabalhadora que se encontra vinculada às atividades produtivas, ainda dispondo da possibilidade de representação sindical e de alguns direitos sociais e trabalhistas, o lumpesinato constitui segmento crescente da população que, descolado da geração do excedente econômico, busca sobreviver a qualquer custo possível atribuído pela captura de parte da renda de outros segmentos sociais (assalariados, autônomos e empresários).

A decomposição da sociedade brasileira, expressa pela expansão da lumpenização do mundo do trabalho, resulta da prosperidade do rentismo parasitário que converte a política nacional em mais um negócio no interior do curso geral de pilhagem nacional. O resultado tem sido a efetivação da barbárie social exposta mundialmente como vitrine de um país que acompanha docemente o rebaixamento de suas principais instituições públicas.

Numa economia em decadência como a brasileira, o encurtamento da riqueza coloca maior centralidade no Estado e, sobretudo, no seu fundo público. Por isso se dá o aparelhamento do setor estatal, crescentemente ocupado por representantes de hordas do lumpesinato que, a serviço da elite-ralé, operam o governo de plantão voltado aos seus apoiadores para atender o requisito de evitar a derrota na próxima eleição.

A desfiguração de órgãos públicos como os de controle que se domesticam para favorecer grupos dominantes também transcorre no legislativo que opera um orçamento de ficção, fingindo seguir regras, locupletando operadores de “rachadinhas”, de emendas obrigatórias e expropriação de funcionários públicos, entre outras modalidades do exercício da pilhagem. No poder público, a realidade do desmonte não tem sido diferente, com ministério travestido de balcão de negócios operados na compra de vacinas falsas e difusão de mentiras reproduzidas em plataformas e redes sociais que garantem dinheiro de publicidade e reconhecimento de seguidores.

Assim, a reprodução social assentada na delinquência mudou mais recentemente a dinâmica da política nacional. Daí o sucesso da extrema direita, que se viabiliza convertendo a política em mais um negócio rentável a consolidar a idade de ouro das fraudes no Brasil – que segue ladeira abaixo.

Inflação

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As sequelas da pandemia sobre a sociedade brasileira crescem todos os momentos, deixando claro a grande dificuldade de construirmos consensos políticos para superarmos este momento, a economia não consegue criar espaços de crescimento consistente, o desemprego ainda permanece em números proibitivos, a miséria cresce e a exclusão social se mostra cada vez mais assustadora, gerando incertezas e instabilidades que postergam as melhorias econômicas.

A inflação deve ser definida como o aumento generalizado de preços na economia, seus impactos são variados, gerando ganhadores e perdedores, diante disso, os grandes perdedores são os setores mais fragilizados, setores que não conseguem se proteger dos impactos negativos do aumento dos preços e a perda do poder de compra, gerando empobrecimento crescente. Do outro lado, dois setores ganham com o aumento dos preços, o governo e o setor financeiro. Estes setores conseguem defender seu poder de compra, auferindo lucros maiores, piorando a concentração da renda e o aumento da desigualdade entre os grupos sociais.

A sociedade brasileira conviveu com inflação durante muitas décadas, namoramos momentos de hiperinflação, gerando instabilidades, incertezas, baixa confiança e reduzindo o crescimento econômico. Com a implantação do Plano Real, em 1994, a realidade melhorou, os índices inflacionários diminuíram a níveis mais civilizados e crescimento econômico mais consistente, estimulando investimentos produtivos, reduzindo o papel do Estado na economia e criando perspectivas saudáveis e momentos exuberantes, colocando o Brasil na berlinda da economia internacional.

Infelizmente esse sonho não se efetivou, cometemos erros na condução do plano de estabilização, deixamos o câmbio se apreciar, reduzimos os investimentos produtivos e estimulamos o crescimento da jogatina financeiro, colocando no centro da economia setores marcados por baixa produtividade, com reduzida geração de emprego e que contribuíram para o processo de desindustrialização, levando o país a aumentar a dependência dos setores agroexportadores e abrimos mão de um papel mais ativo nos setores industriais. Neste momento, tornamos um grande importador de produtos industrializados, como vimos nas dificuldades de conseguirmos os insumos industriais do setor da saúde.

A inflação, anteriormente esquecida, atualmente ganha força e está crescendo em todos os setores da economia brasileira, gerando incertezas e instabilidades, degradando os indicadores sociais, reduzindo os investimentos produtivos e reduzindo a geração de empregos. Neste momento, o governo se apoia na política monetária, aumentando os juros, restringindo a moeda que circula na economia e, com isso, posterga a recuperação dos investimentos e a retomada da economia.

A inflação em curso na sociedade brasileira está diretamente ligada aos choques de custos na sociedade internacional, gerada pela desagregação das cadeias produtivas globais e pelo incremento da pandemia, impactando sobre o preço do frete externo, reduzindo a produção em decorrência da falta de insumos, como percebemos no setor de semicondutores, os chamados chips, produtos fundamentais para a economia globalizada, centrada em tecnologias avançadas, sofisticação e alta complexidade.

A sociedade precisa compreender que a inflação é também, e principalmente, um fenômeno político. Numa sociedade como a brasileira, que naturaliza a pobreza e banaliza a desigualdade social, atrelando-a a ausência de empreendedorismo, os grandes ganhadores usam o poder econômico para incrementar seus ganhos financeiros e influenciar espaços da política, garantindo altos lucros, retornos elevados e rentabilidades vultosas. Em momentos de pandemia, de desestruturação econômica, de fome e de exclusão social percebemos quem são os grandes beneficiários das instabilidades em curso da sociedade brasileira, são aqueles que se escondem atrás de discursos falaciosos baseados em meritocracia, esquecendo que somos um dos países mais desiguais do mundo, sem oportunidade não existe meritocracia.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 17/11/2021.

Estagflação

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A economia brasileira vem passando por grandes processos de desestruturação econômica e produtiva, com impactos sobre setores inteiros, impulsionando a degradação da economia, aumentando o desemprego, elevando os preços e reduzindo a renda dos trabalhadores. Para piorar o ambiente, passamos por um momento de desajuste nos preços, desvalorização cambial, fragilidades fiscais e perda da confiabilidade externa, gerando um cenário que os economistas podem definir como estagflação.

Podemos definir a estagflação como uma situação simultânea de estagnação econômica, ou seja, ou até mesmo recessão, apresentando altas taxas de inflação. Neste momento, a atuação das autoridades econômicas exige maturidade e atuação sistemática, utilizando todos os instrumentos da política econômica, como forma de reverter uma situação negativa e preocupante para o comportamento da economia, com desemprego em alta, queda da renda e fragilidade dos indicadores macroeconômicos.

O ambiente econômico gera preocupação, o crescimento da inflação levou o governo a aumentar as taxas de juros e os investimentos produtivos estão em queda, inviabilizando a contratação de trabalhadores, postergando a recuperação econômica e, num momento de pandemia, com mais de seiscentos mil mortos, fragilizando os indicadores sociais, aumentando as tensões sociais e reduzindo a confiança dos setores produtivos.

O aumento da austeridade degrada mais o ambiente social, empobrecendo a massa da população e aumentando a degradação social, elevando a fome, a pobreza e a miséria. A elevação das taxas de juros aumenta a dívida pública, cada ponto percentual de aumento nas taxas de juros elevam a dívida do Estado em 50 bilhões de reais, com isso, o custo total da elevação da conta de juros alcançará valores aproximados de 400 bilhões de reais, recursos que beneficiam uma pequena parte da população, um contingente de 1% dos brasileiros em detrimento da grande maioria da sociedade, dessa forma, percebemos uma forma crescente da pilhagem dos recursos da sociedade para fins privados.

O incremento dos preços na sociedade brasileira está intimamente ligado as desvalorizações cambiais, as desarticulações das cadeias globais de produção e da elevação dos preços dos alimentos e a forte demanda por produtos agrícolas no mercado global. A desvalorização cambial impacta nos preços internos e eleva a inflação, a estabilização do câmbio exige uma atuação conjunta do governo, a construção de uma confiabilidade perdida e uma organização da agenda econômica que, infelizmente, apresenta grandes instabilidades e incertezas que fazem com que a moeda nacional perca espaço no mercado internacional e aumente os riscos para os investidores externos.

A agenda liberal preconizada pela equipe econômica, confusa e marcada por improvisações, gera instabilidade, reduz a confiança e afasta os investidores internos e externos. Estamos presenciando a retirada do Estado da condução da economia brasileira e sua substituição pelos atores privados, diante disso, percebemos que os investimentos não estão acontecendo, com isso, não estamos percebendo os supostos benefícios propagados pela propaganda oficial, muito pelo contrário, essas contribuíram apenas para a degradação do trabalho, gerando aumento no desemprego e no subemprego, redução dos investimentos públicos e privados, diminuição dos recursos da educação e da saúde pública, contribuindo para que o país retorne ao mapa da fome e da degradação social.

Os países desenvolvidos estão aumentando os investimentos produtivos e incrementando a atuação dos atores públicos, reestruturando as políticas industriais e o aumento dos investimentos em infraestrutura e na formação de capital humano, infelizmente, em terras brasileiras ainda estamos insistindo em discussões imaturas e limitadas entre Estado e Mercado, onde a combinação destes atores é o caminho mais apropriado para o crescimento econômico, a melhoria das condições sociais e a constituição da soberania nacional.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 10/11/2021.

Brasil atravessa convergência de escolhas equivocadas, diz ecóloga

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Para Mercedes Bustamante, ao não controlar o desmatamento nem investir em adaptações às mudanças climáticas, país coloca economia em risco

Folha de São Paulo, 07/11/2021

Cristiane Fontes
Marcelo Leite

OXFORD E SÃO PAULO
Mercedes Bustamante, uma das maiores autoridades brasileiras em ecologia e desmatamento do cerrado e da floresta amazônica, está alarmada com a perda de credibilidade do governo brasileiro na COP 26 cúpula sobre a crise do clima que se realiza em Glasgow, Escócia. Não o bastante, contudo, para perder o otimismo.

Uma entre mais de 200 autores de relatório do Painel Científico sobre a Amazônia, ela aponta como prioridades zerar o desmatamento, legal ou ilegal, “sem adjetivos”.

Ela também vê como essencial organizar de forma inclusiva atividades de bioeconomia, com base na parceria da ciência com o conhecimento tradicional, e aperfeiçoar a regulamentação do acesso a recursos genéticos que de fato atendam tanto à indústria quanto a populações locais.

Para isso, entretanto, seria urgente desfazer a série de escolhas equivocadas do país, alçada a níveis nunca vistos no governo Bolsonaro. “Não se consegue montar uma bioeconomia inclusiva na Amazônia competindo com uma economia ilegal como se tem hoje.”

O relatório do Painel Científico para a Amazônia (sigla SPA, em inglês) foi finalizado para lançamento na COP26. Quais são as principais recomendações do texto? Um dos primeiros pontos importantes é deter o desmatamento. E a gente não coloca um adjetivo aí, desmatamento legal ou ilegal, é deter o desmatamento e o processo de degradação da floresta.

O segundo passo é organizar as atividades sustentáveis na Amazônia. Há hoje uma série de atividades, algumas já ganhando escala, com base na utilização dos recursos biológicos que comporiam a bioeconomia num sentido mais amplo.

Mas existe uma lacuna enorme no que poderia ser feito a partir da integração dos diferentes sistemas do conhecimento: ciência, tecnologia e inovação e conhecimento indígena e tradicional.

O que falta para a construção dessa chamada bioeconomia amazônica? O conceito de bioeconomia deve ser abrangente o suficiente para a gente olhar povos da floresta, recursos terrestres, recursos aquáticos, agricultura familiar e atividades de maior escala.

O Brasil não conseguiu uma implementação satisfatória dos mecanismos que permitem o acesso aos recursos genéticos nem clareza em relação à repartição de benefícios associados ao conhecimento tradicional. Hoje o país não protege adequadamente o conhecimento tradicional, e eu acredito que também não atenda, de forma satisfatória, nem a indústria nem academia.

Outro gargalo para uma bioeconomia sólida e inclusiva é que ela demanda fiscalização e eliminação de atividades ilegais. Políticas que tenham como premissa a floresta em pé, rios saudáveis. Demanda ações claras de que apropriação indevida de terras púbicas, de unidades de conservação, de territórios indígenas não serão toleradas.

Por fim, o investimento em ciência, tecnologia e inovação ainda está muito aquém do necessário. Na Amazônia, a gente descreve uma espécie a cada dois dias, o que indica a enorme lacuna de conhecimento da diversidade.

Além disso, o Brasil enfrenta novamente o problema da fuga de cérebros. Vemos a convergência de uma série de escolhas equivocadas para o país. Acrescentaria ao quadro a questão da mudança do clima. Uma das grandes preocupações do Brasil deveria ser como as mudanças climáticas vão afetar a biodiversidade e o funcionamento dos sistemas naturais, que são nossa vantagem competitiva no mundo.

A gente vem organizando ou desorganizando o sistema com o olhar no retrovisor, para uma economia que não vai existir mais, deixando de perceber onde estão as possibilidades que se desenham rapidamente em função da crise climática. Você não consegue montar uma economia legal na Amazônia competindo com uma economia ilegal como a gente tem hoje.

O que seria mais urgente para a gente reverter a situação atual e assegurar a moratória do desmatamento? Vejo com bons olhos a movimentação dos governadores, das instituições locais, porque elas começam a ocupar o vazio que foi deixado pelo governo federal. Agora, uma boa parte do território amazônico é de responsabilidade de União.

A gente já percebe mercados que se fecham para o Brasil. Esse clima de instabilidade que a gente vive tem consequências econômicas.

Quando falamos de mudança no clima no Brasil, normalmente pensamos na Amazônia, mas o cerrado é segundo maior bioma. Que medidas de proteção são urgentes para a savana brasileira? Os critérios de sustentabilidade que a gente vem discutindo para a Amazônia se aplicam para todos os biomas brasileiros.

A situação do cerrado preocupa bastante porque o avanço do desmatamento se deu de forma muito rápida.

Quando a gente fala que 50% do cerrado já foram convertidos, as pessoas têm essa impressão de que há 50% intactos, mas estão bastante fragmentados e muitos deles em estágio de degradação.

Apesar de o Código Florestal colocar que tem de conservar pelo menos 20% no cerrado, hoje a maior parte do desmatamento não tem autorização de órgãos ambientais. Novamente, existe o problema do cumprimento da lei. Isso impossibilita que você tenha uma gestão desse processo de ocupação, olhando a paisagem e não a propriedade, que é um dos nossos grandes problemas.

O segundo ponto é que nós temos enormes áreas de pastagens, que continuam sendo o uso prioritário da terra no cerrado. Pastagens que estão degradadas, abandonadas, sobretudo na porção mais antiga de ocupação, no centro-sul.

O que seria possível fazer nessas áreas? Muitas delas podem ser utilizadas para a agricultura, segurando o desmatamento na porção norte, ou para restauração, para conectar fragmentos importantes que sejam de conservação da biodiversidade.

O terceiro ponto em relação ao cerrado é a mudança de práticas da agricultura de larga escala. No futuro, uma área extensa de monocultura não vai ter mais lugar, porque ela não se sustenta. E ela só tem lucro se tiver essa ocupação em larga escala.

Essa ocupação em larga escala no Matopiba [Maranhão, Tocantins, Piauí, Bahia] enfrenta um risco climático muito grande. E ele vai se acentuar, se a gente não conseguir manter o limite da temperatura em 1,5ºC, da meta do Acordo de Paris.

Isso começa a inviabilizar a agricultura nessas áreas e significa que elas têm de retornar para o centro-sul. Só que o centro-sul já está ocupado, então a gente vai chegar num dilema de competição por área, se não houver planejamento.

Qual a sua opinião sobre a participação do Brasil na COP26? A gente chega na COP26 com uma reputação bastante assanhada, debilitada.

O governo brasileiro pode levar uma bela proposta, que não está sendo amplamente discutida com a sociedade ou com a academia. As ações são tão contundentes no sentido contrário que uma meta que não tenha a clareza de etapas, como vai ser atingida, tem pouco efeito.

O Brasil está perdendo um tempo precioso. A gente discute muito a questão da redução das emissões dos gases de efeito estufa, sobretudo porque essa emissão vem do desmatamento, mas não vem discutindo adequadamente ações de adaptação, num país em que as camadas sociais mais pobres estão cada vez mais vulneráveis.

RAIO-X
Mercedes Bustamante, 58
Professora de ecologia da Universidade de Brasília desde 1993. Integra a Academia Brasileira de Ciências e a Academia Nacional de Ciência dos EUA. Participou do quinto relatório do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas). Concentra sua pesquisa nas mudanças de uso da terra no Brasil e seus impactos sobre os ecossistemas.

Para muitos jovens, não faz mais sentido correr atrás de um diploma, por César Callegari.

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Explicação para queda no número de candidatos em vestibulares vai além da paralisação das aulas presenciais

César Callegari Sociólogo, ex-secretário de Educação Básica do MEC (2012-13, governo Dilma), ex-secretário municipal da Educação de São Paulo (2013-15, gestão Haddad) e autor de ‘O Fundeb’ (ed. Aquariana)

Folha de São Paulo – 07/11/2021

Uma sensação de desalento ronda a juventude brasileira. Motivos não faltam e causas são muitas. À pandemia, crise econômica, política e de valores, soma-se uma percepção generalizada de que um diploma universitário já não garante muita coisa.

Além das altas taxas de desemprego estrutural que atingem amplos setores da economia, restringindo oportunidades, as organizações são cada vez mais rigorosas ao apurar as reais competências de profissionais candidatos a uma vaga.

São cobrados conhecimentos e habilidades raramente proporcionados pela maioria dos cursos superiores, principalmente os oferecidos por instituições particulares de baixa qualidade.

O resultado vê-se em toda parte: engenheiros, economistas e tantos outros diplomados tentando seu ganha-pão em ocupações precarizadas que nada têm a ver com sua área de formação.

Diante do quadro, muitos jovens começam a questionar se vale a pena tanto esforço por um diploma. Isso pode explicar, em parte, a queda acentuada de inscrições para vestibulares e para o Enem, bem como a alta evasão registrada em cursos universitários.

Claro que os impactos da pandemia sobre o sistema educacional influenciam, atingindo principalmente os jovens em situação de maior vulnerabilidade socioeconômica.

Os quase dois anos de paralisação das atividades presenciais nas escolas e a dificuldade de acesso aos meios remotos de educação fazem com que muitos estudantes se sintam despreparados para enfrentar o desafio das provas.

Mas isso não explica tudo.

Falta ao Brasil uma política para a juventude. A começar por uma verdadeira reforma do ensino médio que dê sentido e significado para a educação superior. As recentes iniciativas nessa direção não passam de um arremedo de reforma.

Muita propaganda, nada aconteceu e pode piorar. Acenam com opções vocacionais que, na prática, não serão oferecidas, face à pobreza de condições da maioria das escolas. Criam uma ilusão de profissionalização onde não há laboratórios, internet, professores capacitados. Reduzem os direitos de aprendizagem ao que couber em 1.800 horas, limitando as possibilidades de uma formação crítica e criativa tão demandada hoje.

Assim, por se tratar de pura miragem, geram maior frustração, especialmente entre os alunos de escolas públicas desconfiados de que o ensino superior não vai resolver os déficits acumulados no nível básico. Isso precisa mudar.

Todos sabem que o futuro de um país depende de seus jovens. E as juventudes necessitam de um horizonte que hoje o Brasil lhes nega.

É possível e urgente construí-lo com educação básica e superior de qualidade, sustentadas por investimentos vigorosos e continuados que garantam acesso e permanência para todos. Com uma visão ousada e inclusiva de construção de futuro. Com políticas de ingresso no mundo do trabalho que combatam frontalmente a precarização e que se articulem às necessidades estratégicas do país.

O interesse pela educação superior está associado a um projeto de nação que, entretanto, ainda nos falta. Que seja inclusiva, democrática, desenvolvida e socialmente justa.

Educador, sociólogo e presidente do Instituto Brasileiro de Sociologia Aplicada


Democracias entre vidas, mortos e caminhos tortos, por Mônica Sodré.

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Nossa crise vai além da corrosão institucional; banalizamos a violência

Mônica Sodré Cientista política e diretora executiva da Rede de Ação Política pela Sustentabilidade (Raps)

Folha de São Paulo, 06/11/2021

São tempos difíceis para as democracias em vários lugares do mundo. A ascensão de governos autoritários e populistas, aqui e lá fora, é atribuída à capacidade de algumas figuras capturarem o mal-estar causado pela falha das democracias em produzir prosperidade e socialização coletiva dos ganhos econômicos, pela atual desestruturação do mundo do trabalho e pelo sistemático enfraquecimento dos Estados nacionais e da representação política e dos partidos. São lideranças que se apoiam na ideia de que seriam capazes de mudar o estado das coisas. Trata-se de narrativa, mas com alto poder de convencimento.

No Brasil, a discussão sobre democracia costuma estar frequentemente focada nos aspectos eleitorais. Por razões óbvias, esse tema ganhou destaque em virtude das declarações e ações do atual chefe do executivo federal, para quem os ataques às instituições já se tornaram prática permanente. Se a crise passa (e certamente passa) pelas nossas instituições e elementos eleitorais, não se resume, no entanto, a eles. Aqui, a noção de equidade que a lei institui não veio acompanhada de condições reais para a participação dos cidadãos na vida política e cívica, ou de possibilidade em interferir nos rumos do país —exceto, na maioria das vezes, no momento do voto.

Nossa democracia está em crise porque banalizamos a violência, característica constituinte do nosso povo, que foi o último do mundo a abolir a escravidão. Está em crise porque normalizamos que existam vidas “não merecedoras de luto, nem proteção”. Porque aceitamos que mais de 75% das mortes violentas sejam de pessoas negras. Porque temos mais de 14 milhões de pessoas desempregadas. Porque metade da população vive com apenas R$ 400 por mês. Porque cabe a nós, mulheres, boa parte dos trabalhos não remunerados e salários de apenas dois terços do rendimento dos homens.

Porque hoje mais de 117 milhões de brasileiros —mais de 50% daqueles que aqui nasceram e vivem— comem menos, não comem ou não sabem se vão comer.

Participar da vida política acaba se tornando um luxo, incompatível com as preocupações de quem hoje não sabe se vai jantar ou se vai sobreviver à próxima batida policial.

Olhar a nossa democracia exclusivamente a partir da ótica das eleições e das instituições é escolher fechar os olhos para o tamanho do problema sobre o qual estamos sentados há muitos anos, e que continuará diante de nós: estamos destruindo a base material de nossa existência. As desigualdades históricas, agora agravadas pela pandemia deixarão sequelas por muitos anos, da fome à sobrecarga de um sistema de saúde que terá que lidar com as sequelas dos sobreviventes, aos órfãos e ao atraso da aprendizagem de nossas crianças.

Nossa incapacidade de tornar o Estado elemento corretor das desigualdades e de prover proteção a quem mais precisa nos remete aos Buarque de Holanda —Sérgio, o pai, e Chico, o filho. Não só revela que há, sim, pecados ao sul do Equador como demanda um imenso esforço para não reforçarmos o argumento de “Raízes do Brasil” de que a democracia, do lado de cá, sempre foi um lamentável mal-entendido.

Precisamos de um novo pacto “pelo social”. Educar nossas crianças e adolescentes para um novo mundo, colocarmos a primeira infância como prioridade, fortalecer o nosso sistema de saúde, revisar o nosso sistema tributário que pesa desproporcionalmente sobre os mais pobres. Precisamos mudar a maneira com que nos inserimos no conjunto das nações, que nos relacionamos com o meio ambiente e com a finitude dos nossos recursos naturais, com a ciência, com o valor do diálogo para a reconstrução da confiança na política, com as periferias, com os povos indígenas e as comunidades tradicionais.

Precisamos, com urgência, realizar a transição para uma economia de baixo carbono, da qual depende a nossa sobrevivência como espécie, sem que os custos disso recaiam, novamente e como sempre, nos mais vulneráveis.

A crise da nossa democracia vai muito além da sua corrosão institucional e dos elementos eleitorais. É a desigualdade, além de marca constituidora do nosso povo, o que impede a sustentação e fragiliza a estabilidade da democracia inteira.

Como já dizia Caetano: “Gente é pra brilhar. Não pra morrer de fome”.

Como fabricar uma crise e ganhar muito dinheiro com ela, por Paulo Feldman.

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Conversa de banqueiro com presidente do BC indica quem serão os vencedores

Paulo Feldman Professor de economia da USP e ex-presidente da Eletropaulo (1995-96, governo Covas), foi diretor e presidente no Brasil de multinacionais como Microsoft, Ernst & Young e Sharp

Folha de São Paulo, 04/11/2021

Há três meses se discute o Orçamento do governo federal para 2022. Entre o R$ 1,7 trilhão que o governo terá para gastar já se incluiu de tudo, como por exemplo alguns bilhões para os deputados atenderem seus redutos eleitorais ou o aumento salarial dado aos militares. Até mesmo a quitação da dívida gigantesca com os precatórios foi facilmente absorvida.

No entanto, quando o governo apresentou o Auxílio Brasil, que acarretava gasto adicional de menos de 2,5% do total que terá em 2022, uma crise apareceu. O mercado mobilizou-se com veemência, assessores do ministro da Economia, Paulo Guedes, pediram demissão e a mídia não tem assunto mais importante nos últimos dias. Inúmeros editoriais foram publicados, expondo o desastre que seria o rompimento do teto. Até o ex-presidente Michel Temer (MDB), o inventor do teto, escreveu um artigo nesta Folha (“Teto é tudo”, 24/10) e mostrou-se apavorado com as consequências de se romper o limite da sua cria.

O que ninguém comentou é que, neste momento, 20 milhões de brasileiros não tem o que comer, e os R$ 400 que receberiam mensalmente talvez atenuassem sua fome. Na verdade, 55% da população vivem sob insegurança alimentar e não sabem se conseguirão comprar os mantimentos mínimos para sobreviver nos próximos dias. O fato é que agora temos que colocar quase R$ 6 para comprar um dólar e, dessa forma, a inflação virá com força nas próximas semanas. Isso sim será inevitável, pois quase tudo o que é produto industrial manufaturado é importado no nosso país. Lembrando que, no começo da pandemia, ficou evidente que nem máscaras já não sabíamos mais fabricar.

O mercado —leia-se a Faria Lima — argumenta que o risco Brasil subiu muito e não teremos mais investimentos vindos de fora. Pelo contrário: os investidores estrangeiros estão retirando seus dólares e, por isso, o preço da moeda sobe. Dizem também que sem os investimentos entraremos em recessão, e a previsão para 2022, de repente, caiu para um crescimento abaixo de zero.

Com inflação e mais recessão, chegaremos à chamada estagflação. Os grandes especialistas que trabalham na Faria Lima, com sua brilhante criatividade, não hesitam em recomendar: temos que subir as taxas de juros, e a Selic precisa ser superior a 10% ao ano. Provavelmente é isso que vai acontecer. Mas ouso perguntar: com a subida da taxa de juros, quem será o grande vencedor?

Sim, claro, esse mesmo mercado formado por bancos, rentistas e investidores que, felizmente para eles, estão fora da insegurança alimentar.

Aliás, recentemente vazou uma gravação para a imprensa e ficamos sabendo que o presidente de um dos maiores bancos brasileiros costuma conversar com o presidente do Banco Central para falar, entre outras coisas, de taxas de juros.

Deu para entender quem ganha com as crises fabricadas?

A Amazônia é a nossa salvação, por Ilona Szabó de Carvalho.

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Sem mudar modelo de desenvolvimento e padrões destrutivos de uso da terra, o sofrimento humano e as perdas econômicas que vimos até aqui serão só o começo

Ilona Szabó de Carvalho Empreendedora cívica, mestre em estudos internacionais pela Universidade de Uppsala (Suécia). É autora de “Segurança Pública para Virar o Jogo”.

Folha de São Paulo, 03/11/2021.

Você já parou para pensar que, da perspectiva climática, 2021 é provavelmente o melhor ano dos próximos cem? No Brasil e mundo afora, eventos climáticos extremos —como secas, ondas de calor, tempestades de poeira, degelos, inundações, entre outros, já são realidade. A má notícia é que, de acordo com os cientistas do clima, se não mudarmos o modelo de desenvolvimento baseado no uso de combustíveis fósseis e em padrões destrutivos de uso da terra, o sofrimento humano e as perdas econômicas que vimos até aqui são só o começo.

Desde domingo (31), líderes mundiais discutem como frear as mudanças climáticas na Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas – COP 26, em Glasgow, na Escócia. Nesse encontro, cada um dos países signatários da Convenção de 1992 e do Acordo de Paris de 2015 deve apresentar sua contribuição nacional para limitar o aumento da temperatura da terra em até 1,5° C acima do registrado antes da Revolução Industrial, e assim garantir a sobrevivência de nossa espécie.

Em suma, temos que aumentar a ambição para reduzir, até 2030, mais de 50% das emissões de gases do efeito estufa que causam esse aquecimento, e zerá-las até 2050. Para o Brasil, salvar a Amazônia —zerando o desmatamento—, é a única forma de cumprir os compromissos assumidos no Acordo de Paris e, por consequência, garantir o bem-estar das próximas gerações. E, por hora, as promessas feitas e os compromissos já firmados em Glasgow estão aquém das metas necessárias, ou ainda vagos demais.

A floresta amazônica —maior floresta tropical do planeta— abarca oito países sul-americanos e a Guiana Francesa, 20% da água fresca e cerca de 10% da biodiversidade. Temos a boa fortuna de abrigar a maior parte dessa inestimável riqueza em nosso território. Porém, quase 20% da floresta já foi destruída, o que faz com que a Amazônia esteja se aproximando de um ponto de inflexão que pode resultar em um processo de savanização irreversível.

Motivações econômicas advindas da especulação com terras que alimentam a grilagem e de uma crescente demanda nacional e global por carne bovina, soja, ouro e outras commodities, têm levado ao aumento desenfreado do desmatamento. Mas hoje não é necessário desmatar para produzir. Há tanto métodos de produção sustentáveis como áreas já desmatadas em quantidade suficiente para garantir a segurança alimentar do Brasil e de outras partes do mundo.

O que se observa é que parte importante dessas cadeias produtivas se alimentam de crimes ambientais, como o desmatamento e o garimpo ilegal, e a grilagem de terras. De acordo com o MapBiomas, quase a totalidade do desmatamento verificado na Amazônia e em outros biomas brasileiros em 2020 tem indício de ilegalidade.

Para além dos danos ao meio ambiente, em geral crimes ambientais também têm relação com outros crimes como tráfico de drogas, de armas e de pessoas e causam graves consequências sociais como corrupção, trabalho escravo e violência contra povos originários e defensores da floresta. Precisamos dar um basta e zerar o desmatamento já.

A boa notícia é que há um potencial extraordinário de riqueza na preservação da biodiversidade que a floresta oferece. E a melhor maneira de proteger esse recurso é estimular o surgimento de uma economia sustentável de base florestal que contemple a inclusão das populações originárias e os centros urbanos da Amazônia.

Zerar o desmatamento na Amazônia, e garantir a mudança de um modelo de desenvolvimento predatório para um regenerativo, dependerá dos esforços combinados dos governos subnacionais e federal, do setor privado, da sociedade civil e da cooperação regional e internacional. Mas, sobretudo, salvar a floresta passa pela genuína compreensão de que ela é a nossa única salvação.

Moratória para as dívidas das famílias, não para os precatórios, por Carlos Vainer.

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Credores privilegiados nunca deixam de receber a ‘bolsa banqueiro’

Folha de São Paulo, 03/11/2021

Carlos Vainer Professor titular do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da UFRJ

Está nos dicionários: prorrogação, adiamento ou parcelamento de uma dívida se chama moratória, seja decretada unilateralmente ou de acordo entre credores e devedores. Logo, a PEC dos precatórios tem nome: moratória.

Esta moratória pública viria se juntar a uma infinidade de dívidas não honradas pelo Estado brasileiro —em primeiro lugar, a dívida social, que torna fictícios os direitos constitucionais à saúde, educação, assistência social, moradia, meio ambiente equilibrado; em segundo lugar, a dívida com as universidades, a ciência e a cultura. As moratórias dessas dívidas foram decretadas unilateralmente pelos governos.

O calote social tem valores incalculáveis, mas suas consequências são mensuráveis: avanço da miséria, 100 milhões de brasileiros em situação de insegurança alimentar, redução da expectativa de vida, recuo da vacinação infantil, degradação da escola pública…

O calote universitário, científico, tecnológico e cultural se expressa na degradação de nossos laboratórios e universidades, no sucateamento de nossos equipamentos culturais e na desmontagem de políticas de apoio aos agentes que promovem a cultura enquanto bem público.

Há, porém, uma dívida privilegiada, a única que os analistas designam pomposa e respeitosamente de dívida pública, sempre honrada de maneira escrupulosa: aquela de que são credores os detentores de Títulos do Tesouro. Apenas em 2020, o montante executado com os juros da dívida pública federal foi de R$ 347 bilhões (R$ 515 bilhões, segundo cálculos da Auditoria Cidadã da Dívida), quase 10% (ou mais) do dispêndio total da União (R$ 3,535 trilhões).

Comparados a estes valores, tanto os R$ 600 milhões surrupiados do CNPq quanto os R$ 90 bilhões dos precatórios são ninharia.

Quem são estes privilegiados credores que nunca deixam de receber? Mais de 50% são instituições financeiras, fundos de investimento e seguradoras; 25% são fundos de previdência e 12% são estrangeiros. É a “bolsa banqueiro”.

Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor, realizada pela Confederação Nacional do Comércio, informa o que acontece do outro lado da sociedade: em setembro de 2021, foi alcançado o recorde de famílias endividadas.

São hoje 74%. O número de famílias com pagamentos atrasados atingiu 25% do total. A situação é pior para as famílias mais pobres, com renda de até 10 salários mínimos: são 75% as endividadas e 28% as inadimplentes.

Enfrentando desemprego e subemprego, redução da renda e inflação crescente, muitas famílias comprometem 30% de tudo o que ganham com o pagamento de dívidas.

A decantada democratização dos cartões de crédito, do crédito ao consumidor e do crédito consignado mostra sua face perversa: a submissão de cidadãos e cidadãs a uma verdadeira escravidão por dívida, já que trabalham para pagar dívidas. E nem interessa aos credores que paguem a dívida, mas que se endividem e paguem os juros —pelo resto de suas vidas.

No momento em que a dupla. Guedes-Bolsonaro vai ao Congresso para validar a moratória dos precatórios, é chegada a hora de que este mesmo Congresso alivie a carga da dívida que submete dezenas de milhões de brasileiros e brasileiras.

Uma medida bastante simples seria a moratória, pelo prazo de 24 meses, de todas as dívidas inferiores a R$ 50 mil e, no caso das dívidas contraídas para aquisição de imóvel, de todas aquelas inferiores a R$ 150 mil. Seria um ônus pequeno para aqueles rentistas que acumulam muitas dezenas de milhões de reais com juros da dívida pública. Por outro lado, teria impacto muito positivo sobre as condições de vida de milhões, e, como efeito derivado, provocaria aumento da demanda, favorecendo a retomada da economia produtiva em detrimento da economia dos rentistas financeiros. Nada mais justo.

Pandemia, Desigualdade e Concentração de Renda: Consideração sobre Brasil e o Mundo Contemporâneo

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O artigo foi escrito pelo professor Ary Ramos da Silva Júnior, em quatro mãos com a professora Deise Marques da Silva Ramos, foi escrito para o segundo volume do livro “Tecnologias Aplicadas ao Agronegócio” (no prelo), organizado pelos professores da Faculdade de Tecnologia de Rio Preto.