Empresa precisa entender a transformação digital para seguir competitiva

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Para professor da FGV, planejamento evita atrito na experiência online do consumidor

FLÁVIO G. PINHO

FOLHA DE SÃO PAULO – 01/05/2022

Foi na base do susto que o varejo reagiu à pandemia varejo reagiu à pandemia —diante de uma realidade inédita, apostar na tecnologia foi o caminho mais lógico para chegar aos clientes que estavam trancados em casa. E o setor ficou bem na briga no país, na avaliação de Maurício Morgado, coordenador do Centro de Excelência em Varejo da FGV-Eaesp (Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas).

Para ele, porém, ainda é preciso investir em planejamento para evitar atritos na experiência do consumidor nas operações digitais.

Quais mudanças a pandemia provocou no varejo? A transformação digital foi acelerada. De forma muito apressada, percorremos cinco anos em alguns meses. Empresas que já tinham operações digitais lançaram novas ferramentas, enquanto aquelas que testavam tecnologias de maneira modesta foram obrigadas a correr para acompanhar, nem que fosse implantando vendas pelo WhatsApp. Todos aproveitaram que o consumidor brasileiro, que não embarcava tanto nessas tecnologias, se acostumou a usá-las por necessidade —e duvido que volte atrás.

Até 2019, as redes brasileiras estavam atrasadas em relação à transformação digital no resto do mundo?
Estávamos ligeiramente atrás, mas acompanhando bem. Estive em janeiro na NRF 2022 [considerado o maior encontro sobre varejo do mundo], em Nova York, e notei que o Brasil está bem adiantado. Quem quiser continuar no jogo, hoje, precisa entender o consumidor e o processo de transformação digital.

A estratégia de múltiplos canais já é realidade no Brasil?
Algumas empresas já trabalham isso bem, pois reconhecem que o consumidor é único, independentemente do canal de compra. O maior desafio para ser omnichannel não é o investimento em tecnologia, que está cada vez mais barata, mas a logística da estrutura física.

O futuro é só tecnológico ou há espaço para a humanização?
Veja o exemplo da Amazon: eles não têm um 0800 para reclamações. Está tudo tão planejado que, pelos botões, você chega sozinho à solução. Aqui, as operações digitais não são tão bem desenhadas. Quando dá problema, não é tão claro como resolver, e a devolução ou a troca não são tarefas simples. Falta planejamento para evitar atritos com o consumidor.

O metaverso vai mesmo mudar o varejo? Por enquanto, essa não é uma realidade, nem no Brasil nem no mundo. Para funcionar como preveem, todo mundo precisaria ter óculos de realidade virtual. Mas já é possível fazer coisas legais de realidade aumentada, principalmente empresas que têm produtos digitalizáveis. Se essa tecnologia se estabelecer, prevejo impacto similar ao que a internet provocou lá em 1995.

Enquanto elite compra jatinhos, maioria vive tragédia sob Bolsonaro, por Itamar Vieira Júnior.

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Drama social do governo é percebido de maneira distinta por nossa sociedade, profundamente desigual

Itamar Vieira Júnior, Geógrafo e escritor, autor de “Torto Arado”

Folha de São Paulo, 29/09/2022.

A tragédia do governo Bolsonaro é percebida de maneira distinta por nossa sociedade, profundamente desigual.

Para milionários e bilionários, corre tudo bem. No momento, o único problema são as filas para a compre de jatinhos. O Brasil é o segundo país com a maior frota de aeronaves particulares do mundo, atrás apenas dos EUA. A espera por esse tipo de veículo pode adentrar o ano de 2025. Entre o início de 2021 e o início de 2022, a frota teve 8,5% de aumento.

Certamente, essa elite econômica que continua a apoiar o atual governo concorda com o ministro Paulo Guedes com a ideia de que, agora sim, o país está no eixo. Antes era “empregada doméstica viajando para a Disney” e filho de porteiro querendo estudar na universidade.

No país que não é o da fantasia do senhor ministro, há um grande contingente de desempregados, pessoas vivendo em situação de insegurança alimentar, sem direito à terra e à moradia digna.

Durante os mais de três anos do atual governo, o desmonte das políticas sociais foi permanente e efetivo. Programas de habitação popular, políticas de demarcação de terras indígenas, criação de assentamentos e regularização de territórios quilombolas foram praticamente abandonados ou reduzidos a quase nada.

Basta pesquisar por informações nos órgãos responsáveis pelas políticas públicas. Segundo o Relatório de Conflitos no Campo, divulgado pela Comissão Pastoral da Terra, o ano de 2021 foi marcado pelo aumento do já alarmante índice de violência no campo: foram 109 mortes decorrentes de conflitos fundiários, alta de mais de 1.000%.

Das 109 mortes, 101 foram no Território Yanomami, graças às ações de garimpeiros que contam com incentivo do governo para explorar em áreas antes proibidas. Os yanomamis pedem socorro. E nós, o que temos feito?

Sem contar a catástrofe ambiental e as denúncias de corrupção envolvendo a pasta da Educação e da Saúde. O ex-ministro da Educação, o pastor Milton Ribeiros, parece nem sequer saber manusear uma arma.

Aliás, facilitar o acesso da população às armas foi política de primeira do atual governo. Glorificar a violência foi uma das motivações do cristianismo ao longo da história, e o ex-ministro parece não ter acompanhado nenhum dos avanços civilizatórios dos últimos séculos, incluindo o da educação, mas este é um assunto para outro momento.

E como não recordar os mais de dois anos de pandemia e todo o ultraje com que o presidente e sua claque trataram o mais grave evento sanitário em um século? A permanente sabotagem às medidas sanitárias e o imperdoável atraso na vacinação da população nos deixou o saldo de mais de 660 mil mortos. Fez do Brasil um dos países com a mais alta taxa de letalidade.

A vacinação, ainda que tardia, e a própria evolução do vírus, aparentemente menos letal, foram capazes de nos dar novas perspectivas, mas a devastação da pandemia é muito recente e os cemitérios continuam apinhados de corpos que eram mais que corpos, eram pessoas. Essas pessoas eram mais que números, para as evidências da má gestão caírem no mais absoluto esquecimento.

Muitos estão fatigados com tudo o que aconteceu, do luto à crise econômica, passando pelos ataques à democracia. É natural que não queiram mais ler ou falar sobre o tema. Esse esquecimento se deve em grande medida ao procurador-geral da República e sua inércia em nos dar respostas sobre os indícios levantados pela CPI da Covid.

Tudo isso reverbera na impressionante recuperação dos índices de aprovação do governo. Assusta imaginar que o presidente da República não está sozinho: cerca de 25% da população, segundo as últimas pesquisas, apoia suas decisões durante o mandato.

Independentemente da continuidade do atual governo ou não, teremos que conviver com a indiferença dos que apoiam esse projeto político de segregação e violência. As eleições na França, nos EUA e em várias partes do mundo demonstram claramente que a direita liberal foi substituída por um projeto extremista.

A insatisfação de grande parte da população não foi levada a sério por liberais e progressistas, e a extrema direita ganhou relevância ao “apontar” supostos culpados pelos dramas sociais urgentes, ainda que não tenha a capacidade de oferecer respostas.

É preciso refletir sobre as necessidades do mundo contemporâneo e propor soluções para os desafios de nosso tempo, que não são os mesmos de duas décadas atrás. Mas, antes, é necessário compreender as engrenagens que nos levaram a este estado trágico. Para uns, o céu engarrafado de jatinhos; para a maioria, restará pedra sobre pedra.

Ecossistema econômico

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Num momento marcado por grandes alterações estruturais da sociedade contemporânea, os agentes econômicos, sociais e políticos devem buscar novos espaços de acumulação e de reorganização produtiva, setores fundamentais da antiga estrutura econômica perderam espaço na nova sociedade, empregos sólidos e consistentes perderam a centralidade e, as perspectivas centradas na linearidade foram transformadas e, com isso, percebemos a necessidade da reconstrução dos paradigmas, renovando as estratégias e desenvolvendo modelos de integração e planejamento entre os atores público e privado.

Os desafios são imensos e não podemos postergar as escolhas do mundo do negócio, a sociedade está se movimentando rapidamente, os setores econômicos devem se reinventar numa sociedade marcada por grandes incertezas e instabilidades, com isso, percebemos que as comunidades estão alterando movimentos e comportamentos. Neste momento, precisamos unir esforços para compreender os desafios e auxiliarmos na construção de um verdadeiro projeto nacional para compreender o que queremos nas próximas décadas, sem entendermos os desafios da sociedade contemporânea, amargaremos a perpetuação das iniquidades sociais que caracterizam a sociedade nacional.

Neste ambiente, percebemos o crescimento de conceitos caros para o mundo dos negócios como empreendedorismo, liderança e inovação. Estes conceitos estão atrelados ao economista austríaco Joseph Schumpeter que destacou a importância das inovações como instrumento da chamada destruição criadora, retratando novas ideias e pensamentos com potencial de impulsionar o capitalismo, dinamizando os setores produtivos, criando novas formas de acumulação, novos modelos de negócio, que movimentam os mercados e compreendem as novas formas de comportamento. Neste momento, de profundas transformações, surgem conceitos como o de Economia Verde, novas formas de energias alternativas, além de conceitos ligados a economia circular e da sustentabilidade que exigem a grande capacidade de reinventar a sociedade, modificando empresas, indivíduos e os governos nacionais.

O mundo contemporâneo exige a construção de um ecossistema econômico dinâmico e empreendedor, que começa nos bancos escolares, desde as escolas fundamentais até o ensino superior, exigindo das faculdades e universidades padrões de qualidade constante, estimulando os investimentos públicos e privados, fortalecendo os centros de pesquisa e de inovação, além de ambientes centrados na cooperação e no compartilhamento de teorias, pensamentos e discussões científicas e tecnológicas.

É fundamental a construção de um ambiente macroeconômico propício para o crescimento da produção, com taxas de juros reduzidas para impulsionarem a produção e a geração de emprego e, ao mesmo tempo, desestimulando a especulação financeira que predomina na sociedade brasileira, além de reduzir a burocracia, estimulando a competição externa e construindo novos acordos comerciais com outras nações e grupos de países. Outro ponto central para a construção de um ecossistema econômico é a garantia de taxas de câmbio competitivas para fortalecer o crescimento produtivo, evitando a instabilidade cambial que garante grandes ganhos para os especuladores em detrimento da produção, do emprego e da renda da população.

O discurso dominante estimula o empreendedorismo e a inovação como forma de desenvolvimento econômico, acreditando que o processo de crescimento motivado pelo setor privado tende a melhorar as condições sociais da população. Esta visão me parece bastante limitada e inconsistente, sem uma visão global e planejada pelos agentes econômicos público e privado, como acontece nas economias mais desenvolvidas do mundo, o crescimento econômico tende a garantir grandes ganhos para uma pequena parte da comunidade, garantindo recursos financeiros ilimitados, isenções fiscais e tributárias crescentes em detrimento da perpetuação da pobreza, da indignidade e da exclusão social. A construção de um ambiente centrado num ecossistema econômico integrado e diversificado é parte central para encontrarmos o tão sonhado desenvolvimento econômico.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 27/04/2022.

Como o aumento dos gastos militares impacta a economia global

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Investimento excessivo em defesa pode impactar áreas fundamentais, como a educação e saúde, e comprometer crescimento econômico

The Economist, O Estado de São Paulo – 23/04/2022

Após o início da guerra na Ucrânia os orçamentos militares em todo o mundo estão prestes a aumentar. Isso é mais perceptível na Europa, onde a ameaça de um ataque russo parece maior. Alemanha, Itália e Noruega, entre outros, já decidiram gastar mais com a defesa. Estados Unidos e China, os países com as maiores despesas militares do mundo, também estão aumentando suas alocações.

A pressão sobre os países menores para fazerem o mesmo parece inevitável. Quais são as consequências econômicas desse impulso? Quando os governos gastam mais com soldados e armas, ficam com menos disponível para outras despesas. Uma suposição comum, portanto, é que os gastos extras com exércitos são prejudiciais ao crescimento e ao desenvolvimento. Mas a relação não é tão direta. Em alguns casos, maiores orçamentos para a defesa podem, na verdade, render vantagens econômicas consideráveis.

A lição de que há um conflito entre as despesas com o exército e, digamos, estradas ou hospitais é internalizada desde cedo pelos estudantes de economia. O exemplo clássico para demonstrar o conceito de custos de oportunidade é armas versus manteiga: quanto mais você produz de um, menos pode produzir do outro. Em qualquer ano, esse exemplo simples permanece verdadeiro. Os governos têm orçamentos finitos que precisam ser gastos em diferentes áreas.

Consequentemente, é fácil ver como os gastos com a defesa, levados ao extremo, podem ser corrosivos para uma economia. Se um governo repassa menos dinheiro para a educação a fim de poder comprar armas novinhas em folha, o impacto de longo prazo na produtividade e, em última análise, no crescimento, seria ameaçador. Alguns economistas acham que os EUA estão se aproximando dessa zona de perigo.

Riscos
A RAND Corporation, influente think-tank apoiado pela Força Aérea americana e que não é conhecido exatamente como um grupo pacifista, publicou um relatório em 2021 expondo dois riscos.

Primeiro, quando o governo aloca dinheiro para a defesa em detrimento da infraestrutura, isso pode prejudicar as perspectivas de crescimento de longo prazo, já que os EUA têm uma necessidade urgente de melhores estradas, portos, entre outras coisas. Em segundo lugar, as despesas com a defesa contribuem para a pressão sobre a dívida pública.

Em ambos os casos, concluem os analistas, qualquer coisa que desgaste a força da economia americana acabará por prejudicar as forças armadas.

Talvez exista algo objetivo para esses conflitos de escolhas no orçamento serem prejudiciais à economia nos níveis dos EUA. Na última década, o orçamento militar do país foi em média superior a 4% do PIB, o segundo maior do grupo de países ricos da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

Mas uma complicação surge ao examinar as tendências ao longo do tempo. O país da OCDE que mais gasta com a defesa, cerca de 6% do PIB, é Israel. Ele também costuma apresentar uma das economias com crescimento mais rápido no grupo.

Em contrapartida, o Japão é um dos países da entidade com menor parcela do PIB destinada a gastos militares e tem um dos crescimentos mais lentos.

Na verdade, é quase impossível identificar um padrão nos dados: também há países como a Irlanda, cujos orçamentos militares são semelhantes ao do Japão e têm registros de crescimento semelhantes ao de Israel. Uma análise retroativa básica revela que não há relação consistente entre o crescimento do PIB e as despesas militares para os
38 países da OCDE.

Um conjunto de pesquisas em expansão chegou a uma conclusão semelhante, embora com diferenças sutis. Em um artigo de revisão bibliográfica da Universidade Monash publicado em 2014, Sefa Awaworyi Churchill e Siew Ling Yew analisaram 42 estudos diferentes. Os efeitos são geralmente muito pequenos, mas eles encontraram duas categorias distintas: as despesas militares em países mais pobres costumam ser prejudiciais ao crescimento, enquanto em países mais ricos é mais provável que sejam benéficas.

Os pesquisadores sugerem que uma possível razão para isso é a governança mais fraca nos países em desenvolvimento; um grande orçamento militar é um alvo tentador para autoridades corruptas. Outra possibilidade está relacionada com o exemplo de arma versus manteiga. Os possíveis retornos dos investimentos civis, da saúde à educação, são tão grandes nos países pobres que os gastos militares têm um custo de oportunidade particularmente alto. Em países ricos com boas escolas e hospitais, os custos de oportunidade provavelmente são menores.

Uma maneira pela qual os gastos com a defesa talvez impulsionem a economia é como um programa de empregos. Se as forças armadas fossem uma empresa, seriam o maior empregador dos EUA, com 2 milhões de trabalhadores (contando profissionais na ativa e civis), superando o Walmart e a Amazon. Entretanto, seria um esquema de empregos extremamente caro, custando aproximadamente US$ 400 mil por funcionário anualmente.

Os gastos com a defesa talvez gerem melhores retornos como uma forma de política industrial não declarada. Em artigo publicado no ano passado, Enrico Moretti, da Universidade da Califórnia, em Berkeley, e dois colegas analisaram as verbas governamentais para pesquisa e desenvolvimento, prestando atenção nas despesas com a defesa, dos países da OCDE. Em média, eles descobriram que um aumento de 10% nas verbas do governo para pesquisa e desenvolvimento leva a um aumento de 5% do financiamento privado para pesquisa e desenvolvimento na empresa ou setor alvo.

Além disso, há efeitos indiretos para a produtividade. Se França e Alemanha aumentassem suas despesas com a defesa para quase o mesmo nível dos EUA, Moretti calcula que as taxas de crescimento de produtividade desses países seriam um pouco maiores como consequência.

Dividendos de dissuasão
Uma objeção óbvia é que o governo poderia alcançar os mesmos resultados apoiando a pesquisa e o desenvolvimento em geral, sem injetar dinheiro nas forças armadas. Do ponto de vista econômico isso talvez seja verdade. Mas há uma limitação política – isto é, como reunir apoio para pesquisas científicas que podem falhar. O financiamento público à defesa é menos suscetível a variações de humor. Sem ter que se preocupar com sua próxima solicitação de subsídio, as forças armadas dos EUA não têm hesitado em produzir inovações em série, desde a fita adesiva à Internet, sem as quais quase não seria possível de se imaginar a vida moderna.

Por mais importante que seja identificar o impacto dos gastos militares no crescimento ou na inovação, tais práticas correm o risco de ignorar o contexto mais amplo, conforme demonstrado pela invasão da Ucrânia pela Rússia.

Um elemento fundamental para qualquer economia bem-sucedida é ter paz e estabilidade, dando às empresas a confiança para investir e às pessoas o espaço para prosperar. Os livros didáticos talvez falem de armas ou manteiga. Mas em um mundo abalado por forças revanchistas, a verdade é que tanto armas como manteiga são necessárias. Uma defesa forte é, lamentavelmente, uma necessidade para uma economia forte. / TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA

Guerra dos brancos aumenta ainda mais a fome dos pretos, por Vinícius T. Freire.

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ONU quer US$ 43 bi para evitar fome e mortes; Musk quer dar US$ 46 bi no Twitter

Vinícius Torres Freire, Jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administração pública pela Universidade Harvard (EUA).

Folha de São Paulo, 23/04/2022

A ONU diz que precisa de US$ 43 bilhões para dar de comer ou proteger de violências 194 milhões de pessoas, ora sob ameaça imediata de perder a vida. É “ajuda humanitária” de urgência. No total, 296 milhões estão sob risco terminal, diz a ONU. Quase 9% da humanidade passa fome braba.

Na semana passada, Elon Musk disse que teria juntado US$ 46 bilhões para comprar o Twitter.

A guerra na Ucrânia aumentou o risco de “agitação social” (“social unrest”), “especialmente preocupante” em “mercados emergentes” e “economias em desenvolvimento” com pouco dinheiro público para gastar e muito dependentes de importação de energia e alimentos, agora mais inflacionados. É o que diz um trecho pouco citado do relatório do FMI que acaba de sair, o “Perspectiva da Economia Mundial”.

“Se você acha que agora é o inferno na Terra, se prepare. Se a gente não ligar para o Norte da África, o Norte da África vai para a Europa. Se a gente não ligar para o Oriente Médio, o Oriente Médio vai para a Europa”. É o que disse David Beasley em entrevista ao site Político, em março —ele é o diretor-executivo do Programa Mundial de Alimentos da ONU.

Não são, claro, opiniões de esquerda, embora pessoas sob efeito de drogas ideológicas bolsonaristas achem que a ONU é “comunista”. Beasley é um político do Partido Republicano dos EUA, ex-governador da Carolina do Sul. O FMI dispensa apresentações, como diz o clichê.

A situação não deve melhorar tão cedo, prevê também o FMI. A inflação geral pode diminuir um pouco em 2023, mas não a da comida. Desde a explosão de preços que começou no trimestre final do ano passado até março deste 2022, a inflação dos alimentos foi de 66% (segundo índice da FAO, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura). A carestia dos cereais foi de mais de 71%.
Não se trata apenas de fome.

Na revisão de março do seu “Panorama Humanitário Global 2022”, a ONU registrou que 296 milhões de pessoas precisavam de “assistência humanitária e proteção”, 1 de cada 27 pessoas no mundo, em 69 países. A necessidade extrema afetava 1 pessoa de cada 95 em 2015. Em torno de 1 em 56 de 2016 a 2019.
Pouco?

Eles estão falando de ajuda para gente à beira da inanição ou morte violenta em países destruídos por guerra, miséria e surtos de ebola como a República Democrática do Congo, por guerras crônicas, como a Síria ou o Iêmen, por guerras recorrentes, como na Etiópia ou no Sudão do Sul, por ruína variada e histórica, como o Haiti ou o Afeganistão —a Venezuela também está no pacote.

Claro que há muito mais gente em situação terrível. Estamos tratando aqui dos casos de pessoas sob risco iminente e que chegam ao conhecimento da ONU, graças a pedidos desesperados de ajuda.

O efeito da inflação deve bater no mundo pobre também por meio da alta de juros no mundo rico e da baixa do crescimento mundial, o que piora a situação de países pobres já prejudicados por fugas de capitais na epidemia, do desastre social da Covid, de renda menor com comércio, turismo e remessas de emigrados etc.

Segundo o FMI, “cerca de 60%” dos governos de países de renda baixa correm o risco de uma crise da dívida (“debt distress”, calote) ou já estão inadimplentes. Trata-se dos 40 países mais pobres do mundo (24 deles africanos), entre os quais a dívida mediana praticamente dobrou desde 2013.

Peste, fome, dívida impagável e tem mais, para concluir, mas longe de acabar: “O número de pessoas vivendo em zonas de conflito [guerra] quase dobrou entre 2007 e 2020”, discursou David Malpass, presidente do Banco Mundial, na semana passada.

Saidiya Hartman revela a vida de jovens negras que ousaram buscar o prazer

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‘Vidas Rebeldes, Belos Experimentos’ mergulha na intimidade de mulheres com a audácia de imaginar outro mundo

Yasmin Santos, Jornalista, é pós-graduanda em direitos humanos, responsabilidade social e cidadania global

Folha de São Paulo, 23/04/2022

Lençóis pendurados no varal, torneiras vazando, banheiros imundos e quartos apinhados. Os cortiços representavam a essência dos cinturões negros da Filadélfia e Nova York no início do século 20.
Ou ao menos era isso o que se podia apreender a partir dos registros sociológicos da época. Apenas a feiura, a promiscuidade, a podridão.

Esse reducionismo irritava Saidiya Hartman. Ela queria saber dos corredores, dos degraus da entrada, da laje, das saídas de ar, dos espaços de experimento. “Essas fotografias jamais compreenderam a bela luta pela sobrevivência, vislumbraram os modos alternativos de vida ou iluminaram a ajuda mútua e a riqueza comunal do gueto”, escreve.

Depois de lançar dois livros centrados na escravidão — “Perder a Mãe” e “Cenas de Sujeição”—, Hartman ansiava pela beleza. As pesquisas anteriores tinham sido muito dolorosas psicologicamente para ela.

Mergulha então na intimidade de jovens negras que tiveram a audácia de saírem às ruas em busca do próprio prazer sexual, afetivo, intelectual —mesmo que isso lhes custasse uma temporada na prisão ou no reformatório.

Em “Vidas Rebeldes, Belos Experimentos”, Hartman apresenta a intelectualidade radical de jovens negras que imaginaram incansavelmente outras maneiras de viver e nunca deixaram de considerar como o mundo poderia ser de outra forma.

Não conhecemos heroínas que sacrificaram a própria vida pela de outros. São personagens reais, complexas, que não cabem em definições dualistas. Não eram boas nem más. Eram dançarinas, atrizes, cantoras, prostitutas, empregadas domésticas, lésbicas, bissexuais, mães, filhas, amantes.

A autora mescla uma extensa pesquisa histórica —registros de cobradores de aluguel, estudos sociológicos, transcrições de julgamentos, fotografias, relatórios da delegacia de costumes, autos de prisão— com a fabulação crítica.

A beleza que tanto reivindicava se traduz numa prosa poética que explora as idas e vindas do amor, a (re)descoberta sexual, as relações familiares, os modos de se vestir. Tudo isso costurado a dezenas de imagens que, diferentemente dos registros sociológicos, nos permitem conhecer essas pessoas, olhar em seus olhos, imergir em seu universo.

Hartman adentra um território tão íntimo que às vezes parece que estamos lendo os diários dessas jovens, descobrindo segredos talvez inconfessáveis. Ela concede a dezenas de personagens a plena humanidade, o direito de errar e de não aprender com o erro, de agir por impulso, de trair o marido, de ser amante, de ter muitos parceiros sexuais, de se apaixonar por alguém do mesmo gênero, de sentir ódio, raiva, tristeza, de gozar.

Depois do navio negreiro e da plantation, a terceira revolução da vida íntima negra aconteceu na cidade, caracterizada pela tendência a se casar mais tarde, as dificuldades econômicas, a alta taxa de mortalidade entre os homens negros e as práticas sexuais instáveis. O cortiço mobiliou o laboratório social da classe trabalhadora negra.

O que seria do Harlem Renaissance —movimento artístico do século 20 que mudou a maneira como o negro se expressava nos Estados Unidos— sem essas jovens? Poucas pessoas percebem que a melindrosa é apenas “uma pálida imitação” da menina do gueto.

O trabalho de Hartman é monumental. Os registros da época coagiam os negros à visibilidade como uma condição de policiamento e caridade, fazendo aqueles que eram forçados a aparecer carregarem o fardo da representação.

E continuamos a ver a mesma lógica em filmes e livros que são lançados agora, um século depois. A lógica de ver o modo como negros vivem e onde moram como um problema social, de que a “promiscuidade” é inerente à raça, de que somos animais, seja na cama, seja no trabalho, relegados a atividades braçais. Hartman rebate: é a nossa relação com o mundo dos brancos que é o problema.

Nas conversas de W.E.B. Du Bois com pessoas negras do gueto, elas perguntavam: não seria melhor estudar os brancos, já que são eles que precisam mudar?

“Perguntavam-se que negro seria tão franco ou ingênuo a ponto de acreditar que a simples verdade poderia mudar as pessoas brancas. Como se elas fossem cegas para o mundo que elas mesmas tinham criado. Ou não sabiam tratar os negros de outro jeito que não feito cães?”, provoca Hartman ao buscar entender a hostilidade desses entrevistados.

“Vidas Rebeldes, Belos Experimentos” forma um caleidoscópio do que é ser uma jovem negra no gueto americano do início do século 20. Hartman vai desde personagens sem nome a encrenqueiras da estirpe de Ida B. Wells e Eleanora Fagan, vulgo Billie Holiday. Todas formam um coro que murmura de formas variadas: quero ser livre.

VIDAS REBELDES, BELOS EXPERIMENTOS – Autor Saidiya Hartman

Preço R$ 89,90 (432 págs. – Editora Fósforo – Tradução Floresta

Reação do mundo em desenvolvimento à Guerra da Ucrânia remete a Não Alinhados 2.0, por Tatiana Prazeres..

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Brutalidade do conflito não mobiliza comunidade internacional em torno da resposta de americanos e europeus

Tatiana Prazeres, Analista internacional, foi secretária de comércio exterior e trabalhou na China de 2019 a 2021

Folha de São Paulo, 23/04/2022.

Um meme geopolítico me chamou a atenção recentemente. A imagem: um mapa-múndi esquisito, mostrando tão somente EUA, Canadá, Europa, Japão, Austrália e Nova Zelândia, em suas proporções corretas. O título: “A comunidade internacional da qual você sempre escuta falar”. Toda a vasta massa territorial de África, América Latina, Rússia, China e Índia, por exemplo, simplesmente não apareciam. O resultado era um mapa composto por territórios minguadíssimos na carta do grande globo terrestre.

A provocação faz muito sentido no contexto da Guerra da Ucrânia. Em Washington e Bruxelas, fala-se que o conflito fará da Rússia um Estado pária, que Moscou sofrerá um grande isolamento internacional. Mas talvez se pense diferente em partes do mundo desconsideradas por muitos europeus, americanos e seus principais veículos de imprensa.

Dois terços da população mundial vivem em países cujas autoridades se declaram neutras ou têm uma posição simpática à Rússia no conflito. É difícil falar em isolamento internacional quando, por exemplo, China e Índia recusam-se a implementar sanções contra Moscou.

Da Indonésia à África do Sul, da Turquia à Argentina, muitos resistem a endossar as restrições. Países da África e da América Latina ressentem-se da alta de preços de alimentos e combustíveis, e muitos atribuem esse resultado antes às sanções contra a Rússia do que à agressão perpetrada contra a Ucrânia.

A brutalidade da ação russa certamente choca, mas tem sido incapaz de gerar, no mundo em desenvolvimento, o apoio desejado por europeus e americanos à sua contraofensiva.

No pano de fundo, há também uma fadiga com o que é visto como hipocrisia dos grandes. Precedentes de violação à soberania alheia —como na invasão dos EUA ao Iraque — e, mais recentemente, a distribuição desigual de vacinas contra a Covid e o tratamento mais favorável a refugiados ucranianos em comparação aos de outras origens alimentam ressentimentos. Por mais que as repercussões do conflito sejam globais e por maior que seja a solidariedade ao povo ucraniano, muitos países em desenvolvimento preferem não tomar partido.

Mesmo que por objetivos distintos —comerciais, estratégicos ou mesmo ideológicos—, a opção pela neutralidade no conflito acaba por aproximar os países do chamado Sul Global. A experiência remete ao Movimento dos Não Alinhados, criado na década de 1960, em torno do qual países em desenvolvimento articulavam-se para defender o distanciamento em relação aos blocos opostos da Guerra Fria.

Falar em Não Alinhados 2.0 é tirar a poeira de conceitos de antigamente, mas invasão territorial e guerra estão aí para lembrar que o mundo anda para trás.

Num outro sinal de que muitos querem acreditar no próprio discurso, a Guerra da Ucrânia tem sido apresentada como um confronto entre democracias e autocracias, entre o mundo livre e modelos autoritários. O argumento desconsidera, por exemplo, que a Índia, maior democracia do mundo, resiste a escolher um lado e, principalmente, a endossar sanções.

A invasão russa, vale lembrar, foi condenada pela Assembleia-Geral da ONU, foro que melhor se aproxima do que seja essa tal comunidade internacional. Mas é a resposta de americanos e europeus que não entusiasma o mundo em desenvolvimento. Sanções não tiveram o endosso das Nações Unidas; a expulsão russa de organismos internacionais encontra, acertadamente, resistências entre países que julgam importante manter abertos os canais de diálogo.

Numa guerra que é também de narrativas, o suposto apoio da comunidade internacional tem sido evocado para simplificações que apagam do mapa aquilo que não interessa.

O contrato social está no limite, por Marcos Mendes.

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Enfraquecimento do Executivo e baixo crescimento aumentam risco de crise institucional

Marcos Mendes, Pesquisador associado do Insper, é autor de ‘Por que É Difícil Fazer Reformas Econômicas no Brasil?’

Folha de São Paulo, 22/04/2022.

O contrato social desenhado após a redemocratização está se esgotando. As condições de governabilidade estão se deteriorando. Isso sinaliza problemas institucionais à frente.

Um alto grau de conflito distributivo é inerente a uma sociedade desigual, como a brasileira. No topo da pirâmide há pessoas com poder político e econômico para usar o Estado a seu favor, por meio de políticas como crédito subsidiado provido por bancos públicos, proteção contra a concorrência de produtos importados ou contratos privilegiados com a administração pública. No outro extremo, há uma grande pobreza a demandar políticas de assistência social.

Terreno fértil para o populismo redistributivista entrar em choque com a preservação de privilégios. O resultado é instabilidade política, um roteiro conhecido na história da América Latina.

O contrato social da redemocratização brasileira procurou amenizar esse conflito usando o Estado para atender a todos ao mesmo tempo. Foram preservados e ampliados privilégios da elite e se instaurou ampla política de benefícios aos mais pobres e à classe média. O Estado brasileiro distribui para todos: do Bolsa Empresário ao Bolsa Família. O que os grupos de pressão pedem ao Congresso, levam: pisos salariais, subsídios setoriais, alíquotas preferenciais.

Com todos atendidos, diminuiu a tensão social. O custo, porém, é o crescimento da carga tributária, da dívida pública e da despesa com juros. Ademais, políticas para favorecer grupos geram perda de eficiência econômica, reduzindo o potencial de crescimento. O cobertor fica curto e não dá para continuar distribuindo a todos.

As manifestações de 2013, cuja principal característica foi juntar diversos grupos que pediam mais do Estado, já foi um sinal de estresse.

Desde os anos 1990 já se percebeu a insustentabilidade desse modelo. Diferentes governos tentaram limitar o acesso aos cofres e a distorção das decisões regulatórias do Estado, por meio de reformas institucionais.

Para fazer essas reformas avançarem, e manter as finanças públicas sob controle, contava-se com uma divisão de poderes em que o Executivo era forte e tinha instrumentos para manter uma coalizão majoritária no Congresso, facilitando a aprovação de seus projetos. Instrumentos tortos, como a liberação de emendas em troca de votos, somavam-se ao poder de agenda (Medidas Provisórias) e de veto.

Porém, a força do Executivo vem sendo desidratada. A governabilidade, que sempre foi precária, está se tornando impossível.

As MPs, que podiam ser livremente editadas e reeditadas, foram limitadas pelo STF e são frequentemente alteradas ou rejeitadas pelo Congresso. Vetos presidenciais, que não eram contestados, agora caem frequentemente. Projetos de lei do Executivo encalham e as iniciativas dos parlamentares prosperam. Agências reguladoras, instituições de Estado, estão sendo loteadas entre políticos.

As emendas parlamentares se tornaram obrigatórias, perdendo poder de cooptação. Foi necessário criar outra modalidade de emenda, a de relator, para usar como instrumento de cooptação. Com isso, as emendas deixaram de consumir uma franja do orçamento e já representam 24% da despesa não obrigatória, engessando o espaço fiscal do Executivo.

A multiplicação de partidos, financiados por régias transferências públicas, pulverizou a representação política e dificultou ainda mais a formação de coalizões.

Frente às limitações fiscais, as lideranças do Congresso transformaram o modelo de distribuir para todos em distribuir prioritariamente para eles mesmos: financiamento de campanhas eleitorais, dos partidos e das emendas orçamentárias paróquias. Ao fazê-lo, desmoralizam o sistema político e alimentam o discurso de que democracia não dá certo.

Qualquer presidente que assuma em 2023 terá dificuldade em recuperar o controle do orçamento e da agenda política.

Em ambiente polarizado, não será fácil redesenhar o contrato social sem maiores turbulências.

Tive o prazer e o privilégio de trabalhar com Eduardo Guardia. Se tivesse lido esta coluna, ele me diria: “Marcos, você sempre pessimista. Vamos trabalhar e melhorar esse país!”. Edu, obrigado.

As entranhas expostas de uma Lava Jato global, por Ladislau Dowbor.

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Em livro devastador, executivo francês narra pressões políticas, policiais e judiciais que EUA exercem contra seus concorrentes. Relato evoca fatos ocorridos no Brasil e sugere: será preciso ação ousada (inclusive reestatizações) para reconstruir país

Ladislau Dowbor – OUTRAS PALAVRAS – 03/02/2022

É raro um depoimento, por parte de um executivo de uma grande corporação multinacional, no caso a Alstom, gigante francês do nuclear, de energia e transportes, detalhar como funcionam o que chamamos curiosamente de “mercados”, e que na realidade envolve guerra entre os grandes grupos, com uso aparelhado do Judiciário, com envolvimento profundo dos governos, e um conjunto de comportamentos que raramente afloram na mídia ou nas pesquisas. Somente uma pessoa de dentro, e em nível elevado de responsabilidade, poderia escrever como funciona o capitalismo realmente existente

Estamos falando da Alstom, que segundo o autor é um grupo “que tem a maior experiência nuclear do mundo. É a número um no fornecimento de centrais elétricas completas, bem como na sua manutenção, e equipa cerca de 25% do parque mundial. A empresa também é líder mundial na produção de energia hidrelétrica.”(164) O livro relata, capítulo por capítulo, como a General Electric americana, grupo ainda maior, conseguiu comprar a Alstom, usando para isso perseguições judiciais, prisões, e naturalmente este cavaleiro branco da política que é a luta contra a corrupção, em nome da qual podem ser feitas as maiores barbaridades.

Frédéric Pierucci, o próprio executivo da Alstom, escreve em primeira pessoa, com a ajuda do pesquisador e jornalista Matthieu Aron. Li o livro em um dia e meio, porque é muito bem escrito, um relato do dia a dia da guerra, mas pesquisado com muito detalhe, uma janela que nos permite entender como funciona efetivamente o sistema.

Há tempos apareceu um livro semelhante, Confissões de um Assassino Econômico, obra que apesar do título que sugere um policial, constitui também uma explicitação detalhada sobre os grandes contratos internacionais. Foi escrito por John Perkins, economista-chefe de uma grande empresa de construção americana.[1] Teve grande sucesso nos Estados Unidos, justamente por levantar o véu sobre como funcionam as grandes negociações internacionais.

Controlar a energia, a tecnologia do nuclear, grandes infraestruturas que representam imensos recursos e tecnologias de ponta, é vital para a soberania de um país. Como foi que a França, quinta potência econômica mundial, permitiu que este “florão da economia francesa” fosse arrebatado pela General Electric? Imaginamos o mercado como nos ensinam nos cursos de economia, do tipo que “vence quem presta o melhor serviço”, e não quem tem a máquina do poder político, militar e judiciário para abocanhar os concorrentes. Não achei no livro nenhuma simplificação ideológica, e sim um relato, dia a dia, de como funciona a guerra econômica. Com isso, abre-se uma janela sobre o funcionamento da política em geral.

A política se torna compreensível: “Qualquer que seja o ocupante da cadeira de Presidente dos EUA, seja democrata, seja republicano, carismático ou detestável, o governo em Washington sempre atende aos interesses do mesmo grupo de industriais: Boeing, Lockheed Martin, Raytheon, Exxon Mobil, Halliburton, Northrop Grumman, General Dynamics, GE, Bechtel, United Technologies, dentre outros…Os Estados Unidos, que se arvoram em dar lições de moral a todo o planeta, são os primeiros a fechar negócios fraudulentos nos diversos países sob sua zona de influência, a começar pela Arábia Saudita e o Iraque.” (329)

Os Estados Unidos são os primeiros e únicos a aprovar uma Lei Extraterritorial – de 1970, expandida de 1988 – que lhes permite prender uma pessoa de qualquer nacionalidade, por negócios nos mais diversos países, porque a justiça americana – empurrada por uma corporação americana – decide que foram violados interesses americanos. (172, 249, 326) Ou podem processar qualquer empresa que fizer negócios com um país que os Estados Unidos decidem unilateralmente como sendo submetido a um bloqueio. Ou seja, os grupos econômicos norte-americanos dispõem de uma arma de perseguição em escala mundial, com o Judiciário formalmente envolvido (o DOJ). E com o envolvimento, graças à colaboração das grandes plataformas de mídia social, da própria NSA, ou seja, do sistema de inteligência do governo.

O Brasil é mencionado em várias ocasiões, e não há como não fazer o paralelo entre a guerra pelo controle das tecnologias mais avançadas e dos maiores contratos internacionais, com o que foi a Lavajato no Brasil. Também desenvolvida em nome da luta contra a corrupção, com o apoio dos Estados Unidos, ela terminou por quebrar grandes concorrentes da construção como a Odebrecht, e por privatizar grande parte da base energética do país, em particular pedaços da Petrobrás e da Eletrobrás, sem falar de outro florão tecnológico do Brasil que é a Embraer. É guerra, e utilizar o Judiciário americano e brasileiro de forma escandalosa faz parte do sistema. O primeiro passo, como no caso da Alstom, é a privatização, que permite a apropriação externa por mecanismos financeiros. As ameaças e intervenções políticas e policiais fazem o resto. Você magina a China entregando o controle da sua base energética a corporações internacionais? Pela clareza e profundidade da exposição, uma leitura indispensável.

Desglobalização

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Vivemos num momento de grandes incertezas, as estruturas econômicas estão movimentando rapidamente, exigindo comportamentos diferenciados, a competição cresce de forma acelerada, a tecnologia se tornou o grande motor do desenvolvimento das nações, obrigando as nações a repensar as estratégias e retomar o planejamento econômico como forma de se adaptar as novidades e as incertezas da sociedade contemporânea.

O termo globalização ganhou relevância nas últimas décadas e levou as nações a repensarem suas estratégias de desenvolvimento econômico, investindo em capital humano e estimulando a pesquisa científica, renovando a integração entre os setores econômicos, construindo um verdadeiro ecossistema de inovação, fortalecendo as empresas nacionais e consolidando os atores produtivos para se adaptarem a concorrência externa, angariando novos mercados e garantindo espaços de lucratividade.

Os países que conseguiram desenvolver estratégias consistentes de inserção no ambiente globalizado foram os grandes ganhadores da globalização, construindo empresas internacionais, investindo fortemente na capacitação de seu capital humano e garantindo melhoria nas condições de vida da população e, muitos países conseguiram caminhar a passos largos para o desenvolvimento econômico.

Recentemente, percebemos muitas novidades no cenário internacional, a ascensão do modelo chinês, fortemente centrado no planejamento governamental, a crise imobiliária de 2008 que fragilizou os sonhos liberais que defendiam a pouca intervenção estatal e que gerou, ironicamente, um forte intervencionismo dos governos para evitar a bancarrota do capitalismo global, que contribuiu para a fragilização do pensamento neoliberal. Além disso, a pandemia desagregou as estruturas produtivas da economia internacional, gerando rupturas em cadeias de produção, falta de insumos fundamentais, aumento de preços e renascimento da inflação. Para piorar, vivemos uma verdadeira tempestade perfeita da sociedade global, a guerra em curso na Ucrânia está impactando fortemente sobre as nações, perdas de vida e destruições generalizadas, deixando claro a necessidade de repensarmos o paradigma econômico global.

Neste ambiente, percebemos o renascimento do protecionismo em todas as regiões, nações desenvolvidas que preconizavam a abertura econômica e o aumento da competição global passaram a adotar novos receituários econômicos, retomando medidas intervencionistas agressivas, com políticas fiscais expansionistas, incrementando a proteção de suas estruturas produtivas, aumentando os subsídios para seus setores produtivos e impondo barreiras para produtos importados como forma de defender setores nacionais. Vivemos um momento marcado pela construção de novos paradigmas econômicos e produtivos, onde destacamos o retorno do planejamento econômico e da adoção de uma nova forma de intervenção governamental.

As duas primeiras décadas do século XXI estão trazendo novos desafios para a sociedade global, o modelo globalizado nos levou a uma ampla terceirização produtiva que entrou em xeque em decorrência da covid-19, obrigando as nações a buscarem a superação de suas dependências externas, diminuindo a proximidade dos fornecedores externos, construindo novos atores internos competitivos, aumentando os investimentos internos em ciência e tecnologia, priorizando produtores locais que geram empregos qualificados no mercado interno e diminuindo o hiato tecnológico que caracteriza as economias em desenvolvimento.

Os desafios das próximas décadas são imensos e assustadores, mas precisamos compreender que um novo mundo está surgindo, com novas oportunidades, com novos modelos de negócios, com novas perspectivas monetárias, com novas hegemonias que exigem a construção de novos consensos e novos canais políticos, exigindo líderes visionários e competentes. A globalização trouxe grandes vantagens para muitos setores da economia internacional, melhorando a qualidade de vida da população, garantindo avanços substanciais na saúde, incrementando as tecnologias e garantindo alimentos para toda a comunidade internacional, mas infelizmente, não conseguiu garantir que os avanços sejam socializados para toda a sociedade mundial, quem sabe na desglobalização tenhamos mais sucesso.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 20/04/2022.

Brasil, o país das commodities, por Paulo Gala.

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Paulo Gala – 19/04/2022

Nos dois primeiros meses deste 2022 o valor total de nossas exportações foi 36% maior do que no mesmo bimestre de 2021. O volume de bens exportados cresceu 17% e os preços do que exportamos subiram 16% na mesma comparação. Os preços de importação também subiram muito, 34%, mas os volumes importados tiveram queda de quase 3% na comparação entre esses mesmos bimestres. Em março a balança comercial teve superavit de US$ 7,4 bilhões e até a segunda semana de abril registramos superávit de US$ 15,36 bilhões no acumulado do ano. A corrente de comércio, soma de exportações e importações, subiu 20,5% em relação a 2021, para US$ 147,1 bilhões, com as exportações chegando a US$ 81,23 bilhões e as importações a US$ 65,87 bilhões. Os dados que já temos para 2022 apontam para um superávit em nossa balança comercial de mais de US$ 80 bilhões, um feito histórico. Na mente dos investidores estrangeiros, o Brasil se consolida como o paraíso das commodities, o que ajuda a trazer dinheiro ao país. Por tudo isso, o real readquiriu seu status de “commodity-currency”: moedas que se apreciam muito em booms de commodities.

O Brasil já está no time de países com maiores reservas de petróleo do mundo graças à descoberta do pré-sal. Em 2022 estaremos entre as dez maiores produções de petróleo do planeta, com quase 4% da oferta mundial. O custo de exploração se revelou muito menor do que se imaginara e a qualidade do petróleo do pré-sal é ótima. Nosso setor de mineração segue também robusto. Os grandes projetos da Vale se concretizaram, com destaque para o S11D em Carajás, com uma das maiores capacidades produtivas do mundo. Nosso volume de exportação é enorme, além do boom de preços do mineiro de ferro, níquel, litium, cobre, etc. Para se ter ideia da força de Vale e Petrobras hoje, basta observar que em 2021 essas duas companhias distribuíram mais dividendos do que todas as empresas da bolsa brasileira somadas.

No setor agro a situação também é exuberante. O preço da arroba do boi acima de R$ 300, tendo chegado em R$ 350, promoveu grande ganho exportador do mercado da carne. Só para China exportaremos quase US$ 2 bilhões em carnes no primeiro trimestre desse ano, um recorde absoluto. Segundo índice da UN/FAO, só em Março os preços de alimentos subiram mais de 12%. Recorde histórico da série para um único mês. O setor agro brasileiro teve um superávit de U$105 bilhões em 2021, compensando nosso déficit de bens tecnológicos e industriais. Em 2021 o saldo negativo do setor industrial chegou a US$ 53 bilhões, o pior resultado desde 2015, mesmo num ano em que o superávit total da balança fechou em nível recorde. O boom de preços de commodities decorrente da pandemia e do conflito com a Ucrânia acabou favorecendo o Brasil pela via da alta de preços de bens agrícolas e energéticos, apesar do risco de falta de fertilizantes. A alta de preços de commodities sempre nos favoreceu no passado, inclusive quando viramos grau de investimento em 2008. Nesse cenário não teremos falta de dólares e investidores estrangeiros seguirão comprando Brasil. Nosso grande desafio continua sendo, entretanto, gerar empregos de qualidade para 90 milhões de pessoas.

Sem a recuperação de nossa indústria não conseguiremos tamanha façanha. O atual boom de commodities resolve nosso problema de divisas e ajuda no controle da inflação pela via da apreciação da moeda brasileira; fica faltando ainda a essencial retomada de nosso desenvolvimento industrial e tecnológico.

Como a Coreia do Sul tornou-se um país de insones, por BBC Brasil.

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Ritmo selvagem de trabalho e pressões sociais pelo “sucesso” e “produtividade” alimentam adição epidêmica em drogas do sono. À margem do distúrbio, surge uma indústria lucrativa, que vende de apps de meditação a travesseiros “ideais”

BBC Brasil – OUTRAS MÍDIAS – 18/04/2022

Ji-Eun começou a ter dificuldade para dormir quando sua jornada de trabalho ficou tão exaustiva que ela simplesmente não conseguia relaxar. Em média, ela trabalhava das 7h às 22h. Mas a jovem de 29 anos, que trabalha com relações públicas, às vezes ficava até 3h da manhã no escritório. Seu chefe chegava a ligar no meio da noite pedindo que alguma tarefa fosse feita na mesma hora.

“Eu quase esqueci como fazer para relaxar”, ela explica.

E seu caso não é isolado. A Coreia do Sul é um dos países com os maiores índices de privação de sono do mundo, com enormes efeitos sobre sua população.

Na Clínica Dream Sleep, no distrito Gangnam, em Seul, Ji-hyeon Lee, psiquiatra especializada no sono, diz que é comum receber pacientes que tomam até 20 comprimidos de remédios para dormir diariamente.
“Geralmente leva um tempo para pegarmos no sono, mas os coreanos querem dormir rapidamente, então se medicam”, ela conta.

O vício em remédios para dormir se tornou uma epidemia nacional. Não há estatísticas oficiais, mas estima-se que esse vício atinja 100 mil coreanos.

Sem conseguir dormir, muitos recorrem ao álcool misturado à medicação – com consequências potencialmente perigosas.
“As pessoas se tornam sonâmbulas. Vão até a geladeira, comem coisas de modo inconsciente, até comida crua”, diz Lee. “Houve casos de acidentes de carro em Seul causados por pacientes sonâmbulos.”

Lee está acostumada a receber insones crônicos que sofrem do que é conhecido como hiperexcitação (condição que produz ativação cerebral e nos impede de dormir bem). Alguns de seus pacientes lhe dizem que não dormem mais do que algumas horas por noite há décadas.

“Eles choram, mas ainda têm um fio de esperança (quando vêm à consulta). É uma situação muito triste”, diz a psicóloga.

Excesso de trabalho, estressado e privação do sono

A Coreia do Sul é uma das nações com mais privação do sono do mundo. Também tem a maior taxa de suicídio entre os países desenvolvidos, o maior consumo de bebidas destiladas per capita e um grande número de pessoas tomando antidepressivos.

Existem razões históricas que explicam essas estatísticas.
Em apenas algumas décadas, o país passou de um dos mais pobres do mundo para um dos mais tecnologicamente avançados.

Além disso, por meio de sua crescente influência na cultura pop, exerce considerável “soft power” (termo usado nas relações internacionais para descrever a capacidade de influenciar ações ou interesses por meios culturais e ideológicos).

Nações com um histórico semelhante, como a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos, poderiam explorar seus recursos naturais, mas a Coreia não tem essa riqueza oculta. O país transformou-se pela pura dedicação de uma população movida por um nacionalismo coletivo que os impelia a trabalhar mais e mais rápido.

O resultado é que os sul-coreanos estão sobrecarregados, estressados e privados de sono.

Agora, toda uma indústria se formou ao redor das pessoas incapazes de dormir – e essa indústria do sono foi estimada em US$ 2,5 bilhões em 2019.
Indústria em crescimento

Na capital Seul, as lojas de departamento são dedicadas a produtos para dormir, desde os lençóis perfeitos até o travesseiro ideal, enquanto as farmácias oferecem prateleiras cheias de medicamentos her/bais.

E há abordagens tecnológicas contra a insônia. Cerca de dois anos atrás, Daniel Tudor lançou um aplicativo de meditação – Kokkiri – focado em ajudar jovens coreanos estressados a dormir.

Embora a Coreia do Sul seja historicamente um país budista, os jovens pensam que a meditação é um passatempo para os mais velhos, não algo que um funcionário de escritório em Seul poderia fazer.

Daniel diz que teve que reimportar e reembalar a meditação como uma ideia ocidental para que os jovens coreanos a achassem atraente.

Instituições mais tradicionais também estão entrando em ação.

Hyerang Sunim é um monge budista que ajuda a organizar retiros em um templo fora de Seul, onde pessoas com privação de sono podem meditar e absorver ensinamentos budistas.

No passado, esses tipos de mini-pausas eram reservados para aposentados que buscavam ensinamentos e oração. Agora, os participantes tendem a ser coreanos mais jovens em idade de trabalhar.

Mas esses mesmos templos budistas também foram criticados por lucrar com esses tipos de retiros.
“É claro que há preocupações. Mas acho que os benefícios as superam”, argumenta Hyerang Sunim.
“Tradicionalmente, era raro ver jovens virem buscar os ensinamentos budistas. E eles têm agora muita interação com o templo.”

“Mudanças fundamentais”

Lee Hye-ri, que participou de um desses retiros budistas quando a pressão no trabalho se tornou intolerável, diz que aprendeu a assumir a responsabilidade por seu estresse.

”Tudo começa comigo; todos os meus problemas começam em mim. Foi o que aprendi aqui”, explica a jovem.
Mas enquadrar a solução para o estresse e a privação de sono como algo a ser tratado em um nível individual pode ser problemático.

Aqueles que acreditam que o problema é causado por uma cultura de trabalho irracional e pressões sociais criticaram essa abordagem individualista, dizendo que isso equivale a culpar as vítimas.

Esses críticos dizem que a meditação ou o relaxamento são uma colcha de retalhos e que soluções reais só podem surgir por meio de mudanças fundamentais na sociedade.

Ji-Eun, a personagem que abre esta reportagem, acabou tão privada de sono e estressada que decidiu deixar o emprego.

Ela agora trabalha horas muito mais razoáveis como freelancer e, devido à pandemia, pode trabalhar em casa. Também procurou ajuda profissional na clínica do sono de Lee para controlar sua insônia.

“Qual é o sentido de trabalhar tanto agora que chegamos ao topo como país?” diz Ji-Eun. “Devemos ser capazes de relaxar.”

O que perpetua a iniquidade brasileira? por César Locatelli.

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Livro analisa a dinâmica da desigualdade no Brasil e seus elos com a questão racial. Revela que o país teve três oportunidades históricas – perdidas – de alterar essa condição. O que aprender com a história para as lutas de hoje e amanhã?

Por César Locatelli

OUTRAS PALAVRAS – 18/04/2022

Parece existir uma força, equiparável à gravitacional, que faz a sociedade desigual sempre retornar ao seu curso secular após fugazes divergências de seu padrão. Três momentos da história brasileira marcam notavelmente essa breve saída do rumo e rápido retorno à reprodução da iniquidade.

Ainda na primeira metade do século XIX, aos africanos libertos, que exerciam a profissão de pedreiros, alfaiates, sapateiros etc., foi instituído um imposto exorbitante, do qual seriam isentos aqueles que se retirassem do Brasil.

A antropóloga e historiadora Manuela Carneiro da Cunha estima que cerca de 8 mil libertos deixaram o país rumo a África. “O Brasil renunciava à criação de uma classe média negra”, revela Mário Theodoro em A Sociedade Desigual. A Lei de Terras (1850) e os estímulos dados aos imigrantes europeus viriam a agir no mesmo sentido.

“Assim, ao final do século XIX, fosse no campo ou na cidade, os negros no Brasil pareciam condenados à pobreza e à miséria. Quando houve a possibilidade de alguma ascensão social, como ocorrido na primeira metade daquele século, ela foi refreada, inclusive com sanções de ordem econômica e jurídica por parte do poder público e incentivo para deixar o país. Progressivamente alijados dos setores mais dinâmicos da economia – a produção exportadora, a indústria e os ramos mais prósperos do comércio –, os negros ficaram restritos aos serviços pessoais e subalternos.
A pobreza urbana no Brasil do século XIX é negra.” (p. 117)

O segundo momento, que continha todos os ingredientes que foram necessários e suficientes para, em outros países, reduzir-se a desigualdade e a pobreza, foi o longo período de industrialização do país, entre 1930 e 1980. O crescimento per capita médio do produto interno brasileiro foi de “impressionantes 3,86% anuais”, por 50 anos!

Mais uma vez os negros foram excluídos. Explica Theodoro que “a concentração de renda observada no período foi reforçada a partir da clivagem racial. A população negra não participou diretamente dessa festa, não logrou compartilhar plenamente os frutos desse que foi um dos períodos de maior crescimento de um país na história recente. Crescer gerando pobreza, miséria e desigualdade: esse foi o preceito do período de maior prosperidade vivenciado pelo Brasil. Um ‘milagre’ para poucos” (p. 138).

Entre 2004 e 2014, os governos Lula e Dilma promoveram a retirada de 30 milhões de pessoas da pobreza. Além do crescimento econômico do período, concorreu para essa redução inédita da pobreza na história brasileira o processo sustentado de redistribuição de renda, pela via de aumentos reais do salário mínimo, do Bolsa Família e da
Previdência Social.

Os benefícios impactaram brancos e negros, entretanto, não o fizeram de modo homogêneo: “Apesar da benfazeja evolução de redução da pobreza, houve um aumento da participação da população negra no grupo que se manteve em situação de pobreza: o percentual de negros entre os 10% mais pobres subiu de 73,2% em 2004 para 76% em 2014” (p. 154).

A despeito dessa “anomalia”, uma década de desvio de rota, a sociedade desigual volta aos trilhos: “desde 2016 adotou-se no país uma estratégia de política econômica e fiscal que terminou por fragilizar os direitos do trabalho e enfraquecer e reduzir a base financeira, contributiva e orçamentária da seguridade social brasileira. Os impactos nocivos aos trabalhadores são evidentes, bem como as consequências para o fortalecimento da informalidade e da precariedade do trabalho”. (p. 164)

Por mais que a sociedade desigual se perpetue como se estivesse sujeita a uma força gravitacional, que sempre a devolve para as condições de reproduzir as desigualdades, é evidente que as forças que a tornam imutável são forças sociais que nada têm de natural. Que força poderosa seria essa, então? Mário Theodoro responde logo na introdução de seu livro:

“A pobreza, a miséria e, principalmente, a desigualdade são fenômenos que remontam à própria criação do Brasil, e têm raízes na questão racial. Os quase quatro séculos de escravidão forjaram as condições para o aparecimento, o fortalecimento e o consequente protagonismo do racismo como fator de organização e estruturação das relações sociais no país. Desse modo, o racismo consolidou-se como a ideologia que diferencia e hierarquiza as pessoas em uma escala de valores que tem como polo positivo o biotipo branco caucasiano e como polo negativo o biotipo negro africano. É sob essa valoração que a sociedade brasileira se organiza e opera — e é nela que se baseia o reconhecimento social do indivíduo, historicamente construído e que explica a perpetuação da desigualdade.” (p. 15)

Em outras palavras, está marcada a ferro nos valores da sociedade brasileira que o que é branco é superior. Ao olhar para a desigualdade, a partir dessa perspectiva superior, parece “natural” que uma parte da sociedade tenha mais direitos que a outra. “O racismo assume, desse modo, papel central como elemento organizador da sociedade desigual”, complementa Theodoro. Desse modo, o que perpetua a sociedade desigual é o racismo e seus desdobramentos.

O profundo trabalho do autor é testar suas premissas, de que a naturalização da desigualdade é funcional e que os grupos hegemônicos têm interesses na existência e na perpetuação do racismo, contra a história do país desde sua constituição escravagista até os dias atuais.

Seu estudo caminha através do mercado de trabalho brasileiro (capítulo 2), com abundantes evidências das limitações da força de trabalho negra à informalidade e ao subemprego. Prossegue com os sistemas de educação e saúde (capítulo 3), que atende privilegiadamente as classes com mais recursos, ou seja, segmentos majoritariamente brancos. A análise da ocupação dos espaços urbanos e rurais (capítulo 4) constata a expulsão dos trabalhadores negros do campo e a semiapartação das cidades, onde à população negra restam as favelas, os mocambos e as periferias.

A violência como prática de Estado (capítulo 5), com amplas evidências de que o racismo marca as decisões do sistema de justiça e seus operadores, é entendida como o elemento aglutinador da sociedade. O aprofundamento analítico da sociedade desigual (capítulo 6) é a tentativa de, ao juntar as partes, desvendar a razão de sua perenidade.

Um de suas constatações fundamentais é que:
“Em resumo, o racismo se desdobra em discriminação e preconceito no cotidiano, nas relações pessoais, no trabalho, nas escolas, nas repartições públicas, nos hospitais e postos de saúde, nos bares e nas esquinas e o combustível para esses comportamentos é a vigência em nível macro de outras facetas desse mesmo racismo: a branquitude, que legitima a ideia de superioridade e de poder do branco; o biopoder, que desincumbe o Estado de qualquer obrigação ou responsabilidade social para com a população negra; e por fim, e mais diretamente letal, a necropolítica, que faz do Estado o executor de uma política de morte e de genocídio.” (p. 335)

Serviço

Livro: A Sociedade Desigual: Racismo e branquitude na formação do Brasil
Autor: Mário Theodoro, economista e mestre pela UFPE e doutor pela Universidade Paris I – Sorbonne. Consultor legislativo aposentado do Senado Federal, foi secretário-executivo da Seppir e diretor da área de estudos internacionais do Ipea. É professor visitante no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos da UnB.
Editora: Zahar, 2022

A vitória do SUS, por Márcia Castro.

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Necessidade de um sistema de saúde universal e de qualidade deve ser prioridade nas escolhas eleitorais

Marcia Castro, Professora de demografia e chefe do Departamento de Saúde Global e População da Escola de Saúde Pública de Harvard

Folha de São Paulo, 18/04/2022.

O Sistema Único de Saúde (SUS), uma conquista de movimentos sociais, é um dos maiores mecanismos de redução de desigualdades em saúde que o Brasil já teve.

Ao longo de 30 anos, o SUS teve papel fundamental na redução da mortalidade infantil, de mortes e hospitalizações evitáveis, de iniquidades raciais na mortalidade, de desigualdades no acesso a atenção primária, na produção de vacinas e imunização da população, e na distribuição de medicamentos sem custo, dentre outras conquistas.

Desde sua criação, o financiamento do SUS não tem sido ideal para permitir a universalidade prevista na Constituição.

A instituição do teto de gastos em 2016 impôs dificuldades ainda maiores. Um estudo publicado na Revista Lancet em 2019 estimou que o teto de gastos não só poderia reverter conquistas do SUS, mas que o retrocesso seria maior em áreas mais vulneráveis, o que aumentaria as desigualdades regionais em saúde. O que era uma estimativa virou realidade.

A chegada da pandemia de Covid-19 no Brasil encontrou o SUS extremamente subfinanciado. A pífia atuação do governo federal na resposta à pandemia tornou a situação ainda pior. Entretanto, não fosse o SUS, muito mais do que 662 mil vidas teriam sido perdidas.

O trabalho de cada pessoa que move a complexa máquina de atenção à saúde (o que inclui portaria, triagem, segurança, transporte, lavanderia, limpeza, cozinha, atendimento médico, exames laboratoriais, enfermagem, cirurgia etc.) foi incansável. Muitos perderam a vida.

Essa realidade do SUS foi brilhantemente retratada no documentário Quando falta o ar. Produzido pelas irmãs Ana e Helena Petta, o documentário foi o vencedor do É Tudo Verdade, o 27º. Festival Internacional de Documentários, o mais importante prêmio do gênero na América Latina.

A morte, tão constante durante a pandemia, é um tema presente no documentário. A genialidade da obra, entretanto, está em ter trazido o dia a dia dos trabalhadores do SUS durante a pandemia, o saber ouvir e cuidar, a empatia e a solidariedade, os gestos de carinho, e a coragem de enfrentar o medo apesar da exaustão emocional.

Ao mostrar os desafios do atendimento a populações ribeirinhas na Amazônia, a rotina de uma UTI, o trabalho em uma unidade prisional e a rotina de agentes comunitários de saúde e médicos de família, o documentário expõe uma realidade ignorada por uma parcela da população brasileira.

Quando falta o ar é um relato humanizado da vitória de um sistema de saúde que remou contra a maré para salvar vidas, é uma obra de arte e de conscientização social. Deve ser visto por todos que se importam com o Brasil.

Durante a vacinação contra a Covid-19 foram comuns as manifestações de apoio ao SUS com cartazes, declarações e postagens orgulhosas de cartões de vacinação em redes sociais. Esse apoio precisa continuar.

As críticas, tão comuns ao SUS antes da pandemia, deveriam se transformar em cobranças da sociedade para que as lideranças priorizem a atenção à saúde com equidade e, portanto, fortaleçam o SUS. Criticar sem buscar mudança é inútil.

Como disse a médica de saúde da família Rafaela Pacheco, no documentário Quando falta o ar, “O SUS é uma política de estado, não é uma política de governo.” Governos ruins vêm e vão. Causam retrocessos. Mas o SUS há de prevalecer. Caso contrário, 160 milhões de pessoas no Brasil não teriam acesso a saúde.

Que a importância do SUS durante a pandemia, apesar das dificuldades, jamais seja esquecida. E que a necessidade de um sistema de saúde universal e de qualidade no Brasil seja uma prioridade nas escolhas eleitorais em outubro.

Ilegalismo autoritário é obra de juristas, por Conrad Hubner Mendes.

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Existe diferença entre instrumentalizar o direito e arrebentá-lo

Conrad Hubner Mendes, Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade – SBPC

Folha de São Paulo, 14/04/2022

Democracias pelo mundo passam por processo gradual de autocratização na última década. Sobretudo algumas emergentes ali pelos anos 90, que buscaram romper, por meio de nova Constituição, com o passado autoritário à esquerda ou à direita.

O Brasil integra esse clube de elite, que reúne Venezuela e Hungria, Polônia e Nicarágua, entre outros. O governo Bolsonaro fez acelerar o processo e virou um dos líderes dessa onda. Um meteoro.

Quem diz isso não é o PT, nem “a esquerda”, nem os cavaleiros da távola comunista, mas relatórios globais produzidos por centros de pesquisa no mundo. Seja por qual ângulo se observa (o da democracia, estado de direito, liberdade de expressão, liberdade acadêmica, liberdade de imprensa etc.), as curvas apontam para baixo.

Um dos esforços empreendidos por estudiosos do fenômeno foi entender qual tem sido o papel ou a contribuição do direito nessa história. De que formas um autocrata pode autocratizar o regime sem chamar atenção até que fique tarde demais e os dispositivos de autodefesa da democracia já estejam dilacerados?

A resposta tem sido: reformando, peça por peça, com aparência de regularidade jurídica e procedimental, a espinha dorsal da arquitetura constitucional. De um modo tão dissimulado que deixe os grilos falantes da mensagem “instituições funcionando” cantando tranquilos. A professora norte-americana Kim Scheppele deu a isso o nome de “legalismo autocrático”. O termo pegou.

Bolsonaro criou seu repertório para se relacionar com o direito. Entre suas técnicas está a hiperprodução de normas clamorosamente ilegais (decretos, resoluções, portarias), ou, a partir da aliança com Arthur Lira, de uma avalanche de projetos de lei de clara inconstitucionalidade.

A estratégia desafia instituições judiciais, que recebem o peso político de fazer seu dever: declarar a ilegalidade ou inconstitucionalidade da norma. Gera estresse e fadiga da legalidade. Podem haver razões jurídicas óbvias para a invalidação, mas faltam a juízes força e vontade de segurar o rojão.

Bolsonaro acrescenta ao repertório um discurso incivil que estimula o desrespeito à lei e promete ao crime organizado (como garimpeiros, grileiros e traficantes de madeira) a leniência fiscalizatória.

O discurso incivil também intimida e estigmatiza grupos sociais, que passam a viver em estado de apreensão (cientistas, professores, jornalistas, artistas, indígenas, defensores de direitos etc.). Alguns desses indivíduos são mortos, outros assediados.

O erro de caracterizar esse repertório da delinquência política como legalismo autocrático ou, na versão brasileira, infralegalismo autoritário, é supor que, em qualquer lugar da operação, haja “legalismo”. Ou que, na manipulação escancarada de procedimentos e na violação explícita da substância de normas constitucionais ou legais, pelo menos a formalidade jurídica está sendo respeitada. Não está. Nunca esteve. Nem a letra, nem o espírito da lei.

Parece uma firula acadêmica, mas não é. O termo “legalismo” tem uma tradição. Filósofos do direito dos mais diversos enxergam no legalismo valores formais que, ainda que insuficientes, são pré-requisitos para a autonomia individual e o governo livre.

O pedigree “legalismo” foi conferido a uma prática que não cumpre sequer exigências formais elementares como publicidade e estabilidade das normas, o limite à discricionariedade manipulativa, ou a congruência entre o conteúdo da lei e o ato do agente público. Parece pouca coisa, mas é pouca coisa que autocrata não respeita. Não dá para dar o nome de “legalismo” à chula ilegalidade.

Melhor, portanto, chamá-lo de “ilegalismo” autoritário. Esse processo não instrumentaliza o direito, apenas o arrebenta. Instrumentaliza, sim, juristas invertebrados que dão seu selo de expertise à violência institucional.

Como cada ministro da Justiça, cada advogado da união e procurador, cada jurista que, dentro ou fora do governo, por meio de pareceres abstrusos, buscou validar juridicamente a corrosão institucional do país (“cupinização”, na metáfora de Cármen Lúcia).

Ou chamá-lo, alternativamente, e com mais exatidão, de “juristismo” autoritário, pois ilumina a face humana e encarnada da operação. É o jurista servil e alpinista, barato e saltitante, que opera a máquina. A legalidade formal, ou legalismo, passa longe desses “técnicos” do direito. Um problema concreto de ética individual e profissional, não só de hermenêutica jurídica.

Juristas sem compromisso com os valores pressupostos pelo estado de direito, valores sem os quais a defesa do estado de direito se torna vazia e desprovida de sentido, são personagens onipresentes na história universal do autoritarismo.

Por onde tenha passado um autocrata, havia no seu bolso um chaveirinho que se dizia jurista. Esse bibelô verborrágico e perverso nunca praticou legalismo.

Emergência alimentar, por Nathalie Beghin.

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Responsável pela alimentação básica, agricultura familiar deve ser valorizada

Nathalie Beghin, Economista e coordenadora da assessoria política do Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos) e ex-conselheira do Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional)

Folha de São Paulo, 13/04/2022

Na última semana de março, o Datafolha revelou resultados assustadores de uma pesquisa que perguntou à população brasileira se achava que a comida dentro de casa era considerada suficiente para os seus moradores.

Como é possível que, em uma das economias mais ricas do mundo, uma em cada quatro pessoas responda que a alimentação domiciliar está muito aquém do necessário? E mais: entre os mais pobres, 35% avaliaram que não há comida suficiente. A pesquisa também explicitou as enormes desigualdades regionais, pois é no Nordeste que a situação de insegurança alimentar e nutricional é pior. Urge a implementação de medidas emergenciais.

Sim, o país voltou a esse grave e conhecido quadro, de onde havia saído, em 2014 (poucos anos atrás), do Mapa da Fome das Nações Unidas.

As causas que explicam a deterioração do quadro alimentar e nutricional no Brasil são muitas. Temos um modelo agroalimentar que, infelizmente, pouco valoriza a agricultura familiar, principal responsável por nossa alimentação básica. As energias estão direcionadas para a agropecuária de grande porte, voltada à exportação. Assim, cresce a produção de soja e milho em detrimento da de arroz, feijão e mandioca, entre outras. Os trabalhadores do campo são expulsos de suas propriedades, engrossando as periferias empobrecidas das cidades, com enormes dificuldades para se alimentar.

A crise econômica que caracteriza o Brasil dos últimos anos e que se agravou em decorrência da pandemia de Covid-19 jogou milhões de pessoas no desemprego e na precariedade. A renda insuficiente dificulta e, em muitos casos, impossibilita a compra de alimentos. O levantamento do Datafolha revela que, entre os desempregados, 38% disseram que não tiveram comida suficiente.

Outro fator agravante é o da inflação e, especificamente, da inflação alimentar, que penaliza os empobrecidos. Os preços dos alimentos subiram mais de 20% desde o início da pandemia. O efeito da elevação dos preços é mais severo sobre os mais pobres. De acordo com o IBGE, os gastos com alimentação representam cerca de 20% da renda dos brasileiros. Se analisado entre as famílias que vivem com 1 a 5 salários mínimos, o peso da alimentação chega a um quarto de seus rendimentos. Dai que a combinação da queda da renda com o aumento dos preços dos alimentos resulta em falta de comida dentro de casa.

Uma causa relevante do significativo aumento da fome no Brasil está fortemente relacionada ao desmonte da institucionalidade federal da segurança alimentar e nutricional operado pelas gestões Michel Temer (MDB) e Jair Bolsonaro (PL), associada a uma política fiscal contracionista implementada desde 2016 por meio, especialmente, do teto de gastos.

O abandono de uma atuação intersetorial e sistêmica, assim como a extinção das instâncias de participação social, impediu a identificação dos principais problemas alimentares e das demandas da sociedade; o enfraquecimento de mecanismos de regulação do mercado dificultou o controle da inflação, particularmente a alta de preços dos alimentos; a desarticulação de estratégias de fortalecimento da agricultura familiar, principal responsável pela alimentação básica da população brasileira, contribuiu para a inflação de alimentos e para a carestia; os programas de aquisição e de distribuição de alimentos, como o Programa das Cisternas, o Programa de Alimentação Escolar e o Programa de Aquisição de Alimentos foram enfraquecidos —desse modo, pouco mitigaram o problema da fome.

Essa situação agrava as desigualdades raciais, pois é a população negra a mais afetada pela fome. Agrava também as desigualdades regionais, pois como vimos o Nordeste é o mais penalizado. E piora as desigualdades geracionais: de acordo com o Unicef, 61% das crianças e dos adolescentes vivem na pobreza, sendo, portanto, mais impactados pela carestia alimentar.

A fome tem pressa, não pode esperar. Urge implementar desde já uma ação emergencial de combate à fome. Urge, ainda, retomar a política nacional de segurança alimentar e nutricional para enfrentar as causas estruturais da fome no Brasil.

Movimentos geopolíticos

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Vivemos momentos de grandes transformações na sociedade contemporânea, a pandemia está gerando novos paradigmas econômicos e geopolíticos, novos desafios e oportunidades, além de abrir espaços para novos modelos produtivos. O mundo do trabalho vive mudanças avassaladoras, os relacionamentos estão em constante movimento e os indivíduos seguem atônitos e marcados por fortes desesperanças, gerando ansiedades, instabilidades financeiras e incertezas sociais, além do crescimento dos desequilíbrios emocionais, afetivos e espirituais. O cenário descrito não se restringe a países como o Brasil, vivemos movimentos globais que impactam sobre todas as nações, organizações e indivíduos.

A globalização ganhou espaço na agenda dos governos nacionais desde o período posterior a segunda guerra mundial, difundindo e uniformizando os modelos econômicos e produtivos, impondo estruturas de consumo e definindo o comportamento dos indivíduos e comunidades, tendo a moeda norte-americana, o dólar, como o instrumento monetário internacional, garantindo ganhos extraordinários para seu emissor. Neste instante, percebemos que os modelos construídos anteriormente vêm perdendo espaço na geopolítica mundial, os Estados Unidos perderam força econômica e dinamismo produtivo, além de vivermos num período de grandes conflitos geopolíticos e confrontos militares que tendem a se perpetuar por algumas décadas e que devem redefinir as estruturas de poder com impactos generalizados para todas as regiões, reconfigurando o conceito de autonomia e soberania.

Neste momento, os países que conseguirem construir estratégias mais consistentes tendem a ganhar espaço na comunidade internacional. No caso brasileiro, precisamos capacitar e desenvolver políticas públicas que estimulem as potencialidades mais evidentes da comunidade e construindo um forte planejamento estratégico em setores imprescindíveis para a sociedade, fortalecendo setores nacionais que mostrem potenciais de concorrência e angariando aumentos constantes de produtividade e de eficiência, além de estimularmos a construção de um mercado interno consistente e diversificado, que garanta dinamismo econômico, fortalecendo a empregabilidade da população, incremento da renda agregada, consolidando salários e garantindo recursos para satisfazer as necessidades materiais, reduzindo a pobreza generalizada que crassa na sociedade nacional.

As mudanças geopolíticas em curso na sociedade mundial podem abrir novas oportunidades para as nações que se prepararem para os novos cenários que estão sendo redesenhados na contemporaneidade. As nações que conseguirem diversificar as estruturas produtivas, reduzindo as fragilidades econômicas, buscando a autossuficiência interna em setores estratégicos e criando espaços para desenvolvimentos regionais.

Está nascendo na sociedade global um novo paradigma de produção, que tende a valorizar os parceiros regionais, a cultura local deve ser estimulada, os laços históricos devem ser consolidados e as rivalidades devem ser deixadas de lado, em prol de uma construção mais consistente e equilibrada, sob pena de perdermos mais uma oportunidade de construirmos uma sociedade menos desigual e mais equilibrada.

A ascensão das economias asiáticas nos traz novas oportunidades e, ao mesmo tempo, novos desafios, que exigem consensos internos para participarmos num ambiente marcado pela alta concorrência e pela forte competição, deixando de lado futilidades, mesquinharias e interesses políticos imediatos que caracterizam o nosso subdesenvolvimento. O sucesso dos países asiáticos demonstra o papel central e fundamental dos Estados Nacionais na construção de um projeto nacional, garantindo mercados internos dinâmicos e consolidados que garantam demandas internas e estimulem os investimentos produtivos, ao mesmo tempo, criando estratégias macroeconômicas que reduzam as taxas de juros e garantam preços reduzidos de insumos fundamentais para o crescimento da economia.

A experiência internacional nos mostra que a construção de um mercado interno é fundamental para o desenvolvimento de uma nação, mostrando que o que estimula o crescimento dos investimentos produtivos é a perspectiva de retorno financeiro e ganhos adicionais. Novamente, estamos no caminho equivocado.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 13/04/2022.

Piketty: “é preciso lutar mais pela igualdade”

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No rastro do lançamento de seu novo livro, pensador francês provoca: “o neoliberalismo está no fim”. Ele prossegue: ou a esquerda tira as consequências deste fato ou, como no século passado, os fascistas o farão

OUTRAS PALAVRAS – 06/04/2022

George Eaton é editor-chefe de “New Statesman”.

Thomas Piketty não é um pensador conhecido pelo otimismo. Sua obra mais notável, O capital no século XXI (2013) alertou que o mundo estava regredindo para uma era de “capitalismo patrimonial” na qual enormes desigualdades de riqueza são mantidas através de gerações.

Mas o novo livro do economista francês, A Brief History of Equality [Uma breve história da igualdade, publicado originalmente em francês e lançado agora em inglês], adota uma perspectiva radicalmente diferente. Ele argumenta que tem havido, desde o final do século XVIII, um “movimento histórico em direção à igualdade” – e que é provável que esta tendência continue.

Será que Piketty escreveu o livro porque teme que a esquerda tenha se tornado muito negativa? “Vai além dela; acho que todos estamos obrigados a ser mais propositivos”, disse ele quando falamos por vídeo-chamada. “Se você olhar para as evidências históricas que recolhi, o que verá é que, a longo prazo, há um movimento em direção a mais igualdade política, mais igualdade social e mais igualdade econômica”.

Ele referia-se “ao fim da escravidão, à emergência do sufrágio universal masculino e ao aumento dos direitos dos trabalhadores”. O processo continuou no século XX com a descolonização, a Previdência Social, com a tributação progressiva e o sufrágio feminino, e prossegue hoje com movimentos como o #MeToo e o “Black Lives Matter”.

A intenção de Piketty não é minimizar o aumento da desigualdade de renda e riqueza que definiu a era da supremacia do mercado, muito menos sugerir que vivemos no melhor dos mundos possíveis. Ao contrário, ele quer que “façamos um balanço de todas essas melhorias para pensar nos próximos passos possíveis”.

Uma motivação secundária para o livro foi seu desejo de “escrever algo mais curto” do que suas duas obras anteriores (O capital no século XXI tem 696 páginas; sua sequência, Capital e Ideologia, tem 1150). “Havia tanta gente me dizendo: ‘Por que você não escreve algo mais curto que eu possa compartilhar com amigos e familiares?

Durante alguns anos, achei que precisava escrever uma síntese que fosse direto ao ponto principal”.

A vez anterior em que entrevistei Piketty foi no início de fevereiro de 2020, antes da pandemia de covid-19 redesenhar o mundo econômico. Será que ele acredita que a era neoliberal está definitivamente terminada? “Já estava perto do fim após a crise financeira de 2008, mas, sim, a pandemia confirmou à sua maneira que a era do neoliberalismo, que começou nos anos 80, está em grande parte terminada”.

“A grande questão”, acrescentou ele, citando Donald Trump, o Brexit e a ascensão de nacionalistas autocráticos como Vladimir Putin, Jair Bolsonaro e Narendra Modi, é “se o fim do neoliberalismo é o começo do neonacionalismo”.
Na Europa, a pandemia foi agora eclipsada pela guerra na Ucrânia, e Piketty não está impressionado com a resposta econômica do Ocidente. “Nesta fase, tudo o que reclamamos sobre sanções e oligarcas está próximo de um pensamento ilusório. Seria preciso um movimento de transparência em relação à propriedade de bens, o que não está acontecendo.

Se queremos ser sérios quanto às sanções, não são apenas algumas centenas de pessoas; há cerca de 20 mil russos que possuem mais de 10 milhões de euros e cerca de 50 mil com mais de 5 milhões de euros”.

“Construímos um sistema legal que dá enorme proteção aos indivíduos de alta riqueza, de onde quer que venham – Rússia, China ou Ocidente – e muito pouca… às pessoas normais”. Enquanto tivermos esse sistema, será muito difícil convencer a opinião russa, ou internacional, de que somos sérios quando falamos de justiça econômica e democracia”.

A guerra na Ucrânia intensificou a crise dos padrões de vida no Reino Unido e na Europa e elevou ainda mais as contas de energia em boa parte do mundo. Piketty acredita que será necessária uma intervenção dramática do Estado, do tipo da que foi vista durante a pandemia?

“É claro que se não mudarmos completamente nossa abordagem da política climática, teremos movimentos de coletes amarelos por toda parte”, advertiu ele, referindo-se aos manifestantes franceses que sacudiram a presidência de Emmanuel Macron. Ele ressalta que as emissões de carbono per capita dos 50% mais pobres do mundo estão de acordo com as metas de 2030. “O problema é que… os primeiros 1% emitem entre 70 e 75 toneladas” – trinta vezes o limite per capita para limitar o aquecimento global a 1,5°C.

Piketty nasceu em 1971 no subúrbio parisiense de Clichy, filho de pais de esquerda, que foram membros do partido trotskista Lutte Ouvrière. Seu filho, entretanto, nunca se identificou com a esquerda revolucionária. (Uma visita à União Soviética em 1991 o convenceu dos méritos de uma economia com mercado). Ao contrário, ele é um reformista radical cujas propostas políticas, tais como alíquotas de imposto sobre renda e propriedade de até 90%, e um teto de 10% para o poder de voto dos acionistas, não visam humanizar o capitalismo, mas sim forjar o que ele chama de “socialismo participativo”.

Piketty, que completou seu doutorado em redistribuição de riqueza aos 22 anos na London School of Economics, atuou em 2007 como assessor econômico da Ségolène Royal, que era a candidata presidencial francesa do Partido Socialista.

Hoje, ele atribui a reeleição antecipada de Emmanuel Macron à maneira como covid-19 “congelou a discussão política” na França e permitiu ao liberal Macron “parecer um presidente mais social”.

Em Capital e Ideologia, Piketty traçou a ascensão da “esquerda brâmane” (a elite educada/cultural, que mudou a
esquerda nas últimas décadas) e da “direita mercante” (a elite rica). O sucesso político de Macron, ele pensa, foi unir os dois grupos.

Piketty despertou a atenção política no Reino Unido pela primeira vez quando apareceu no parlamento em 2014 e se encontrou com o então líder trabalhista, Ed Miliband. Mais tarde ele se juntou ao comitê consultivo econômico de Jeremy Corbyn, em setembro de 2015, mas deixou-o junho de 2016, alegando falta de tempo e preocupações com a “fraca campanha dos trabalhistas” durante o referendo sobre a permanência na União Europeia. Qual é a sua avaliação sobre Brexit agora?

“Penso que a longo prazo será um fracasso para o Reino Unido, mas também é um fracasso para a União Europeia. Em meu país, e em muitos países europeus, as pessoas olhavam para Brexit e diziam: ‘Oh, esses estúpidos nacionalistas britânicos, não há nada que possamos fazer a respeito deles’ – um pouco como os democratas norte-americanos, para os quais não há nada que se possa fazer a respeito dos racistas brancos que votam em Trump. Mas eu acho que esta é a maneira errada de olhar para o problema.”

“A forma como organizamos as relações econômicas, a concorrência dentro da Europa e em especial a globalização, tem sido benéfica principalmente para as pessoas com o mais alto capital humano e o mais alto capital financeiro. Se não encontrarmos uma maneira de mudar isso, teremos outros Brexits em algum momento”.

Sua mensagem para o Partido Trabalhista inglês, agora dirigido por Keir Starmer, é semelhante: “Se vocês não mudarem sua plataforma econômica e social para convencer os eleitores da classe trabalhadora de que oferecem algo melhor do propõem os nacionalistas e os antiimigrantes, não vai funcionar”.

Embora Piketty tenha poucas palavras de elogio a qualquer governo, ele permanece, talvez paradoxalmente, otimista. “O neonacionalismo e o recuo identitário são sempre mais fáceis; eles proporcionam linhas de atração e estratégias de mobilização muito mais simples. Mas no final, isso não vai resolver os problemas que temos diante de nós: desigualdade, aquecimento global, migração. No final, teremos que continuar o movimento em direção à igualdade, porque é o que permitirá resolvê-los”.

Livro revela atuação da ditadura brasileira no golpe contra Allende

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Enquanto lia ‘O Brasil contra a Democracia’, o ronco dos gorilas ecoava de Brasília, ocupada pela xepa do regime militar

Karla Monteiro, Jornalista e escritora, publicou os livros “Karmatopia: Uma Viagem à Índia”, “Sob Pressão: A Rotina de Guerra de um Médico Brasileiro” (com Marcio Maranhão) e “Samuel Wainer: O Homem que Estava Lá”

Folha de São Paulo, 12/04/2022

No capítulo 13, intitulado 11 de setembro de 1973, meu queixo tremeu: o La Moneda sob intenso bombardeiro, Salvador Allende entrincheirado, a opção pelo suicídio. Quando já não mais podia resistir, o presidente do Chile, eleito democraticamente no pleito de 1970, apoia o maxilar na ponta do cano da AK-47 que Fidel Castro lhe presenteara e aperta o gatilho.

Nas últimas três semanas, mergulhei neste livro espetacular: “O Brasil contra a Democracia”, do jornalista Roberto Simon. Enquanto eu devorava as quase 500 páginas, de Brasília, a capital ocupada pela xepa do regime militar, chegavam-me roncos dos gorilas, celebrando o 31 de março. Aliás, os gorilas não merecem a associação. Mas era assim que os fardados traidores da democracia eram chamados no tempo retratado na obra.

Muito bem-documentado e muito bem-escrito, o livro de Simon nos planta na América do Sul das quarteladas, costurando com maestria a trama que conecta a ditadura brasileira a Washington, com Brasil e Estados Unidos atuando em paralelo para desestabilizar o Chile de Salvador Allende. Não satisfeita em aniquilar a liberdade em território nacional, a gorilada se esforçava para exportar barbárie para todo o Cone Sul.

A imagem cristalizada do Brasil cordeiro dos Estados Unidos tomba. Como nos demonstra o autor, o presidente Médici tinha suas próprias motivações. Além das questões de ideologia e geopolítica, o Chile dos anos 1970 era um ninho de “subversivos” brasileiros.

Entre esses, nomes notórios, como Darcy Ribeiro, Almino Afonso, José Serra, Carlos Minc. Para estender os tentáculos da repressão, tornava-se urgente golpear a “Cuba do Pacífico”.

A CIA NO CHILE
Por sua vez, o republicano Richard Nixon também encontrava-se incomodado com a ascensão de um socialista ao governo do Chile. A documentação que Simon amealhou nos arquivos americanos é riquíssima. Nas conversas de Nixon com seus assessores, a trama que, anos antes, derrubara Jango no Brasil, surge em frases casuais.

Por exemplo: “Walters é agressivo, criativo, impiedoso e teve muito a ver com o que aconteceu no Brasil em 1964”, comenta orgulhoso o presidente dos Estados Unidos, falando de Vernon Walters, adido militar na embaixada no Rio à época do golpe.

Em 1971, ao visitar a Casa Branca, Médici contou a Nixon que estava em contato com militares chilenos para apear Allende e previu que este desfecho não tardaria. De pronto, o presidente americano, atolado até o pescoço no Vietnã, ofereceu “dinheiro ou outra ajuda discreta”.

Antes mesmo de Allende ser eleito, na verdade, Henry Kissinger, conselheiro de Segurança Nacional e eminência parda da política externa do governo Richard Nixon, já havia decidido o destino de Allende. Na sua avaliação, os Estados Unidos não deveriam “ficar parados e ver um país virar comunista por causa da irresponsabilidade do seu próprio povo”.

“Nixon acreditava que, do México para baixo, apenas ditaduras eram realmente confiáveis e boas para os Estados Unidos. Regimes civis davam dores de cabeça”, escreveu o autor.

A IMPRENSA
Curiosas duas passagens de “O Brasil contra a Democracia” sobre o papel da imprensa brasileira nesta história. Em junho de 1973, na primeira tentativa de derrubar Allende, um cinegrafista argentino filmara a própria morte. Na cena encontrada no rolo de filmes, o militar aparecia apontando a pistola na direção da câmera, até apertar o gatilho.

Com as imagens correndo o mundo, o Globo resolveu dar uma forcinha aos golpistas, publicando uma entrevista em que um jornalista chileno atribuía o assassinato a allendistas. O diário de Roberto Marinho, notório apoiador da ditadura brasileira, só se esqueceu de avisar aos leitores que o jornalista em questão era partidário do Patria y Libertad, o mais notório grupo de extrema direita do Chile.

Na mão oposta, no dia seguinte ao famigerado 11 de setembro, o Jornal do Brasil saiu com uma capa histórica.

Proibido pela censura de dar manchete para o ocorrido no Chile, o saudoso Alberto Dines, então diretor de Redação, soltou uma edição sem manchete alguma. Pela primeira vez, uma primeira página sem título ganhava as bancas.

A obra de Roberto Simon é fundamental, inquietante, triste. Nos anos 1960-1970, a democracia brasileira fora a primeira a escorrer pelo ralo das conspirações que engolfavam a convulsionada América do Sul no auge da Guerra Fria.

Exatos 58 anos depois, o Brasil está de novo na vanguarda, sob ameaças abjetas dos gorilas aboletados no governo de Jair Bolsonaro, eleito após um longo e tenebroso processo de desestabilização. Fico imaginando o que os pesquisadores encontrarão nos arquivos daqui a meio século.

Gabriel Boric que se segure!

Renovar a frota rodoviária: como não fazer política pública, por Marcos Mendes.

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Proposta motivada por interesses privados, sem avaliação de impacto ou transparência

Marcos Mendes, Pesquisador associado do Insper, é autor de ‘Por que É Difícil Fazer Reformas Econômicas no Brasil?’

Folha de São Paulo, 09/04/2022

A Medida Provisória 1.112/22 criou o Programa de Aumento da Produtividade da Frota Rodoviária no País – Renovar, anunciado como incentivo à substituição de caminhões antigos por novos.

São muitos os benefícios sugeridos pela Exposição de Motivos da MP: Redução dos custos de fretes, dos acidentes e mortes nas rodovias e da emissão de poluentes. Haveria, também, aumento da eficiência e produtividade no setor de transportes, menor gasto do governo com assistência médica a feridos no trânsito.

Melhorariam as condições de trabalho dos caminhoneiros e cairiam os seus custos de manutenção. Haveria estímulo à indústria de reciclagem e geração de emprego. Até queda da inflação é colocada na lista dos benefícios.

Ainda segundo a Exposição de Motivos, não haveria custo fiscal relevante, porque a principal fonte de financiamento viria das empresas exploradoras de petróleo. Nos seus contratos de exploração de óleo e gás, há a obrigação de investir em pesquisa e inovação. A MP estabelece que recursos aplicados no Programa Renovar contarão no cumprimento da obrigação.

Muitos benefícios e poucos custos! Há motivos para desconfiar.

Não foi apresentado estudo para mensurar os benefícios acima listados. A Exposição de Motivos mostra números não diretamente relacionados a uma simulação do impacto da retirada de caminhões antigos de circulação. Por exemplo, cita estudo do IPEA, segundo o qual “os custos dos acidentes de trânsito em estradas federais (…) são estimados em R$ 12,8 bilhões/ano”. Mas esses se referem a todos os acidentes, e não àqueles gerados por falha mecânica em caminhões velhos.

Muitos outros dados genéricos, de fontes diversas, são empilhados no texto. Fica claro que não se fez o dever de casa de estimar ex-ante o impacto efetivo do programa.

Não são respondidas perguntas básicas. Qual o custo total do projeto? Quais os benefícios que se deixará de obter, ao diminuir investimentos em pesquisa e inovação, substituindo-os pelo financiamento ao Programa (que não representa nem pesquisa nem inovação)? Há experiências internacionais de sucesso que sejam adaptáveis ao contexto brasileiro? Haveria efeitos colaterais adversos como, por exemplo, incentivo a um meio de transporte poluente e ineficiente? Subsidiar é mais eficiente que fiscalizar e retirar das estradas caminhões sem condições de uso? A baixa renda dos caminhoneiros vem de caminhões velhos ou de excesso de caminhões no mercado?

Como a adesão das petroleiras é voluntária, pode não haver recursos suficientes para financiar o programa (a menos que se empurre para a Petrobrás, o que seria mais uma tentativa de intervenção indevida). Por isso, já foi deixada uma porta aberta para entrar mais recursos públicos no jogo.

A MP nomeou como coordenadora do Programa a Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI). Trata-se de uma instituição de direito privado, não sujeita a regras orçamentárias, porém financiada por dotações do orçamento federal. Triangulações de verbas entre a ABDI, empresas estatais ou bancos públicos viabilizariam o financiamento com dribles nas regras fiscais.

Mas o problema central é que a MP não limita o programa a caminhões velhos. Ela define como “bem elegível” todo “veículo ou equipamento sobre rodas, motorizado ou não, ou máquina autopropulsionada, que atenda aos critérios de elegibilidade do Renovar”. Um decreto pode ampliar o programa para todo tipo de veículo.

Há décadas a indústria automobilística faz lobby por subsídios à renovação da frota. No Governo Temer, tentou-se emplacar um “Programa de Sustentação Veicular”, que tinha “foco na pegada de carbono para um carro verde” e visava a substituição de até 1 milhão de automóveis por ano.

Será que não haveria outras prioridades ambientais, como a contenção do desmatamento, com maior impacto, e que não subsidiaria grandes empresas e consumidores de alta renda?

Vale lembrar que quando se deu crédito subsidiado do BNDES para a compra de caminhões, a título de renovar a frota e gerar todos os benefícios agora novamente elencados, o resultado foi muito lucro para vendedores de caminhões e um excesso de oferta de fretes, que desembocou na greve dos caminhoneiros.

Mais uma vez, desenha-se uma política pública para atender interesses privados, buscando-se uma narrativa para apresentá-la como de interesse público