Crises escancaram desigualdade planejada de São Paulo, afirma Raquel Rolnik

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Para urbanista, sujeitos periféricos podem confrontar ordem excludente da cidade, que privilegia classe média

Eduardo Sombini, Geógrafo e mestre pela Unicamp, é repórter da Ilustríssima

Folha de São Paulo, 29/01/2022

[RESUMO] Em entrevista à Folha, professora da USP argumenta que São Paulo vem sendo planejada por poucos e para poucos, o que produziu um padrão desigual de urbanização. A cidade vive um momento especial em sua história, com a coexistência de crises e a emergência política de sujeitos periféricos que podem protagonizar um novo ciclo de lutas urbano, diz.

São Paulo completou 468 anos na última terça-feira (25) atravessando a provável mais grave crise de moradia da sua história, avalia Raquel Rolnik, 65.

Ocupações nas periferias da região metropolitana e nos bairros centrais da capital se avolumam, e a população em situação de rua aumenta expressivamente, mas o agravamento das condições habitacionais dos mais pobres é só uma fração do “combo de crises” —econômica, de mobilidade urbana, de saúde pública— que a cidade enfrenta, na interpretação da urbanista.

Apesar do cenário que beira a distopia, Rolnik não se mostra desanimada. “Quem vive as crises quer morrer, mas esses momentos são oportunidades de transformação”, diz em entrevista por videochamada à Folha.

Um dos mais importantes nomes do campo progressista dos estudos urbanos no Brasil, Rolnik apoiou a candidatura de Guilherme Boulos (PSOL) na última eleição municipal em São Paulo e aposta no potencial de “sujeitos periféricos” protagonizarem um novo ciclo de lutas urbano, impulsionando agendas ambientais, antirracistas e feministas, por exemplo, e disputando os rumos de um novo modelo de política urbana.

Em “São Paulo: o Planejamento da Desigualdade” —edição atualizada do livro “São Paulo”, da antiga coleção Folha Explica, editada agora pela Fósforo—, a professora da USP revisita a história do planejamento urbano da cidade, destacando as opções políticas tomadas em momentos de crise e responsáveis pela consolidação de um padrão “classemédiocêntrico”, que resguarda os privilégios dos grupos de renda mais elevada e marginaliza a maior parte da população.

Em sua avaliação, as medidas de isolamento social adotadas durante a pandemia são uma expressão nítida desse modelo excludente, já que ficar em casa não foi uma opção para a grande maioria dos paulistanos.
“São Paulo”, da coleção Folha Explica, foi publicado em 2001. Por que atualizar e relançar o livro agora? Esse livro teve algumas edições ao longo da sua história. Na penúltima (“Territórios em Conflito – São Paulo: Espaço, História e Política”, Três Estrelas), o texto saiu com um compilado de colunas publicadas na Folha e alguns artigos acadêmicos.

Quando a Fósforo assumiu parte do catálogo da Três Estrelas, propus retomar o formato do “Folha Explica São Paulo”, aquele livrinho acessível, para quem não é especialista, e achei que era o momento de atualizar o texto —não só trazê-lo para os dias de hoje, mas fazer uma atualização um pouco mais radical de como falar da São Paulo do passado.

Decidi fazer isso pela mesma razão pela qual convidamos o Emicida para escrever o prefácio: este momento pelo qual a cidade está passando é muito especial na história, não apenas porque estamos vivendo um verdadeiro combo de crises, mas também em razão da emergência de novas vozes, que são justamente os sujeitos periféricos, conceito formulado por Tiaraju D’Andrea.

Essa narrativa sobre a cidade vem do movimento cultural das periferias, da luta antirracista, e está colocando sobre a mesa pautas que nunca tiveram muito destaque, mesmo entre os que denunciam a desigualdade.

Conto no livro a história das crises e das opções que foram tomadas naqueles momentos, com a tese de que estamos vivendo mais uma dessas. Que tal, então, começar a pensar em um outro modelo de cidade agora, apostando que, diante da crise, outro modelo de cidade é possível? Quem vive as crises quer morrer, acha que tudo está horrível —e está mesmo—, mas esses momentos são oportunidades de transformação.

No livro, a sra. indica que há uma linha de continuidade entre as várias crises do passado: a desigualdade continuou a ser planejada e a se reproduzir. O novo título do livro, aliás, faz menção a isso. Como a desigualdade vem sendo planejada em São Paulo? Falo de quando se sai da ordem escravocrata para o trabalho livre e se institui uma geografia da cidade em que, sobre as colinas, morava a classe dominante, e, nas várzeas, se instala a classe operária.

A classe operária das várzeas se instala em pensões, cortiços, casas minúsculas de alta densidade entremeadas com a paisagem das fábricas, enquanto há o paradigma dos casarões ajardinados, cujo modelo primeiro são os Campos Elíseos, depois há a migração para Higienópolis, avenida Paulista, Jardins e, em seguida, na direção da marginal Pinheiros e da zona sul.

Essa migração constitui um território burguês, que concentra renda e poder e vai incorporando outros modos de viver da classe dominante —casarões, depois edifícios e, nos anos 1990, as torres corporativas.

Há uma mudança de morfologia e, ao mesmo tempo, uma grande continuidade de um padrão segregacionista, porque o modelo periférico do território popular também se constituiu, com a autoconstrução da casa própria em loteamentos, muitas vezes irregulares e clandestinos, em periferias distantes, conectadas pelo ônibus.

O título, “Planejamento da Desigualdade”, é uma brincadeira para quem diz: “São Paulo é uma porcaria porque não tem planejamento, por isso é esse caos, é essa bagunça”. Não tem nada de caos e de bagunça. Tem planos aprovados e uma legislação urbanística, mas excludente “classemédiocêntrica”, que pensa a cidade a partir das formas de morar e de existir de um pedaço dela e simplesmente ignora o resto —e destina para o resto da cidade, que, aliás, é a maioria dela, as piores localizações.

A legislação urbanística construiu esse padrão absolutamente segregado, cujo objetivo básico é manter a concentração de oportunidades econômicas, sociais e políticas na mão de quem já tem e blindar a entrada de “newcomers”, mas, ao mesmo tempo, garantir que o mundo do trabalho vai continuar lá arrumando, cozinhando, limpando, polindo.

Como a sra. avalia a reprodução desse padrão durante a pandemia? O que aconteceu na pandemia é a expressão mais nítida desse modelo “classemédiocêntrico”, porque, diante do perigo de contágio e de morte, a política pública foi o isolamento social. “Fique em casa, vá para o home office, fique na internet fazendo tudo online e não se desloque” —ou seja, se referindo a uma realidade que deve corresponder a menos de 30% dos moradores da cidade.

Para que esses moradores pudessem ficar isolados em casa, existia um exército de gente trabalhando, levando comida, transportando. Para essas pessoas, não teve política.

A ideia do planejamento da desigualdade vem do fato de a cidade ser pensada e planejada por poucos e para poucos. O mal-estar que a maioria das pessoas da cidade tem é decorrente dessa opção.

Na pandemia, se a gente pensasse nas maiorias, nos trabalhadores de serviços essenciais que precisavam continuar se deslocando, a política deveria ser, por exemplo, tratar o transporte coletivo de uma forma totalmente diferente. No mínimo, distribuir “PFF5” para todo o mundo e, em vezes de cortar, colocar mais ônibus em circulação para ir muito menos gente dentro de cada ônibus e ter distanciamento entre as pessoas.

No começo da pandemia, houve um entusiasmo, principalmente nos setores progressistas, sobre a possibilidade de medidas redistributivas ganharem impulso. Depois de dois anos de Covid-19, porém, parece que predomina a percepção de aumento generalizado da pobreza. A São Paulo do pós-pandemia deve ser mais partida e fragmentada? O pós-pandemia está em disputa. No campo da moradia, que eu acompanho há muitos anos, acho que esta é a maior crise da história da cidade. Estou quase afirmando isso com certeza, embora a crise da moradia do final dos anos 1920 tenha sido bem difícil e acabou gerando o padrão de autoconstrução periférica, com todas as suas mazelas.

Estamos vivendo uma situação absolutamente paradoxal no campo da moradia. A renda caiu, o desemprego e a miséria aumentaram, ao mesmo tempo que a cidade está vivendo um dos maiores booms imobiliários da sua história.

Exatamente no momento em que há menos gente com capacidade de comprar um espaço, o espaço está ficando mais caro que nunca? Isso porque a dinâmica de produção e comercialização do espaço físico da cidade ficou totalmente financeirizada nas últimas décadas. Ou seja, esse crescimento imobiliário não tem nada ver com a renda da população, mas com a quantidade de capital excedente circulando no mercado financeiro que busca o tijolo, o imobiliário, como estratégia de valorização futura.

Esse capital não é só local e nacional, mas global e não tem nenhum tipo de barreira: entra, passeia pelo planeta à vontade e se instala no imobiliário com uma perspectiva de remuneração de longo prazo, porque existe uma enorme concentração de renda a nível global, como mostram os trabalhos de Thomas Piketty e Nouriel Roubini.

O imobiliário é um ativo financeiro. Por isso, estamos vivendo uma crise enorme, porque os pobres dos humanos têm que competir por uma localização com um capital financeiro gigantesco que não tem nenhum compromisso, nem territorial, nem afetivo, nem político, com a cidade.

O Emicida conta no prefácio, a partir da história pessoal dele, o que as pessoas fazem diante da crise: se viram. Tornam-se especialistas em “sevirologia”, expressão do José Soró, liderança de um movimento cultural de Perus.

Estamos vivendo um boom de novas ocupações nas extremas periferias, um boom de novas ocupações em prédios em áreas centrais e, ao mesmo tempo, um boom de pessoas na rua, com uma característica completamente diferente.

Historicamente, o morador de rua era um homem de meia-idade, com algum tipo de dependência química, problema mental etc. Imagina, a gente está vendo na rua famílias inteiras, como há muito tempo não se via.

O cenário de novas ocupações parece o dos anos 1990, o de população de rua eu nunca tinha visto algo como o de hoje. Diante disso, qual é a política habitacional que temos? Nenhuma, nem municipal, nem estadual, nem federal.

Algumas PPPs (parcerias públicas-privadas) aqui e ali. PPP não é política habitacional, é política de mercado financeiro. Ela não está voltada para atender uma demanda de quem mais necessita de moradia, mas para viabilizar um negócio com uma conta que fecha —e, para isso, tem que ter gente para pagar.

As PPPs não atendem quem está hoje na rua, indo abrir novas frentes de ocupação muito precária nas extremas periferias. É outro grupo, com renda estável e um pouco mais alta, com capacidade de pagamento. Isso é superlegal, mas olha em volta, olha quem está precisando de política pública de moradia. Usar a energia e os recursos do Estado para viabilizar moradia para quem não está na rua da amargura neste contexto é um escândalo. Um escândalo!

Vamos olhar o outro lado dessa história. Durante a pandemia, a auto-organização nos bairros populares foi muito intensa e segurou a onda de muita gente em termos de fome, de condições de morar, de redes de solidariedade. Nas favelas e nas ocupações mais estruturadas, morreu muito menos gente porque existia uma rede mínima de proteção, dentro da precariedade. Isso demonstra que é possível dar respostas por meio de uma política de mobilização completamente descentralizada.

Diria que um movimento não tão intenso, mas semelhante a esse foi a crise dos anos 1980, que gerou no começo dos anos 1990 um movimento muito interessante de renovação no campo político. Depois, isso foi totalmente fagocitado pelo sistema, mas sinto que, neste momento, a gente tem essa possibilidade de novo. Vamos ver quais vão ser os novos movimentos políticos que teremos, não só com a eleição deste ano, mas sobretudo a nível local.

Os últimos anos foram brutais para as agendas progressistas, e o campo da política urbana ficou marcado pela desconstituição. A sra. está esperançosa com a possibilidade de renovação política, mesmo com esse histórico recente? No ano passado, nós no Labcidade [Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade da FAU-USP] tivemos uma experiência muito interessante de trabalho conjunto com três mandatas lideradas por mulheres negras, vereadoras na Câmara de São Paulo, que mostram uma mudança muito significativa.

Já vivi alguns ciclos de crise e de luta. Comecei a me envolver com política urbana nos anos 1970, então pude observar quando, pela primeira vez, operários e lideranças sindicais foram eleitos e que tipo de política pública foi sendo construída.

Agora, estamos vivendo mais um momento —no comecinho, pequenininho, não hegemônico. Vai pipocando, em vários lugares do Brasil, uma nova geração de sujeitas periféricas, mulheres, negras, trans, que estão se colocando no espaço público e trazendo novas pautas. Espero que isso cresça e vire um grande movimento de transformação.

Se a gente olhar para os ciclos de lutas urbanos, teve um muito forte nos anos 1980, que deu na Constituinte, na emenda popular da reforma urbana, nas gestões democrático-populares, nas experiências com movimentos de moradia.

Esse ciclo teve, claramente, um descenso.

Em 2005, 2006, novos movimentos começaram a surgir e, em 2013, de alguma forma eles se expressaram. Dois mil e treze foi capturado por outra narrativa, mas a narrativa do direito à cidade estava na rua e esse foi o primeiro encontro desses novos movimentos.

Eles não desapareceram e geraram uma liderança política como Guilherme Boulos, que foi para o segundo turno da eleição municipal de São Paulo contra todas as expectativas. Boulos é exatamente essa nova geração de movimentos que nasceram na era Lula e já começaram questionando as políticas desse período.

Há agendas novas: movimentos ambientalistas, feministas, antirracistas, pela mobilidade. O parque Augusta foi uma vitória de um socioambientalismo urbano autogerido.

Se eles serão capazes de conquistar uma hegemonia e produzir políticas, é cedo para dizer, mas já vivi no outro momento. Quando a gente estava em 1974, 1975, não podia imaginar que ia fazer a Constituinte em 1988. Hoje está parecendo tudo horrível e distópico, mas acho que têm mudanças importantes na cidade.

A sra. citou o parque Augusta. Existem críticas a respeito da reprodução das desigualdades por esse ativismo, ou seja, sobre os jovens de classe média das áreas centrais conseguirem se articular melhor e levar adiante suas pautas enquanto os sujeitos periféricos enfrentam muito mais dificuldades. Como enxerga essa questão? Tenho uma posição diferente. Apoiei e participei da luta do parque Augusta, assim como apoio e participo da luta do parque do Bixiga [proposto no entorno do teatro Oficina, em terrenos do Grupo Silvio Santos]. Acho que tem algumas simplificações na conversa.

A primeira grande simplificação: São Paulo não pode ser entendida por meio do binômio centro/periferia, que não corresponde à territorialidade política da cidade. Esse binômio esconde o território popular que existe no centro.

Aliás, esconder o território popular do centro é ótimo para uma frente de expansão imobiliária que quer eliminá-lo.

O centro é um dos territórios negros e populares de São Paulo, e existe uma luta histórica pela permanência em bairros como Bixiga, Sé, República, Glicério.

Então, é preciso visibilizar e proteger o território popular do centro, porque a política atual é de eliminação —por exemplo, o que está se fazendo na chamada cracolândia é solução final, eliminação física de todos os imóveis e das pessoas.

Dizer que pobre está na periferia e que branco rico está no centro simplifica a história e não permite revelar que esses espaços centrais também são objeto de conflito. Não preciso dizer nada, só convido as pessoas a ir ao parque Augusta passear. Você não encontra só branco de classe média, mas uma mistura social. É um espaço muito apropriado pelas pessoas e muito popular.

Dito isso, você tem razão, no sentido de que a classe média tem uma capacidade de vocalização na política muito maior. Esta é a história da cidade: a história da classe média fazendo política urbana para si mesma.

RAQUEL ROLNIK, 65
Arquiteta e urbanista, doutora pela Universidade de Nova York e professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, onde coordena o Labcidade (Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade). Foi diretora de Planejamento da Prefeitura de São Paulo (1989-1992, gestão Luiza Erundina, PT), secretária nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades (2003-2007, governo Luiz Inácio Lula da Silva, PT) e relatora especial da ONU para o direito à moradia adequada (2008-2014). Autora, entre outros livros, de “Guerra dos Lugares: a Colonização da Terra e da Moradia na Era das Finanças” e “A Cidade e a Lei: Legislação, Politica Urbana e Territórios na Cidade de São Paulo”.

SÃO PAULO: O PLANEJAMENTO DA DESIGUALDADE; Preço R$ 59,90 (120 págs.); R$ 44,90 (ebook); Autor Raquel Rolnik; Editora Fósforo

Livro revê saída caótica dos EUA e prova que Afeganistão é problema complexo

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Casa Branca cometeu equívocos ao identificar inimigos e aliados, diz professor

João Batista Natali – Folha de São Paulo, 28/01/2022

As cenas foram muito fortes e patéticas para fugirem da memória recente. No último dia de agosto do ano passado, em meio à balbúrdia do salve-se quem puder, forças americanas deixaram o aeroporto de Cabul e entregaram o Afeganistão, quase de presente, aos extremistas islâmicos do Talibã.

Se houve fuga, é porque algo no roteiro deu errado. O plano do presidente Joe Biden era o de uma retirada ordeira que terminaria em 11 de setembro. Mas antes disso o governo local e suas forças armadas já haviam entrado em colapso. A corrida aos aviões para não cair em mão dos extremistas lembrou abril de 1975, com a debandada americana no aeroporto de Saigon, um capítulo pouco glorioso da Guerra do Vietnã.

Os fundamentalistas islâmicos encaçapavam mais uma bola no tablado da história, partindo para um previsto cenário de horrores: da fome entre 38 milhões de afegãos aos direitos humanos pisoteados, sobretudo os das mulheres.

O Afeganistão é um problema complexo, e o grande mérito de Reginaldo Nasser, livre-docente de relações internacionais da PUC-SP, está em fornecer um retrato exaustivo, didático e apaixonante ao publicar, no ano passado, “A Luta contra o Terrorismo: os Estados Unidos e os Amigos Talibãs”.

Em fins de 2001 o então presidente George W. Bush comemorava, após apenas dois meses de guerra, a vitória contra “as forças do mal”. Em verdade, no entanto, a aventura duraria mais de duas décadas, com um saldo de 2.488 militares americanos mortos e 20.722 feridos —entre os talibãs seriam de 100 mil e 150 mil, respectivamente.

Caberia perguntar qual o grande engano nessa que foi a mais longa aventura militar americana. De algum modo, os soldados de Bush e Obama e (bem menos) os de Trump e Biden julgavam-se credenciados para se vingar dos 3000 mortos do 11 de Setembro de 2001. Os 17 terroristas que sequestraram três aviões e lançaram dois deles contra o World Trade Center, em Nova York, agiam sob o comando de Osama bin Laden e de seu grupo, a Al Qaeda, hospedados pelo grupo afegão Talibã.

Antes dele, outro grupo de radicais muçulmanos, os mujahedins, transformou num inferno a vida dos 100 mil soldados enviados ao Afeganistão pela União Soviética, no final dos anos 1970.

De certo modo, o comunismo se arraigou muito pouco no solo afegão, da mesma forma com que o modelo de democracia liberal passou a ser mal implantada pelos americanos. O Afeganistão, relata Nasser, é um emaranhado de interesses étnicos e tribais, com grupos que se formam para ser mais ágeis na corrupção ou ainda cultivar e transportar papoula, matéria-prima para o ópio (o país chegou a ter 90% da produção mundial).

Essa burocracia próxima do crime organizado criou um Parlamento eleito para satisfazer a imagem de democracia tão prezada pelos americanos. Mas em verdade ela reunia os “senhores da guerra”, milicianos de pequenos exércitos, com poderes para traficar armas e dar vantagens a seus cúmplices. Na ausência de um Estado de Direito, são esses cidadãos que definem o que é obrigatório e o que é proibido. O Afeganistão é peculiar.

Foi também preciso atribuir uma imagem de competência ao Executivo do presidente Hamid Karzai. Construiu-se com dinheiro americano uma autoestrada entre Cabul e Kandahar, mas a custo inflacionado, porque as usinas de asfalto eram transportadas por avião. Quanto a Karzai, seus dois irmãos não têm do que se queixar. Um deles foi um poderoso traficante de ópio, enquanto o outro devia US$ 11 milhões ao Banco de Cabul quando este entrou em falência.

Reginaldo Nasser insiste nos equívocos cometidos pela Casa Branca na identificação de inimigos e aliados. O Iraque foi invadido porque Bush acreditava — era também a crença do premiê britânico Tony Blair— que o ditador Saddam Hussein estava envolvido com a distribuição de armas de destruição em massa à Al Qaeda. Outro parceiro fora do foco foi o Paquistão, cujos serviços secretos orientavam terroristas afegãos, em meio a uma retórica de Washington sobre a confiabilidade do establishment local.

O fato é que a guerra se intensificava de modo bissexto, e o Congresso americano criticava seus resultados militares pífios, em troca de até US$ 110 bilhões que em certo ano o governo americano chegou a gastar.

Vieram então as negociações do Talibã com Obama e em seguida com Trump. Aproximava-se o desfecho tranquilo, segundo o roteiro rompido apenas pelo espetáculo do desespero entre 29 e 31 de agosto de 2021, no aeroporto de Cabul.

A LUTA CONTRA O TERRORISMO – OS ESTADOS UNIDOS E OS AMIGOS TALIBÃS – Preço R$ 50. Autor Reginaldo Nasser. Editora Contracorrente. Págs. 264

Eleições no Brasil são a segunda chance para as Big Tech, por Patrícia C. Mello

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Espera-se que tenham aqui a mesma preocupação que tiveram na eleição nos EUA

Patrícia Campos Mello, Repórter especial da Folha, foi correspondente nos EUA. É vencedora do prêmio internacional de jornalismo Rei da Espanha.

Folha de São Paulo, 29/01/2022

Até 14 de fevereiro, as plataformas de internet precisam apresentar ao TSE termos de cooperação com detalhes sobre como estão se preparando para a eleição. Considerando que Jair Bolsonaro e seu entorno mantêm a ofensiva para desacreditar o sistema eleitoral, e levando em conta o show de desinformação no pleito de 2018, as empresas deveriam montar operações de guerra para evitar que sejam usadas para manipular a opinião pública.

Espera-se que Twitter, Facebook, YouTube, Google, Instagram, TikTok e WhatsApp tenham com a eleição brasileira o mesmo grau de preocupação que tiveram com a americana.

O Facebook informou que começou a se preparar para a eleição americana de 2020 dois anos antes —e criou regras específicas para aquele pleito e para o alemão. O aplicativo deixou de recomendar a usuários que entrassem em grupos “cívicos”, com alguma conotação política, e restringiu o número de convites que podiam ser enviados por dia.

Facebook e Instagram proibiram anúncios políticos duas semanas antes da eleição —só retomaram em março de 2021.

O Twitter, que já proibira anúncios políticos globalmente em 2019, passou, na campanha americana, a remover tuítes que incitavam a interferir ou contestar o resultado eleitoral. Começou com alertas em tuítes desinformativos de figuras políticas e perfis com mais de 100 mil seguidores e com bloqueios a retuítes e curtidas.

O YouTube –criticado pela lentidão na remoção de vídeos conspiratórios— criou um painel de checagem de informações em resultados de buscas e baniu anúncios políticos (também no Google) por um mês. Mesmo assim, o movimento “Stop the Steal” saiu do controle, culminou na invasão do Capitólio e persiste até hoje.

No Brasil, sabemos muito pouco sobre os planos das plataformas. As empresas têm equipes dedicadas à eleição de 2022? Vão apresentar normas de uso específicas para o pleito? O que vão fazer se um dos candidatos não aceitar o resultado e insuflar apoiadores? Aqui, duas das empresas promovidas por Bolsonaro, Telegram e Gettr, nem sequer cooperam com o TSE.

Não se sabe se Apple e Google terão políticas para aplicativos de candidatos. O aplicativo Bolsonaro TV foi baixado mais de 100 mil vezes na loja do Google, e o do PT, mais de 50 mil.

Segundo Sophie Zhang, ex-funcionária do Facebook que fez denúncias sobre a empresa, a plataforma ignorou tentativas de sabotar eleições em vários países. Ela disse que havia pouca disposição de proteger a democracia em países que não fossem os EUA ou europeus.

A eleição de 2022 é a chance para as Big Tech provarem que aprenderam com eleições passadas e se importam com a democracia no mundo.

Estado: o retorno daquele que nunca saiu de cena, por Gilberto Maringoni.

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Novo livro mostra: após décadas de ataques, se entrevê um despertar do pesadelo neoliberal. Planejamento estatal será crucial no pós-pandemia. Como retomá-lo frente às sabotagens. Por que ele pode ser caminho para a justiça social

Gilberto Maringoni – OUTRAS PALAVRAS – 28/01/2022

O personagem central deste livro foi cuidadosamente caluniado durante as últimas cinco décadas, aos olhos da opinião pública, em variadas campanhas de desinformação ao redor do mundo. Tido como ineficiente, lerdo, atrasado, obsoleto, perdulário, burocratizado, patrimonialista, foco de empreguismo, preguiça, desperdício e corrupção, entre tantos outros atributos negativos, o Estado foi responsabilizado por quase todos os pecados passados, presentes e futuros da sociedade.

Foi chamado de dinossauro por presidentes, governadores/as, deputados/as, prefeitos/as, empresários/as, acadêmicos/as, intelectuais, dirigentes sindicais, jornalistas, artistas e incontáveis mais, numa corrente ecumênica de detratores. No Brasil, comerciais de TV e rádio nos anos 1990, associavam suas empresas a paquidermes postados na sala de jantar a atrapalhar a faina diária de pacatas famílias de bem.

Seria necessário realizar o desmonte, a desestatização, a privatização, a capitalização, a parceria público-privada, a concessão em busca de melhores preços e qualidade de serviços e produtos para se abolir tais males.

Urgia abrir a economia, derrubar barreiras, desmontar cartórios, varrer privilégios e acabar com a boa-vida de funcionários folgados e indústrias superadas, em um bota-abaixo furioso. As palavras de ordem imediatas passaram a ser reformas, enxugamentos e ajustes. O conceito schumpeteriano de destruição criativa foi açodadamente aplicado de maneira inusitada, com destruição violenta e criatividade exacerbada para as contas de novos controladores de ativos públicos então leiloados.

Nada se inventava ao Sul do mundo. Bastaria repetir o mantra não há alternativa da sra. Margareth Thatcher, com pitadas de Consenso de Washington, tudo regado à infindável e sempre inconclusa busca de credibilidade internacional, para que novos horizontes se descortinassem.

Em nosso país, a cruzada daqueles tempos foi propagada como um embate moral e mortal entre o moderno e o arcaico. A imagem aludida era de um arcabouço gosmento e pegajoso, do qual só nos livraríamos se rompêssemos com a Era Vargas, raiz de nossos percalços e de um capitalismo de compadres, autoritário e paternalista. Um atentado à livre iniciativa, ao direito de propriedade e outras pragas mais.

A vinculação da ação do Estado com o autoritarismo veio a se somar à torrente de meias-verdades (ou meias-mentiras, como disse Millôr Fernandes) lançadas como areia aos olhos do distinto público. Associar planejamento – ou intervenção – estatal na economia com regimes de força é uma velha muleta do liberalismo econômico, que não tem o mesmo sentido de liberalismo político. Em tais argumentos, o país necessitaria urgentemente de choques de capitalismo para se livrar do entulho estatizante. O discurso reverberado em todas as mídias foi alardeado como unanimidade planetária. Conversa fiada, ou fake news, como se diz em português pós-moderno.

Basta lembrar que uma das mais sangrentas ditaduras do século XX, a do Chile de Pinochet (1973-90), foi o laboratório pioneiro das políticas neoliberais, com sua agressiva dinâmica de desregulamentações e alienações de bens e serviços.

Após um longo período de liberalização acelerada, a economia global sofreu pelo menos duas grandes crises, a do subprime, em 2008-09, e a da pandemia do novo coronavírus, em 2020-21. Embora tenham matrizes distintas, ambas tiveram como consequências gerais queima de capital, destruição de meios de produção e fortes intervenções do

Estado em ações anticíclicas. Se no primeiro caso, a ação do poder público restringiu-se a localizadas injeções de capital em corporações privadas, no segundo, tais iniciativas se dão de formas muito mais abrangentes e profundas, e têm suscitado um amplo debate internacional.

É possível dizer que um tabu histórico está sendo rompido. Rapidamente, cortinas de fumaça se desfazem e se torna perceptível que nenhuma economia funciona sem Estado. E que suas diretrizes devem ser objeto de escrutínio público democrático, e não apenas a partir das vontades de especialistas vinculados ao topo da sociedade.

Este livro é fruto de um esforço plural, produzido por autores oriundos de distintas correntes de pensamento, que têm a saudável pretensão de interferir nessas controvérsias. A obra cobre alguns aspectos dos dilemas do desenvolvimento em meio a pesadas turbulências, em especial aqueles voltados para áreas políticas, econômicas e sociais. Está longe de ser totalizante e muitos temas ficaram de fora, até mesmo pela impossibilidade de se examinar de uma única vez a caleidoscópica gama de carências sociais que nos rodeia.

O anti-intelectual, por Angela Alonso.

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Olavo de Carvalho não produziu conhecimento e fugiu do escrutínio acadêmico ao se auto intitular filósofo

Angela Alonso, Professora de sociologia da USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento

Folha de São Paulo, 28/01/2022

Mario Amato ameaçou: 800 mil empresários deixariam o país se Lula ganhasse a eleição. Lula ganhou, Amato (o ex-presidente da FIESP que achou a ministra Dorothea Werneck “inteligente, apesar de ser mulher”) ficou. Quem partiu, em 2005, foi outro antipetista, Olavo de Carvalho, que há tempos esmurrava “esquerdismos” intelectual, político, moral, aglutinados como “marxismo cultural”.

Fixou-se na pátria do liberalismo e lá viveu confortável, entre rifles e uísques. Não por agasalho do livre mercado. Lastreou-se em prata brasileira, oriunda dos pagadores das “aulas” do “professor”.

Foi, assim, como “professor” e “intelectual” que o presidente, filhos e partidários se referiram ao morto nesta semana, em posts reverentes. E até com luto oficial, negado aos outros milhares de mortos pela epidemia que Carvalho minimizou.

Que o bolsonarismo o defina como “filósofo”, “professor”, “intelectual” é uma coisa, que a imprensa reproduza os termos sem aspas, é bem outra. Rigorosamente, Carvalho nunca foi nada disso.

Na acepção contemporânea, filósofo ou professor remetem ao ensino formal. É quem tem diploma na área, conferido por instituição reconhecida. Carvalho nunca concluiu curso em universidade. Trata-se de um formalismo, pois há tanto gente diplomada ignorante, como gênios sem canudo. Contudo, é, ao menos em parte, prevenção contra charlatanismo.

Garante que seu portador sofreu o escrutínio de pares, do qual Carvalho escapou.

Pode-se dizer que era filósofo autodidata. Mas, segundo quem? Autoproclamar-se é insuficiente. É preciso o reconhecimento por uma comunidade produtora de conhecimento. Carvalho nunca compôs corpus de universidade, onde se garante o princípio basilar do conhecimento: a intersubjetividade. Na rotina universitária não há trabalho, em nenhum estágio da carreira, que não passe pela avaliação interpares.

Não basta enunciar uma tese, é preciso discuti-la com quem estuda mesmo assunto, submeter-se às ponderações acerca da estrutura da argumentação, dos procedimentos, da demonstração. Passar de palpite a conhecimento exige aguentar estes açoites. Carvalho nunca se submeteu a eles.

Tampouco foi intelectual para além do sentido rebaixado do termo, de difusor de ideias. Nunca produziu obra aglutinando conhecimento original. Escreveu basicamente na imprensa —inclusive no Globo e nesta Folha— pílulas de polêmica e idiossincrasia, destilando o ressentimento com a esquerda que nutrem ex-esquerdistas desiludidos. Nisso padeceu de falta de originalidade.

A comunidade acadêmica jamais o reconheceu porque nunca produziu conhecimento, produziu opinião. Nisso foi mestre, reconhecido por outra comunidade, a que professa seus valores.

Seus escritos compõem um lamento azedo e malcriado contra o que via como decadência civilizacional e corrupção moral, resultantes da democratização social, cultural, étnica, política acelerada por governos de esquerda. Textos cujo cerne é o antimodernismo e a defesa das hierarquias tradicionais. Por aí se entende seu fascínio sobre os bolsonaristas.

Carvalho achou neles um séquito. Aliás, seu treino no esoterismo tradicionalista explica a capacidade de ascender a guru de um culto. O portador execrava o epíteto, mas lhe assenta bem. A vida intelectual exige o antidogmatismo, a dúvida acerca das próprias crenças. Já a religião pede a fé. Por isso, seus cultuadores não desaparecerão com ele. Seguirão tão anti-intelectuais quanto seu guia.

Cortes na educação, por Claudia Costin.

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Na educação básica, investimos menos da metade por aluno do que a média da OCDE

Claudia Costin, Diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais, da FGV, e ex-diretora de
educação do Banco Mundial.

Folha de São Paulo, 28/01/2022.

Tivemos, nesta semana, o Dia Mundial da Educação, data estabelecida pela ONU para mobilizar as sociedades pelo direito dos povos a uma educação de qualidade para todos. Por conta da efeméride, o Unicef disponibilizou dados aterradores sobre o efeito da pandemia na frequência escolar e na aprendizagem das crianças em alguns países, incluindo o Brasil.

Já sabíamos que, com o longo fechamento das escolas (maior que em boa parte dos países), a baixa conectividade e a falta de equipamentos ou livros para aprender, teríamos insuficiências, especialmente na alfabetização, e um abandono escolar relevante. Mas, ao destacar o caso brasileiro, Robert Jenkins, chefe global do Fundo das Nações Unidas para a Infância, destacou que, em vários estados brasileiros, três em cada quatro crianças do segundo ano do ensino fundamental estão com leitura bem abaixo do esperado e que um em cada dez alunos de 10 a 15 anos não pretende voltar às aulas quando as escolas reabrirem.

Alertou também para um desafio adicional que acometeu vários países: o agravamento da insegurança alimentar com a perda do que seria, para muitas crianças, a única fonte confiável de nutrição diária, a merenda. Fez menção também ao grave problema de saúde mental dos alunos, com um aumento de casos de ansiedade e depressão. Poderíamos reforçar o diagnóstico do Unicef com uma referência ao triste retrocesso ocorrido no combate ao trabalho infantil.

Nestas circunstâncias, seria urgente pensar numa operação forte para recuperar as aprendizagens perdidas, prolongar a jornada escolar (hoje reduzida no Brasil a inaceitáveis quatro horas, em média), contratar professores para o reforço e aperfeiçoar a infraestrutura das escolas. Deveríamos, além disso, avançar em direção a uma educação transformada e não apenas retomar a que tínhamos em 2019, com aprendizagem já insuficiente, desigualdades educacionais e uma baixa atratividade da carreira de professor.

O que estamos fazendo? Diferentemente de outros países que passaram a investir mais em educação para recuperar o que se perdeu, cortamos o orçamento de educação básica do MEC. Chegamos mesmo a pôr em risco o reajuste exigido por lei no piso salarial dos professores.

Há uma lenda de que o Brasil gasta muito em educação e que só faltaria gestão. Na realidade, investimos menos da metade por aluno, na educação básica, do que a média da OCDE. Pagamos também a nossos professores menos da metade do que eles. Faltam, assim, tanto recursos quanto gestão.

Precisamos, com urgência, sair do discurso fácil de que educação é prioridade e colocar o futuro das crianças, de verdade, no Orçamento.

Milionários e Bilionários

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O mundo do século XXI é marcado por grandes incertezas e instabilidades, a pandemia elevou os desafios, aumentaram os medos e os desequilíbrios emocionais, acelerou as transformações nos modelos de negócio, gerando e alimentando preocupações crescentes, dificuldades de sobrevivência, preocupações de infecção do vírus, a percepção da degradação do meio ambiente, o aumento da miséria e da exclusão social, além das crises econômicas e as novas, cada vez mais elevadas, exigências no mercado de trabalho.

Neste ambiente, as pesquisas nos mostram o incremento dos números de bilionários na sociedade mundial, números que crescem de forma acelerada e convivem com o aumento vertiginoso de pobres e miseráveis, gerando graves constrangimentos em todas as regiões, criando novos desafios para os gestores da sociedade, evitando que os constrangimentos se tornem violências crescentes e abertas dentro das comunidades locais, levando a destruições e custos sociais elevados.

Os novos ares do mundo contemporâneo nos mostram claramente que a sociedade mundial conseguiu aumentar, nos últimos trinta anos, as riquezas da coletividade global, gerando mais riquezas e novos recursos monetários e financeiros. A nova sociedade global gerada pela pandemia desnudou uma situação de degradação crescente entre todos os grupos sociais, pela primeira vez, as riquezas e as pobrezas estão próximas umas das outras.

Anteriormente, o mundo era dividido entre países ricos, dotados de forte crescimento industrial e países pobres, meros produtores de produtos primário de baixo valor agregado com população miserável. Atualmente, encontramos dentro das nações, convivendo ricos e pobres, além do crescimento dos conflitos sociais, desequilíbrios políticos e impactos generalizados.

Neste ambiente, os dados da Oxfam nos mostram números assustadores, nele percebemos que as fortunas das dez pessoas mais ricas do mundo passaram de US$ 700 bilhões para US$ 1,5 trilhão – a uma taxa de US$ 15 mil por segundo, ou US$ 1,3 bilhão por dia – durante os dois primeiros anos da pandemia, com isso, os dados descritos mostram que um novo bilionário surgiu no mundo a cada 26 horas. Num momento de grandes transformações e incertezas geradas pela pandemia, a renda de 99% da humanidade caiu na comparação de março de 2020 e novembro de 2021, contribuindo para a degradação que estamos vivenciando na sociedade internacional.

No Brasil, os dados divulgados pela Oxfam nos mostram preocupações, são 55 bilionários com riqueza total de US$ 175 bilhões, onde desde 2020, quando a pandemia foi declarada, o país ganhou dez novos bilionários. Ao analisar os pormenores, percebemos que enquanto 90% da população teve uma redução de 0,2% entre 2019 e 2021, os bilionários tiveram um incremento da riqueza durante a pandemia em 30%, denotando a degradação da renda da sociedade com impactos sociais na coletividade, levando uma parte mais fragilizada da sociedade a revirar lixos em busca de alimentos e para sobrevivência neste momento de caos, mesmo sabendo que somos um dos maiores produtores de grãos da economia mundial.

Numa sociedade civilizada, o crescimento da riqueza deve ser estimulado e fortalecido, investindo em educação e melhorando o capital humano da coletividade, o grande problema é a dissonância crescente entre o aumento da riqueza, da ostentação e o incremento da pobreza e da miserabilidade da população, denotando uma sociedade que se degrada todos os momentos. A pandemia deixou marcas visíveis da sociedade brasileira, a riqueza deve ser estimulada para todos os grupos sociais, mas cabe a mesma sociedade analisar as raízes destas riquezas, muitas delas foram construídas em cima da corrupção, da evasão, da exploração e da sonegação.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Administrador, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 26/01/2022.

Nova edição ilumina lacunas históricas de clássico de Faoro

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‘Os Donos do Poder’, referência sobre patrimonialismo, abarca frustração do pensamento liberal com o Brasil

Folha de São Paulo, 23/01/2022.

Paulo Henrique Cassimiro, Professor do Departamento de Ciência Política da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)

[RESUMO] Reedição ampliada de “Os Donos do Poder”, clássico de Raymundo Faoro, recoloca a tese, nem sempre bem fundamentada, de que o progresso no Brasil é bloqueado pela perpetuação da dominação patrimonial e estamental, que impede a formação de uma sociedade moderna.

A nova edição de “Os Donos do Poder: Formação do Patronato Político Brasileiro” — livro mais importante do jurista e escritor gaúcho Raymundo Faoro —, publicada em 2021 pela Companhia das Letras, reproduz a segunda versão da obra, lançada originalmente em 1975, acrescentando novo prefácio do jurista José Eduardo Faria e posfácio dos cientistas políticos Bernardo Ricupero e Gabriela Nunes Ferreira.

A edição também é acompanhada de fortuna crítica, com textos do historiador americano Richard Graham, do sociólogo Simon Schwartzman e do cientista político Marcelo Jasmin.

Publicado pela primeira vez em 1958 pela Editora Globo, “Os Donos do Poder” concluía suas pouco mais de 250 páginas afirmando que a principal herança de Portugal para nossa formação histórica era a impossibilidade do surgimento de uma “verdadeira cultura brasileira”. Incapaz de diferenciar-se do legado colonial, a nação brasileira seria apenas uma sombra despida de originalidade e presa das estruturas de dominação estatais.

Vinte e três anos depois, ao publicar a segunda edição, acrescida de aproximadamente 500 páginas, as referências teóricas da conclusão mudam consideravelmente: a análise das dinâmicas históricas das culturas e civilizações, inspiradas pelo historiador Arnold Toynbee, é abandonada em favor de considerações sobre o desenvolvimento do capitalismo e a formação do Estado moderno em diálogo com o marxismo e a sociologia de Max Weber.

O diagnóstico, contudo, permanece o mesmo: o progresso que, nas palavras do autor, “se combinou com o liberalismo”, está impedido pela perpetuação da dominação patrimonial e estamental, responsável pela ausência de uma sociedade moderna no Brasil.

A principal tese de “Os Donos do Poder” pode ser resumida da seguinte forma: a criação do Estado português não foi resultado da superação do feudalismo —etapa histórica de descentralização política e marcada por relações contratuais entre senhores e servos—, mas nasceu da aliança entre monarquia e comércio, resultando em uma estrutura política marcada pelo predomínio da Coroa, responsável por organizar a atividade comercial como uma iniciativa predominantemente estatal.

Do ponto de vista econômico, o absolutismo português favoreceu o capitalismo comercial comandado pelo Estado por meio da expansão colonial e da economia escravista.

Se o padrão de nascimento do capitalismo nas nações modernas é visto por Faoro como resultado da transação do feudalismo para o capitalismo de manufaturas, antessala do capitalismo industrial, a ausência do período feudal retira Portugal dos trilhos da história moderna e acaba por reduzi-lo à dependência de uma economia gerenciada por agentes estatais.

O predomínio desse capitalismo politicamente orientado impediu o livre surgimento da competição guiada por interesses de classe, em favor de uma lógica patrimonial em que os detentores do controle estatal utilizariam as estruturas políticas para aumentar seus ganhos econômicos.

Na explicação oferecida por Faoro, a gestão do Estado seria responsabilidade de uma corporação de poder —o estamento—, que agiria para reproduzir as condições de manutenção do mando político.

O estamento não se confunde, contudo, com uma classe social: a precedência do Estado sobre os interesses de classe e o domínio político sobre as oportunidades econômicas fazem com que o estamento anteceda as classes no controle do poder.

Mesmo quando estamento e classe se confundem, a ocupação do aparato estatal prevalece sobre a influência política da riqueza privada.

É justamente essa ordem política —centralizadora, patrimonial e estamental— que, transposta para o Brasil pelos portugueses, explicaria a perpetuação de uma mesma estrutura de poder: o livro percorre toda a história brasileira da Colônia até Vargas para tentar demonstrar a força de cooptação do estamento que sufoca a nação verdadeira — o povo — e impede a autonomia das atividades produtivas e a livre organização das forças sociais.

A história brasileira teria, para Faoro, a circularidade de uma “viagem redonda” da qual o país não fora capaz de se desvencilhar: “De D. João I a Getúlio Vargas, numa viagem de seis séculos, uma estrutura político-social resistiu a todas as transformações fundamentais, aos desafios mais profundos, à travessia do oceano largo”.

É justamente na sedução da ideia de “estamento” que reside o principal problema do argumento de “Os Donos do Poder”. Ao percorrermos as mais de 600 páginas de reconstrução histórica da obra, seu autor falha em nos demonstrar empiricamente a existência de um estamento que se diferenciasse da classe dominante.

A narrativa de Faoro nos revela disputas internas entre as elites, pactos de conciliação entre facções, vínculos estreitos entre o controle do Estado e interesses econômicos, esperanças intelectuais por maior democratização do poder frustradas, mas em nenhum momento ela é capaz de nos convencer da existência de um estamento determinado por práticas específicas de reprodução do poder, que existiria para além dos conflitos e acordos internos entre as elites ligadas ao predomínio econômico do latifúndio.

Como afirmou Richard Graham em resenha publicada nos Estados Unidos poucos anos após a segunda edição do livro, Faoro não ampara sua afirmação da existência do estamento em “evidências históricas robustas” e em “raciocínios convincentes” e falha, sobretudo, em demonstrar um conflito verdadeiro entre burocracia estatal e oligarquia latifundiária.

De modo semelhante, em “A Construção da Ordem”, um dos principais estudos brasileiros sobre formação das elites políticas imperiais, o cientista político e historiador José Murilo de Carvalho ressalta a falta de comprovação suficiente da tese do estamento: para ele, a homogeneidade da elite provinha de sua socialização por meio de uma educação comum em Portugal e do treinamento para ocupar posições de mando estreitamente vinculado à grande propriedade agrária, e não da existência de uma estrutura política e burocrática perene que se reproduziria de modo autônomo.

Além disso, a ideia faoriana de “povo”, personagem excluído da participação política pela ação autoritária do Estado estamental, carece totalmente de perspectiva histórica. Como observa Simon Schwartzman em um dos textos que acompanha a presente edição, Faoro tinha uma visão “totalmente a-histórica” do fenômeno que estudava. O “povo em germe” de sua narrativa é sempre o mesmo, definido pela ausência.

“Os Donos do Poder” ignora como o processo de democratização nos Estados modernos obedeceu a tensões historicamente diversas entre o fechamento oligárquico do sistema político e demandas de inclusão por parte de grupos excluídos. A obra não nos mostra quais grupos populares e demandas democratizantes teriam existido, nem suas tensões com os donos do poder.

À exceção da campanha de Rui Barbosa pela “verdade do voto”, a luta por democratização não tem lugar no livro: o “povo” não é só um ator político excluído pelas elites, é antes uma ausência na história brasileira narrada por Faoro.

Em verdade, interpretar as falhas e faltas históricas em “Os Donos do Poder” nos permite perceber que o “estamento” é menos uma formação social e política específica, mas uma ideia que ilustraria a tendência do Estado brasileiro para cooptar —por meio da absorção pela burocracia e pela distribuição de benefícios e posições— quaisquer dinâmicas sociais autônomas que poderiam despertar algum conflito com a ordem estatal patrimonialista.

Além de um “romance sem herói”, como o chamava seu autor, “Os Donos do Poder” é um romance de fantasmas em que —como na novela de Henry James, “A Outra Volta do Parafuso”— a ação é conduzida por forças ocultas cuja presença material não se dá nunca a conhecer com certeza, a não ser pela “anormalidade” do comportamento de suas personagens.

Nesse sentido, intérpretes como Jessé de Souza têm razão ao afirmar que as distorções no uso do conceito sociológico de estamento em Faoro são, em boa parte, consequências de seu esforço para produzir uma crítica totalizante do Estado brasileiro.

Contudo, como apontam Bernardo Ricupero e Gabriela Nunes no posfácio da nova edição, o livro não trata de contrapor ao Estado as virtudes de um mercado autorregulado. “Os Donos do Poder” não é obra de um neoliberal, mas de um democrata desencantado com as promessas frustradas da democracia liberal no Brasil.

Diante dessas diversas insuficiências históricas, o que poderia ser dito sobre a obra que justificaria sua republicação 46 anos depois da segunda —e definitiva— edição?

Em primeiro lugar, um texto não se faz clássico apenas pela veracidade inquestionável de suas conclusões. As teses faorianas sobre o surgimento do Estado centralizador, do patrimonialismo e do estamento colocaram desafios teóricos importantes para cientistas sociais que buscaram compreender a formação política brasileira e os modos pelos quais a apropriação privada do Estado foi operada pelas elites em nossa história.

Trabalhos fundamentais para o desenvolvimento das ciências sociais no Brasil como os de Simon Schwartzman, Fernando Uricoechea, José Murilo de Carvalho, Florestan Fernandes, Luiz Werneck Vianna e Wanderley Guilherme dos Santos —para citar alguns poucos— estão em diálogo crítico com o livro.

Também não se pode ignorar o impacto cultural e ideológico da obra. “Os Donos do Poder” é uma suma notável das insatisfações acumuladas pelo pensamento liberal ao longo da história brasileira.

A apologia da sociedade de indivíduos livres e a condenação do Estado como o sufocador de seu desenvolvimento autônomo, a crítica ao nacionalismo e ao desenvolvimentismo pós-Vargas como manifestações máximas do “estatocentrismo” brasileiro, o entusiasmo com a descentralização política e administrativa, a apologia do Judiciário como ator privilegiado para promover a autonomia da sociedade —todos esses avatares da frustração liberal com o Brasil podem ser encontrados nas páginas do livro.

Como nos revela Marcelo Jasmin no ensaio que encerra a nova edição da obra, “Os Donos do Poder” é uma análise marcada pela “afirmação da ausência” de certos elementos que, retirados do modelo europeu de desenvolvimento, indicariam o “caminho” percorrido pelas nações desenvolvidas: a autonomia da sociedade civil organizada, o mercado regulado pela lei da competição, a neutralidade das instituições estatais, entre outros.

Para Jasmin, o livro nos apresenta uma “história em negativo”: o livre desenvolvimento das leis da racionalidade da modernidade —representadas pelo pensamento liberal e sua ideia de progresso— estariam ausentes da experiência brasileira, graças ao domínio perpétuo de um Estado de vícios seculares herdados de um Portugal que, por sua vez, também se encontrava às margens da modernidade.

A viagem redonda da nossa história, tal como narrada por Raymundo Faoro, não seria nada mais que um pesadelo do qual os liberais brasileiros nunca foram capazes de despertar.

OS DONOS DO PODER: FORMAÇÃO DO PATRONATO POLÍTICO BRASILEIRO – Preço R$ 109,90 (832 págs.); R$ 44,90 (ebook); Autor Raymundo Faoro Editora Companhia das Letras.

Volta do Brasil ao Mapa da Fome é retrocesso inédito no mundo, diz economista.

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Um dos criadores do Fome Zero, Walter Belik critica o desmonte da rede de segurança alimentar pelo governo Bolsonaro

Suzana Petropouleas – Folha de São Paulo – 24/01/2022

SÃO PAULO

Um dos criadores do Fome Zero e um dos principais pesquisadores em segurança alimentar no Brasil, Walter Belik, professor aposentado do Instituto de Economia da Unicamp, defende que o governo Bolsonaro conduz uma política deliberada de desmonte das iniciativas contra a fome no país.

Belik relembra a criação do Fome Zero como um projeto pluripartidário. Desenhado originalmente como um programa de distribuição de cupons para troca por alimentos, ele foi substituído pelo Bolsa Família, carro-chefe da política social de Lula, e o nome passou a designar uma estratégia de segurança alimentar. As iniciativas pavimentaram a saída do Brasil do Mapa da Fome da FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação da Agricultura) em 2014.

O cenário mudou a partir de 2015, diz Belik, com a escalada inflacionária, a ausência de recomposição do valor de benefícios sociais e um desmonte das políticas de segurança alimentar, sobretudo no governo Bolsonaro.

O país voltou ao Mapa da Fome em 2018 e, em 2020, registrou 55,2% da população convivendo com a insegurança alimentar, segundo pesquisa da Rede Penssan. Cenas observadas em 2021, como pessoas buscando ossos e carcaças para se alimentar e os diversos protestos contra a fome, não podem ser creditadas só à crise provocada pela pandemia, diz ele.

A que o sr. atribui o avanço da fome nos últimos anos? O aumento era previsível. Tivemos uma redução até 2014 e a subida começa a aparecer já em 2017. O ano de 2018 já configura uma volta do Brasil ao Mapa da Fome. Esse dado se confirma e agrava nos anos seguintes, segundo dados da Reden Penssan e ONU. Em 2022, a tendência é de continuidade nesse aumento.

A ONU associa a insuficiência alimentar grave e moderada a um quadro de fome. Tomando as duas porcentagens, chegamos a um quadro de aproximadamente 25% da população em situação vulnerável. É bastante crítico. É um quadro complicadíssimo, um quarto da população está passando fome no Brasil.

Os impactos para a economia são enormes, porque existe um custo social da fome. Esse custo deve ser gerenciado pelas políticas públicas. Ele impacta no sistema de segurança social, no Orçamento, na saúde, na educação —com atraso de aprendizagem das crianças—, e no mercado de trabalho, com redução da mão de obra e da produtividade.

Colocando na balança, prevenir seria mais barato. A fome custa caro.

O quanto a pandemia afetou a fome? Não dá para atribuir a fome só à Covid, pois se tivéssemos uma rede de proteção social em funcionamento, não teríamos um quadro tão complicado quanto o que estamos vivendo.

O programa de estoques de regulação da Conab, por exemplo, baseado principalmente em compras da agricultura familiar, acabou. Boa parte da crise de desabastecimento e alta de preços em 2020 tem a ver com a ideia de que o Brasil não precisa de estoques reguladores de alimentos, o que é absurdo não só do ponto de vista de segurança alimentar, mas nacional.

O país depender de importações e da variação de preços internacionais é absurdo, diante do quadro de abundância que temos no Brasil.

O sr. fala em desmonte da rede de segurança alimentar no governo Bolsonaro. Quais políticas foram afetadas? A lista é extensa. O Bolsa Família, desidratado, passou de um programa de transferência de renda com condicionalidades para um de doação. Com o Auxílio Brasil, a ideia de proteção e assistência social dessas famílias foi escanteada.

O Pronaf [Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar] foi desidratado e os valores cortados em 35%. O programa de reforma agrária, a Secretaria de Agricultura Familiar, o programa de estoques de regulação da Conab e o programa de cisternas, todos foram descontinuados.

O PAA [Programa de Aquisição de Alimentos], que priorizava a compra de alimentos de agricultura familiar para doações ou alimentação escolar e chegou a comprar quase R$ 1 bilhão, garantindo renda para os pequenos produtores, acabou.

O programa de banco de alimentos virou o “Comida no Prato”, assistencialista e criado pelo governo para faturar em cima do trabalho feito há duas décadas pelos bancos de alimentos do Brasil, organizados pela sociedade civil, basicamente. O programa de restaurantes populares foi descontinuado, e hoje vivemos um congestionamento nos restaurantes populares de R$ 1, graças à perda de renda da população. O programa de cozinhas comunitárias acabou.

Agora, o governo quer mexer no PAT [Programa de Alimentação do Trabalhador] e reduzir a isenção fiscal das empresas que promovem o vale-alimentação ou tem restaurante na empresa. Todos os programas de abastecimento, como modernização ou mesmo privatização das Ceasas, também acabaram. Elas se tornaram obsoletas, mas têm papel importantíssimo no abastecimento urbano.

Uma coisa é consertar um programa, outro é extingui-lo. Tem uma lista enorme de programas finalizados em nome de resolver problemas fiscais e respeitar o teto de gastos, que depois foi furado.

Por que o sr. critica o programa Comida no Prato? Esse caso é escandaloso. Em 2017, foi criada a Rede Brasileira de Banco de Alimentos, ideia de muito tempo atrás que visava melhorar a comunicação entre os mais de 200 bancos pelo país e reduzir custos. São na maioria ONGs e entidades civis.

O governo Bolsonaro centralizou os cadastros de doações de novos doadores, como supermercados ou indústrias, e promete isenção do ICMS a elas. Ora, esse imposto é estadual e a maioria dos alimentos doados são frescos. Estados como São Paulo não cobram ICMS sobre eles. É uma medida inócua e populista.

No caso dos industrializados, onde incide IPI, não há isenção nenhuma.

O governo quer concentrar as informações em torno dele para depois dizer que está fazendo uma ação de solidariedade, mas ele não faz nada, quem faz são as empresas que doam e as ONGS. É escandaloso. É para funcionar na propaganda política de 2022. Uma tristeza de ver.

Como a questão da fome pode afetar as eleições de 2022? Se em campanhas anteriores os temas eram corrupção e segurança pública, esse ano vai ser saúde, em primeiro lugar, e alimentação.

Estamos numa situação de retrocesso que é única no mundo. Não há sequer um caso na história documentado pela FAO de um país que saiu do Mapa e voltou. Nenhum. Esse é o tamanho da tragédia que estamos vivendo.

A tragédia que estamos vivendo com a fome choca qualquer pessoa que trabalha na área ou vê a situação. Deve ser prioridade número um na cabeça de qualquer programa de governo. Lógico que, vindo do Bolsonaro, não é algo sério, é eleitoreiro. Mas diria que os outros têm uma preocupação com isso e, nas campanhas, será fundamental.

O sr. defende um Fome Zero 2.0 caso Lula, que lidera as pesquisas, seja eleito? Não sou filiado ao PT. Não sei exatamente o que está sendo discutido hoje, em nível de programa de governo. Mas diria que qualquer pessoa de bom senso vai ter que atacar esse problema como o número um.

Talvez não seja mais uma bandeira do PT, mas uma bandeira da sociedade civilizada como um todo. É uma questão civilizatória. Mais da metade da população vive em insegurança alimentar, segundo os últimos dados. Você não pode virar as costas para isso.

Não é possível que algum candidato, que tenha algum senso de solidariedade e uma certa empatia pelo povo brasileiro, possa conviver com uma situação como essa. Não é possível. Então não é um problema só do candidato Lula, mas de todos os candidatos.

Por que o Fome Zero não conseguiu eliminar a fome de forma estrutural? Programas de transferência de renda são o primeiro passo. Quem tem fome tem pressa. Tem que garantir uma cesta básica, alimentação na mesa dessas famílias.

O passo seguinte, de fato gigantesco, é atacar as questões da pobreza de forma multidimensional. Dados mostram que o gasto em transporte ultrapassou o gasto com alimentação, tradicionalmente o maior das famílias. Como garantir alimentação se o sujeito vai gastar uma parte da transferência de renda para pagar o transporte para trabalhar?

Aproximadamente 30 milhões estão em trabalhos precários e não têm vale-transporte. Gasta-se para trabalhar.

Habitação é outro item de despesa que está no mesmo nível do gasto com alimentação, em torno de 20%.

Não dá para ter um programa de alimentação sem analisar essas outras dimensões que compõem a pobreza. O que que precisa ser feito? O que não foi feito? É passar dessa fase de programa ligados à segurança alimentar para programas mais gerais, que possam garantir a erradicação da pobreza, o objetivo número um do milênio da ONU. E erradicar a pobreza não é só renda, tem outras questões relacionadas.

O que um programa de combate à fome atual deve fazer de diferente do que foi feito no Fome Zero? O programa número um agora seria de abastecimento dos centros urbanos, tema para o qual o programa não apresentou respostas de maior amplitude. Foram respostas pontuais.

Tem que modernizar as relações de abastecimento e comercialização, do campo ao consumidor final. Estamos numa era da economia digital e devemos aproveitar todos os elementos dados pelas plataformas digitais: reduzir a intermediação, agilizar sistemas, promover a padronização e classificação no campo e a definição de embalagem para redução do desperdício, melhorar sistemas de transporte e plataformas de comercialização, além de conectar centrais de distribuição com a agricultura familiar, principalmente os produtores mais pobres.

É possível fazer. Também é preciso estabelecer relações mais permanentes entre o consumidor e o produtor, por exemplo, através de modelo de assinatura de cestas de alimentos frescos e saudáveis.

A qualidade da alimentação também piorou na pandemia, com aumento do consumo de ultraprocessados. Como atacar esse problema? Ultraprocessados são mais baratos e fáceis de encontrar.

Precisamos garantir melhoria da renda no campo e no abastecimento na cidade. Temos uma rede de Ceasas (Centrais de Abastecimento) maravilhosa, construída na década de 70, que está se deteriorando. Ela pode cumprir esse papel.

A Ceagesp (Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo), por exemplo, tem seu volume comercializado estagnado há dez anos. Está sendo comida pelas bordas pelo atacado moderno, que atua via supermercados. É importante prover este sistema de distribuição para feiras livres, de pequenos comércios, compra direta para o consumidor.

De nada adianta você fazer uma transferência de renda de R$ 600 e a pessoa comprar um alimento muito industrializado. Algumas áreas são verdadeiros desertos alimentares e isso piorou na pandemia: não tem feira, não tem distribuição, circulação de alimento fresco.

A ideia é que você possa reconectar as pessoas que recebem transferência de renda com uma alimentação saudável, garantindo renda também no campo.

No curto prazo, algo deve mudar no panorama da fome no Brasil? Esse ano ainda será bastante complicado. Com a situação fiscal do Brasil se estabeleceram alguns tetos. As emendas parlamentares tratam de questões ligadas a infraestrutura. Então não há nenhum programa consistente voltado para combater este problema agora, no curto prazo.

E a pandemia, que se imaginava controlada, passa por novo descontrole. Não vejo muita condição de resolver o problema.

Ainda mais porque teremos um ano de recessão, com previsões de crescimento em zero, 0,29%. E com crescimento zero tem-se a persistência do desemprego e queda de renda.

O quadro internacional também está relativamente complicado, então vamos continuar com aumentos de preços. Diria que 2022 não vai apresentar nenhum refresco. Em 2023, com seja lá quem ganhar a eleição, que não seja o Bolsonaro, teremos a possibilidade de atacar esse problema de frente.

Walter Belik, 66, é graduado em administração de empresas pela FGV, com mestrado pela mesma instituição e e doutorado em economia na Unicamp. Fez pós-doutorado no University College de Londres e no Departamento de Agricultura e Economia dos Recursos Naturais da University of California, em Berkeley, Estados Unidos. É professor aposentado de economia agrícola do Instituto de Economia da Unicamp e professor convidado na University of Kassel, Alemanha. Coordenou a Iniciativa América Latina e Caribe Sem Fome da FAO (Organização para a Agricultura e Alimentação das Nações Unidas), até 2008 e desde 2013 é membro do Painel de Alto Nível da ONU de Experts para a Segurança Alimentar Mundial. Publicou mais de 200 artigos científicos, além de livros e textos de divulgação na área de agricultura e alimentação.

PM aposentado conta assalto e sequestro que sofreu e critica políticas de segurança

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Para tenente-coronel, armar a população é medida populista e Estado deve acabar com certeza de impunidade

Folha de São Paulo – 23/01/2022

Adilson Paes de Souza Tenente-coronel aposentado da Polícia Militar do Estado de São Paulo, mestre em direitos humanos e doutor em psicologia escolar e do desenvolvimento humano pela USP. Membro da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo

[RESUMO] Oficial aposentado da PM de São Paulo narra a experiência de ter a casa invadida por cinco assaltantes e ser sequestrado. O crime serve como ponto de partida para discutir entraves à segurança pública e apontar o papel nocivo do consumismo, da desigualdade e das políticas armamentistas na promoção da violência.

Faço uso da minha trajetória e da minha experiência pessoal como fio condutor deste artigo.

Procuro empregar várias perspectivas nesta abordagem: do policial que, no início da carreira, seguia acriticamente os ditames e os valores professados pelo grupo; do policial que, após um ponto de ruptura, passou a ser um crítico da instituição; do pesquisador no campo da violência e do sofrimento policial, incluindo suicídio, e da vítima da violência (roubo e sequestro).

Chegou o momento de compartilhar o que aconteceu comigo e com a minha esposa há algum tempo. Em 9 de outubro de 2021, nós fomos vítimas de um roubo.

Cinco jovens invadiram a nossa casa enquanto estávamos dormindo. Fomos acordados, repentinamente, com mãos nos sufocando contra o travesseiro, armas apontadas para as nossas cabeças e a imagem, inesquecível e aterrorizante, de pessoas à nossa volta, falando todos ao mesmo tempo, encapuzados e vestindo luvas pretas.

Eles entraram na nossa casa sorrateiramente, sem fazer qualquer barulho. Passamos várias horas sob o seu jugo, sofrendo ameaças de morte. Eles fizeram várias vezes roleta-russa, apontando um revólver para as nossas cabeças. Bradavam a todo momento que queriam joias e dinheiro e perguntavam pelo cofre.

Nós passamos a ser um troféu, uma diversão para eles —em um dado momento, eles fizeram selfies conosco. Eles nos aterrorizaram falando de sexo e tortura e ameaçaram efetuar disparos em partes dos nossos corpos.

Para eles poderem sair de casa, fui levado como refém. Enquanto dois deles saiam comigo no meu veículo, três outros permaneceram com a minha esposa. Fui trancado no porta-malas e levado a um cativeiro, onde eles me amarraram.

O sequestro visava à realização de transferência bancária por meio de Pix, e, para isso, eles precisavam esperar até o horário em que valores maiores pudessem ser transferidos.

Há um trauma ainda em elaboração e temores que brotam em situações inusitadas. Por isso, estamos sob acompanhamento médico e psicológico.

O culto à virilidade exacerbada — consubstanciada no tom de voz ameaçador, no domínio físico e emocional sobre nós e no manuseio ostensivo de armas— expressava o desejo de domínio e poder.

Muito já foi dito sobre o fascínio dos homens pelo falo e sua imagem de poder. A maneira como os cinco jovens exibiam e manuseavam as armas representava o constante manuseio do falo, objeto de desejo e de supremacia. Eles mandavam e faziam questão de demonstrar isso.

O fascínio pelos bens de consumo também era evidente. Estavam todos contaminados pela ode aos objetos que pudessem simbolizar prestígio e, talvez, uma melhor posição social.

Roubaram todos os meus casacos. Pude reparar que eles provavam as roupas e ficavam excitados quando as peças de vestuário serviam.

Também notei que eles queriam ser quem nós somos, ocupar a nossa posição social. Foi interessante notar quão arraigada a sociedade de consumo está na nossa dinâmica social. A pessoa é aquilo que veste e ostenta.

Quero deixar bem claro que não nutro nenhuma simpatia ou apreço por qualquer um deles. Não estou sob os efeitos da síndrome de Estocolmo e tampouco quero relativizar o crime.

Dois deles, com quem conseguimos dialogar, explicitaram a revolta contra suas condições de vida. Falaram das suas famílias grandes, dos pais que abandonaram a mãe e os filhos, dos bairros irregulares e sem infraestrutura em que moravam. Em um momento, vaticinaram: “É dessa maneira que vamos conseguir a igualdade social”, apontando as armas novamente para nós.

Ponderamos, dentro dos limites que a situação nos impunha, que reconhecíamos que a marcante desigualdade social do país era geradora de infortúnios de toda sorte e afirmamos que lutávamos contra ela. Contudo, deixamos claro que divergíamos da maneira como eles veiculavam a insatisfação social, usando armas, porque isso geraria mais violência e agravaria a situação.

Notei que esses dois jovens expressavam, talvez sem se dar conta disso, um sentimento de abandono à própria sorte e a necessidade de buscar um tipo de “justiça” e meios de subsistência por conta própria. O Estado estava ausente:
todos contra todos e que vença o mais forte.

Sou oficial aposentado da Polícia Militar, e é conhecida a minha posição crítica em relação à atuação estatal, por meio dos órgãos de repressão, com violência, abuso e arbitrariedade. Muito critiquei a letalidade policial e desenvolvo pesquisas sobre violência, desde a formação até a atuação policial.

Tenho uma profunda preocupação com o tema e desejo poder colaborar para que mudanças ocorram. Também gostaria de tentar oferecer alguma contribuição para que jovens, como os que invadiram a minha casa, não sejam vítimas do abuso estatal.

Sei que não teria tido a mínima oportunidade de viver se eles tivessem descoberto que sou policial. Não teria tido tempo suficiente para explicar a minha posição. Vivenciei uma situação difícil, porque lutava pela minha sobrevivência também em razão da profissão que exerci.

Para mim, algumas questões são evidentes. Trato delas a seguir.

1. Não há espaço vazio. Sei que essa é uma expressão muito usada, mas senti na pele esse fenômeno. A falta de oportunidades de vida, que deveriam ser proporcionadas pelo Estado, faz com que contingentes cada vez maiores de pessoas sejam atraídas para o mundo do crime.

Atenção aos arautos do caos, da repressão policial e da brutalidade: não se trata de romantizar as pessoas que praticam crimes e torná-las não responsáveis por seus atos. O que eu quero dizer é que, se o Estado não oferece oportunidades, alguém —o crime organizado— oferecerá.

As cinco pessoas que nos roubaram e me sequestraram eram jovens e brancos e tinham rostos bem-afeiçoados —fugindo do perfil padrão de bandido, ditado pelo preconceito e pelo racismo, vale dizer, à pessoa negra.

Fico pensando sobre quais oportunidades de vida eles tiveram. O Estado está presente apenas pelo viés punitivo e prende muito e mal, seletivamente.

2. O consumo dita as relações sociais. A ânsia pelo consumo de bens, como roupas de grife, está relacionada à busca por um passaporte apto a conduzir pessoas do mundo da exclusão e privação para outro, da aceitação e imposição, por meio do que se veste, se usa, se possui.

Consumo, vale lembrar, estimulado por propagandas e ações de entes públicos e privados. Entes públicos? Sim, basta mencionar a cultura do “você sabe com quem está falando?” ou do uso da esperança das pessoas para fins eleitorais.

Nas campanhas eleitorais, muitos candidatos utilizam os eleitores como mercadorias. Uma vez atingido o objetivo (a eleição), eles são descartados. Infelizmente, “caso comum de trânsito”, para citar Belchior.

3. A ausência do Estado na prevenção e apuração dos crimes. Para ficar somente no campo da prevenção secundária —ações que se traduzem na presença do policial e de viaturas na rua ostensivamente para prevenção de delitos—, não há medidas efetivas decorrentes da simples presença do agente público de segurança. É raro vê-los nas ruas, em áreas possíveis de eclosão de delitos.

Isso acontece porque o Estado, seguindo a cartilha liberal, procura não contratar pessoas para “não onerar a máquina pública”. Afinal, o que importa é o Estado mínimo.

Não há investimento na contratação para promover o aumento real do efetivo das polícias. Quando muito, há tentativas de suprir as vagas já existentes. O efetivo da Polícia Militar paulista, por exemplo, não tem aumento real desde meados da década de 1990.

Por sua vez, não há investigação dos delitos perpetrados, proporcionando, àqueles que os praticam, a certeza da impunidade e oferecendo estímulos para que continuem com esses atos.

Cesare Beccaria expôs, com precisão, que a impunidade é o fator preponderante para alguém cometer um crime. Há pesquisas que atestam a baixa taxa de elucidação de delitos e a consequente não condenação de seus autores.

No meu caso, nada foi feito até agora. Estamos nos sentindo abandonados e temos certeza que não somos os únicos.
Depois da nossa casa, o mesmo grupo invadiu o condomínio e praticou mais três roubos.

Eles atuam na certeza de que não serão presos e que não há policiais por perto. O terreno, para eles, está livre. Chance de prisão? Atrevo a dizer que é zero.

4. O discurso armamentista e de guerra não funciona para proporcionar paz e segurança, muito pelo contrário, alimenta o confronto e a oportunidade de eliminação daquele que é tido como oponente.

Se o policial é preparado para a guerra, cujo objetivo principal é a eliminação daquele rotulado como inimigo, o lado oposto também faz o mesmo. Ao saber que são caçados, essas pessoas adotam uma postura mais violenta.

Volto a frisar que eu não estaria vivo se eles tivessem descoberto que eu sou policial, independentemente das ideias que defendo. Da mesma maneira, armar a população para que cada pessoa se defenda é perigoso para a vítima.

Primeiro, porque a arma proporciona uma sensação de poder maior que o real, daí a consequente disposição para reagir pensando que estará em vantagem. Uma vez rendido em um assalto, não há mais o que fazer senão permanecer inerte. Uma das circunstâncias que me salvou foi o fato de eu não possuir arma, porque, se eu possuísse, teria tentado reagir.

Segundo, se a população for armada para combater o inimigo, o criminoso também adotará uma postura mais agressiva em relação às vítimas. Uma espiral de violência crescente é estabelecida e ganha força. Perdemos todos.

Esses discursos são expressões de um populismo barato, omisso em termos de responsabilidade estatal e socialmente danoso. Engana-se quem acredita que tais medidas são efetivas para proporcionar segurança. Do cano de uma arma não surge o poder, mas a sua negação, escreveu Celso Lafer no prefácio à edição brasileira de “Sobre a Violência”, de Hannah Arendt.

5. O culto à personalidade e ao espírito de clã. Aqui, me dirijo especificamente aos policiais e demais agentes do sistema de segurança pública.

Outra circunstância que salvou a minha vida foi o fato de eu não ter nada em casa que remetesse à Polícia Militar. Não havia fotografias, quadros, medalhas etc.

Uma vez aposentado, virei a chave e não vivi de simbolismos e rituais da minha vida profissional. Nem sequer apreciava ser chamado pela patente que ostentava à época da aposentadoria, bem diferente do que acontece com a maioria dos policiais, que fazem questão de manter um vínculo com a instituição, como algo essencial para a sua existência.

A subcultura policial permanece mesmo depois de os policiais deixarem o serviço ativo —a necessidade de continuar pertencendo ao grupo subsiste. São fenômenos que precisam ser estudados, e seus efeitos nocivos devem ser expostos para os agentes de segurança.

6. A falta de resposta abala todos: confesso que nutri, com muita força, a vontade de eliminar cada um deles. Sonhava com essa oportunidade, disfarçada de justiça, de me vingar. O meu lado sombrio aflorou com força, e eu queria resolver a questão por meios próprios.

Afinal, o que foi feito das investigações? Por quê a demora?

Eu entrevistei policiais assassinos nas pesquisas que desenvolvi no mestrado e no doutorado. A mesma argumentação estava presente: a impunidade, o abandono por parte do Estado, a necessidade de dar uma resposta a qualquer custo à violência existente, o sistema prisional dominado pelo crime organizado, a inexistência de um sistema de Justiça criminal minimamente eficiente.

O que eles faziam então? Matavam. Eles próprios as sumiram o papel do sistema.

Eu senti a mesma coisa. Hoje em dia, há momentos em que essas ideias vêm à mente. Dói muito se sentir impotente e desprezado. Senti-me e ainda me sinto abandonado pelo Estado, que tem a obrigação de agir para que pessoas expostas a situações extremas, como eu, se sintam amparadas.

Uma investigação séria, rápida e eficiente, que dê resposta rápida ao crime cometido, é capaz de proporcionar isso.

Não é o que aconteceu comigo, embora a polícia tenha dados bancários e pessoais de um dos componentes do bando, e não é o que acontece com muitas outras pessoas.

7. Oportunidade de bons negócios. Há muita gente lucrando com a insegurança pública. Há empresas na área de segurança privada atuando em diversos segmentos, todos muito lucrativos.

Tão logo o roubo na minha casa aconteceu, um número expressivo de empresas de segurança passou a oferecer serviços e equipamentos para os moradores do condomínio. Aproveitaram o pânico instalado para ganhar dinheiro —e muito.

Isso não é nada diferente do que acontece em outros lugares. Quanto mais o poder público se ausenta, mais empresas privadas se instalam e lucram.

Nós não somos considerados pessoas titulares de direitos (à vida, à saúde física e psíquica, à paz). Nós somos meros dados inseridos em uma planilha de lucros, oportunidades de realização financeira. A morte, a insegurança, o medo e o pânico são commodities valiosas. A lógica do mercado dita o rumo das nossas vidas.

Falar em política pública de segurança, nesse contexto, não faz o menor sentido. Há muita gente faturando com esse caos. Penso no quanto essas empresas podem financiar campanhas políticas e promover lobbies poderosíssimos. Estaria aí um motivo para a ausência de um efetivo projeto de segurança pública?

Pelo que expus aqui, fica nítido que não há soluções fáceis: ocupação regular do solo, acesso à educação, à saúde, à moradia e a uma vida digna e oportunidade de trabalho igualmente digno são elementos essenciais que devem constar em qualquer discussão que se proponha séria sobre segurança pública.

A lista é longa, e é imperioso pensar grande, com ousadia e de forma abrangente. A segurança da população é assunto de Estado.

Não dá mais para aceitar políticas populistas, tampouco aceitar quem adota uma prática diferente do discurso. Não dá mais para aceitar a inação daqueles que são responsáveis por gerir o Estado ou a nossa passividade enquanto sociedade.

Cada voto é um valiosíssimo e poderoso instrumento de transformação social. Escrevo isso sem medo de cair em platitudes. Em uma democracia, que desejamos presente e forte, esse é o caminho.

Que tal seguir o recente exemplo dado pela sociedade civil chilena e seu amplo processo de mobilização cobrando mudanças?

É de suma importância saber escolher nossos representantes entre os que postulam assentos no Executivo federal, estadual e municipal e nas casas legislativas.

Vamos dar um basta. Fora populistas e os que apregoam o caos e a adoção de medidas radicais e absurdas. Fora quem rompe compromissos históricos em troca da realização de alianças de ocasião. Fora quem apregoa a adoção de soluções simples para um problema tão complexo.

Matar, eliminar e combater são verbos presentes à exaustão nos discursos de autoridades e setores expressivos da imprensa. No entanto, eles traduzem ações que não resolvem os problemas da segurança pública e nos afetam negativamente todos os dias.

Agradeço à Maria Evangelina, esposa querida, e à Cristina Serra e Heloisa Helena, prezadas amigas, pelas observações que contribuíram para a lapidação do texto

Brasil precisa de educação tecnológica para se desenvolver, diz vice do Banco Mundial

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América Latina depende demais de commodities e precisa investir em biotecnologia e inteligência artificial, defende Carlos Felipe Jaramillo

Fábio Pupo – Folha de São Paulo, 21/01/2022

Além de ter a menor perspectiva de crescimento entre todas as regiões do mundo em 2022, a América Latina pode continuar a sofrer por vários anos com os efeitos da pandemia enquanto enfrenta uma polarização política que afasta investidores. A avaliação é do Banco Mundial, para quem são necessárias medidas urgentes para contornar os problemas.

Carlos Felipe Jaramillo, vice-presidente do Banco Mundial para América Latina e Caribe, afirma que a deterioração observada nos indicadores da região causa preocupação sobretudo na educação – impactada pelo fechamento das escolas. “Isso precisa ser tratado rapidamente ou teremos uma geração com menos escolaridade do que a anterior”, afirma o colombiano em entrevista à Folha durante visita ao Brasil.

Para ele, o país precisa de um plano rígido para monitorar os alunos com deficiência de aprendizagem, ampliar o acesso à internet nas escolas e para a população em geral e aprovar reformas para estimular o setor privado a investir e a contratar trabalhadores.

Além disso, ele considera ser crucial impulsionar investimentos em ciência e tecnologia e promover uma transformação educacional para que o país consiga se inserir em áreas de vanguarda do crescimento global, como biotecnologia e inteligência artificial –enquanto o Brasil e a região ainda se baseiam muito em commodities. “Para isso, você precisa de pessoas mais escolarizadas e instruídas em todos os níveis. Caso contrário, será muito difícil avançar”, diz.

O Banco Mundial e outras instituições projetam que o crescimento na América Latina será menor em 2022 do que no resto do mundo. O que está acontecendo com a região? É uma continuação daquilo que vinha ocorrendo antes da pandemia e se torna mais claro agora, na fase final da crise sanitária. A maioria das economias não estava crescendo bem na América Latina. Se examinarmos o período de 2012 a 2019, bem antes da pandemia, a taxa de crescimento per capita média da região foi inferior a 0,5%, a mais baixa dentre todas as regiões.

Minha principal preocupação é que depois da pandemia voltemos a ter um período de baixa evolução. A chave para destravar o crescimento é bem conhecida e tem a ver com as reformas, para a economia atrair mais investimento do setor privado —que é a força motriz do crescimento.

A ideia de o setor privado conduzir a economia fica de alguma forma prejudicada neste momento de recuperação? Os Estados Unidos, por exemplo, estão implementando um enorme projeto de infraestrutura com recursos públicos. Acho que não fica prejudicada. Estados Unidos, China e Europa têm espaço fiscal para estímulos. Mas a América Latina não tem. Nenhum país da região tem envergadura para estimular sua economia por um longo período de tempo sem incorrer em graves problemas de dívida e sustentabilidade. O Brasil usou o espaço fiscal para gastar sobretudo com a população [na pandemia], algo admirável. Mas não é um padrão sustentável [continuar usando recursos na mesma proporção] para o Brasil e os demais países da América Latina.

O governo brasileiro vem agindo para driblar a legislação fiscal em vigor, o que tem gerado preocupação no mercado. Falta apresentar um plano de equilíbrio entre a proteção aos pobres e uma política fiscal sustentável, algo defendido pelo Banco Mundial? Essa crise não tem precedentes, e, portanto, requer programas sem precedentes e inusitados para aliviar os impactos sobre os mais pobres e vulneráveis. Desde que os gastos sejam focalizados para atender claramente essas populações, de um modo geral são gastos justificados.

O Brasil tem sido afetado fortemente pela inflação. Além do aumento dos juros, que outras medidas devem ser adotadas para combatê-la? Temos confiança no Banco Central do Brasil, que tem bastante credibilidade. A única outra medida importante é levar o patamar fiscal para onde estava [antes da pandemia]. A meu ver, é correto gastar durante a crise com despesas anticíclicas, e o Brasil fez bastante desse estímulo para evitar uma crise pior. Mas, uma vez que a economia se recuperar, é necessário tirar esses estímulos e reconstruir espaço fiscal para a próxima crise.

As análises do Banco Mundial se baseiam nas diretrizes do chamado Consenso de Washington, criado na década 1980 para estimular medidas liberais. A pandemia trouxe a necessidade de essa visão ser atualizada? Na minha opinião, o Consenso de Washington foi um exercício incompleto. Incluiu medidas básicas e muito válidas, como a sustentabilidade da dívida e a importância do setor privado, mas deixou de fora conceitos como inovação e produtividade. Os países precisam investir em sistemas e processos para elevar produtividade e salários. Isso, por sua vez, exige capital humano robusto, inclusive com investimentos em universidade, ciência e tecnologia. E também empresas e investidores dispostos a investir em áreas da vanguarda do crescimento, como biotecnologia e inteligência artificial. Ao passo que a América Latina está demasiadamente concentrada na agropecuária e na mineração.

Essa mudança só pode ser alcançada por meio de investimentos em educação, certo? E mais do que dinheiro, demanda uma transformação no sistema educacional… Sim, exatamente. Investimentos em educação, ciência e tecnologia. A América Latina está defasada na qualidade da educação e no capital humano. Precisamos atrair investimentos para áreas mais sofisticadas. Pode ser na agricultura, mas tem de envolver aplicação de alta tecnologia. Pode ser mineração, mas envolver beneficiamento mineral. Pode ser serviços, mas precisa de um upgrade, um aprimoramento do processo. Para isso, você precisa de pessoas mais escolarizadas e instruídas em todos os níveis.

A pandemia gerou um retrocesso nesse sentido, afetando diretamente o ensino. Quão mal estamos em relação ao resto do mundo? A América Latina foi a mais impactada entre todas as regiões em desenvolvimento, e nossos indicadores estão muito ruins por causa do fechamento das escolas, que durou muito e nos deixou muito preocupados. O Brasil perdeu o equivalente a 1,5 ano em educação. Isso precisa ser tratado rapidamente ou teremos uma geração com menos escolaridade do que a anterior, o que iria justamente na direção contrária do necessário.

Que políticas corretivas são necessárias? Isso demanda medidas para conectar escolas à internet de modo que elas tenham acesso a tecnologia de excelência e ter sistemas de alerta que monitorem os alunos de modo que aqueles sem avanço recebam uma atenção dedicada para evitar o abandono escolar. Precisamos melhorar a gestão das escolas em todos os níveis —municipal, estadual e federal.

A desigualdade de acesso à internet ficou evidente durante a pandemia e o Banco Mundial defende a ampliação de seu uso. Como a expansão pode ser acompanhada por um melhor uso da tecnologia? Só metade da população da América Latina tem acesso à internet, o que foi uma tragédia durante a pandemia. Aqueles que tinham acesso podiam trabalhar por meio do computador, prover educação para seus filhos, acessar serviços financeiros e até usar telemedicina. Mas a outra metade não dispunha disso. É fundamental que todos tenham acesso à internet e que desenvolvam competências digitais para ter oportunidades e empregos de melhor qualidade.

O Banco Mundial identificou que as crises costumam afetar o emprego na América Latina por vários anos, e por isso é preciso agir para impulsionar o mercado de trabalho. Como fazer isso neste momento? Estou preocupado com a natureza dos empregos, que tendem a ser mais informais. Precisamos estimular os países a melhorar regras trabalhistas de modo que as pessoas possam entrar na economia formal, o que significa facilitar a contratação de trabalhadores por parte das empresas. Parte do problema é que os países latino-americanos têm um processo caro, com muitas regras.

Entendo que houve um bom movimento nesse sentido no Brasil, com simplificação de regras trabalhistas. Precisamos de mais disso.

Algumas pessoas podem afirmar que esse tipo de medida pode tirar direitos das pessoas. Como responder a esse tipo percepção? Não. O tipo de reforma que estamos defendendo é para facilitar a contratação, não significa tirar direitos de ninguém. É dar o direito do emprego formal a quem não tem acesso a ele.

A instabilidade política tem dominado países da região, como Haiti e Guatemala. No Brasil, há uma tensão entre o presidente da República e a Suprema Corte. Como isso afeta a economia na região e no Brasil em particular? Percebo haver uma maior polarização em toda a América Latina. Não sei ao certo quais as causas dessa rivalidade, mas é fato que há maior tensão política. Há preocupações sobretudo entre investidores do setor privado, preocupações essas que geralmente aumentam antes das eleições.

Em 2021, tivemos muita preocupação com Peru, Equador e Chile. Em 2022, teremos eleições no Brasil e na Colômbia. Pode haver muita incerteza. Esses períodos costumam ser dominados por muita tensão e tendem a afetar os níveis de investimentos até que as coisas desanuviem e fiquem mais claras. Faz parte de um padrão normal, mas que está exacerbado pela polarização.

No Brasil, há um nível de preocupação mais alto? Tenho dificuldade em comparar onde é mais alto ou mais baixo. Não acompanho muito a política [local], mas em todos os países há uma percepção de que há uma grande e forte polarização.

RAIO-X
Carlos Felipe Jaramillo, 59
Vice-Presidente do Banco Mundial para a região da América Latina e Caribe, responsável pela atuação do banco em 31 países. Já foi diretor da instituição pela região africana e servidor público da Colômbia (com cargos no Ministério da Fazenda, Banco Central e Ministério do Comércio). Possui mestrado e doutorado em economia do desenvolvimento pela Universidade de Stanford (EUA).

Líderes empresariais precisam ter melhor atuação política, por Martin Wolf.

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Goste-se ou não, eles são atores poderosos em nossa frágil política democrática e na tomada de decisões global

Martin Wolf, Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.

Folha de São Paulo, 19/01/2022

Nós no mundo ocidental enfrentamos duas crises: um colapso na confiança em nosso sistema político democrático e uma ameaça ambiental planetária. A primeira exige a renovação de um objetivo comum no país. A segunda exige não só objetivo comum no país, mas um objetivo global compartilhado. São coisas que as empresas não podem oferecer. É preciso ter uma política eficaz. Uma grande pergunta é se as empresas conseguirão promover as soluções políticas necessárias ou apenas vão criar problemas políticos.

Um pequeno raio de luz sobre a política vem de um relatório divulgado nesta terça-feira (18) pelo Centro para o Futuro da Democracia, em Cambridge, intitulado “O Grande Reinício”. Ele conclui, a partir de pesquisas de opinião feitas em 27 países, incluindo todas as democracias ocidentais, que a pandemia reforçou a confiança no governo e prejudicou de modo significativo a credibilidade dos populistas. Mas até agora não aumentou o apoio à democracia. Isso é pelo menos moderadamente encorajador. A confiança no governo é uma condição necessária para a ação, especialmente quando significa sacrifício, como no caso do meio ambiente.

Uma grande questão, entretanto, é onde se encaixam as empresas. Essa é uma pergunta especialmente apropriada a se fazer nesta semana, quando se realiza, embora virtualmente, o Fórum Econômico Mundial, organização que reúne líderes empresariais globais.

As empresas operam dentro de um sistema: o capitalismo de mercado. Esse sistema é globalmente predominante hoje, pelo menos no campo econômico. Isso é verdade até mesmo na China atual. A essência do capitalismo é a concorrência.

Isso tem implicações profundas: entidades que competem em busca de lucro são basicamente amorais, mesmo que sejam cumpridoras da lei. Elas não farão facilmente coisas que não sejam rentáveis, por mais que sejam socialmente desejáveis, ou se recusarão a fazer coisas que são rentáveis, embora socialmente indesejáveis. Se algumas tentarem fazer alguma dessas coisas, as outras as tirarão da concorrência. Seus acionistas também podem se rebelar.

Ser ou fingir ser virtuoso pode trazer benefícios para uma companhia. Mas outras podem se sair bem apenas sendo mais baratas. A sociedade —nos níveis local, nacional e global— precisa criar a estrutura em que essas empresas atuam. Isso se aplica a todas as dimensões —lei trabalhista, seguridade social, políticas regionais, regulamentação financeira, políticas de concorrência, políticas de inovação, apoio à pesquisa fundamental, reação a emergências, meio ambiente e assim por diante.

O que isso pode significar é o tema de uma edição recente da Oxford Review of Economic Policy sobre capitalismo, que contém ensaios que realizam uma análise desafiadora da economia do capitalismo contemporâneo. De modo crucial, as suposições sob as quais o capitalismo evoluiu nas últimas décadas são questionáveis e tiveram alguns resultados altamente perversos. Esse é um volume realmente importante (do qual também participei).

Especialmente importantes são os ensaios de Anat Admati, de Stanford, e de Martin Hellwig, do Instituto Max Planck.

Ambos consideram o papel dos líderes empresariais como vozes influentes, mas com interesses próprios, em definir as políticas públicas no direito empresarial, leis da concorrência, regulamentação financeira, regulamentação ambiental e muitas outras áreas. O resultado, sugerem eles e outros autores, foi o surgimento de um sistema de extração de renda oportunista que cria riscos não asseguráveis para a maioria e vastas recompensas para uns poucos.

Isso por sua vez teve um grande papel em minar a confiança na democracia e aumentar o apoio aos populistas.

Crucialmente, isso destrói a ideia ingênua de que é possível separar o papel das empresas que maximizam os lucros do da política ao definir as “regras do jogo”, como Milton Friedman recomendou famosamente. As empresas podem usar sua influência para estabelecer as regras do jogo sob as quais poderão então atuar. Não é a única voz, é claro, mas é uma com bons recursos e influente, particularmente nos Estados Unidos, o mais importante país ocidental.

Os resultados são uma forma de capitalismo que, apesar de toda a sua indubitável superioridade econômica sobre sistemas alternativos, cria uma distribuição altamente desigual de recompensas e transfere riscos não administráveis para pessoas comuns. O resultado foi a política atual de nervosismo e raiva. A crise financeira de 2007-2012 teve um grande papel ao fomentar esse nervosismo e essa raiva, enquanto dezenas de milhões de pessoas inocentes sofriam e as instituições cujo comportamento causou a implosão eram salvas. É certamente por isso que os populistas de direita, notadamente Donald Trump, acabaram substituindo conservadores mais tradicionais.

Hoje, porém, a pandemia criou uma oportunidade para uma política de competência e objetivo comum. Isso nos dá pelo menos uma chance de agir melhor.

Acredito que exista uma tese para a reforma substancial de nossa forma de capitalismo, ao mesmo tempo preservando sua essência de inovação e concorrência. Isso não seria inédito. A criação da companhia de responsabilidade limitada com capital em ações já foi uma inovação altamente polêmica. Hoje, entretanto, a maior questão, na minha opinião, é a relação entre empresas, sociedade e política.

Assim, aqui vão perguntas que eu acho que os líderes empresariais envolvidos com o FEM deveriam fazer a si mesmos:

O que eu, como indivíduo influente, líder empresarial e membro de organizações empresariais, estou fazendo para aumentar a capacidade do meu país e do mundo de tomar decisões sensatas no interesse de todos? Estou principalmente fazendo lobby por impostos e tratamento regulatório especiais para nosso próprio benefício, ou estou apoiando a ação política e atividades que vão unir as pessoas do meu país dividido? Estou preparado para pagar os impostos que nosso sucesso torna justificáveis, ou estou explorando cada brecha que me permite enviar lucros para paraísos fiscais que em nada contribuíram para o nosso sucesso? O que eu, minha empresa e as organizações de que faço parte estamos fazendo para desencorajar os danos online, a corrupção, a lavagem de dinheiro e outras formas de atividade perigosa e até criminosa? O que estou fazendo para apoiar leis que exigirão prestação de contas de organizações empresariais vilãs e seus líderes? E, principalmente, o que estou fazendo para reforçar os sistemas políticos dos quais depende o sucesso da ação coletiva?

A pandemia trouxe muitas lições. Mas talvez a mais importante seja o que pode ser feito se as capacidades das empresas privadas se unirem a recursos públicos para alcançar objetivos urgentes. É isso o que torna a história da vacina tão animadora (e a reação dos antivacinas tão deprimente); líderes empresariais são pessoas racionais encarregadas de instituições importantes. Eles precisam avaliar a necessidade de reforçar nossa capacidade de tomar decisões coletivas de forma sensata. Gostem ou não, eles são atores poderosos em nossa frágil política democrática, e também na tomada de decisões global. Eles precisam levar esse papel a sério e exercê-lo de modo decente e responsável. Apesar de toda a retórica que ouvimos, ainda não é o que vemos.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

Inflação e seus fantasmas

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A chegada do ano novo nos traz grandes incertezas e instabilidades na estrutura econômica e financeira do país. Dentre os riscos e desafios podemos destacar a frágil recuperação econômica, o alto desemprego, o empobrecimento da população e o medo crescente gerado pela inflação, cujos fantasmas assolaram a sociedade brasileira durante muitas décadas, levando a adoção de inúmeras políticas de estabilização, trocas de moeda, congelamento de preços, arrochos salariais e variadas políticas cambiais, cujos impactos para a comunidade é o incremento da concentração da renda e o aumento da desigualdade social, colocando o país como uma das nações mais desiguais do mundo.

A inflação em curso na economia brasileira é um fenômeno global, impactando todos os setores da sociedade, gerando perdas elevadas para os grupos mais fragilizados, reduzindo os investimentos produtivos, criando instabilidades crescentes e dificultando a contratação de trabalhadores e, em muitos casos, precarizando as condições de trabalho, reduzindo os benefícios sociais para a classe trabalhadora e gerando uma recuperação frágil, incertezas crescentes e piorando as condições sociais, exigindo políticas públicas mais ativas e efetivas, com impactos fiscais para a comunidade.

A inflação de 2021 foi de 10,06%, extrapolando 6,31% pontos percentuais acima do centro da meta definida pelo Conselho Monetário Nacional, de 3,75% com tolerância de 1,5 ponto percentual para cima ou para baixo. Com estes dados, a inflação brasileira de 2021 foi a quarta maior entre as 44 economias destacadas pela OCDE, num momento de pandemia, desemprego crescentes e investimentos em queda, as condições tendem a piorar no decorrer do ano de 2022, com severas degradações dos indicadores sociais.

O crescimento inflacionário gera constrangimentos constantes, reduzindo o poder de compra da sociedade, gerando instabilidades e diminuição dos investimentos produtivos, temendo o retorno da inflação alta que vivenciamos até meados dos anos 90. Embora as taxas de inflação sejam preocupantes, ainda mais numa economia que apresenta grandes dificuldades de recuperar seu dinamismo econômico e produtivo, acreditamos que a inflação tende a arrefecer no decorrer dos próximos meses, com a melhora do ambiente externo, da recuperação dos setores que foram mais afetados pela pandemia, a melhora do ambiente político e do reequilíbrio das cadeias de produção.

Os grandes vilões da inflação brasileira do ano passado foram os fortes aumentos das commodities, a aceleração dos preços dos combustíveis, crise energética e a forte desvalorização cambial, além da desagregação das cadeias globais de produção impulsionada pela pandemia. Todos estes fenômenos impactaram a estrutura econômica, financeira e produtiva, mas é importante destacar os grandes equívocos da condução da política fiscal, marcada por incertezas generalizadas, inabilidades políticas, primarismos preocupantes e a incapacidade de construir confianças interna e externa.

Neste ambiente, o Banco Central passou a aumentar as taxas de juros para reduzir a inflação, com isso, os impactos foram imediatos, dificultando a recuperação econômica, postergando a geração de emprego e contribuindo para o cenário de degradação social da população, ainda mais num momento de grandes incertezas geradas pela pandemia, pela instabilidade sanitária e pela dificuldade de construir consensos políticos na sociedade e de implementar políticas públicas efetivas para melhorar os indicadores econômicos e sociais.

Historicamente, o Brasil se beneficiou com períodos de alta de preços de commodities por ser um país exportador de insumos, que contribuíram para a valorização da moeda, aumentando a entrada de recursos externos e reduzindo os preços internos. Atualmente os movimentos ocorrem inversamente, os preços sobem ao mesmo tempo que o real se desvaloriza, em decorrência das incertezas fiscais. Com certeza, o Brasil não é para amadores…

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Administrador, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 19/01/2022.

Pochmann: Retrato da regressão brasileira

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Entre 2002 e 2019, estados com maior peso industrial (SP, MG, RJ e BA) estagnaram. PIB cresceu nas regiões marcadas por devastação, agronegócio e extrativismo. Nesta reprimarização, mercado interno e empregos são demolidos

Marcio Pochman – OUTRAS PALAVRAS, 17/01/2022

A perda de importância relativa da indústria no total da produção interna seria menos traumática, não fosse acompanhada pela desintegração do sistema econômico nacional. Isso parece ficar evidente ao se analisar a evolução econômica dos estados brasileiros nas primeiras duas décadas do século XXI, conforme o Sistema de Contas Regionais do IBGE.

As regiões do país com maior dinamismo estiveram vinculadas ao comércio externo, especialmente à produção e exportação de commodities (minérios e agropecuária). Os quatro estados com maior vigor econômico, entre 2002 e 2019, foram: Mato Grosso (5,0% a.a.), Tocantins (4,9% a.a.), Roraima (4,2% a.a.) e Rondônia (3,8% a.a.), representando uma espécie de desempenho chinês no interior do Brasil.

Para o Brasil como um todo, a economia apresentou, entre 2002 e 2019, a variação média anual de apenas 2,3%. Das 27 unidades da federação, oito estados registraram desempenho econômico ainda pior que média nacional no mesmo período de tempo.

A maior parte dos estados com estagnação econômica foram justamente aqueles com maior peso industrial, cuja produção, em geral, direciona-se para o mercado interno. Dos estados com pior desempenho econômico no período, destacam-se: Paraná (2,2% a.a.), São Paulo (2,2% a.a.), Bahia (2,1% a.a.), Minas Gerais (1,9% a.a.), Rio Grande do Sul (1,7% a.a.) e Rio de Janeiro (1,3% a.a.).

A perda de vigor nas regiões produtoras para o mercado interno seguem a trajetória da desindustrialização e, por consequência, da desintegração sistêmica da dinâmica nacional. O Brasil cada vez mais conectado com o mercado externo, pouco contribui positivamente para o mercado interno, portanto somando pouco para o nível da produção nacional, para o aumento do emprego e para arrecadação tributária.

Depois de longo tempo convergindo para a integração nacional, a economia nacional aponta para a desintegração, recolocando o problema que foi central no passado. Há cem anos, o diagnóstico crítico da economia brasileira centrava na dinâmica diferenciada estabelecida entre as “duas economias” que resultava de sua formação social de passado colonial.

Mesmo depois de um século da Independência nacional, tanto o Império (1822-1889) como a República Velha (1889-1930), não conseguiram desfazer um arquipélago de enclaves regionais que conformavam o país de dimensão continental. As economias mais dinâmicas concentravam-se próximas ao litoral, cuja produção de matérias-primas e produtos semi-processados eram voltados para exportação. Ademais de suas ligações com o mercado mundial, tinham bancadas parlamentares suficientemente fortes para pressionar internamente por uma condução da política econômica mais favorável aos seus interesses (isenção tributária, juros subsidiados, postergação de dívidas entre outros).

A outra economia, no restante do território nacional, voltava-se fundamentalmente ao abastecimento do pobre mercado interno, quando não somente às áreas de subsistência, pois social e tecnicamente atrasado. A fraqueza econômica se expressava no sistema político, cuja representação no Congresso Nacional, ademais de minoritária, ficava, em geral excluída da política econômica e social.

A constituição do Estado moderno, a partir da Revolução de 1930, enfrentou as forças do passado com um projeto nacional de industrialização que produziu as bases da integração da economia. A proposição da substituição dos produtos importados pela produção nacional, trouxe expansão das empresas, do emprego, da arrecadação tributária e desenvolveu o mercado interno.

Para, além dos problemas de gestão macroeconômica que atualmente aprisionam e empobrecem o debate nacional, tem fundamental importância o diagnóstico crítico acerca da desintegração que avança sobre o sistema produtivo nacional. Para isso, as luzes das ideias inovadoras de futuro precisariam estar conectadas, pois do contrário, o conservadorismo seguirá predominando no pensamento econômico do país, senão o reacionarismo.

O capitalismo da ausência, por Eugênio Bucci.

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Na pandemia tivemos mais acumulação, mais concentração e mais crescimento do valor e do poder das big techs, que se firmaram como estrelas

No dia 3 de janeiro de 2022, a Apple se tornou a primeira empresa da história a alcançar o preço de US$ 3 trilhões.

A cifra equivale, em números aproximados, ao dobro do PIB brasileiro. É dinheiro – e é dinheiro que não para de crescer. Em um intervalo de 16 meses, o valor da Apple subiu 50%, passando de US$ 2 trilhões para US$ 3 trilhões. A escalada não deixa mais dúvidas sobre o fato de que o centro do capitalismo está nas chamadas big techs, as gigantes de alta tecnologia que têm uma incomparável capacidade de inovação.

Em julho do ano passado, as cinco maiores big techs (Apple, Google, Amazon, Microsoft e Facebook, que foi renomeada recentemente como Meta) bateram, juntas, o preço de US$ 9,3 trilhões. Agora, valem mais.

Durante a pandemia, com as medidas sanitárias de isolamento, as cinco foram às alturas. Eram as companhias mais preparadas para lucrar com o que se começou a chamar de “trabalho remoto”, e também com o e-commerce, com o e-governe com o home office. Suas ferramentas se tornaram imprescindíveis.

Em abril de 2020, havia 4,5 bilhões de habitantes do planeta, em 110 países, vivendo (ou tentando sobreviver) em regime de lockdown. Entrávamos numa era de virtualidades que não conhecíamos: escolas, mesmo as recalcitrantes, tiveram de se render ao expediente das aulas a distância; escritórios de advocacia de qualquer lugarejo adotaram o home office; serviços públicos começaram a ser oferecidos online e os movimentos da sociedade civil se canalizaram para as plataformas digitais – e tome abaixo-assinados eletrônicos.

Começava ali um período estranho, com trabalhadores trabalhando sem comparecer ao local de trabalho, cidadãos exercendo seus direitos sem estar lá, missas pelo YouTube e namoros pelo WhatsApp. A economia se adaptou muito bem, obrigado. Não veio catástrofe nenhuma nos ditos “mercados”. O que veio, isto sim, foi mais acumulação, mais concentração e mais crescimento do valor e do poder das big techs, que se firmaram como estrelas no capitalismo da ausência.

Estamos vivendo uma mutação social das mais intrigantes. Na Revolução Industrial do século XIX, falava-se em “força de trabalho”. Era essa “força” que o operariado vendia nas linhas de montagem. A “força de trabalho” era uma energia física que tinha como combustível o sangue humano. Com ela, os proletários moviam engrenagens, enroscavam parafusos, empurravam carcaças, pacotes e carrinhos abarrotados de carvão. Hoje, a velha “força de trabalho” parece ter ficado de escanteio. O capital não liga mais para ela, ou, ao menos, não liga tanto. Máquinas robotizadas fazem o serviço, colhem a cana, soldam peças na fuselagem dos automóveis, operam os telemarketings da vida e da morte.

Agora, o interesse do capital tem foco em outros atributos da gente. Não requisita mais a força física, mas o olhar, a imaginação, a atenção, o desejo. Esses atributos já não têm tanto a ver com o corpo, com os músculos e com o esqueleto que nos sustenta, mas com a máquina psíquica. O capitalismo da ausência – com as big techs na vanguarda – desenvolveu fórmulas para explorar as nossas mais recônditas fantasias. Eis porque, com as multidões confinadas, a economia não parou.

O modo de produção em que estamos embarcados consegue extrair valor – a distância – de corpos em estado semivegetativo, prostrados atrás de uma tela eletrônica. Só o que é convocado a entrar em atividade, nos corpos dormentes, é o olhar e as pontas dos dedos. O capitalismo se higienizou. Nunca a ausência física do explorado foi uma solução tão lucrativa.

Mas o grande trunfo das big techs não está no home office, que, aliás, já virou carne de vaca (ou, no caso brasileiro, virou osso de vaca). Hoje, todo mundo diz que trabalha remotamente, inclusive quem não trabalha. O maior diferencial dos grandes conglomerados, como Apple e suas assemelhadas, todas monopolistas globais em seus ramos (ou troncos) de atuação, foi a transformação do consumo em trabalho. No modelo de negócio das gigantes da tecnologia, consumir é trabalhar.

O tal do “usuário”, enquanto pensa usufruir de funcionalidades gratuitas, enquanto imagina se divertir, está trabalhando de graça. É o “usuário” quem “posta” os “conteúdos”, é o “usuário” que, sem saber, fornece de graça todos os seus dados pessoais (que depois serão vendidos a peso de ouro para os anunciantes), é o “usuário” que, com seu olhar, também gratuito, costura as significações e assimila os conteúdos das marcas e das mercadorias. O pobre “usuário” é ao mesmo tempo a mão de obra e a matéria-prima que saem de graça. Depois, no fim da linha, é ele, o “usuário”, que vai ser comercializado. A isso se resume o melhor negócio de toda a história da humanidade.

Se você quiser, pode tentar ser otimista. Pode falar dos prodígios curativos da telemedicina e do conforto de jogar na Mega-Sena sem sair de casa. Nada contra. Apenas leve em conta que a sua ausência vem preenchendo grandes lacunas, quer dizer, vem abarrotando de dinheiro virtual muitas burras digitais.

Eugênio Bucci é professor titular na Escola de Comunicações e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de A superindústria do imaginário (Autêntica).

Publicado originalmente no jornal O Estado de São Paulo, em 13 de janeiro de 2022.

Leniência com inflação produziu resultado fiscal positivo em 2021, diz economista

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Felipe Salto, diretor-executivo da IFI, afirma que alta dos juros vai corroer ganhos em 2022

Eduardo Cucolo, Folha de São Paulo, 16/01/2022

As contas do setor público devem registrar o primeiro resultado positivo desde 2013, segundo dados do Banco Central para 2021 que serão divulgados no final deste mês. Essa suposta melhora comemorada por alguns analistas, no entanto, é uma ilusão provocada pela disparada da inflação no ano passado, afirma o diretor-executivo da IFI (Instituição Fiscal Independente), Felipe Salto.

Para 2022, a expectativa da instituição ligada ao Senado Federal é que a alta dos juros comece a corroer esse ganho, colocando a dívida pública novamente em trajetória de crescimento e deixando para o próximo governo a tarefa de recuperar a credibilidade da política fiscal.

Em entrevista à Folha, Salto afirma que a sociedade e os políticos já mostraram que não querem fazer um ajuste fiscal apenas pelo lado da despesa. Por isso, será difícil escapar de um aumento da carga tributária para garantir a estabilidade da dívida e recursos para mais investimentos e gastos sociais.

A IFI e grande parte dos analistas estimam que as contas do setor público devem ter fechado 2021 no azul, algo que não estava previsto no começo do ano passado. Você disse recentemente que essa suposta melhora é uma ilusão. O que explica esse resultado positivo? O que houve foi a ajuda camarada da inflação, que apareceu de novo, ainda que em menor proporção do que acontecia nos anos 1980. Na época, não tinha déficit no Orçamento. A receita evoluía com a inflação, e a despesa estava fixada desde o ano anterior. Tinha um Orçamento que não refletia a realidade das contas públicas. Tem um paper de 1993 do Edmar Bacha alertando que, quando fosse feita a estabilização, iria aparecer um déficit enorme. O que aconteceu no ano passado, guardadas as proporções, foi a mesma coisa.

A inflação turbinou a receita. Você produziu artificialmente um resultado primário que não vai durar. Tanto que em 2022 ele piora novamente. A dívida vai ficar pelo menos dois pontos percentuais do PIB [Produto Interno Bruto] mais alta até o final do ano, vai ter déficit primário em torno de 1,5% do PIB.

Não é o fim do mundo, mas é uma situação muito delicada. Não dá para simplesmente dizer que houve melhora na situação fiscal. Não houve melhora estrutural. O que houve foi uma leniência com a inflação que produziu efeitos fiscais positivos que são conhecidos na literatura. O fato é que a inflação ajudou.

A relação dívida/PIB caiu de 89% em fevereiro para 81% em novembro de 2021. Isso também foi resultado da inflação mais alta? O fator preponderante foi a inflação elevada. Primeiro porque ajudou a elevar a arrecadação em termos nominais. O resultado primário (receita menos despesa) melhorou muito. Estados e municípios também foram beneficiados por essa questão e devem terminar o ano com superávit [a projeção da IFI para o governo central ainda é de déficit].

O aumento da inflação afetou o PIB nominal mais do que se esperava. Isso também ajudou a reduzir a relação dívida/PIB.

Ninguém projeta dívida a 83% do PIB [expectativa da IFI para dezembro], até que, em julho, quando se começou a perceber que a inflação ficaria elevada até o fim do ano e que aquilo já tinha tido um efeito expressivo no PIB nominal, todo mundo ajustou as projeções.

Claro que houve também dois outros fatores importantes, que foram a reforma da Previdência e o congelamento dos salários dos servidores civis, porque os militares tiveram reajuste. Mas o que foi preponderante na melhora fiscal foi a inflação.

Mesmo que temporária, essa ajuda da inflação poderia ser avaliada como bem-vinda? É bom que a dívida fique em 83% e não acima de 95%, como muitos projetavam, inclusive nós. É positivo, mas a taxa de juros está muito mais alta. A Selic está em 9,25% ao ano, e a inflação esperada para 2022 é de 5,05% [na pesquisa Focus]. Estamos falando de uma
taxa real de juros de 4% a 4,2%.

Isso significa que, para estabilizar uma dívida de 83% do PIB, se o país crescer 1% em 2022, precisamos de um superávit primário de 2,5% do PIB. O déficit projetado para 2022 é em torno de 1,5%.

O tamanho do desafio fiscal continua enorme. O juro vai corroer todo esse ganho e vai exigir um superávit muito alto para estabilizar a dívida. Por isso que, nas nossas projeções, a dívida ainda cresce nos próximos anos.

É possível conviver com esse endividamento elevado? Não é uma trajetória insustentável. A gente projeta que o resultado primário vai melhorar no médio prazo, mas o nível de endividamento do Brasil é cerca de 30 pontos percentuais do PIB maior do que a média em países em desenvolvimento. É uma situação fiscal ainda bastante delicada.

Preocupa inclusive que você veja por aí alguns analistas enaltecendo essa melhora em 2021, quando ela foi quase totalmente explicada pela inflação e ainda há esse desafio fiscal enorme para os próximos anos. Com a inflação estabilizando em 2022 e 2023, o juro volta a diminuir. Por isso o cenário base da IFI não é explosivo para a dívida/PIB.

Temos o cenário pessimista. Por exemplo, se em 2023 quem assumir a Presidência não conseguir restabelecer o mínimo de credibilidade.

Quem assumir vai ter de partir do zero. O teto de gastos simplesmente foi abolido. Ele continua valendo na letra da Constituição, mas na prática não existe mais. Quem ganhar em 2022 vai ter de dar um direcionamento novo para a política fiscal e que tenha como norte a sustentabilidade da dívida no horizonte de quatro ou cinco anos.

Esse desafio não é impossível, mas também não é uma coisa simples, como alguns estão dizendo por aí. Se a taxa real de juros ficar em 4% e o crescimento econômico voltar para 2% em 2023 e 2024, você ainda vai precisar de um esforço fiscal primário de até 2% do PIB para estabilizar essa dívida. Se vamos sair de um déficit de 1,5%, temos de 3,5 pontos a 4 pontos do PIB de esforço fiscal, o que dá quase R$ 400 bilhões de ajuste.

Representante de pré-candidato à Presidência têm apontado, em sua maioria, a necessidade de rever ou até acabar de vez com o teto. Qual poderia ser a nova âncora fiscal? O grande medo que os agentes econômicos tinham era que a eleição de 2022 levasse à escolha de um grupo político que abandonasse o teto de gastos. Isso já se materializou agora, porque o próprio governo Bolsonaro resolveu abandonar o teto. É uma mudança tão expressiva, pela nossa conta de R$ 112,6 bilhões de espaço aberto para 2022, que na prática significa a invalidação do teto como concebido em 2016.

A literatura nessa matéria diz que não basta ter normas, tem de ter compromisso político em torno das regras.

O teto de gastos foi positivo enquanto durou. Ajudou a derrubar a dívida, melhorar as escolhas alocativas, aprovar a Previdência, mas ele tinha problemas desde a sua concepção. Foi mal desenhado. A única válvula de escape é o crédito extraordinário. E também preconizava um ajuste muito duro a partir de um certo momento e nenhum nos anos iniciais. Por isso ficou impossível de cumprir na ausência de mudanças estruturais do lado da despesa.

Para 2023, há um cardápio de regras que podem ser adotadas, mas o fundamental é que precisa haver compromisso político em torno do ajuste fiscal. Se não houver isso, não tem regra que resolva.

Há espaço para fazer ajuste fiscal e, ao mesmo tempo, atender à maior necessidade de gastos sociais e investimentos? A discussão mais importante para 2023 vai ser como resgatar a responsabilidade fiscal, mas também garantir o espaço necessário para os gastos que vão aumentar. Por exemplo, o gasto com saúde e o gasto social tendem a aumentar na próxima década. Os países da OCDE, até 2050, vão aumentar o gasto com saúde em oito pontos percentuais do PIB, por conta do envelhecimento. No Brasil, ainda não há estudo nesse sentido. Isso vai ter de entrar na discussão da nova regra fiscal em 2023. Você vai ter de dar conta também de aumentar o investimento público, que vai ter um papel importante no resgate de investimento privado.

Vai ser difícil. Acho que não vamos escapar de um ajuste também pelo aumento da carga tributária. Só pelo lado da despesa, já vimos que o Congresso, a sociedade e o próprio governo não estão dispostos a isso. Tanto que agora que o teto ia exercer sua função houve uma virada de mesa, para gastar R$ 112,6 bilhões a mais em 2022. E não é pelo gasto social, que vai custar de R$ 50 bilhões a R$ 55 bilhões. É para fazer os gastos aprovados no final do ano, emendas de relator e tudo isso.

É preciso colocar as forças políticas na mesa e decidir qual vai ser a forma da responsabilidade fiscal, se vai ser mais pelo lado da receita ou da despesa e que tipo de gastos estamos dispostos a cortar. É preciso uma revisão ampla das despesas orçamentárias. Há gastos, inclusive tributários, que vêm sendo carregados por décadas sem uma revisão adequada a partir de uma avaliação técnica isenta. As renúncias tributárias deixam na mesa 4% do PIB, algo como R$ 300 bilhões.

O Mauro Benevides está certo na entrevista que ele deu [para a Folha]. É o investimento que está pagando o pato [com o teto de gastos]. E porque está pagando? Porque ninguém quer enfrentar os gastos obrigatórios.

RAIO-X
Felipe Scudeler Salto, 34, diretor-executivo da IFI (Instituição Fiscal Independente) desde 2016 e responsável por sua implantação. Economista pela FGV/EESP e mestre em Administração Pública e Governo pela FGV/EAESP. Foi consultor econômico na Tendências Consultoria. Trabalhou na assessoria do senador José Serra (PSDB-SP). É professor de Finanças Públicas no mestrado profissional em Economia do IDP (Instituto Brasiliense de Direito Público). Vencedor do Prêmio Jabuti de Economia em 2017 com o livro “Finanças públicas: da contabilidade criativa ao resgate da credibilidade” (Record, 2016). Também organizou o livro “Contas públicas no Brasil”, com Josué Pellegrini (Saraiva, 2020).

O que segura entregador de app em casa é preço da gasolina e não ômicron, diz especialista

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Renato Meirelles, presidente do Instituto Locomotiva, participou da comissão que estudou a nova classe média

Folha de São Paulo, 16/01/2022.

A explosão da ômicron, que provocou o afastamento de funcionários contaminados e atrapalhou a operação em diversos setores, atingiu também os entregadores de aplicativos.

Nesta parcela da população, entretanto, o ficar em casa é forçado por outros motivos, segundo Renato Meirelles, presidente do Instituto Locomotiva.

“Esse cara não se dá ao luxo de não trabalhar por causa da contaminação. Só que ele não tem dinheiro para pagar a gasolina”, afirma Meirelles.

Falou-se muito sobre o impacto da falta de mão de obra para as empresas nessa onda de contaminação da ômicron, mas e os trabalhadores autônomos? Qual é o impacto para eles? Não dá para entender a questão dos trabalhadores autônomos, os trabalhadores por aplicativo, só pelo contexto da pandemia. Temos que entender o contexto econômico como um todo.

Tem o impacto do aumento do desemprego, que não é um detalhe. Em especial o desemprego entre os jovens, que formam a maior parcela, em especial dos aplicativos. E não é à toa que, no último ano, nós temos 11,7 milhões de brasileiros que passaram a trabalhar por aplicativo. E não estou falando só de Uber e iFood. Estou falando daquela pessoa que é a manicure que passou a ter cliente direto por meio do GetNinjas, do boteco que perdeu cliente na pandemia e passou a vender pelo iFood, daquele que estampa camiseta e passou a vender no Mercado Livre.

Temos no Brasil hoje 34 milhões de brasileiros que ganham uma parte do seu dinheiro por aplicativo. Destes, 62% recebem metade, ou mais, de sua renda por aplicativo. Estamos falando, talvez, do maior setor profissional do país.

E essas pessoas estão sofrendo, em especial os que trabalham com transporte, porque o preço da gasolina está lá em cima.

Historicamente, nós pensávamos o preço da gasolina em duas vertentes: a do custo para a logística e a da classe média que abastece seu carro. A pandemia nos fez ver o aumento da gasolina pela lógica do insumo fundamental para os trabalhadores de aplicativo e de entrega.

E quando vem uma onda de contaminação como essa atual? Essas pessoas ficam em casa? Sim e não. Essas pessoas não se dão ao luxo de ter o isolamento social. São trabalhadores que, na grande maioria, têm que vender o almoço para comprar a janta. Apesar dos riscos e da contaminação, não se podem dar ao luxo de não trabalhar.

E tem uma parcela que trabalha em casa, seja estampando boné, seja fazendo bolo para vender. Mas isso tem muito mais a ver com a crise econômica do que com o vírus.

E os entregadores? Têm ficado em casa porque se contaminaram com essa nova variante? Ficam em casa não porque se contaminaram. Ficam porque não têm dinheiro para gasolina. Ele já não tinha alternativa quando estávamos nas outras variantes, que tinham um grau de letalidade maior e a gente não tinha vacina. Hoje, ele não tem ainda mais, por causa de grana.

Cada setor responde de um jeito. Como reage a economia das favelas a isso? Na favela, crise não é exceção. É regra. Essas pessoas cresceram na crise, seja de saúde, segurança, econômica. O que eu chamo de “se virômetro” da favela é muito maior do que na média da população brasileira.

Na favela tem também um nível de solidariedade 35% maior do que na média do Brasil. Esse dado é medido por doações. Por outro lado, essas pessoas têm menor nível de proteção social. E não só pela questão econômica, mas pela própria moradia, têm mais dificuldade em fazer o isolamento.

São as pessoas que mais sofreram com os atrasos do auxílio emergencial do início do ano passado e com a incerteza do que será agora. E são pessoas que, muitas vezes, trabalham na rua.
Essa pessoa se vira indo para a internet e o aplicativo. E são trabalhadores que, na prática, foram os responsáveis pelo Brasil não parar.

Não foi por causa da classe média que o Brasil continuou andando. Foi por causa dos trabalhadores do ônibus, da limpeza, dos caixas de supermercado, de farmácia.

Foram eles que tiveram mais risco com a pandemia e que menos foram protegidos. E, na hora de virar público prioritário para serem vacinados, foram esquecidos em detrimento de quem tinha nível superior.

Não é à toa que o índice de contaminação da periferia é quase o dobro do índice de contaminação do resto do Brasil.

Qual á a sua avaliação sobre a reação dos governos e o que deve ser feito? Como avalia a posição dos que têm retomado restrições? Infelizmente, o que pauta o governo federal e alguns estaduais é a lógica eleitoral e não a lógica do que é melhor para a vida das pessoas. E eles sustentam essa lógica através de falsas polêmicas. Uma delas é a que contrapõe saúde à retomada da economia.

Se o grupo de risco fica doente, não consegue trabalhar, para de consumir, a economia quebra. Só que boa parte dos governantes se ocupam transformando uma questão básica, civilizatória, que é o valor da vida, em uma disputa política.

E não existe retomada da economia que não passe por distribuição de renda. E não é mudar nome de Bolsa Família para Auxílio Brasil por causa de eleição. Distribuição de renda se dá é no aumento do salário mínimo acima da inflação.

E isso a gente não viu.

Raio-X
Presidente do Instituto Locomotiva e membro do conselho de professores do IBMEC, onde é titular da cadeira de ciências do consumo. Foi fundador e presidente do Data Favela e participou da comissão que estudou a nova classe média, na Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República em 2012

Mundo do trabalho e as reformas civilizatórias: os ventos da Espanha, vários autores.

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Não resta dúvida sobre a incapacidade de a reforma trabalhista em cumprir sua principal promessa

Tereza Campello, Economista, titular da Cátedra Josué de Castro/USP. Foi ministra de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (2011-2016)

Miguel Rossetto, Sociólogo, mestre em Políticas Públicas. Foi ministro do Trabalho e da Previdência Social (2015/2016)

André Calixtre, Economista, doutorando em economia pela UnB. Foi Diretor de Estudos e Políticas Sociais do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (2015/2016)

Folha de São Paulo, 15/01/2022

A Espanha resolveu finalmente encerrar seu longo ciclo neoliberal de desestruturação do mercado de trabalho, onde o governo Pedro Sánchez, do PSOE (Partido Socialista Obrero Español), aprovou em dezembro de 2021 (na forma de Decreto Real a ser referendado pelo Congresso) uma reforma trabalhista civilizatória, após intensa participação social via negociação tripartite ao longo de todo o ano passado, envolvendo, portanto, trabalhadores, governo e empresários. O alto desemprego espanhol, especialmente entre jovens, uma das maiores desigualdades da Europa e a precarização das condições de trabalho motivaram essa virada.

No caso do Brasil, a reforma trabalhista é a última joia da coroa instituída pelo governo Temer em 2017 com a promessa, feita pelo então ministro da Fazenda Henrique Meirelles, de que ela traria 6 milhões de novos empregos.

Além de ampliar o problema do emprego, cuja massa de desempregados está girando em 14 milhões de brasileiros, 1,5 milhões a mais do que no ano de aprovação da reforma, a dita “reforma modernizadora” ampliou a informalidade no mercado de trabalho, chegando hoje a incríveis 45 milhões de trabalhadores, quase metade da população ocupada, um ganho de mais de 3 milhões desde 2017 e ainda houve redução de um pouco mais de 1 milhão de trabalhadores formais, todos esses dados registrados pela Pnad Contínua, do IBGE.

Após a revisão dos dados revisão dos dados do novo Caged em 2020, mostrando que a alardeada criação de empregos formais durante o governo Bolsonaro era na verdade uma subestimação brutal de demissões provocada pela mudança metodológica na base de dados, não resta dúvida sobre a incapacidade de a reforma trabalhista em cumprir sua principal promessa.

Isso sem mencionar os efeitos mais profundos da dita reforma para o mundo do trabalho, ao impedir o acesso à Justiça do Trabalho, igualar patrão e empregado quando todos sabemos que essa relação é assimétrica, e destruir as fontes de financiamento sindical, impedindo o fortalecimento das estruturas de negociação pela parte dos trabalhadores. A reforma de Temer foi aprovada sem negociação com os trabalhadores, sem discussão técnica adequada e por um governo que não discutiu seu programa nas urnas, ascendeu ao poder golpeando a presidenta eleita

legitimamente pelo voto popular e destruiu as principais instituições reguladoras do trabalho, no Executivo e no Judiciário.

Governos democráticos não revogam autoritariamente leis. Ademais, a realidade é que precisamos pensar um futuro mais digno para os trabalhadores brasileiros, e esse novo mundo do trabalho –responsável sozinho por quase 50% da redução da desigualdade de renda que tivemos no último ciclo de desenvolvimento, segundo pesquisa do Ipea– deve incorporar e estruturar as novas condições de ocupação trazidas pelo avanço tecnológico. Os impactos da informalização do trabalho são graves e profundos.

Segundo pesquisa da Rede Penssan, é quatro vezes maior o risco de insegurança alimentar grave, leia-se fome, em famílias chefiadas por trabalhador informal que por assalariado, atingindo 15,7% desse grupo em 2020, contra 3,7% dos trabalhadores formais. O aumento da informalidade tem reduzido a massa salarial, retirando a classe trabalhadora do acesso à renda gerada pela economia. O que temos assistido é uma crise civilizatória no mercado de trabalho brasileiro, acelerada pelo desastre econômico do bolsonarismo, cujas consequências podem se tornar irreversíveis.

Sobre o exemplo da reforma civilizatória espanhola, esta consiste em três eixos principais: o fortalecimento dos gastos sociais em educação e saúde e criação de um programa de renda mínima de mesma inspiração do Bolsa Família brasileiro; o aumento real do salário mínimo, hoje fixado em 1.125,00 euros e cuja meta é atingir 60% da média de salários até 2023 (atualmente, esse nível já chegou a 57% da média); e atacar o desemprego e a precarização do trabalho, limitando o uso dos contratos de curta duração e estimulando os contratos por tempo indefinido, taxando em 27 euros os contratos inferiores a 30 dias de duração, diminuindo as demissões como variável de ajuste no mercado de trabalho, investindo pesadamente em um programa de qualificação profissional, em especial as médias ocupações (nível técnico), e ampliando o acesso aos programas de preservação de emprego especificamente criados para o combate à pandemia.

A experiência espanhola mostra que a negociação tripartite pode ser um caminho viável, mas, para isso funcionar no Brasil, é preciso um novo modelo de desenvolvimento e o resgate das instituições democráticas de negociação tripartite e participação social, depredadas por sucessivos movimentos autoritários. Evidentemente, a realidade brasileira é muito mais desafiadora, temos uma sociedade desigual, dualizada entre mercados de trabalho formal e informal e cujo Estado está capturado por inconfessáveis desejos de autodestruição.

É possível, no entanto, apontar novos caminhos. Com a retomada de políticas públicas para o crescimento econômico, a atuação do Estado é fundamental, reativando o motor de geração e distribuição de renda do mundo do trabalho e aprimorando o desenho do Estado de bem-estar para as profundas mudanças tecnológicas, ambientais e demográficas que se avizinham, garantindo renda mínima a uma parcela maior da população que agora ficou desassistida com a desestruturação provocada pelos erros do governo Bolsonaro no combate à pandemia e na introdução do Auxílio Brasil.

No mercado de trabalho, o Estado precisa agir direta e ativamente na gestão da massa de desempregados, garantindo empregos sociais temporários em setores estratégicos, como cuidados pessoais, melhorias da infraestrutura pública e cultural, e redirecionando a capacitação técnica dos trabalhadores atingidos pela intensa reestruturação produtiva acelerada pela pandemia.

É preciso ousar uma nova política de valorização do salário mínimo e um novo contrato social centrado em um estatuto único do trabalhador, seja ele formal ou informal, que permita acesso a direitos trabalhistas mínimos a toda a população economicamente ativa. Recuperar direitos perdidos, reduzir as profundas disparidades de gênero e raça no mercado de trabalho, que restabeleça as condições de acesso à Justiça do Trabalho e que retome a primazia da organização sindical sobre a individual no mercado de trabalho.

No entanto, a nossa reforma civilizatória precisa atuar como um poderoso instrumento de inclusão do mundo informal, reconhecendo direitos de trabalhadores por aplicativo e atuando fortemente na regulação dos contas-próprias, que é a categoria informal que mais cresce atualmente, incluindo com acesso aos fundos públicos tradicionalmente constituídos pelo setor formal da economia como o FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador) e ampliando o seguro-desemprego para o mundo informal.

A Espanha não é um caso isolado no mundo, diversos países têm revisto suas normas trabalhistas após o duro enfrentamento da pandemia e seus efeitos sobre o emprego, dentre eles os Estados Unidos e a Coréia do Sul, esta até reduziu sua jornada de trabalho, pauta hoje considerada utópica para o Brasil. A disputa política maior é sobre o padrão do ciclo de recuperação econômica que virá após a imunização produzida pela vacinação em massa e a aguardada mudança de comportamento do vírus para uma doença endêmica.

Os efeitos da pandemia já são comparáveis a uma grande guerra mundial, mas os caminhos para uma recuperação mais ou menos civilizada continuam plenamente abertos para as nações. O Brasil precisa definir se escolhe permanecer nesse estranho lugar de negacionismo, autoritarismo e precarização do trabalho ou se prefere investir em um projeto econômico-social e ambientalmente sustentável.


Autoritarismo ou reacionarismo? por Oscar Vilhena Vieira.

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Presidente buscou impor seus objetivos abusando de suas prerrogativas

Oscar Vilhena Vieira Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.

Folha de São Paulo, 14/01/2022

Como distinguir uma ação autoritária implementada pelo governo de uma ação meramente conservadora ou reacionária?

Essa difícil questão me foi colocada pela professora Maria Herminia Tavares de Almeida, em reação à série de reportagens publicadas pela excelente jornalista da Folha Renata Galf, sobre um projeto de pesquisa voltado a compreender o modo como os novos líderes populistas empregam o direito e suas instituições para concretizar seus objetivos.

A questão é relevante porque um dos pressupostos fundamentais dos regimes democráticos é que o eleitor possa, pelo voto, determinar mudanças na orientação das políticas governamentais. Nesse sentido, é tão legítimo a um presidente conservador buscar implementar políticas conservadoras, como a uma presidente progressista ou liberal cumprir suas promessas de campanha. A democracia serve para isso mesmo; para poder mudar.

Ações autoritárias constituem uma coisa distinta. Numa primeira categoria encontram-se aquelas ações que ameaçam os próprios pressupostos do Estado democrático de direito, como a integridade do processo eleitoral ou a independência dos poderes que têm a responsabilidade de elaborar ou garantir as regras do jogo; ou seja, o Legislativo e o Judiciário. Nesta mesma categoria também estão ações que violem direitos fundamentais, prejudicando o livre e igualitário exercício da cidadania, ou a dignidade das pessoas.

Uma segunda categoria de ações autoritárias, no entanto, está associada mais à forma pela qual são veiculadas do que propriamente o mérito. Desde Rousseau, ficou claro que um regime democrático não se resume à mera vontade da maioria. Para que a decisão dos cidadãos possa se impor a toda comunidade é fundamental que ela seja veiculada por lei. Pela sua natureza, assim como pelo seu processo de adoção parlamentar, em que as minorias têm participação, a lei é um poderoso antidoto contra o exercício arbitrário do poder. Nesse sentido, impor conduta sem fundamento na lei é, por definição, autoritário.

Assim, mesmo objetivos políticos legítimos, almejados pela maioria —não importa se reacionários ou progressistas—, apenas poderão se transformar em ação governamental após se submeterem ao devido processo legal, seja ele legislativo, administrativo, e, em muitos casos, judiciário.

O que nossa pesquisa detectou é que, por indisposição ou incapacidade de construir uma ampla coalizão de governo, o presidente buscou impor seus objetivos abusando de suas prerrogativas. Daí falamos em “infralegalismo autoritário”; pois baseado no emprego sistêmico de prerrogativas administrativas, em contraposição ao que determinam as leis e a Constituição.

O deputado federal Eduardo Cury, outro perspicaz leitor dos resultados da pesquisa, salientou, no entanto, que a incapacidade do governo de aprovar certas medidas autoritárias pode ter se dado menos em função de eventuais virtudes de nosso parlamento pluripartidário e bicameral, do que da própria incompetência dos operadores políticos do governo. O Centrão, preocupado em não descontentar o Supremo, preferiu se concentrar na defesa apenas de seus próprios interesses.

O deputado nota com moderado otimismo, por outro lado, que por não terem conseguido impor alterações legais ou constitucionais nas estruturas de nossa democracia, será mais fácil ao próximo governo, caso haja disposição e competência, reverter parte dos estragos institucionais provocados pelo infralegalismo autoritário.

A falsa polêmica da carne, por Ilona Szabó

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Pensar que em 2022 ainda não temos informações completas sobre a origem de produtos de base animal e vegetal é, no mínimo, frustrante

Ilona Szabó de Carvalho Empreendedora cívica, mestre em estudos internacionais pela Universidade de Uppsala (Suécia). É autora de “Segurança Pública para Virar o Jogo”.

Folha de São Paulo, 12/01/2022.

Independentemente de consumir ou não carne bovina, é do interesse de todos saber a procedência exata da proteína. Mundo afora a decisão de comer ou não carne animal passa pelo preço, por crenças religiosas e espirituais, por convicções sobre bem-estar animal, e cada vez mais pela preocupação sobre sua procedência e relação com o clima do planeta.

E isto está mais do que correto. Pensar que em pleno ano de 2022 ainda não temos informações completas sobre a origem de produtos de base animal e vegetal, prestadas de forma transparente por todos os produtores e indústrias é, no mínimo, frustrante.

No caso específico da carne bovina produzida no Brasil, parte da cadeia produtiva está relacionada a áreas desmatadas e griladas. A falta de rastreabilidade e transparência total dessa cadeia impede que possamos diferenciar os produtores que cometem ilegalidades, dos que cumprem as leis. Da mesma forma, dificulta a identificação dos que adotam boas práticas de manejo de pasto, alimentação e abate, reduzindo as emissões de metano — um dos gases geradores do efeito estufa e das mudanças climáticas.

Apesar de ainda não ser um debate muito difundido no Brasil, a discussão já é realidade pulsante em algumas faixas etárias, em especial nas gerações Z e millennials. Esse fato traz oportunidades que não podem ser desperdiçadas, seja pelo governo à luz de compromissos internacionais de desmatamento-zero recém-assumidos pelo país na COP 26, seja por empresas e investidores para garantir mercado e investimentos em inovações da área.

Ignorar a relevância desse debate é um equívoco, seja da parte de pecuaristas, de investidores ou das gerações de consumidores que ainda não escolhem os produtos que compram com base nas condutas éticas das empresas.

Pecuaristas que não se adequarem às boas práticas de produção sustentável, e à estrita conformidade legal, podem perder tanto o mercado externo como o interno, além de eventualmente verem-se responsabilizados por práticas ilícitas que nunca foram parte de seus objetivos de negócio.

Investidores, por sua vez, não só deixam de cumprir métricas ESG, como podem deixar escapar oportunidades de investimento em produtores carbono-neutros e em inovações de empresas que produzem carne de base vegetal, e que desenvolvem carnes em laboratórios.

E os consumidores, por fim, deixam de exercer seu poder de incentivar a produção eficiente de proteína animal, de baixo impacto ambiental e climático, e de valorizar os produtores alinhados com a proteção da natureza.

A boa notícia é que não faltam bons exemplos. O Brasil já exporta carne rastreável e livre de desmatamento para a União Europeia e outros mercados que assim exigem, e já conta com produtores de vanguarda que desenvolvem um modelo de pecuária sustentável, mas que ainda competem de forma desigual por mercado com seus pares que não cumprem a lei.

O ano de 2021 foi repleto de posicionamentos públicos de grandes bancos e fundos de investimento sobre o assunto, bem como de compromissos dos grandes frigoríficos com o maior controle sobre seus fornecedores, e de anúncios sobre seus novos investimentos no mercado de carne vegetal.

Em meio a falsas polêmicas, há uma oportunidade real de impulsionar a capacidade de inovação do agronegócio brasileiro. Com compromissos e exemplos práticos, todos os elos das cadeias produtivas —desde o financiador, a agroindústria, até o pequeno produtor, podem direcionar investimento para práticas e tecnologias sustentáveis, transparentes e alinhadas com as regulações ambientais.