Caindo na real, por Afonso Celso Pastore.

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Por conta da alta dos juros para segurar a inflação, no início de 2022 ficará claro que o crescimento do PIB será bem menos do que 2%

Afonso Celso Pastore – O Estado de São Paulo, 15/08/2021

Para quem ainda não se deu conta do significado da expressão “taxa de juros acima da neutra”, usada pelo Banco Central a partir de quando começou a reconhecer o descontrole da inflação, aqui vai a definição: é uma política monetária restritiva, que faz com que o crescimento do PIB atual se mantenha abaixo do seu potencial, alargando um hiato que já é negativo. Ou seja, para iniciar uma lenta e penosa convergência da inflação para a meta, o Banco Central terá de manter a taxa real de juros suficientemente elevada para provocar uma contração da demanda agregada, produzindo sensível redução do crescimento econômico.

Como as defasagens da política monetária são longas, nos próximos meses ainda não deverá ocorrer um encolhimento do PIB, mantendo-se a ilusão de um crescimento forte em 2022. Porém, já no início do próximo ano ficará claro que o crescimento será bem menor do que 2%, que era a estimativa de crescimento do PIB potencial antes da pandemia. Em 2022, teremos inflações e taxas reais de juros altas, com um crescimento medíocre do PIB, sem que se possa descartar uma queda em um ou outro trimestre.

Para minha surpresa, quando eu esboço esse quadro, a reação frequente do interlocutor é um par de olhos arregalados. Talvez isso se deva à ilusão de que a inflação seria apenas a consequência de uma sucessão de choques de oferta, independentes entre si, que se dissipariam sozinhos, sem contaminar as expectativas. Não é o que está escrito no primeiro capítulo do Manual do Regime de Metas de Inflação, que recomenda que, embora o Banco Central deva acomodar o efeito primário de um choque de oferta, tem de elevar a taxa de juros para dissipar seus efeitos secundários, o que não vinha sendo feito nos últimos 18 meses.

A segunda surpresa foi o otimismo do mercado quando o aumento da inflação gerou a ilusão de queda do risco fiscal. Reconheço que desta vez a ajuda não se deu através do imposto inflacionário, e sim por seu efeito sobre o crescimento da receita, que reduziu o déficit primário abaixo de 1,5% do PIB. Se a inflação não fosse tão alta, não teria ocorrido um crescimento do PIB nominal bem acima da dívida nominal, provocando em 2021 uma queda significativa da relação dívida/PIB. Contudo, ainda que isto não revelasse a melhora da política fiscal, provocou um rally nos preços dos ativos, com uma valorização temporária do real e do Ibovespa.

A ilusão de que tudo estaria bem impediu que se prestasse atenção aos efeitos de um aumento da taxa real de juros sobre o crescimento. Talvez isso se deva à expectativa de que a queda do risco fiscal, associada à taxa de juros mais alta, atrairia capitais que valorizariam o real, que poderia chegar a R$ 4,70/US$ ao final de 2021, contribuindo para a queda da inflação. Com isso, a perspectiva era de um retorno mais rápido da inflação à meta, com um sacrifício pequeno em termos de perda de produto.

Antes do alerta de que os gastos sociais também são reajustados pela inflação, acreditava-se que o IPCA de 8,3% em junho de 2021 teria gerado, em 2022, um aumento de R$ 120 bilhões dos gastos primários dentro do teto. A ilusão de que haveria uma gordura que permitiria aumentar os gastos desapareceu com a lembrança de que os gastos sociais têm de ser corrigidos pelo INPC de dezembro, o que come ¾ da suposta folga no teto, e a surpresa dos precatórios acentuou as preocupações. Ainda que a PEC dos precatórios aumente um espaço residual para acomodar o projeto do novo Bolsa Família, a incerteza já provocou efeitos, levando o real de volta aos R$ 5,20/US$.

Entraremos em 2022 com um crescimento econômico abaixo do potencial, com a taxa de desemprego alta e uma piora na distribuição de rendas. Com os EUA, Europa e China voltando a crescer perto dos respectivos potenciais, não teremos mais o impulso do comércio exterior e dos preços de commodities, que se soma ao desestímulo da taxa real de juros no campo restritivo da atividade econômica.

Crescimento econômico baixo reduz a popularidade do presidente, o que pode forçá-lo a optar pelo aumento nos gastos, excedendo o teto, com sua vida sendo facilitada pela aliança com o Centrão, que não tem a mínima preocupação com a responsabilidade fiscal. A piora da situação fiscal acentua a depreciação cambial, que aumenta a inflação, restando ao Banco Central a opção entre aumentar ainda mais a taxa de juros, reduzindo o crescimento, ou acomodar a política monetária, elevando a inflação. Tudo isso em um ano de eleição…

EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA A.C. PASTORE & ASSOCIADOS. ESCREVE QUINZENALMENTE

Livro traça o pensamento econômico de 17 ministros da Fazenda de 1889 a 1985

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Admiração por ideias liberais é ponto comum a quase todos os biografados, assim como é constante a dificuldades em colocá-las em prática

EDUARDO CUCOLO – FOLHA DE SÃO PAULO, 14/08/2021.

De Rui Barbosa a Ernane Galvêas, o livro “Os Homens do Cofre – O que pensavam os ministros da Fazenda do Brasil republicano” discorre sobre o pensamento econômico de 17 ministros da Fazenda que comandaram a economia do país da Proclamação da República (1889) até o fim da Ditadura Militar, em 1985.

Os nomes selecionados, entre os quase cem titulares da pasta nesse período, incluem dois presidentes da República, Rodrigues Alves e Getúlio Vargas, além de figuras históricas como José Maria Whitaker, Oswaldo Aranha, Horácio Lafer e Eugênio Gudin.

Como destacam os autores, nenhum desses era economista de formação, embora tivessem vasto conhecimento sobre as teorias do liberalismo clássico e os debates econômicos da época nas economias mais avançadas.

Só a partir de 1964 o ministério passaria a ser comandado predominantemente por economistas, classe que assumiria ascendência sobre a administração do país com status que não haviam ostentado até então, segundo o organizador da obra, o professor do Departamento de Economia da Universidade Federal do Paraná Ivan Colangelo Salomão.

Desse período mais recente, foram selecionados Octávio Gouveia de Bulhões, Antonio Delfim Netto (que assina o prefácio do livro), Mario Henrique Simonsen e Ernane Galvêas.

Segundo o organizador, foram escolhidos os 17 ministros com maior destaque no cenário público brasileiro desse período, independentemente do tempo em que atuaram. Rui Barbosa, Getulio e Moreira Salles, por exemplo, ficaram pouco mais de um ano no cargo.

Também foram considerados nomes a respeito dos quais houvesse documentação disponível. Buscou-se ainda distribuir os nomes de forma uniforme por esse período.

A admiração pelas ideias liberais é ponto comum a quase todos os biografados, assim como é constante a dificuldades em colocá-las em prática diante de interesses políticos e econômicos —e da realidade de uma economia periférica e ainda em processo de industrialização.

Também não são poucos os que, tendo criticado a leniência dos antecessores com a inflação e os déficits públicos crônicos, acabam por ver frustradas suas tentativas de mudar os rumos da economia brasileira.

Uma economia ainda dependente do setor primário e do crédito internacional, com um sistema cambial instável e uma dívida externa sendo constantemente renegociada também compõe o cenário da maior parte desses quase cem anos iniciais da República.

O livro também mapeia o surgimento do pensamento desenvolvimentista. Primeiro ministro da Fazenda da República, Rui Barbosa é apresentado como um intelectual de formação ortodoxa que acaba por adotar políticas econômicas classificadas pelos autores como um ensaio do desenvolvimentismo que surgiria quatro décadas depois, a partir da Era Vargas.

Um exemplo da aplicação desse pensamento é o capítulo dedicado ao mais longevo ministro da Fazenda da história brasileira, Artur de Souza Costa, que ocupou a cadeira por 11 anos e três meses (de julho de 1934 a outubro de 1945).

No prefácio, o ex-ministro e colunista da Folha Delfim Netto afirma que o Brasil não se saiu tão mal, a despeito de tantas e tão variadas experiências no comando da economia desses anos: no período, o PIB real do país cresceu aproximadamente 5% ao ano, mais do que a média mundial. Situação que, aliás, não voltaria a se repetir nos 35 anos seguintes.

Escrito por diversos autores, alguns capítulos apresentam uma linguagem mais atrativa e uma narrativa mais dinâmica que outros.

Destinado ao público mais especializado em temas econômicos, o livro alcança os objetivos propostos, se dividindo entre o aspecto biográfico e a história do pensamento de cada personagem, usando como referência ampla bibliografia sobre o período.

OS HOMENS DO COFRE: O QUE PENSAVAM OS MINISTROS DA FAZENDA DO BRASIL REPUBLICANO (1889-1985)
Preço R$ 67
Autor Ivan Colangelo Salomão (Org.)
Editora Editora Unesp (520 págs.)

A China adotaria barreiras ao agro brasileiro por motivos climáticos? por Tatiana Prazeres

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Cálculo político sobre restrições comerciais pode mudar à medida que China reduza emissões

Tatiana Prazeres Senior fellow na Universidade de Negócios Internacionais e Economia, em Pequim, foi secretária de comércio exterior e conselheira sênior na direção-geral da OMC.

Folha de São Paulo, 13/08/2021

A China, destino de um terço das exportações do agronegócio brasileiro, poderia lhe impor barreiras comerciais por razões climáticas?

Pois não é descabida a pergunta, ainda que a agenda de sustentabilidade da China represente também uma oportunidade para o agro brasileiro.

Em julho, Pequim colocou em funcionamento o mercado nacional de crédito de carbono, que imporá um custo às empresas chinesas em função de suas emissões.

Na União Europeia, esse mesmo tipo de mercado levou a que, hoje, o bloco queira implementar um imposto de importação por motivos climáticos, teoricamente estendendo aos importados os custos que passaram a recair sobre produtos europeus.

Meu palpite? No curto prazo é improvável que a China adote esse mesmo caminho de restrições comerciais por razões climáticas. Mais importante: o cálculo político pode mudar à medida que a China avance rumo à neutralidade de carbono.

A lógica remete à atitude chinesa diante de propriedade intelectual. Enquanto o país basicamente copiava, a agenda de proteger conhecimento não convinha. Agora que inova, a conversa é outra.

Igualmente importante: antes de barreiras comerciais, instrumentos menos evidentes mas poderosos, como financiamento atrelado a metas de sustentabilidade, terão impacto nas importações chinesas do agro brasileiro.

Neste momento, no entanto, Pequim tem motivos econômicos e políticos para evitar barreiras comerciais.

A China é o maior emissor de carbono e também o maior exportador de bens do mundo. Com esse duplo título, o país antes receia se tornar alvo de barreiras ao comércio por motivos climáticos. Ao adotar obstáculos comerciais, estaria especialmente vulnerável a respostas equivalentes.

No entanto, à medida que os custos da transição climática do país pesem sobre as empresas chinesas, uma nova conta se impõe a Pequim. Se as exportações chinesas sofrerem barreiras por motivos ambientais, idem.

Especificamente em relação ao agro brasileiro, o argumento da segurança alimentar na China joga contra a adoção de restrições. Dos alimentos que importa, 18% vêm do Brasil.

Ocorre que, do universo de itens do agro exportados para o país asiático, apenas na soja e no suco de laranja há uma grande dependência do fornecimento do Brasil no consumo doméstico chinês. E suco de laranja, convenhamos, não ameaça a segurança alimentar de ninguém. Soja é outra história.

Nos casos em que há grande produção na China e mercados fornecedores alternativos, o argumento da segurança alimentar não oferece blindagem segura contra barreiras.

Há ainda motivos políticos para a China resistir a essas restrições comerciais. O país valoriza a não-interferência em assuntos internos —inclusive porque não quer ingerência externa aqui. A lógica de realpolitik seria, digamos, tratar Amazônia e Xinjiang como assuntos domésticos.

Se hoje barreiras ao agro brasileiro por motivos climáticos parecem improváveis, não custa lembrar a velocidade com que o cálculo de Pequim pode mudar. O vendaval regulatório que acaba de atingir setores de tecnologia e educação privada na China serve de lembrete.

Num cenário de políticas inadequadas no Brasil e, na China, de reais esforços climáticos e inclinações protecionistas, é possível que empresas brasileiras venham a enfrentar barreiras ao comércio por razões ambientais.

Mas o processo seria sutil. Longe de banir importações, o movimento começaria, por exemplo, com certificações climáticas não-obrigatórias —e o sarrafo poderia subir.

Antes mesmo de barreiras comerciais, incentivos reputacionais e financeiros para empresas importadoras, investidores, bancos e fundos chineses terão impacto no agro brasileiro. A China não quer ser vista, por exemplo, como responsável por desmatamento na Amazônica pelas importações de carne.

Menos óbvios que barreiras comerciais, esses incentivos podem ser igualmente poderosos e, principalmente, chegarão primeiro ao agro do Brasil.

‘Há outros vírus só esperando para emergir’, afirma Jared Diamond

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Pesquisador da Universidade da Califórnia abre série de conferências Fronteiras do Pensamento, em formato virtual

REINALDO JOSÉ LOPES – FOLHA DE SÃO PAULO, 11/08/2021

Para quem tinha alguma esperança de que a Covid-19 seria o tipo de evento que só acontece uma vez a cada século, o biogeógrafo americano Jared Diamond, 83, tem uma má notícia.

“Eu diria que a Covid-19 é o começo do futuro”, afirmou Diamond, autor do clássico “Armas, Germes e Aço”, em entrevista à Folha por vídeo. “Está mais claro do estava um ano atrás que a atual pandemia é um evento único sem precedentes no passado, mas que terá muitos imitadores a partir de agora. Ou seja, a Covid-19 é a primeira pandemia realmente global graças à sua capacidade de se espalhar por aviões a jato, embora a pandemia de gripe espanhola de 1918 tenha chegado perto.”

O pesquisador da Universidade da Califórnia em Los Angeles é o primeiro convidado deste ano da série de conferências Fronteiras do Pensamento, que acontece em formato virtual. Sua palestra para o público brasileiro acontece no dia 25 de agosto.

Diamond se notabilizou pela capacidade de sintetizar uma imensa gama de informações biológicas, geográficas, arqueológicas e antropológicas para tentar encontrar os grandes fios da meada da história humana. Uma das constantes, segundo ele, é o papel das doenças infecciosas, como sugere a palavra “germes” no título de seu principal livro —foram eles os principais responsáveis pela relativa facilidade com que os europeus dominaram as populações nativas de continentes como a América e a Oceania.

As civilizações da Europa e da Ásia contaram com essa vantagem em relação a indígenas americanos e aborígines australianos graças, em grande parte, aos seus rebanhos de animais domésticos, que eram raros ou inexistentes nos locais invadidos.

Os micróbios e vírus dos bichos passaram milhares de anos saltando para seus donos e adaptando-se a eles em território europeu, enquanto nenhum processo parecido se deu entre os nativos do Brasil, dos EUA ou da Austrália.

Com isso, essas populações não tinham nenhuma resistência natural a moléstias como sarampo, varíola e gripe, frequentemente sendo dizimadas pelos germes sem que fosse preciso disparar um só tiro.

A semelhança com o novo coronavírus, contra o qual nenhum ser humano tinha resistência natural quando ele começou a se espalhar no fim de 2019, não é mera coincidência.

“Há outros vírus só esperando para emergir. Temos algo como 30 milhões de espécies de animais por aí, e cada um desses animais têm suas próprias doenças”, aponta Diamond. “Pegamos febre amarela de macacos, malária de primatas do Velho Mundo, pegamos a Sars [doença causada por outro coronavírus no começo dos anos 2000] de animais do Sudeste Asiático. Portanto, você pode apostar que elas vão continuar aparecendo enquanto os seres humanos tiverem contato com animais.”

A relação entre animais domésticos, doenças infeciosas e conquista europeia exemplifica o enfoque dado pelo especialista a suas análises da história humana. Para Diamond, as grandes linhas dos confrontos entre civilizações foram definidas por condições ambientais de cada continente e região, as quais muito raramente estão sob controle de cada povo.

Essa é uma das razões pelas quais ele é um adversário ferrenho da ideia de que supostas diferenças genéticas entre raças ou grupos étnicas, em especial as que afetariam a inteligência, teriam levado ao triunfo de certos povos sobre outros.

“É claro que existem algumas diferenças genéticas entre as populações de cada continente, que possuem razões ambientais sólidas para existir. Os habitantes das regiões tropicais do Velho Mundo, por exemplo, têm genes de resistência à malária porque passaram milênios enfrentando a doença, coisa que os suecos não têm. Já os habitantes do norte da Europa, que consomem leite há milhares de anos, carregam mutações que permitem que os adultos sejam capazes de digerir os açúcares do leite. Mas, no que diz respeito à capacidade do cérebro, não há evidência nenhuma de diferenças”, destaca ele.

“Com base na minha experiência na Nova Guiné, onde faço meu trabalho de campo, posso dizer que os americanos burros conseguem não apenas sobreviver como até acabam indo votar”, ironiza. “Já um nativo da Nova Guiné burro não sobrevive o suficiente para se reproduzir.”

As décadas de contato com as sociedades tradicionais da ilha do Pacífico é uma das bases de outro de seus livros, “O mundo Até Ontem”, no qual Diamond mostra o que é possível aprender com populações que ainda vivem de maneira muito parecida com nossos ancestrais de 10 mil anos ou 5.000 anos atrás. Para o pesquisador, tais grupos abrem uma janela para estratégias de interação social e desenvolvimento humano que continuam sendo valiosas.

“Os povos indígenas têm sociedades que são o resultado de centenas de milhares de anos de evolução e 75 mil anos da evolução dos seres humanos modernos. Eles têm muitas maneiras de criar seus filhos, muitas maneiras de cuidar dos idosos, muitas maneiras de aprender habilidades sociais. Na Nova Guiné, fiquei muito impressionado quando vi que crianças de cinco anos de idade conseguem negociar com adultos como eu muito melhor do que americanos de cinco anos”, conta ele. “Imagino que os brasileiros com mais de 70 anos ou 80 anos em geral estão muito infelizes, tal como os americanos com essa idade. Sentem e conversem com os povos da floresta sobre como eles enfrentam a velhice.”

Ensaio sobre prisões na pandemia implica quem ‘não tem nada a ver com isso’

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Juliana Borges desmantela engrenagens que forjaram terceira maior população prisional do planeta

FERNANDA MENA – FOLHA DE SÃO PAULO, 11/08/2021

O silêncio sobre contradições fundamenta mitos. Essa afirmação da intelectual brasileira Lélia Gonzalez é evocada pela escritora e pesquisadora de política criminal Juliana Borges em seu contundente ensaio “Prisões: Espelhos de Nós”.

Em cinco capítulos, Borges faz uma ampla análise das engrenagens do sistema de justiça criminal brasileiro e de seu resultado — a terceira maior população carcerária do planeta em estabelecimentos precários e superlotados— sob a luz, ou melhor, sob as trevas da pandemia da Covid 19.

Atrás apenas de Estados Unidos e da China, o Brasil chegou a cerca de 760 mil pessoas privadas de liberdade em junho de 2020, segundo dados do Depen, abusando do instituto da prisão provisória, aquela que ocorre antes do julgamento e da sentença e sob a qual estão detidos cerca de 35%do total de presos e presas do país.

Mais do que isso, Borges desmantela os mecanismos que entrelaçam nossas violentas heranças colonial e escravagista para evidenciar de que maneira elas determinam quem são os “cidadãos de bem” e quem são os “inimigos da sociedade”.

Sintetizada naquilo que hoje reconhecemos como racismo estrutural opera uma máquina de prender pessoas jovens (55% da população prisional), negras (64%), pobres e de baixa escolaridade (51% não possuem o ensino fundamental), como demonstra a autora.

“A construção da figura do criminoso na sociedade brasileira é um processo totalmente atravessado pelo racismo”, escreve ela, que é também consultora do Núcleo de Enfrentamento, Monitoramento e Memória de Combate à Violência, da OAB-SP e conselheira da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas e da Plataforma Brasileira de Política de Drogas.

Borges articula filósofos e intelectuais peso-pesado, como Frantz Fanon, Grada Kilomba, Abdias do Nascimento, Pierre Bourdieu, Angela Davis e Michel Foucault, autor do clássico dos estudos sobre prisões “Vigiar e Punir”.

A escritora, que também é autora do livro “Encarceramento em Massa” (Jandaíra), retoma as políticas de embranquecimento da sociedade brasileira e a marginalização da população negra enquanto projeto, a criminalizada por sua condição social de abandono a partir de institutos como a lei da vadiagem, que colocava atrás das grades aqueles que não tinham destino certo que não as ruas da cidade.

A seletividade das prisões em flagrante, responsáveis por parcela importante da população prisional, é uma espécie de atualização informal desses institutos: só são presos aqueles que estão nas ruas e, portanto, podem ser abordados pela polícia. Em geral, homens jovens, negros e periféricos são desproporcionalmente considerados como suspeitos.

Com a chegada da pandemia, penitenciárias superlotadas, onde violações de direitos fundamentais são regra, e não exceção, passaram por um processo de prisão dentro da prisão, e de abandono sobre abandono.

As visitas foram suspensas, assim como as poucas atividades de trabalho e educação. Em muitos casos, até o banho de sol foi cancelado ou ainda mais restrito. Pesquisa da Fundação Getúlio Vargas apontou que 7 de cada 10 famílias de pessoas presas ouvidas afirmaram não ter acesso a qualquer informação sobre seus parentes durante a pandemia. As medidas, defende a autora, transformaram presídios em caixa-preta.

Soma-se a isso a questão do descumprimento da recomendação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), evidenciado no relatório do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), que aponta que 3 de cada 4 pessoas que poderiam ter deixado a prisão na pandemia foram mantidas atrás das grades por juízes de São Paulo.

Ao denunciar os motores do encarceramento em massa, o combustível da negação de direitos fora e dentro dos muros e o negacionismo de parte do Judiciário brasileiro no contexto da pandemia, Juliana Borges ajuda a romper o tal silêncio sobre contradições que fundamentam mitos. Com isso, cria o desconforto necessário à responsabilização. O maior mito deles é talvez o mais recorrente e reconfortante: a falsa ideia de que não temos nada a ver com isso.

PRISÕES – ESPELHOS DE NÓS
Preço R$ 30 (56 págs).
Autor Juliana Borges
Editora Todavia

Recuperação ameaçada

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A pandemia gerou graves constrangimentos na sociedade global, afetando comportamentos, alterando hábitos, crises econômicas, desemprego em ascensão, desesperanças e perspectivas preocupantes, levando os governos a atuações mais intensas em seus sistemas econômicos e produtivos, injetando recursos, protegendo setores, aumentando os investimentos em políticas sociais, retomando planejamento e políticas intervencionistas.

Diante deste ambiente, muitos analistas econômicos, defendiam a tese de que a economia brasileira estava em recuperação, construindo uma narrativa de que o pior teria ficado para trás. A recuperação era vista como sólida e consistente, motivando os investimentos, a geração de empregos e perspectivas de melhorias no incremento da renda, dos salários e do consumo. Infelizmente, as perspectivas positivas estão se mostrando exageradas e a recuperação econômica está se mostrando fraca e limitada.

O cenário do segundo semestre vai ficando turvo para a economia brasileira diante do crescimento de múltiplos riscos: inflação persistente, seca histórica que compromete o abastecimento de energia elétrica e do agronegócio, altas de juros e desarranjo fiscal somado à deterioração do ambiente político e institucional. A recuperação em V tão alardeada pelos integrantes da equipe econômica nos parece bastante distante da realidade do país, com graves constrangimentos para o equilíbrio político, social e institucional.

A recuperação econômica, depois de uma queda elevada no ano passado, pressupõe uma política consistente e organizada, onde os setores econômicos precisam de um ambiente centrado na confiança e no aumento da credibilidade, criando os consensos necessários e imprescindíveis para que os investimentos produtivos voltem a estimular o crescimento econômico. Sem investimentos produtivos não teremos recuperação econômica.

Falar em recuperação econômica com quase 15 milhões de desempregados, 6 milhões de desalentados e 20 milhões de subempregados é uma temeridade e uma verdadeira irresponsabilidade, contribuindo para criar uma narrativa inconsistente que não tem lastro na realidade. O combate ao desemprego deve ser visto como uma prioridade nacional, a geração de emprego prescinde de investimentos em obras públicas e centrados na economia verde e, infelizmente, as discussões se concentram em políticas para reduzir os benefícios sociais que estimulam empregos degradados e a diminuição da renda do trabalhador que contribui para este cenário de desalento e desesperança.

Destacamos ainda o crescimento da inflação que levou o governo a aumentar as taxas de juros na economia, cujos impactos são negativos sobre a renda da população, diminuindo os investimentos produtivos e elevando as dívidas das famílias. Tudo isso contribuiu enormemente para a degradação econômica e fragiliza o discurso da recuperação da economia, que esconde inoperância e a ausência de um projeto nacional consistente.

As contas públicas sempre geraram instabilidades na economia brasileira, no começo do ano muitas previsões de especialistas era que caminhávamos para uma escalada na dívida pública. A relação dívida/PIB se reduziu, gerando expectativas positivas, mas isso não ocorreu por alguma reforma fiscal, a reversão aconteceu em decorrência do incremento da inflação que escondeu parte do problema e, posteriormente, voltará a aparecer quando a inflação diminuir.

Para contribuir negativamente, a crise de energia e a variante Delta geram mais incertezas e instabilidades, impactando sobre a recuperação econômica, afastando investimentos internos e estrangeiros e postergando a construção de um ciclo de crescimento econômico. Nos países avançados, a recuperação econômica está centrada em dois elementos fundamentais: a vacinação, com a economia voltando a um nível de normalidade e estímulos fiscais. Sem estas medidas efetivas de incentivos econômicos e do incremento da imunização, a economia brasileira não conseguirá se reerguer, o cenário permanecerá instável e as narrativas de recuperação se mostrarão cada vez mais reduzidas e limitadas.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário. Artigo publicado no Jornal da Região, Caderno Economia, 11/08/2021.

A tributação no Brasil incentiva o que deve ser evitado

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Fim da isenção sobre lucros e dividendos produzirá mais justiça fiscal

Rodrigo Spada, Presidente da Febrafite (Federação Brasileira de Associações de Fiscais de Tributos Estaduais)

Jefferson Valentin, Agente fiscal de rendas do estado de São Paulo
Folha de São Paulo, 09/08/2021

A disfuncionalidade do sistema tributário brasileiro faz com que sejam incentivadas práticas que em outros países são combatidas. Aqui, por exemplo, quem ganha menos paga proporcionalmente mais impostos do que quem ganha mais.
Outro ponto que escancara nossos problemas tributários é o fato de ser mais lucrativo ao empresário retirar dinheiro de sua empresa do que reinvesti-lo, fortalecendo a companhia e a economia nacional.

O lobby político explica, em boa parte, o fato de a regressividade dos tributos sobre o consumo beirar o limite do insuportável e de o imposto sobre a renda ser mais um exemplo de regressividade, sobretudo por conta da isenção atribuída à distribuição de lucros e dividendos. Entre as maiores economias do mundo, o Brasil é o único país no qual essa distribuição é isenta. Será que nós estamos certos e o resto do mundo está errado?

Os defensores da isenção argumentam que as empresas já pagam alíquotas de Imposto de Renda mais altas que em outros países. Falam em 34%, dos quais seriam 25% de IR e 9% de CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido). O argumento é falacioso por uma série de fatores, mas principalmente porque há diferenças na tributação dos diversos países, e uma comparação só seria razoável se partisse de uma alíquota efetiva média. Há diversos mecanismos que reduzem a alíquota efetiva do IRPJ (Imposto de Renda Pessoa Jurídica) nacional.

É comum encontrar, no Brasil, empregados que pagam mais IR que o proprietário da empresa. Para se ter uma ideia do desatino, segundo dados da Receita Federal, em 2018, 26.099 pessoas físicas declararam rendimentos acima de 320 salários mínimos. Destas, apenas 2.364 foram tributadas normalmente, enquanto 4.257 foram tributadas exclusivamente na fonte (ganhos de capital, aplicações financeiras etc.) e 19.478 receberam rendimentos isentos. Ou seja, cerca de 75% dos maiores rendimentos recebidos por pessoas físicas foram isentos.

Em 2019, R$ 359,15 bilhões foram pagos a pessoas físicas sócias de empresas optantes pelo lucro real ou presumido, e outros R$ 120,51 bilhões foram pagos por empresas optantes do Simples Nacional. Somados, quase meio trilhão de reais totalmente isento de Imposto de Renda enquanto a tabela progressiva está há anos sem correção, avançando cada vez mais sobre o trabalhador de mais baixa renda.

Se a empresa retém lucros para investimentos, gerando mais emprego e renda, aumenta o valor de mercado de suas ações ou quotas —e, caso o empresário venda tais participações por valor maior do que as comprou, pagará Imposto de Renda sobre ganho de capital. Por outro lado, se a empresa distribui os dividendos em vez de investi-los, o empresário os receberá livre de tributação. A isenção sobre lucros e dividendos, portanto, representa um incentivo para que o empresário retire dinheiro da empresa.

Diante disso, concluímos que, neste ponto, a proposta do governo, no projeto de lei 2.337/202, caminha na direção correta, pois, ao acabar com a isenção sobre lucros e dividendos, melhora a progressividade do IR e gera mais justiça fiscal à matriz tributária brasileira. E é exatamente por isso que a proposta sofrerá poderosos ataques de uma elite empresarial que, longe de querer o desenvolvimento do país, preocupa-se exclusivamente com seus privilégios.

O futuro da nova direita brasileira, por Camila Rocha

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Recondução de Bolsonaro ao poder seria fatal

Camila Rocha Cientista política, é autora de ‘Menos Marx, Mais Mises – O Liberalismo e a Nova Direita no Brasil’ (editora Todavia) e co-autora de ‘The Bolsonaro Paradox – The Public Sphere and Right Wing Counterpublicity in Contemporary Brazil’ (Springer-Nature, 2021).

Folha de São Paulo, 08/08/2021

Ainda é frequente no debate público brasileiro igualar fenômenos políticos como extrema direita, fascismo, direita radical e nova direita. Outro lugar-comum é destacar semelhanças entre o Brasil e outros países, ou entre tempos diferentes, sem maiores mediações. No entanto, deixar de reconhecer especificidades, tons de cinza e novidades neste campo do espectro político não apenas é um equívoco acadêmico, mas político. E, nesse sentido, nomes importam.

Em 2015, em meio a uma pesquisa documental junto ao Instituto Liberal, fundado na metade dos anos 1980 no Rio de Janeiro, me deparei com um novo fenômeno. Acidentalmente descobri que integrantes do instituto, assim como vários de seus conhecidos, participavam de discussões em antigos fóruns de internet em meio ao primeiro governo Lula (PT).

A despeito das muitas divergências existentes entre grupos e tendências diversas, que abrangiam de anarcocapitalistas a monarquistas, havia um “ar de família” que remetia a um novo “ecossistema” em formação, nas palavras do jornalista Lucas Berlanza, atual presidente do instituto. Uma “nova direita” emergia, turbinada pela reeleição de Dilma Rousseff (PT) e pelas manifestações que demandavam seu impedimento. Porém, a nova força política se consolidou de fato apenas com as eleições de 2018, quando vários de seus membros foram alçados à política institucional, seja por meio do voto, seja por indicação política de quem se elegeu.

Sua principal novidade em relação à direita tradicional é o desejo de romper com o pacto democrático de 1988. Se desde a redemocratização a direita tradicional vem atuando, em maior ou menor grau, dentro dos marcos estabelecidos pelo pacto (Constituição de 1988 + presidencialismo de coalizão), a intenção da nova direita é substituir seu substrato progressista, oriundo de algumas vitórias de grupos oprimidos e movimentos sociais, por uma combinação entre conservadorismo programático e radicalismo de mercado, sintetizado no mote “privatiza tudo’”. Porém, se seus fins são radicais, os meios não o são. O ranço com a ditadura militar, associado a uma herança autoritária e a um estatismo pós-Castelo Branco, é frequente entre seus integrantes. Mas em seu caminho havia Jair Bolsonaro.

O apoio à extrema direita no segundo turno das eleições de 2018 foi justificado pelo pragmatismo e por uma sinalização favorável às principais pautas da nova direita. Nas palavras de um de seus integrantes, sabia-se do “risco janista”, mas a maioria optou por pagar para ver. Hoje o balanço da gestão iniciada em 2019 ainda é alvo de discussões. Por um lado lamenta-se que as esperadas grandes privatizações não vieram. Outros entendem que o saldo não é tão negativo. Ainda que a pandemia tenha “tumultuado o meio de campo”, haveria sinais de recuperação econômica, o governo estaria inaugurando obras paradas há muito tempo e a vacinação só não seria mais rápida por conta da grande concorrência e porque apenas um país seria produtor dos insumos.

A despeito disso, a vontade de se desassociar do bolsonarismo não é minoritária. Várias lideranças apoiaram recentemente o impedimento do presidente. E, mesmo quem prefere aguardar as eleições de 2022, aposta em uma terceira via —ainda que não publicamente, dado que muitos partidos e políticos continuam “fechados com Bolsonaro”.

O desembarque se justificaria, para além das discordâncias em relação à condução (ou falta dela) da pandemia, por conta do estilo político do capitão reformado, tido como “histriônico”; da ausência de espaço para a pluralidade e as dissonâncias existentes no campo das direitas; e do comportamento de parte das Forças Armadas, que estaria “bolsonarizada”.

Diante das diversas possibilidades existentes até o presente, apenas um cenário político seria de fato fatal para a nova direita em 2022: a permanência de Bolsonaro no poder. No mais, caso a nova direita pretenda manter o nome e, como afirmou uma de suas lideranças anos atrás, continuar a conquistar corações e mentes, ficam as palavras de um assessor político que contribuiu com este artigo: “A nova direita agora precisa se reorganizar. Voltar para um trabalho que não deveria ter interrompido e retornar à penetração de base: igrejas, bairros, associações, universidade e opinião pública”.

Polícia foi criada para controlar pessoas negras e pobres, diz capitão da PM.

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Fábio França critica treinamento e analisa raízes colonialistas da segurança pública brasileira

MARCELO AZEVEDO
MATHEUS ROCHA
FOLHA DE SÃO PAULO, 03/08/2021

A VIOLÊNCIA POLICIAL CONTRA PESSOAS NEGRAS é herança da escravidão, aponta o capitão da PM Fábio França. Doutor em sociologia pela Universidade Federal da Paraíba, ele explica que, no século 19, a família real montou o primeiro aparato de segurança do país para manter o domínio da elite branca. “A polícia foi criada, obviamente, para controlar a população negra e pobre.”

Na corporação, França é uma voz crítica por identificar na formação policial uma “pedagogia do sofrimento”. Para uma pesquisa, ele colheu depoimentos de alunos que participaram do Estágio de Operações Táticas com Apoio de Motocicletas da PM, e constatou humilhações e agressões físicas praticadas no curso. Como resultado, analisa, os agentes reproduzem a violência sofrida no treinamento quando vão atuar no policiamento urbano.

França diz ainda que o currículo de formação impede mudanças efetivas. As tentativas de humanizar a instituição existem, mas esbarram no militarismo praticado nos treinamentos. Para ele, enquanto não abrirmos mão de um currículo que adestra o ser humano para aceitar a lógica militar, a formação estará subordinada a isso. “Será forçada nas regras militares.”

Qual o tema de sua pesquisa acadêmica? Na dissertação, trabalhei a ideia de humanização da Polícia Militar. Já no doutorado, levantei a tese de que programas de policiamento comunitário como as UPPs, Unidades de Polícia Pacificadora, no Rio, tinham um discurso que criava “sociabilidade estratégica”. A ideia era fazer com que o Estado conseguisse entrar com forças repressivas nas periferias e nos grandes centros urbanos.

Minha hipótese é a de que há convencimento através de um discurso de humanização. As pessoas das periferias se convencem de que é necessário a polícia estar lá para representar o Estado. Isso gera um controle social muito mais sofisticado, que não busca usar a violência direta, mas sim a violência simbólica.

O que é violência simbólica e como ela se manifesta? É uma maneira de fazer com que o dominado aceite o discurso do dominador sem resistência, acreditando que tudo aquilo é bom para ele. O objetivo é mostrar que as formas de dominar o outro são tão inteligentes que os grupos dominantes não precisam fazer nenhum esforço. Basta utilizar o discurso adequado para o convencimento acontecer.

Com essa mudança de discurso por meio de encontros entre pessoas das comunidades e policiais, por exemplo, cria-se a visão de que as coisas estão acontecendo, facilitando a entrada dos agentes. Mas o que não percebem é que os policiais, por estarem sempre presentes, acabam controlando e vigiando melhor.

Quais são as características do policiamento comunitário? O policiamento comunitário geralmente funciona com um curso que dura entre uma e duas semanas. Já o curso de policial militar normal dura em média de seis meses a um ano, enquanto para oficial são três anos, de maneira geral. Como podemos falar de uma internalização de princípios humanitários e comunitários para um policial que passa apenas 15 dias num banco escolar vendo esses princípios?

Qualquer tipo de política pública implementada dessa forma vai ser um fracasso.

Quando o projeto das UPPs foi lançado, eu sabia que daria em fracasso. Nós sabíamos que era um projeto para organizar a Copa e as Olimpíadas. Depois, ia acabar se extinguindo.

Qual é a origem da violência nos treinamentos da polícia? Existe essa ideia de que o sofrimento é necessário dentro da cultura militar, porque na rua haverá algo parecido. O policial precisaria estar preparado para isso. Mas essa perspectiva é um tanto contraditória, porque ela vem de uma cultura militarizada, que prepara o indivíduo das Forças Armadas para a guerra. Se ocorresse uma guerra no país, eles teriam que estar preparados para matar e naturalizar a morte, como se fosse produto do trabalho.

As polícias militares são as únicas forjadas com base na hierarquia e na disciplina do Exército e que, no contato com as pessoas, podem produzir violência física ou simbólica. Existe essa correlação entre violência e formação.

Mas, quando entra a humanização, alguns questionamentos devem ser feitos. Enquanto não abrirmos mão de um currículo que adestra o ser humano para aceitar a lógica militar, a humanização estará subordinada a isso. Será forçada nas regras militares.

Se esse treinamento gera tanto prejuízo, por que não há um debate amplo para reformulá-lo? Os gestores policiais não trabalham com dados técnicos. Tem-se a ideia, joga-se e implementa-se. Não há um estudo básico sobre nada.

Durante a pesquisa no curso de força tática, vi que os alunos passaram por situações como privação de sono, humilhação, comida servida misturada com mão suja. São testes de sobrevivência que vêm do período militar, ideias da cultura beligerante do Exército que chegam a essas instituições. E as pessoas simplesmente reproduzem.

No caso das polícias militares, é como se fosse um modismo, porque nem eles sabem explicar tecnicamente para que serve, mas sabem que devem fazer aquilo. O grande problema é: e quando alguém morre, o que fazer? Existem vários desses casos no Brasil. É o que eu chamo de “pedagogia do sofrimento”.

Por que pessoas negras são mais abordadas e mortas pela polícia? Quando a família real veio para o Brasil, montou o primeiro aparato de segurança pública do país. Já em 1831, as guardas municipais permanentes foram criadas. À época, a ideia era a elite branca controlar a grande maioria de escravizados, alforriados, fugitivos e brancos pobres. Não era permitido, por exemplo, reuniões de três a cinco pessoas de pele negra. Elas poderiam ser presas ou açoitadas por isso. A polícia foi, obviamente, criada para controlar a população negra e pobre. Isso é um fato que ninguém aceita no campo da Polícia Militar, até porque eles nem sabem disso.

Além de a população negra sofrer com esse aparato, ainda há o fato de que negros se tornam policiais e não têm essa perspectiva. Nos cursos de formação, não existe um debate sobre a origem e a história das polícias militares.

Livro relaciona ação na segurança pública à volta dos militares à política

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‘Dano Colateral’ examina erros de GLOs, mas não convence ao ligá-las ao governo Bolsonaro

Igor Gielow

DANO COLATERAL – A INTERVENÇÃO DOS MILITARES NA SEGURANÇA PÚBLICA

Autor Natalia Viana – Editora Objetiva (352 páginas) – R$ 59,9

A volta dos militares ao centro do debate público é um dos fatores mais notáveis, por repetitivo na vida republicana desde 1889, da história recente do Brasil.

Ao tentar mapear a cronologia do processo, que culmina na presença ostensiva de generais e de outras patentes no governo do capitão reformado do Exército Jair Bolsonaro, a jornalista Natalia Viana optou por um caminho de duas mãos.

Fundadora da Agência Pública, ela acaba de lançar “Dano Colateral – A Intervenção Militar na Segurança Pública” (Ed. Objetiva, 352 págs.).

Um dos pilares da obra é boa reportagem, focada no objeto do subtítulo do livro. Viana analisa 35 mortes de civis em conflitos com forças militares brasileiras nas chamadas GLOs (Operações de Garantia da Lei e da Ordem).

Instituídas há quase 30 anos para garantir o sossego de dignitários na Rio-92, as GLOs foram um instrumento abusado por presidentes ao longo do tempo. Fernando Henrique Cardoso (PSDB) chegou a ter 11 dessas ações em curso em um só ano, 2000.

Elas ajudaram a cimentar a fama de “posto Ipiranga” dos fardados e ganharam destaque principalmente ao lidar com questões de violência urbana, 16% das 144 operações de lá para cá, e com a segurança de grandes eventos como a Copa-2014 e as Olimpíadas-2016 (27% do total).

Ao mesmo tempo, as GLOs recebiam duras críticas de militares e especialistas civis pela inadequação de usar em policiamento os soldados treinados para a guerra.

Aqui, o pilar reportagem do livro se sustenta bem. O leitor é apresentado ao conceito de Apop (agente provocador da ordem pública), termo que na prática coloca traficantes armados até os dentes e inocentes no mesmo balaio.

Viana bebe na fonte que gerou clássicos como “Rota 66 – A História da Polícia que Mata”, de Caco Barcellos (1992), e reconta histórias das vítimas e de como as Forças Armadas trabalham um ciclo de impunidade na apuração dos incidentes.

De forma notável em um texto com viés esquerdista, há espaço também para os soldados do outro lado e para o contraditório vindo principalmente de uma conversa com um general central deste período, Sérgio Etchegoyen, chefe do Gabinete de Segurança Institucional de Michel Temer (MDB).

Há lacunas, contudo, que parecem querer reforçar a tese central do livro: aquela segundo a qual as crescentes intervenções militares, somadas à experiência dos fardados na chefia da longa missão de paz das Nações Unidas no Haiti (2004-17), deitaram os trilhos para o trem cheio de militares chegar à Esplanada de Bolsonaro.

Todo o emprego das GLOs no governo FHC, por exemplo, que foi o que mais lançou mão do recurso (5,9 ações por ano, em média), passa em branco.

Na cronologia de Viana, tudo começa com a malfadada Operação Arcanjo, que de certa forma trouxe a experiência haitiana para o Complexo do Alemão, em 2010, com os resultados conhecidos.

Ela ainda acerta ao apontar a degradação sugerida do contato das tropas com a criminalidade, até mesmo do ponto de vista operacional, com a desastrosa ação que culminou nas mortes do músico Evaldo Rosa dos Santos e do catador Luciano Macedo em 2019, já em pleno governo Bolsonaro.

Mas há também generalizações sem prova que são lugares-comuns nos grupos que lidam com o assunto e redes sociais à esquerda. Mesmo Viana reconhece que o universo de problemas com os militares é ínfimo, por exemplo, se comparado com o das polícias estaduais.

O livro tem menos sucesso, contudo, ao tentar caracterizar as GLOs e o Haiti como berços do militarismo do governo federal.

Há evidentes pontos em comum: 6 dos 9 comandantes de força brasileiros tem alguma cadeira pública de relevo sob Bolsonaro, e o ministro da Defesa é o general Walter Braga Netto, ex-interventor federal na segurança do Rio em 2018.

A ideia de que os militares gostariam de ampliar seu raio de ação por terem sido empregados em tais ações tem sentido, mas o fato é que a realidade é mais nuançada, até porque Haiti e GLOs foram mais sintomas do que causas.

A ideia que falta desenvolver em “Dano Colateral” é acerca da tibieza do poder político brasileiro ao lidar com os fardados, motivo da desenvoltura da caserna já no enfraquecido governo Temer e da debacle na relação com os governos do PT.

Foi o poder civil que, ao fim, convidou os fardados para a festa ao ignorar a necessidade de debater defesa nacional nos anos pós-ditadura.

O recente livro-depoimento do então comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas, é bastante mais elucidativo acerca dos desígnios da turma —ainda que, natural numa elegia, arrogue para si o caráter de “estar fazendo o correto”.

Viana elenca vários elementos, mas sua análise não os amarra de forma límpida. A prosa, algo truncada, é pontuada por algumas simplificações que não ajudam a iluminar o contexto, como na unidimensionalidade nas citações ao impeachment de Dilma Rousseff (PT).

Isso dito, a obra vai na linha correta ao constatar a tutela presumida dos militares, que encontra eco em episódios ao longo da história da República, com a ditadura de 1964 como seu exemplo mais claro.

Um símbolo disso é o famoso artigo 142 da Constituição de 1988. A autora reconta o vaivém que manteve os militares com papel na tal “lei e ordem”, definido no texto, e lembra como Bolsonaro torce a interpretação do texto sempre que lhe convém.

Como todo livro-reportagem feito a quente, “Dano Colateral” tem a favor e contra si o fato de comentar um processo ainda inconcluso. Seu maior mérito, contudo, reside no que tem de mais factual e objetivo do que na especulação e análise apresentadas.

O que ensina a Venezuela, por Maria Hermínia Tavares

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A presença de militares na política tem custos altos e reversão difícil

Maria Hermínia Tavares Professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.

Folha de São Paulo, 05/08;2021

Mais de uma vez, ao desfechar ataques desvairados às instituições que garantem a democracia no país, Bolsonaro invocou o “meu Exército”, sugerindo que conta com o apoio das Forças Armadas para levar a cabo seus intentos liberticidas.

Até aqui, parece haver antes farolagem do que fundamento nessas falas. Ainda assim, é nítido que desde a ditadura de 1964-1985 os militares brasileiros nunca estiveram tão perto de cruzar a linha que separa seu papel constitucional do engajamento aberto na disputa política.

A história nunca se repete ao pé da letra; e experiências de outros países costumam viajar mal. Ressalvas feitas, há muito que aprender com o artigo do cientista político americano Harold Trinkunas”. As Forças Armadas Bolivarianas da Venezuela: medo e interesse face à mudança política”, recém-publicado pelo Woodrow Wilson Center de Washington.

O estudo trata da politização das instituições militares sob Hugo Chávez e Nicolás Maduro e de sua subordinação aos governos populistas da dupla.

De um lado, isso implicou na doutrinação ideológica nas academias militares, em sistemas de promoção e atribuição de missões que favoreceram o oficialato leal ao chavismo; na reestruturação das Forças com a inclusão formal da Milícia Bolivariana diretamente afeta ao presidente; e no fortalecimento de um vasto sistema de contrainteligência militar que vigia os suspeitos de deslealdade ao regime. De outro lado, vieram as recompensas.

Em especial sob Maduro, militares ocuparam o centro do poder. Comandam ministérios, governam estados e controlam setores econômicos estratégicos, como parte da indústria petrolífera, a mineração de ouro e a distribuição de alimentos. Gerem também o multimilionário comércio de armas com a Rússia e a China. E não é propriamente um segredo em Caracas que oficiais de alta patente têm parte com o tráfico internacional de drogas e o contrabando de mercadorias.

Maduro, ele sim, diz a verdade ao proclamar que o politizado Exército do país é seu. E este, cúmplice do desastre nacional que o populismo chavista promoveu, compartilha com o autocrata a responsabilidade pela destruição de uma democracia que já foi forte o suficiente para vencer a guerrilha revolucionária e ficar ao largo da onda de autoritarismo que sufocou a região nos anos 1960-70.

Acima de tudo, os fuzis são hoje o principal obstáculo para a Venezuela voltar por meios pacíficos à normalidade democrática. Por atraente que possa parecer aos brasileiros desiludidos com o sistema, a presença dos militares na política tem custos altos e reversão difícil.

A Casa do Povo, por Cida Bento.

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Reforma eleitoral expõe os perigos de um Parlamento com pouca diversidade

Cida Bento Diretora-executiva do CEERT (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades), é doutora em psicologia pela USP

Folha de São Paulo, 05/08/2021

O Congresso Nacional é conhecido como “a Casa do Povo”. Quando olhamos o perfil de quem “habita” essa Casa do Povo, vemos que é majoritariamente constituído de homens brancos, empresários, de classe alta, com ensino superior completo, de meia-idade e a maioria deles reeleita; ou seja, “políticos de carreira”.

Já o povo brasileiro é majoritariamente negro (54%), feminino (51%), 42,4% têm menos de 30 anos, e apenas 48,8% de pessoas com 25 anos ou mais finalizaram a educação básica obrigatória (IBGE). E a classe baixa subiu de 38%, em 2010, para os atuais 47% (Instituto Locomotiva).

Dessa forma, parece que o Congresso Nacional não é mesmo a Casa do Povo. Pois é, esse Congresso está propondo uma reforma eleitoral perigosa para a democracia, que caminha rapidamente sem transparência e sem debate social.

Dentre tantas reações da sociedade civil diante dessa violência, um “Manifesto Contra a Reforma Eleitoral em Curso” foi lançado pela Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político.

O manifesto denuncia que a reforma modifica o sistema eleitoral para o modelo mais caro e individualista do mundo: o distritão, sistema considerado por cientistas políticos como antidemocrático e ineficiente.

A reforma desconsidera a desigualdade étnico-racial na disputa eleitoral e desmantela estruturas de ação afirmativa para fortalecimento político e econômico de mulheres candidatas, como a obrigação de preencher o mínimo 30% de candidaturas femininas, com igual percentual de tempo de rádio e TV e de financiamento público.

“No caso de mulheres negras, que são mais subfinanciadas e sub-representadas na política, os impactos serão extremamente nocivos. Teremos ainda menos mulheres negras nos espaços de decisão política do país”, diz a historiadora Giselle dos Anjos, integrante da Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político.

A reforma altera ainda o sistema de eleição, estabelecendo o voto impresso. Diminui punições pelo mau uso de verbas públicas no período eleitoral e anistia os partidos políticos que não cumpriram a distribuição financeira com equidade de raça e as cotas de financiamento de gênero.

Está sendo necessária uma grande luta para impedir os retrocessos e a destruição do que já foi conquistado no sentido de trazer mais diversidade para o Parlamento.

A Coalizão Negra Por Direitos, que congrega mais de 200 organizações, está à frente de um amplo movimento para ocupar o Twiter usando a hashtag #ReformaRacistaNão.

Diversos coletivos de organizações da sociedade civil estão se mobilizando contra o absurdo que caracteriza essa reforma ou golpe eleitoral. A articulação apressada é para que as novas regras tenham validade já nas eleições de 2022.

Sem dúvida é mais um passo na escalada antidemocrática que o Brasil vem vivendo e expõe os perigos de um Parlamento com pouca diversidade como o brasileiro e que quer se manter no poder a qualquer custo. E com muito dinheiro, que, aliás, é dinheiro do povo brasileiro, pois propuseram que seja triplicado o valor do fundo eleitoral.

Eles fizeram um radical pacto narcísico de permanecer no poder ou de só deixar que outros venham, se tiverem o mesmo perfil. E a sociedade civil há muito se movimenta para que o Congresso Nacional se
constitua verdadeiramente na Casa do Povo, ou seja, que focalize o combate às desigualdades e assegure que os perfis dos parlamentares sejam tão diversos quanto é diversa a sociedade brasileira.

Por isso é urgente provocar a sociedade a participar das discussões e interditar a aprovação desse projeto, pressionando o Congresso e enviando mensagens aos parlamentares envolvidos na votação. Sigamos, pois, lutando por um parlamento menos monolítico que colabore na construção de um Brasil mais justo e igualitário

Se os americanos pensassem o impensável, fariam o oposto do que estão fazendo

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Primazia americana é assunto intocável, porque, para os EUA, país sempre estará em primeiro lugar

Tatiana Prazeres Senior fellow na Universidade de Negócios Internacionais e Economia, em Pequim, foi secretária de comércio exterior e conselheira sênior na direção-geral da OMC.

Folha de São Paulo, 02/07/2020

A despeito de a sociedade americana ser bastante aberta, ela ainda tem seus tabus. A primazia americana é um desses assuntos intocáveis. Para os americanos, os EUA estarão para sempre em primeiro lugar.

Questionar isso é antipatriótico, derrotista, argumenta Kishore Mahbubani, em seu recém-lançado livro, “A China Venceu? O Desafio Chinês à Primazia Americana”.

Há uns dias, conversei com o professor e ex-diplomata de Singapura via Zoom. Mahbubani está convencido da necessidade de abrir os olhos dos americanos para o momento —inescapável— em que a China se tornará a primeira economia do mundo.

Claro, ser a primeira economia do mundo não significa ser a maior potência mundial, porque o poder tem outras dimensões. Mas é inegável que a economia importa.

Os americanos estariam cometendo um erro elementar de geopolítica —não estariam trabalhando com o cenário realista, argumenta.

Afirma, aliás, que o maior erro dos EUA em relação à China seria o de ter se lançado numa ampla disputa geopolítica sem antes conceber uma estratégia adequada.

Isso passaria necessariamente por reconhecer a realidade e se preparar para descer do Olimpo ou, ao menos, para dividir o pódio.

Alguns discordam de Mahbubani. Dizem que os EUA têm sim uma estratégia em relação à China, que seria chamado “decoupling”.

Para os seus defensores, o desentranhamento da economia americana em relação à chinesa —com a redução dos vínculos comerciais, tecnológicos, financeiros, acadêmicos etc.— teria o poder de conter a China e assegurar a primazia americana.

O problema não é apenas o grande tiro no pé que isso significa para os EUA, mas também o fato de que, para funcionar, terceiros países precisariam tomar partido dos americanos —e isso está longe de ser garantido, especialmente com Donald Trump no poder.

Conter e isolar a China é tudo menos trivial. Por exemplo, 127 países têm mais comércio com a China do que com os EUA. Se durante a Guerra Fria muitos escolheram um lado com convicção, hoje a maioria prefere ser poupada da rivalidade entre os grandes. Quem puder e tiver juízo, resistirá a tomar partido.

Perguntei a Mahbubani como será o mundo com a China como a maior economia. Depende de como se lida com a China enquanto ela cresce, respondeu. Quanto mais os EUA tentarem empurrá-la para baixo, mais ela emergirá como uma potência raivosa.

O melhor para os EUA, diz, seria construir um entendimento enquanto ela ainda não está no topo, definindo parâmetros de convivência enquanto os americanos ainda estão numa posição melhor.

O ideal seria reformar regras existentes que, afinal, foram desenhadas pelo Ocidente e não pela China —em vez de simplesmente descartar organizações e acordos internacionais.

A destruição promovida por Trump abre espaço para o avanço geopolítico chinês. Como resumiu Mahbubani, cada brecha que os EUA criam para eles hoje é uma brecha que abrem para a China amanhã.

Ironicamente, caso os EUA se permitissem pensar o impensável à respeito da China, chegariam à conclusão de que deveriam fazer o oposto do que estão fazendo.

Estariam se preparando para o futuro ao reformar e fortalecer as regras do jogo. Estariam reforçando vínculos com seus aliados, em vez de maltratá-los. Com isso, criariam balizas e constrangimentos ao poder da China.

Pode-se discordar dos argumentos de Mahbubani, mas ele tem um mérito inquestionável. O de forçar os americanos a encarar a complacência intelectual e questionar a visão inabalável de que os EUA sempre vencem.

Para ele, mais importante que saber se a China ganhou, é forçar as pessoas a pensarem no outro lado da moeda: os EUA podem perder?

A convergência chinesa, por Cecília Machado.

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Liderança em medalhas põe disputa olímpica no patamar da guerra econômica entre China e EUA

Cecília Machado

Folha de São Paulo, 02/08/2021

Hoje, China e Estados Unidos disputam cabeça a cabeça a liderança do quadro de medalhas. Nas Olimpíadas anteriores, em 2016, os EUA levaram a melhor tanto pelo número de ouros (46) quanto pelo número total de medalhas (126). Mas em 1988, nas Olimpíadas de Seul, as primeiras após os boicotes aos Jogos de Moscou (1980) e de Los Angeles (1984), a China ficou em 11º lugar, com apenas cinco ouros. A evolução olímpica chinesa nestes últimos 33 anos impressiona.
Na economia não foi diferente. O êxito econômico da China nas últimas décadas é percebido a olhos nus em múltiplos indicadores, seja nas taxas de crescimento, seja nas reduções das desigualdades, seja na inclusão produtiva da população pobre ou mesmo na relevância do país para o comércio global.

De 1980 a 2019, a taxa média de crescimento da China foi de 9,4%, chegando a alcançar 15% em 1984. Esse crescimento foi distribuído à população e tem se convertido em melhorias de diversos indicadores de bem-estar dos chineses.
O fim da pobreza extrema foi anunciado neste ano: a proporção de pessoas vivendo em extrema pobreza (US$ 2,3 por dia em poder paridade de compra, PPP, de 2011) caiu de 96,2%, em 1978, para 0,6%, em 2019, o que representa a ascensão de 765 milhões de pessoas a condições mínimas de subsistência (Banco Mundial, 2021).

Desde 1985, quando foi estabelecida a primeira linha de pobreza para a China, foram feitas mais duas atualizações, refletindo novos padrões de desenvolvimento do país, moderadamente mais próspero. Pelo critério utilizado por países de renda média —US$ 5,5 por dia em PPP 2011—, a pobreza ainda incide em 18,9% da população chinesa, equivalente ao número que temos para o Brasil (19,8% em 2019).

A redução da pobreza segue como meta, mas corresponde a apenas um dos diversos outros objetivos do ambicioso 14º Plano Quinquenal, recentemente divulgado. O plano estabelece diretrizes para o desempenho da China para os anos de 2021 a 2025 em quatro grandes áreas —redução das desigualdades urbano-rural, crescimento, ambiente e consumo interno— e destaca a importância da inovação, do uso de tecnologia e da renovação da matriz energética como os pilares para o crescimento sustentável de longo prazo.

Desde a crise de 2008, os EUA têm visto seu modelo econômico ser desafiado pela potência chinesa, a ponto de iniciar uma enorme guerra comercial contra a China no governo Trump —o que está sendo mantido pelo governo Biden – com efeitos na balança comercial da China que foram bastante mitigados pelo fato de o país contar com outros parceiros.

Na arena do comércio exterior, a ascensão meteórica da China é recente: em 2000, antes de ingressar na Organização Mundial do Comércio, a participação no país comércio mundial era pequena. Hoje, a China ocupa o primeiro lugar nas exportações globais, com participação de 13% em 2020 (um ponto percentual acima da participação em 2019).
Já entre os principais países nas importações chinesas, o bloco asiático Asean lidera (15%), seguido pela União Europeia (14%) e pelo Japão (8%). A América Latina participa com outros 8% e viu sua importância crescer nas últimas duas décadas (2,4% em 1980). Os EUA participam com apenas 8%. Janet Yellen, secretária do Tesouro americano, resgatou o bom senso da discussão, ao afirmar que as tarifas impostas à China retaliam os próprios consumidores americanos.

A China avançou, mas ainda existem outros hiatos a serem fechados. O PIB per capita da China segue equivalente a 1/6 do americano, apesar de ter aumentado por um fator de 50 nas últimas quatro décadas.
No livro “A China Venceu?”, de Kishore Mahbubani, entrevistado também nesta Folha, há uma interessante análise sobre o desafio chinês à supremacia americana. Vindo de uma perspectiva oriental, traz elementos originais e pouco
óbvios sobre a disputa entre EUA e China.

Se há entre nós, ocidentais, a presunção de virtude da economia americana —já que abraça valores democráticos e de liberdade—, do ponto de vista oriental, a estabilidade política que vem de um partido único comunista traz maiores chances para um planejamento econômico de longo prazo, com metas progressista e líderes pragmáticos, distante do comunismo praticado na Guerra Fria.

Ainda é cedo para saber quem vai levar o ouro, mas as condições para um confronto geopolítico entre as duas potências estão dadas. No que tange o desempenho econômico, a convergência da China é inquestionável.

Desenvolvimento Econômico

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A economia vem passando por grandes transformações nos últimos anos, gerando alterações estruturais e conjunturais em todas as nações, aumentando os desafios e criando oportunidades. A pandemia gerou muito mal-estar na civilização, exigindo novas posturas, novos comportamentos e novos consensos políticos e institucionais, além de liderança, competência e diagnósticos precisos.

Dentre os novos desafios da sociedade, é fundamental que as nações passem a repensar suas estruturas econômicas e produtivas, analisando para onde os países estão caminhando e quais rumos da sociedade para os próximos anos, criando os consensos necessários num momento de instabilidade e desafios crescentes, individuais e coletivos, somados as novidades, ainda desconhecida, no mundo pós-pandemia.

Neste momento, percebemos inúmeros países repensando suas economias, reconvertendo projetos institucionais, priorizando investimentos sociais e construindo consensos centrais para estimular o desenvolvimento econômico. A sociedade brasileira passou por um grande salto produtivo no século XX, saímos de uma economia agrícola, dependente de produtos primários de baixa valor agregado para uma economia marcada por setores industriais de média complexidade e um setor do agronegócio pujante e com forte capacidade produtiva.

Desde os anos 80 a economia brasileira perdeu dinamismo e o sonho do desenvolvimento econômico ficou mais distante, com impactos negativos na sociedade, baixa produtividade e perda de mercados externos. A pandemia pode nos trazer novas perspectivas para a economia brasileira, diante disso, faz-se necessário a construção de consensos internos e crescentes investimentos em capital humano. Os países que conseguiram ultrapassar a renda média garantiram grandes investimentos em setores produtivos estratégicos, centrados num projeto nacional que atraia todos os atores econômicos em prol do incremento da produtividade da economia.

O crescimento é fundamental para a construção do desenvolvimento econômico, mas insuficiente se este crescimento não for dividido para toda a coletividade, para que isso aconteça, é fundamental a construção de um projeto político que perpasse um governo, mas deve ser visto como um projeto de Estado, cujos setores dinâmicos participem ativamente desta empreitada, contribuindo para o tão sonhado desenvolvimento econômico, que inclua a população, preserve a meio ambiente e a melhoria do bem-estar social da coletividade.

O desenvolvimento econômico é um projeto político que envolve todos os setores econômicos, sociais e políticos, investindo fortemente na formação de capital humano, fortalecendo os centros de pesquisas, priorizando gastos nas universidades, fomentando centros de inovação, estimulando um ambiente de cooperação e parceria entre os setores produtivos.

O desenvolvimento econômico pressupõe uma associação entre os setores industriais e produtivos com as universidades e os centros de pesquisa, motivando o ensino da ciência e da tecnologia, angariando trabalhadores altamente capacitados, com salários elevados e impulsionando o mercado consumidor e estimulando o aumento da demanda, dinamizando a economia, o emprego e os investimentos produtivos.

Nesta construção do desenvolvimento econômico, faz-se necessário recursos para financiar os investimentos em infraestrutura física e imaterial, políticas públicas, pesquisa científica e tecnológica e maciços recursos em formação de capital humano. Os recursos devem ser extraídos de uma ampla mudança da estrutura tributária, alterando as bases dos tributos, reduzindo a excessiva desoneração que poucos ganhos trouxeram para a sociedade, tributando as propriedades, o patrimônio, os lucros e os dividendos, e desestimulando o capital financeiro improdutivo em detrimento de consumo e da produção.

O desenvolvimento econômico exige maturidade dos setores políticos e econômicos, além de liderança, planejamento e estratégias definidas, sem projetos econômicos e políticos consistentes, estaremos nos distanciando do desenvolvimento e caminhando, a passos longos, a estagnação e a desintegração social.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 04/08/2021.

Agitações nos países emergentes, por The Economist.

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Em meio a protestos e desempenho econômico fraco, há o temor de que o bloco se afaste ainda mais das nações ricas

The Economist, O Estado de S. Paulo – 01/08/2021

No início do século, as economias em desenvolvimento eram fonte de um otimismo sem limites e uma extrema ambição.

Hoje, a África do Sul vem cambaleando com insurreições. A Colômbia tem registrado protestos violentos e a Tunísia enfrenta uma crise institucional. Governos iliberais estão na moda. O Peru acaba de eleger um presidente marxista e instituições independentes estão sob ataque no Brasil, Índia e Marrocos.

A onda de distúrbios sociais e autoritarismo é reflexo em parte da covid-19, que expôs e explorou as vulnerabilidades, desde as burocracias deterioradas às redes de proteção social desgastadas. E o desespero e o caos ameaçam exacerbar um problema econômico profundo: muitos países pobres e de média renda estão perdendo a capacidade de alcançar o nível das nações ricas.

Nosso modelo de excesso de mortalidade sugere que entre oito e 16 milhões de pessoas morreram na pandemia. A estimativa média é 14 milhões. O mundo em desenvolvimento está vulnerável ao vírus, especialmente nos países de renda média mais baixa onde o trabalho remoto é raro e inúmeras pessoas são obesas e idosas. Se tiramos a China, os países não ricos abrigam 68% da população mundial, mas 87% das suas mortes. Somente 5% das pessoas com mais de 12 anos de idade estão plenamente vacinadas.

Ao lado do custo humano, temos a fatura econômica, uma vez que os mercados emergentes têm menos espaço para gastar com o objetivo de se livrar dos problemas. As previsões para o PIB de médio prazo para todas as economias emergentes estão 5% mais baixas do que antes de o vírus se implantar. As pessoas estão irritadas e, apesar de protestos serem um risco durante uma pandemia, manifestações violentas em todo o mundo têm sido comuns como jamais foi observado desde 2008.

Países ricos, como Estados Unidos e Grã-Bretanha, não são estranhos à incompetência e às agitações. Mas a decepção atingiu as economias emergentes de uma maneira especialmente dura. No início da década de 2000, havia um entusiasmo com o discurso de “se alcançar” as economias ricas: a ideia de que os países mais pobres conseguiam prosperar absorvendo tecnologia estrangeira, investindo em manufatura e abrindo suas economias para o comércio, como vários países chamados tigres do leste asiático fizeram uma geração antes. Wall Street cunhou o termo Brics para celebrar o Brasil, Rússia, Índia e China – as novas superestrelas da economia mundial.

Durante um tempo, o processo funcionou. A proporção de países onde o nível da produção econômica per capita cresceu mais rápido do que nos Estados Unidos aumentou de 34%, nos anos 1980, para 82% na década de 2000. As repercussões foram notáveis. A pobreza diminuiu. Empresas multinacionais saíram do velho e monótono Ocidente. Em termos de geopolítica, tudo isso prometia um novo mundo multipolar em que o poder estava distribuído mais uniformemente.

Hoje, a era de ouro parece ter tido um fim prematuro. Na década de 2010, a parcela de países que chegaram ao nível das nações ricas caiu para 59%. A China desafiou muitos pessimistas e aquietaram as histórias de sucesso asiáticas como Vietnã, Filipinas e Malásia. América Latina, Oriente Médio e África Subsaariana se distanciaram ainda mais do mundo rico. Mesmo a Ásia emergente vem se equiparando mais lentamente do que antes.

A má sorte também influenciou. O boom de commodities dos anos 2000 perdeu velocidade, o comércio global estagnou depois da crise financeira e episódios de turbulências na taxa cambial provocaram desordens. Mas também a complacência contribuiu, à medida que os países imaginaram que o crescimento rápido estava preestabelecido. Em muitos lugares, serviços básicos como educação e saúde foram negligenciados. Problemas devastadores não foram solucionados, como as usinas elétricas ociosas na África do Sul, os bancos deteriorados na Índia e a corrupção na Rússia. Em vez de defender instituições liberais, como os bancos centrais e tribunais, os políticos os usaram para seu próprio ganho.

O que pode ocorrer em seguida? Um risco é uma crise econômica nos mercados emergentes com o aumento dos juros nos Estados Unidos. Felizmente, muitas economias emergentes estão menos frágeis do que foram, por causa das taxas cambiais flutuantes e por dependerem menos da dívida em moeda estrangeira. Crises políticas de longa duração são uma preocupação maior. Pesquisas sugerem que protestos inibem a economia, resultando em mais descontentamento, e esse efeito é mais marcante nos mercados emergentes.

Mesmo que as economias emergentes evitem o caos, o legado da covid-19 e o protecionismo crescente podem condená-las a um longo período de crescimento mais lento. A produtividade no longo prazo diminuirá como resultado de tantas crianças fora da escola.

O comércio também pode ser mais difícil. A China vem se recolhendo e se afastando das políticas mais abertas para o mundo que a tornaram mais rica. Se isso continuar, nunca se tornará uma vasta fonte de demanda de consumo para o mundo pobre, como os Estados Unidos foram para o país nas últimas décadas.

O protecionismo crescente do Ocidente também limitará as oportunidades de exportação para os produtores estrangeiros que, de qualquer maneira, serão menos beneficiados à medida que a economia se torna menos dependente da mão de obra intensiva.

Infelizmente, os países ricos não estão dispostos a compensar isso, liberalizando o comércio na área de serviços, o que abriria outras vias de crescimento. E tampouco ajudar economias expostas como é o caso de Bangladesh – uma história de sucesso – a se adaptarem à mudança climática.

Frente a esse panorama sombrio, os mercados emergentes se verão tentados a abandonar o comércio e o investimento abertos. O que será um grave erro. Um ambiente global desfavorável fará com que eles se agarrem ainda mais a políticas que funcionem. A noção defendida pela Turquia de que aumentar juros causa inflação tem sido desastrosa. A persistência da Venezuela no caminho do socialismo é ruinosa; e proibir empresas estrangeiras de agregarem clientes, como a Índia fez com o Mastercard, é contraproducente.

Como alcançar o mundo rico vem se tornando mais difícil, somente aqueles mercados emergentes que permanecerem abertos terão as melhores chances.

Alcançar, não ceder
Algumas regras mudaram: o acesso às tecnologias digitais hoje é vital, como também uma rede de proteção social adequada. Mas os princípios de como enriquecer hoje são os mesmos de outrora: estar aberto ao comércio, competir nos mercados globais e investir em infraestrutura e educação. Antes das reformas liberais realizadas em décadas recentes, as economias eram divergentes. Ainda é tempo de evitar as adversidades desnecessárias do passado. /

TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

Zygmunt Bauman: ‘Sobre o consumo cada vez mais rico e o planeta cada vez mais pobre’

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Revista Prosa Verso e Arte – Janeiro 2011

Reflexões sobre as condições do mundo da “modernidade líquida”, os temas abordados por Bauman tendem a ser amplos, variados e especialmente focalizados na vida cotidiana de homens e mulheres comuns. Holocausto, globalização, sociedade de consumo, amor, comunidade, individualidade são algumas das questões de que tratou, sempre salientando a dimensão ética e humanitária que deve nortear tudo o que diz respeito à condição humana. Preocupado com a sina dos oprimidos, Bauman foi uma das vozes a permanentemente questionar a ação dos governos neoliberais que promovem e estimulam as chamadas forças do mercado, ao mesmo tempo em que abdicam da responsabilidade de promover a justiça social. “Hoje em dia”, lamentou, “os maiores obstáculos para a justiça social não são as intenções… invasivas do Estado, mas sua crescente impotência, ajudada e apoiada todos os dias pelo credo que oficialmente adota: o de que ‘não há alternativa’”.

As transformações das últimas décadas têm produzido um processo de ruptura das principais referências do projeto político da modernidade. Esta ruptura ocorre tanto em relação aos vínculos políticos que fundamentam a ideia de comunidade como também no que se refere ao conjunto de avanços presentes nas principais garantias proporcionadas pelo Estado de Bem-Estar Social.

Sobre o consumo cada vez mais rico e o planeta cada vez mais pobre
O “Estado social” é hoje insustentável; mas por um motivo que nada tem a ver com a especificidade do caráter “social” do Estado, e sim com o enfraquecimento generalizado do Estado como “agência”. Repito o que já disse muitas vezes – esse é, afinal, o cerne de todos os problemas que os remanescentes do “Estado de bem-estar social” precisam enfrentar.

Nossos ancestrais preocupavam-se com (e debatiam sobre) “o que deve ser feito”; nós nos preocupamos (embora dificilmente cheguemos a debater, já que o tema parece não ter futuro) com “quem vai fazê-lo”, uma questão sobre a qual nossos ancestrais jamais discutiram, pois estavam de acordo – “o Estado, é claro”! Uma vez conquistado o Estado, faremos tudo que considerarmos necessário – o Estado, essa união de poder (ou seja, a capacidade de fazer com que as coisas sejam feitas) com a política (ou seja, a capacidade de decidir quais coisas precisam ser feitas), é tudo de que precisamos para transformar o verbo em carne, não importa a palavra utilizada. Bem, essa resposta não parece mais tão evidente.

Os políticos não nos deixam em dúvida, ecoando monotonamente as palavras de Margaret Thatcher: “NHA” (“Não há alternativa”). Quer dizer: fazemos nossas escolhas em condições que não escolhemos. Quanto a esse último aspecto, pelo menos, estou inclinado a concordar, embora por motivos um tanto diferentes. As condições “não são as que eles escolheram”, no sentido de que os políticos aceitam placidamente essas condições e continuam determinados a não tentar outras opções: “NHA” é uma profecia autorrealizadora, ou melhor, o lustro de uma prática adotada de boa vontade e conduzida com zelo.

O Estado é “capitalista”, como Habermas apontou trinta anos atrás, escrevendo numa época em que a sociedade de produtores definhava, à medida que luta para garantir um encontro regular e efetivo entre capital e trabalho (ou seja, que envolve capital comprando trabalho). Para que esse encontro tenha êxito, o capital deve ser capaz de pagar o preço do trabalho, e o trabalho deve estar em boa forma o suficiente para atrair o capital. Portanto, podemos dizer, o “Estado social” é visto como indispensável para a sobrevivência “tanto pela esquerda quanto pela direita”. Porém, não é mais assim.

Hoje, na sociedade dos consumidores, o Estado é “capitalista” porque propicia o encontro entre mercadoria e consumidor (como foi mostrado pela reação universal dos governos ao colapso dos bancos/créditos; centenas de bilhões foram encontrados nos próprios cofres que a opinião governamental considerava carentes dos poucos milhões necessários para preservar os serviços sociais). Para esse propósito, o “Estado social” é irrelevante; por conseguinte, o problema de sua emancipação e da reclassificação de seus resíduos numa questão de “lei e ordem”, e não numa questão social, está “além de esquerda e direita”.

Com ou sem globalização, será que podemos prosseguir indefinidamente avaliando o aumento da felicidade pelo aumento do PIB, sem mencionar que espalhamos esse hábito para o resto do mundo e elevamos seus níveis de consumo até um ponto considerado indispensável nos países mais ricos? Deve-se considerar o impacto do consumismo sobre a sustentabilidade de nosso lar comum, o planeta Terra. Agora sabemos muito bem que os recursos do planeta têm limites e não podem ser ampliados ao infinito. Também sabemos que os limitados recursos da Terra são modestos demais para acomodar o aumento dos níveis de consumo no mundo inteiro aos padrões atingidos nas partes mais ricas – os próprios padrões pelos quais o resto do mundo tende a avaliar seus sonhos e expectativas, suas ambições e requisitos na era das infovias. (De acordo com alguns cálculos, tal feito exigiria que os recursos do planeta

fossem multiplicados por cinco; cinco planetas seriam necessários, em vez do único de que dispomos.)
No entanto, a invasão e a anexação do reino da moral pelos mercados de consumo fizeram com que ele se sobrecarregasse de funções adicionais que só pode desempenhar empurrando os níveis de consumo ainda mais para cima.

Essa é a principal razão pela qual o “crescimento zero”, tal como medido pelo PIB – a estatística referente à quantidade de dinheiro que troca de mãos nas transações de compra e venda –, é visto como algo próximo de uma catástrofe não apenas econômica, mas também social e política. É graças, em grande parte, a essas funções extras – que não se vinculam ao consumo nem por sua natureza nem por uma “afinidade natural” – que a perspectiva de se estabelecer um limite ao aumento do consumo, para não dizer reduzi-lo a um ponto ecologicamente sustentável, parece ao mesmo tempo nebulosa e repulsiva; e que nenhuma força política “responsável” (leia-se: nenhum partido que tenha os olhos grudados nas próximas eleições) a incluiria em sua agenda política. Pode-se imaginar que a “comodificação” das responsabilidades éticas, os principais instrumentos e matérias-primas do convívio humano, combinada com a decadência gradual mas incessante de toda as formas alternativas, fora do mercado, é um obstáculo muito mais formidável à contenção e moderação dos apetites consumistas que as exigências inegociáveis da sobrevivência biológica e social.

Na verdade, se o grau de consumo determinado pela sobrevivência biológica e social é por natureza inflexível, fixo, e portanto relativamente estável, os níveis exigidos para atender às outras necessidades cuja satisfação é prometida, esperada e exigida em função do consumo são, uma vez mais pela natureza dessas necessidades, crescentes e orientados para cima; a satisfação dessas novas necessidades não depende da manutenção de padrões estáveis, mas da velocidade e do grau de seu aumento. Consumidores que se voltam para o mercado de produtos buscando satisfazer
seus impulsos morais e cumprir seus deveres de autoidentificação (leia-se: “autocomodificação”) veem-se obrigados a procurar diferenciais em termos de valor e volume; então, esse tipo de “demanda de consumo” é um fator predominante e irresistível no impulso para cima.

Assim como a responsabilidade ética pelo outro não tolera limites, o consumo, investido da tarefa de desafogar e satisfazer impulsos morais, resiste a qualquer espécie de restrição que se imponha à sua expansão. Subordinados à economia consumista, de modo irônico, os impulsos morais e as responsabilidades éticas são transformados num terrível obstáculo quando a humanidade se vê em confronto com aquela que é incontestavelmente a mais formidável ameaça à sua sobrevivência: uma ameaça que só pode ser enfrentada mediante um volume talvez sem precedentes de autorrestrição voluntária e disposição para o autossacrifício.

Uma vez acionada e mantida em movimento pela energia moral, a economia consumista só tem o céu como limite. Para ser eficaz na tarefa que assumiu, não se pode permitir a redução da velocidade, muito menos fazer uma pausa e ficar parado. Em consequência, deve-se estabelecer o pressuposto – de modo contrafactual, se não em tantas palavras, ao menos tacitamente – da durabilidade ilimitada do planeta e da infinidade de seus recursos. Desde o início da era consumista, ampliar o tamanho do pão era apresentado como remédio óbvio, na verdade um profilático infalível, contra os conflitos e disputas em torno da redistribuição desse quinhão. Eficaz ou não em suspender as hostilidades, essa estratégia devia presumir a existência de uma quantidade infinita de farinha e fermento.

Agora nos aproximamos do momento em que a falsidade desse pressuposto e os perigos de se aferrar a ele têm chance de se ver expostos. Talvez seja esse o momento de a responsabilidade moral se redirecionar para sua vocação básica: a garantia da sobrevivência mútua. Entre todas as condições necessárias para esse redirecionamento, a principal parece ser a “decomodificação” do impulso moral.

A hora da verdade pode estar mais próxima do que poderíamos imaginar quando contemplamos as prateleiras superlotadas dos hipermercados, os sites cheios de pop-ups comerciais, os corais de especialistas em autoaperfeiçoamento e os consultores especializados em como fazer amigos e influenciar pessoas. A questão é como anteceder ou impedir sua vinda com um momento de autodespertar. Uma tarefa que não é fácil, com certeza: seria necessário nada menos que toda a humanidade, com sua dignidade e seu bem-estar, assim como a sobrevivência do planeta, seu lar comum, fosse abraçada pelo universo das obrigações morais.

Zygmunt Bauman – “Isto não é um diário”. [tradução Carlos Alberto Medeiros]. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 2012.

Auxílio emergencial foi uma das poucas coisas sensatas do governo Bolsonaro, diz economista britânico.

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Guy Standing, pai do termo ‘precariado’, defende que benefício se torne permanente

FERNANDA CANOFRE – FOLHA DE SÃO PAULO, 28/07/2021

O nome do economista britânico Guy Standing costuma ser associado ao termo “precariado” —a junção das palavras proletariado e precário— para se referir às relações distintas que essa crescente classe global tem com o trabalho e o Estado.

Segundo Standing, o precariado engloba indivíduos envolvidos em relações de trabalho instáveis e inseguras, cuja remuneração ocorre basicamente por dinheiro —não há os benefícios típicos do emprego com carteira assinada. Na relação com o Estado, esse grupo está perdendo direitos sociais, culturais e até políticos. Na hierarquia social, o precariado está abaixo do proletariado clássico, que encolhe.

O economista, ligado à Escola de Estudos Orientais e Africanos (SOAS) da Universidade de Londres e membro fundador e co-presidente honorário da ONG BIEN (Renda Básica Rede da Terra), defende que não é mais possível a sobrevivência da economia sem a renda básica.

Nesse sentido, ele vê o auxílio emergencial introduzido pelo governo Jair Bolsonaro como “uma das poucas coisas sensatas” feitas pelo governo federal. Para Standing, o benefício deveria ser transformado em uma política permanente, ainda que o valor inicial seja baixo.

O que é precariado? Pelo mundo, uma nova estrutura de classe tem se formado. Em termos de renda e poder, no topo, está uma pequena plutocracia de bilionários. Abaixo deles está uma elite, e então o assalariado, que consiste em pessoas com empregos assalariados, com licença remunerada, aposentadoria esperando por eles e por aí vai. Abaixo deles está um proletariado encolhendo, a velha classe operária manual. Abaixo deles está o precariado, que vem crescendo rapidamente, e depois dele uma subclasse, na chamada economia informal, vivendo com vícios e doenças sociais.

O precariado pode ser definido como uma combinação de três características. As pessoas nele têm relações de produção distintas, o que significa que têm que lidar com trabalho instável, inseguro e não têm identidades ocupacional, ou uma narrativa clara para suas vidas. Eles também têm relações distintivas de distribuição, ou seja, têm que contar quase inteiramente com salário em dinheiro, sem acesso a benefícios não-salariais ou direitos estatais, e estão vivendo à beira de endividamento insustentável. Finalmente, e o mais importante, eles têm relações distintivas com o Estado, ou seja, estão perdendo direitos de cidadania —social, cultural, econômico, civil e político.

Essa terceira dimensão é a principal. Eu não gosto do termo “trabalho precário” porque a precariedade é sobre não ter direitos. Sempre existiu trabalho instável e inseguro. O ponto crucial é que o precariado parece com suplicantes, que têm que contar com pessoas que façam favores a eles, com figuras de autoridade para tomar decisões em seu favor ou não. Isso é indigno.

Mas como eu disse muitas vezes, o precariado não tem apenas vítimas. Eles não sofrem de falsa consciência, pensando que empregos são o caminho para felicidade e satisfação. Eles querem trabalhar, mas fazendo isso criativamente e em liberdade.

Por que essa classe segue crescendo? Quais são os efeitos possíveis e resultados desse crescimento e para onde ele nos leva como sociedade —uma questão que o sr. colocou como crucial em seu livro?

O precariado ainda está crescendo porque estamos em um período de capitalismo rentista que está se tornando cada vez mais forte e mais ameaçador, acelerado pela crise financeira de 2007-2008 e pela pandemia da Covid-19. Acredito que ainda é dividido em três segmentos: atávicos, nostálgicos e progressistas. O primeiro grupo tende a apoiar políticos populistas e neofascistas que prometem trazer o ontem de volta. Eles apoiaram [Donald] Trump, Boris Johnson, Jair Bolsonaro e outros como eles. O segundo grupo é composto majoritariamente por migrantes onde eles estejam, sem direitos, destituídos de direitos. O terceiro grupo são aqueles que saíram de uma universidade e querem um futuro. Esse terceiro grupo está crescendo rápido.

Qual o impacto que trabalhos ligados à chamda “gig economy”, como motoristas de aplicativos, que tiveram uma expansão global nos últimos anos, têm no precariado?

Eu prefiro chamar isso de capitalismo de plataforma. O processo de trabalho está crescendo rápido, com mais trabalho indireto, muito sendo feito fora de qualquer conceito de “emprego”. É parte da globalização e está ligado à uma revolução tecnológica em progresso.

Com a pandemia, algo mudou na trajetória que vinha sendo observada até 2020? A economia global, como eu chamo o capitalismo rentista no meu novo livro “The Corruption of Capitalism” [A corrupção do Capitalismo, em tradução livre], estava extremamente frágil antes da pandemia da Covid-19 atingir o mundo. O que ela tem nos mostrado é que nem à sociedade, nem àqueles no precariado ou perto dele faltam resiliência. E nós precisamos disso.

O sr. defende a renda básica há mais de três décadas, um tema que costuma ser visto como utopia. O sr. pode falar sobre sua experiência?

Sim, eu acredito que uma renda básica é necessária por razões éticas, não apenas como forma de reduzir a pobreza e desigualdade, embora obviamente isso também seja importante. Eu estive envolvido em desenvolver e implementar pilotos e experimentos de rendas básicas, que estão descritos no meu livro Basic Income: And how we can make it happen [Renda básica: E como podemos fazê-la acontecer, em tradução livre]. As descobertas mais importantes incluem melhoria de saúde, mais trabalho e menos stress.

Como a renda básica pode ser instituída e salvar a economia de um país em crise? Nós precisamos, mais do que nunca, de um novo sistema de distribuição de renda. A menos que todo mundo tenha resiliência, nós todos seremos vulneráveis. Nós podemos bancar. Precisamos de reforma tributária e construir fundos de capitais que possam pagar pela renda básica.

O Brasil criou um auxílio emergencial de R$ 600 em 2020, reduzido posteriormente e criticado pelo custo fiscal.

Como uma renda básica seria viável e sustentável aqui? Introduzir o auxílio emergencial foi uma das poucas coisas sensatas do governo Bolsonaro. Teve bons efeitos positivos. Mas precisa ser convertido em um esquema permanente.

Todos aqueles a favor de uma renda básica devem perceber e dizer que a coisa mais importante, no momento, é ter o Estado “na direção certa”. Sim, o nível pode ser baixo a princípio, mas uma vez introduzido, o auxílio pode aumentar e ser integrado a outras políticas progressistas.

Como gerir um programa de renda básica em um contexto de crise fiscal? É preciso repensar fundamentalmente as políticas de macroeconomia no Brasil, com reforma tributária e mais impostos para os mais ricos e para os “maus” da ecologia. O dinheiro mobilizado precisa ser alocado para prover os brasileiros comuns com segurança básica. É uma questão de prioridades. É por isso que as preocupações do precariado se sobrepõem com a terrível crise ecológica.

Nós precisamos ver um revival dos comuns, que é objeto de boa parte do meu trabalho atual.
No seu livro, “O precariado — A nova classe perigosa” (Autêntica, 2013), o sr. escreve sobre pessoas vivendo com medo e insegurança e potencialmente furiosas. Esses sentimentos têm implicações políticas? Com certeza. A insegurança gera ressentimento e frustração. Mas como eu tenho dito, o precariado sofre de alienação, anomia, ansiedade e raiva. Quando os lockdowns e as tendências de isolamento da pandemia reduzirem, você vai ver um novo surto de raiva derramado nas ruas e praças. Essa raiva é justificada.

Há uma crise geral de representação diante do sistema político como o conhecemo. Como isso se aplica ao precariado?

Por que as velhas esquerda e direita não falam com eles ou suas necessidades? Essa é sua melhor pergunta. A velha direita foi tomada pela extrema-direita, tipos neofascistas populistas e extremistas religiosos, silenciosamente apoiados por interesses financeiros. Eles jogam para os atavismos, como expliquei antes. Mas nem a direita, nem a velha esquerda entenderam ou atraem os progressistas do precariado. A esquerda precisa se transformar para ter uma base eleitoral forte de fato.

Como questões como raça e gênero entram nesta equação? Mulheres e minorias raciais são uma parte substancial do precariado, em todos os países. Mulheres e minorias, incluindo grupos com deficiência, são os que têm mais a ganhar com uma renda básica e novas formas de representação.

Como o sr. vê o cenário em um mundo pós-Covid? Há lugar para otimismo? Há espaço para otimismo, mas só se a nova geração de políticos e líderes de sindicatos e ONGs tentarem entender o precariado e articular o que eu chamo de “uma nova política do paraíso”, misturando preocupações ecológicas com um novo sistema de distribuição de renda.

RAIO-X
Guy Standing, 73, é economista e professor da Escola de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres. Tem doutorado pela Universidade de Cambridge e é fundador e co-presidente honorário da ONG BIEN (Renda Básica Rede da Terra).

Desindustrialização

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A pandemia está acelerando inúmeras transformações na sociedade global, exigindo novos comportamentos, novos hábitos e abrindo novas oportunidades, num mundo cada vez mais integrado, mais competitivo e centrado na instabilidade e no incremento das incertezas. Diante disso, os governos, as empresas e os trabalhadores passam por momentos de disrupturas, exigindo consensos políticos, projetos econômicos, visão social e ambiental, além de forte liderança.

Dentre os grandes desafios brasileiros, destacamos a reconstrução da estrutura industrial que, até pouco tempo era vista como uma das áreas mais dinâmicas e geradoras de emprego e qualificação profissional. Vivemos um momento de desindustrialização, onde a indústria nacional está perdendo espaço na estrutura produtiva. Nos anos 80, a indústria era responsável por mais de 30% do PIB, atualmente percebemos que o setor se concentra em menos de 10%, contribuindo para as dificuldades da economia brasileira, como a perda de produtividade, a baixa geração de empregos qualificados e o dinamismo do setor industrial, um verdadeiro espaço de construção de novas tecnologias e inovação, desafios centrais na sociedade contemporânea.

Segundo pesquisa recente divulgada pelo IBGE, nos últimos seis anos, o país perdeu mais de 30 mil indústrias. Segundo o instituto, os dois motivos da perda do dinamismo industrial estão ligados a recessão do período, com impactos agressivos sobre a estrutura industrial, aumentando o desemprego e reduzindo a renda agregada. A pesquisa identificou ainda, que muitas empresas transnacionais foram desativadas para reconfigurar os custos produtivos, ou seja, muitas empresas foram fechadas no país, priorizando mercados mais rentáveis e confiáveis.

A desindustrialização brasileira está ligada aos movimentos de estabilização dos anos 90, onde os sucessivos governos se utilizaram do câmbio como instrumento de combate a inflação. A valorização cambial estimulou a entrada de produtos estrangeiros e aumentou a oferta de produtos importados motivando a concorrência interna, gerando uma queda substancial de preço. Em contrapartida, muitos setores produtivos sentiram na pele a concorrência externa e foram forçados a adotarem de políticas de reestruturação, gerando redução de custos de produção como forma de sobreviver, adotando políticas de redução de funcionários, redução de custos e contribuíram para a diminuição de empregos nos setores industriais, levando a uma massa de desempregados e forçando muitos trabalhadores qualificados a saírem do país ou se transformaram em motoristas de aplicativos, sem proteção, sem segurança e sem perspectivas.

A indústria sempre foi vista como um setor intensivo em mão de obra, podendo gerar salários superiores aos de atividades como serviços e comércio, com o processo de desindustrialização em curso, muitos empregos foram absorvidos pelos setores de serviços, mas com salários menores, com isso, percebemos uma redução da massa salarial e uma efetiva queda da renda dos trabalhadores, empobrecimento da população, impactando na estratégia de muitas empresas transnacionais que passaram a se concentrar em mercados mais rentáveis e deixando mercados como o brasileiro, desta forma, observamos a saída de inúmeras empresas do mercado brasileiro, gerando mais desempregos e desesperanças.

Os países desenvolvidos estão se desindustrializando depois de alcançarem altos níveis de industrialização, no caso brasileiro vivemos um processo de desindustrialização antes de nos tornarmos grandes países industrializados. A desindustrialização é um verdadeiro retrocesso nacional, estamos perdendo espaço no setor produtivo global e nos concentrando nos setores primários que, embora importante, não possui força para impulsionar a economia nacional. A pós-pandemia abrirá novas oportunidades de industrialização, investindo em setores estratégicos e absorvendo empregos qualificados e repensando o planejamento, que a ausência contribuiu para o crescimento da financeirização e da estagnação dos setores produtivos.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 28/07/2021.

Planos econômicos de Biden e da Europa não são ruptura com neoliberalismo, diz sociólogo

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Apesar de insatisfação crescente, as bases da velha lógica capitalista continuam a se impor, avalia Wolfgang Streeck

Hugo Fanton, Professor colaborador do Departamento de Ciência Política da USP e pesquisador associado do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic)

Folha de São Paulo, 25/07/2021

[resumo] Em entrevista, o renomado sociólogo alemão Wolfgang Streeck se contrapõe ao otimismo de setores da esquerda e afirma que os planos de estímulo econômico na União Europeia e de Joe Biden nos EUA, longe de representarem uma ruptura da ordem neoliberal, reproduzem as bases da velha lógica capitalista, que segue como padrão dominante apesar da crescente insatisfação em todo o mundo.

As crises combinadas e crônicas do capitalismo e das democracias ocidentais nas últimas décadas são os temas centrais do trabalho recente do sociólogo Wolfgang Streeck, diretor emérito do Instituto Max Planck para o Estudo de Sociedades de Colônia, na Alemanha.

Nesta entrevista, ele analisa o momento político da União Europeia e dos Estados Unidos sob o governo democrata de Joe Biden e revela descrença em relação ao otimismo corrente, mesmo em setores da esquerda, de que uma nova fase capitalista possa emergir.

Em seu entendimento, não há razão para acreditar que os estímulos anunciados até aqui por Biden ou pela União Europeia representem qualquer ruptura com a lógica neoliberal que rege as economias centrais há décadas e traz como consequência direta o aumento das desigualdades.
Mesmo diante da emergência de diferentes formas de insatisfação com o modelo atual, a ausência de partidos de massa que congreguem os descontentamentos em um denominador comum transformador, de sentido democratizante, possibilita ao capitalismo continuar a se impor como padrão predominante de integração social, avalia.

Apesar disso, os sinais da crise seguem presentes e no centro de sua análise sobre as dificuldades vividas no Ocidente.

Na entrevista a seguir, realizada por email no início de julho, Streeck apresenta ainda conceitos formulados em suas obras “Tempo Comprado” e “How Will Capitalism End” para expor as atuais expressões do neoliberalismo.

O sociólogo aborda ainda as consequências da Covid-19 nas políticas macroeconômicas e faz projeções para as eleições nacionais que acontecem na Alemanha em setembro.

A versão completa da entrevista será publicada na edição de agosto da Revista Rosa, uma publicação acadêmica de conteúdo aberto disponível na internet.

Análises recentes de ações governamentais no contexto da pandemia apontam para possibilidades de mudança na orientação da política macroeconômica, uma nova lógica a reger o centro do capitalismo, anunciando, inclusive, o fim do neoliberalismo em uma perspectiva progressista. Qual é a sua avaliação das medidas de estímulo à retomada econômica, sejam elas nos EUA ou na União Europeia? Podemos entrar em uma nova fase que dê sobrevida ao “capitalismo democrático”? Antes de mais nada, a transição para uma “nova era” leva tempo. Biden está no governo há menos de meio ano, e em breve começará o período que antecede as eleições de meio de mandato, de novembro de 2022.

Lembro-me muito bem do momento imediatamente após a eleição de Bill Clinton, em 1992, quando o céu estava cheio de sonhos de reformas fundamentais, como a social, a educacional e a do mercado de trabalho. Isso terminou dois anos depois, quando ambas as casas do Congresso se tornaram republicanas, com Newt Gingrich assumido o poder na Câmara dos Deputados e Clinton mudando de rumo em 180 graus, iniciando a revolução neoliberal. Vamos ver se Biden vai se sair melhor.

Em segundo lugar, depende do que você quer dizer com “uma nova lógica do capitalismo” e do que chamamos de “sobrevivência do ‘capitalismo democrático’”. O capitalismo tem evoluído permanentemente desde seu início, assumindo constantemente novas formas: novas tecnologias, nova organização do trabalho, novos regimes financeiros, mudanças nas relações com o Estado e a democracia etc.

O que não mudou foi sua natureza fundamental: uma economia política guiada por uma compulsão intrínseca pela acumulação sem fim de capital privado capaz de gerar mais capital privado. Não há razão para acreditar que o estímulo econômico fiscal, independentemente do seu tamanho, representaria uma ruptura com essa lógica.

Certamente, uma questão interessante é como os enormes déficits públicos necessários para estimular a decadente máquina de lucro americana são financiados e por quanto tempo isso pode continuar sem causar mais danos que benefícios, especialmente para aqueles que não são proprietários de capital.

Parece-me que o pacote Biden será financiado por uma mistura complexa de política fiscal e monetária, ou seja, por uma enorme extensão da dívida pública americana combinada com uma promessa do Fed de manter as taxas de juros baixas para que a dívida possa ser paga, além da garantia aos investidores em dívida pública de que, se a pressão chegar, o Fed comprará sua dívida com dinheiro novo, o que no jargão tecnocrático do dia é chamado de “estabilização dos mercados financeiros”.

Você tem alguns palpites sobre quem se beneficiaria mais com isso, os ricos ou os pobres, e se as desigualdades de renda e riqueza aumentariam ou diminuiriam como resultado. Para mim, essa é uma lógica bastante antiga.

Em diferentes momentos de sua obra recente, aponta-se a extrema desigualdade de poder e a existência de uma diplomacia financeira internacional imune ao controle democrático de suas decisões, que se sobrepõem aos Estados nacionais. As novas expressões de atuação política das massas apontam para possibilidades concretas de incidência política ou seguem extremamente distantes dos processos decisórios? Eles têm influência, sim. Se têm potencial de transformação, o futuro mostrará. Acho que depende muito do país e da região geográfica. Existem hoje muitas expressões de descontentamento, às vezes bastante radicais, sobre diferentes questões e em diferentes formas, sem, contudo, um denominador comum de magnitude política relevante.

Há descontentamento com os governos, de forma particular ou em ampla escala, relativo à má prestação de serviços, à insuficiente proteção contra riscos econômicos e incertezas, à falta de consideração do poder público por grupos específicos ou, em geral, pelos “perdedores” das guerras de competitividade.

No entanto, não há partido de massas, por mais organizado que seja, que possa unir as diversas oposições e dar um enfoque comum ao seu descontentamento. Além disso, a discriminação por raça ou orientação sexual não é nada essencial para a estabilidade do capitalismo, que pode facilmente prescindir de tais discriminações e se juntar à batalha contra elas.

Veja o apoio financeiro do banco Goldman Sachs ao “casamento para todos” ou as consideráveis doações aparentemente feitas por grandes empresas globais a uma organização como a Black Lives Matter, para comprar a boa vontade geral do público, bem como para se proteger de ataques específicos a suas práticas de emprego e contratação.

Já estamos convivendo há mais de um ano com a pandemia de Covid-19, um acontecimento global que impactou profundamente a economia e a política no Ocidente. Houve alterações de tendências que estavam em curso ou as análises anteriores à pandemia referentes à crise do “capitalismo democrático” seguem atuais? Mais uma vez,

lamento, muito cedo para dizer, pelo menos dessa forma. Tenho apenas duas tentativas de observação a fazer.

Primeiro, parece-me que a pandemia proporcionou um período de fôlego aos partidos centristas da esquerda e da direita, partidos que estão em decadência há algum tempo porque seus eleitorados tradicionais estavam se dividindo ou definhando.

A centro-direita parece estar se saindo melhor devido a sua experiência e solidez, enquanto a centro-esquerda continua a ser assombrada pelos verdes [partidos que colocam como centro de seus programas a questão ecológica] em suas diferentes formações, que ainda absorvem uma parte crescente do seu voto.

A esquerda radical, por sua vez, parece estar à beira da extinção política, já que não tem nada a oferecer sobre a pandemia que difira da política governamental dominante. A direita radical, em comparação, parece estar se saindo melhor, o que pode ter a ver com o fato de conseguir capturar, em nome da liberdade pessoal, a oposição dos pequenos empresários e dos profissionais autônomos contra as políticas de lockdown do centro e da esquerda.,

Em geral, acho interessante que a esquerda tenha se tornado o partido de um Estado forte, até mesmo autoritário, em nome da “ciência” e de saber melhor o que é bom para todos, alinhando-se ao governo do dia quanto mais este tem disposição para impor duras restrições.

Os vários grupos de pressão “Covid-zero”, em particular, estão mais à esquerda do que à direita, alguns fantasiando sobre um retorno de solidariedade universal, o povo, até mesmo os povos unidos, em um lockdown brusco e rápido: apenas três semanas ou quatro, e o vírus será derrotado. Isso é completamente ilusório e falhou até mesmo na Austrália.

A posição liberal, em comparação, é que temos de aprender a viver com o vírus e aceitar que algumas pessoas morrerão por algum tempo —uma posição que é considerada desumana, até mesmo fascista entre a esquerda, e é um grande tabu nas discussões políticas.

Quais foram os principais efeitos da pandemia sobre a Alemanha e a União Europeia? Como analisar os pacotes de estímulo econômico anunciados do ano passado? Os 750 bilhões de euros são apenas um passo, moderadamente criativo, do Estado fiscal para o Estado endividado, a ser seguido, inevitavelmente, por outro passo em direção o ao que chamo de Estado de consolidação.

Digo “criativo” porque encontrou uma maneira de contornar a proibição dos tratados para a UE contrair dívidas, embora, por enquanto, uma única vez, na vigência de um suposto estado de emergência.

Note-se que o dinheiro novo foi distribuído a todos os Estados-membros, e não apenas aos países mediterrâneos em sofrimento, pois todos são afetados em diferentes graus pelo que chamo de crise fiscal do Estado capitalista.

Todavia, enquanto a soma parece impressionante, tudo o que fará é financiar alguns projetos nacionais de prestígio, beneficiando os governos no poder, sem de forma alguma curar as assimetrias fundamentais da União Monetária Europeia que estão arruinando a Itália, a Espanha e a França, enquanto tornam a Alemanha rica.

Já antes da pandemia, a dívida havia se tornado a medida aceita para a falta de dinheiro público necessário para manter o capitalismo a flutuar sob condições de “estagnação secular”. A dívida, no entanto, deve ser paga em algum
momento, devendo o Banco Central Europeu manter as taxas de juros baixas porque, caso contrário, estados como a Itália poderiam entrar em inadimplência.

É verdade que, com engenhosidade suficiente, você pode sempre tentar adiar a hora da verdade. No entanto, se no caminho os investidores começarem a duvidar que recuperarão o dinheiro, o custo do refinanciamento da dívida aumentará, primeiro nos países fracos e depois também nos países fortes como a Alemanha.

Todos os tipos de acidentes políticos e econômicos podem acontecer por esse caminho, acidentes que exigirão ainda mais “criatividade” dos governos nacionais e das organizações internacionais.

No final do verão de 2020, Angela Merkel parecia bem-avaliada em sua gestão da pandemia, e a eleição nacional tinha a CDU (União Cristã-Democrata), partido da chanceler, como favorita. No entanto, passado o inverno, a situação parecia completamente diferente, com queda na popularidade de Merkel, nas intenções de voto na CDU e uma possível vitória verde nas eleições de setembro. Como tal mudança de conjuntura tem se expressado no debate programático? 

Não haverá uma “vitória verde”. No final, os verdes poderão acabar com menos votos que o SPD (Partido Social-Democrata), que permanecerá nitidamente abaixo de 20%. Se nenhum milagre acontecer, o candidato da CDU/CSU (União Social-Cristã), Armin Laschet, será chanceler de um governo de coalizão que poderá incluir qualquer combinação com Verdes, SPD e o liberal FDP, dependendo dos votos que cada partido obterá. A política alemã é centrista até o osso.

Neste momento, Laschet, como primeiro-ministro do maior estado federal, Renânia do Norte-Vestfália, está tentando desenvolver um regime de combate à Covid-19 mais sustentável que o interminável lockdown de Merkel, adotado para agradar à ala “Covid-zero” do Verdes. Laschet governa com o liberal FDP, em afinidade com os pequenos empresários e outros que sofrem sob os sempre retornados lockdowns.

Você está pedindo o “debate programático”. Não há nenhum. Laschet produziu um “programa” que é tão trivial e chato que ninguém o está lendo. Nisso ele segue os passos de Merkel, que é completamente dissonante quando se trata de ideologia e afins, mudando repetidamente de direção em 180 graus se isso se adequar à sua política de coalizão.

O que há de mais ou menos diferente por parte dos líderes partidários está relacionado com as respostas às crises, que os manterão ocupados quando no cargo, em questões relativas à Europa Oriental, união monetária, finanças estatais, relação com a Rússia, confronto americano com a China e o desejo francês de que a “Europa” defenda seu império pós-colonial na África Ocidental etc.

Há um amplo consenso na Alemanha, incluindo cada vez mais também a AfD (Alternativa para a Alemanha), de que manter viva a união monetária deve ser a prioridade máxima da política alemã, pois a moeda comum é a principal fonte da prosperidade do país.

Há pequenas diferenças sobre o valor da compensação a ser paga pelo contribuinte alemão, em nome das indústrias de exportação alemãs, a países “perdedores” como Itália, Espanha e França por se agarrarem ao euro, sobre a melhor, menos visível, forma de pagamento, e quem seria melhor em negociar o preço para baixo.