Governo Bolsonaro exerce a necropolítica e Brasil e o mundo vivem um desastre

0

Em novo livro, professor afirma que as bases da civilidade perderam espaço no planeta

Folha de São Paulo, 31/05/2021

Plinio Fraga, Jornalista, doutorando em comunicação na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e autor de “Tancredo Neves, o Príncipe Civil” (Objetiva)

[RESUMO] Em novo livro, Muniz Sodré, um dos principais pensadores da área de comunicação no país, afirma que a cultura do algoritmo levou a uma sociedade incivilizada, que rejeita os avanços da cidadania, as diferenças e o discernimento crítico, em nome do capital financeiro e do desmonte do Estado e da política.

A cultura do algoritmo deixou a sociedade civil como definida por Gramsci de cabeça para baixo, aponta em novo livro Muniz Sodré, o pesquisador em comunicação mais citado na produção científica nacional. O espaço da sociedade civil está ocupado agora pela “sociedade incivil”, que dispensa negociação pública das diferenças, cooperação, solidariedade, discernimento crítico e amizade cívica.

“A Sociedade Incivil” (ed. Vozes), título do novo livro de Sodré, pode ser definida como um ordenamento humano regido globalmente por tecnologias de comunicação desestabilizadoras das formas clássicas de representação do mundo.

Rejeita as ideologias de bem-estar social, é refratária às instituições tradicionais e é inimiga dos avanços da cidadania. Na governança, fórmulas ocas hibridizam política estatal, demagogia e publicidade.

A política perde seu papel de mediação entre cidadãos e o Estado. O privado toma lugar do público. O burguês produtivista dá lugar ao rentista. Efemeridade e volatilidade passam a ser as bases do turbocapitalismo financeiro, alimentado por informação instantânea.

No mundo incivil, diz Sodré, a força da convicção é maior do que a da verdade. É tempo de saber sem sabedoria, de fala sem diálogo, de ação sem pausa e reflexão. A emoção substitui a fé, e a dopamina toma o lugar de Deus.

Em vez do monopólio da fala dos tempos televisivos, os algoritmos promovem o sequestro da fala por meio da total dissemetria entre aqueles que captam os dados, os oligopólios das big techs representadas no acrônimo FAANG (Facebook, Apple, Amazon, Netflix e Google), e aqueles que os fornecem, os usuários da sociedade em rede. As placas tectônicas do conhecimento se deslocam e deixam o humano sem solo firme para pisar.

É vivida a era da democracia das emoções, do enterro da discussão argumentativa. Era do segredo do voto desconstruído pela exposição informacional. Era do jornalismo sem povo, porque dominado pela busca única do clique.

Em suma, a sociedade incivil reflete a hegemonia do capitalismo financeiro e da cultura algorítmica. É uma nova máquina tecnossocial, articulada por meio da informação e da midiatização.

A velha sociedade civil morreu porque as mutações socioeconômicas desconstroem os laços representativos das instituições em benefício de formas tecnológicas e mais abstratas de controle social.

Essas mutações constituiriam evidências do evanescimento da sociedade civil, tal como interpretada pelo pensador italiano Antonio Gramsci (1891-1937), desenvolvendo conceitos estabelecidos antes por Hegel (1770-1831) e Lênin (1870-1924).

A sociedade em rede pode ser, no entanto, veneno e remédio. Pode ser a possibilidade de contramovimentação social necessária para a requalificação do político. Como o apoio da comunicação, que é separação e ponte, na definição do educador Paulo Freire, como citado por Sodré.

Aluno de Roland Barthes (1915-1980) e Emmanuel Carneiro de Leão, amigo de Jean Baudrillard (1929-2007) e Gianni Vattimo, Sodré é professor emérito da UFRJ e autor de 45 livros, sendo 42 de teoria da comunicação e três de ficção.

Aos 79 anos, domina sete línguas, luta caratê, toca violão e segue dando aulas e conferências. Contraiu Covid-19 no ano passado. Entre maio e junho, permaneceu internado por 43 dias. Precisou de respirador mecânico duas vezes, ficando 14 dias incubado. Contou lembrar-se de ter tido experiências extracorporais nesse período.

Ao deixar o hospital, por quase dois meses teve de se submeter à hemodiálise. Usou o tempo da convalescença para concluir “A Sociedade Incivil”, que lança agora. A seguir, os principais trechos da entrevista que concedeu à Folha.

O leitor desavisado pode associar de imediato a expressão sociedade incivil aos tempos do governo Bolsonaro. Apesar de em seu livro não haver nenhuma referência direta ao bolsonarismo, concorda que o senhor acaba por explicá-lo ao esmiuçar como a sociedade está ligada a projetos autocráticos populistas? Concordo absolutamente. Não mencionei Bolsonaro para não particularizar demais o conceito. Aparentemente, “sociedade incivil” pode parecer um trocadilho.

Pode parecer um jogo de palavras, mas na verdade é um conceito. É um conceito da sociedade civil como falado por Lênin, Hegel e aprofundado mais plenamente por Gramsci.

Mas é um conceito de sociedade civil de ponta cabeça, de cabeça para baixo. Porque é um esvaziamento daquilo que sustentava classicamente a sociedade civil: o esvaziamento da representação político-parlamentar.

É um conceito da ausência de representatividade política da sociedade contemporânea. Isso é geral no mundo, ainda que com gradações diferentes. Na maioria dos países latino-americanos, os partidos não têm importância. São máquinas burocráticas que giram ao redor dos interesses próprios, de verbas orçamentárias.

Não é possível fazer revolução pelo voto, mas sempre foi possível fazer reformas pelo voto. Mas esse poder se esgotou, porque ficou na mão da tecnoburocracia. O sistema político como um todo, a política de partidos, a política parlamentar, passou a não valer mais nada. São apenas jogadas entre grupos para se revezar no poder.

Incluo nisso também o PT. O que existe são apenas tonalidades afetivas diferentes.

O fenômeno da sociedade incivil, assim, é mundial, com intensidades diferentes. O Brasil vive um desastre incivil.

A política perde força, o Parlamento perde força. Por mais em crise em que estivessem, sempre foram garantias de civilidade, de preservação da sociedade civil.

O governo Bolsonaro exerce a necropolítica. Que importa se morrem 400 mil pessoas? O que importa é a economia. Como diria Gramsci: “O velho mundo agoniza, um novo mundo tarda a nascer, e, nesse claro-escuro, irrompem os monstros”.

Gramsci não usou a expressão sociedade incivil, um conceito que eu criei, mas ele pressentiu a morte da sociedade civil no que chamou de crise orgânica.

O sr. associa a sociedade incivil às políticas conservadoras de desmonte do Estado, de aniquilação da política e da predominância do capital financeiro. Elas crescem juntas? Crescem juntas. O neoliberalismo é o ativismo direto do capital. É o discurso desse novo capitalismo. O rentismo é uma nova forma de capitalismo. O neoliberalismo é um discurso, é uma nova forma de consciência do capitalismo.

No livro, o sr. afirma que do “monopólio da fala”, numa referência principalmente à televisão como elemento cultural central do passado, a sociedade algorítmica passou para o “sequestro da fala”. Este seria a perda de autonomia das pessoas? A ideia do monopólio da fala não desapareceu por completo porque ela se confunde com o monopólio econômico que explica as big techs. É fato que o monopólio da fala se refere inicialmente à televisão, em razão da impossibilidade de interatividade desse canal.

Verificamos agora que a fala contemporânea está condicionada por um sistema tecnológico, matemático, que funciona à base de algoritmos.

Esses algoritmos são um outro discurso, um outro universo, fundado com outras regras. Os algoritmos constituem uma língua própria porque eles são capazes de produzir mensagens, incitar comportamentos. E nós não sabemos que língua é essa, só dominada por seus programadores.

A sociabilidade que a rede gera, que o algoritmo gera, é uma sociabilidade de plataforma. Não é a sociabilidade histórica real. Não é a subjetividade vivida. É uma sociabilidade programada por algoritmos. Isso é o sequestro da fala, é pior do que o monopólio. É a produção de uma fala própria que, aos poucos, vai dominando a nossa. É a fala do robô. O algoritmo é um robô por software.

A ideia do monopólio da fala continua válida? Parecia que a interatividade viria a resolver o problema da possibilidade de resposta à televisão, mas não é bem assim. O monopólio da fala se deslocou para sistemas ainda mais remotos que formam a rede mundial de computadores, comandada por algoritmos. O supermonopólio da fala agora produz o sequestro da fala.

O que quer dizer quando afirma que a rede algorítmica produz um tipo novo de jornalismo, o jornalismo sem povo? O povo no Brasil ficou como um enigma étnico. A partir de 1964, tornou-se mesmo subversivo. Quando me refiro ao jornalismo sem povo quero dizer que a democracia sempre precisou de povo. E o jornalismo também.

O jornalismo tem de se reinventar. A forma de emprego não se esvaziou só no jornalismo. O emprego está sendo esvaziado no setor fabril, em todo lugar. A imprensa que elogiamos é o discurso de intervenção que o jornal faz na esfera pública. E esse discurso é necessariamente político.

A imprensa informa dentro do quadro de um povo específico. Na rede, você vê usuário de computador, mas não vê povo. Esse povo, como símbolo de exercício de soberania, pode se constituir na rede? Eu acho que pode.

O veneno seria também a cura? A rede é um megafone. Tem um poder de mobilização muito grande. Ela leva para rua, expõe. É a ideia do fármaco: veneno e cura. Paulo Freire dizia que a comunicação é separação e ponte. O jornalista é o curador da mediação. É um lugar ainda não bem pensado, mas que já é real.

É o lugar do desenvolvimento do jornalismo: investigação e curadoria, ou tratamento da mediação que pode assumir a forma da rede. O conceito de notícia se fragmentou tanto que desvalorizou a notícia. O jornalismo é um meio de busca da civilidade e, por consequência, da democracia.

Por que o sr. diz que a “democracia das emoções” é uma das construtoras da sociedade incivil? Vimos aparecer toda uma tecnologia emocional que não damos conta. A manipulação de todas as máquinas criadas pelas big techs é emocional. No cotidiano, a razão argumentativa dá lugar à razão sensível. As estratégias das redes, as táticas de aproximação, de discussão, de aproximação são estratégias sensíveis. São nessas estratégias que as emoções se encontram.

Esta é uma era, por exemplo, em que a própria ideia de fé pode ser substituída por impulsos, por dopamina [neurotransmissor que modula as emoções, também conhecido como hormônio da felicidade]. Esse fundamentalismo evangélico funciona com base na dopamina, não na fé. O discurso do pastor tem a ver com a emoção, com a dopamina.

O sr. conclui o livro lançando duas questões fundamentais. Os homens ainda podem ser ditos humanos? E as democracias ainda podem ser ditas democráticas? Pode parecer que estou abraçando a visão apocalíptica de mundo, da destruição, do esvaziamento, mas no livro abordo a possibilidade de recomposição do político, em articulação com as redes.

Acredito na política, como acredito no jornalismo. No jornalismo como força cívica. A democracia, por mais imperfeita que seja, é algo pelo qual temos de nos debater. Buscar algo radicalmente humano é buscar algo político.. Buscar algo radicalmente humano é buscar algo político.

Glenn Hubbard: a economia precisa de algo mais do que a receita neoliberal

0

O professor de economia da Universidade Columbia diz que o Reaganismo precisa ser repensado e a abordagem de Biden não é coerente

Gillian Tett FINANCIAL TIMES – 26/05/2021 – Publicado no jornal Folha de São Paulo

No final do ano passado, Glenn Hubbard, ex-diretor da escola de administração de empresas da Universidade Columbia e consultor, pensador e planejador econômico veterano do Partido Republicano decidiu correr o risco.

Em um momento no qual muitos pensadores republicanos pareciam ter medo de criticar Donald Trump diretamente, por terem medo de que ele pudesse vencer a eleição de 2020, Hubbard atacou Trump por sua completa falta de um plano econômico tangível.

“[Trump] não tem plano econômico. Não estou dizendo que não gosto de seu plano; estou dizendo que ele não existe”, disse Hubbard. “Talvez ele devesse falar sobre reforma fiscal ou comércio internacional, de uma forma que engajasse nossos aliados”.

O economista lamentou o fato de que o então presidente não tivesse agido dessa maneira.

A crítica poderia parecer história antiga, já que Joe Biden venceu a eleição –e vem produzindo propostas dramáticas de política econômica, como seus planos de gastos públicos de por volta de US$ 4 trilhões (R$ 21,2 trilhões).

Mas não é: enquanto os republicamos se dilaceram em torno de questões não econômicas (como as acusações de fraude eleitoral de Trump), a questão de que políticas econômicas o partido de fato defende está se tornando cada vez mais complicada.

Será que os republicamos deveriam apoiar um projeto de infraestrutura? A dívida pública ainda importa? Como os republicanos se posicionam sobre questões como a desigualdade de renda ou a visão de livre mercado defendida por Milton Friedman? Será que os republicanos deveriam apoiar a política monetária ultrafrouxa promovida pelo Federal

Reserve, o banco central dos Estados Unidos? E será que Larry Summers –antigo assessor econômico da Casa Branca– está certo ao avisar sobre os riscos de inflação?

Nesta entrevista, Gillian Tett, editora especial do Financial Times nos Estados Unidos, propôs essas questões a Hubbard, que está bem posicionado para respondê-las porque foi presidente do conselho de assessores econômicos da Casa Branca no governo de George W. Bush, e este ano lançará um livro, “The Wall and the Bridge”, no qual propõe um novo manifesto.

Em resumo, Hubbard acredita que o neoliberalismo ao estilo da década de 1980 –ou seja, o mantra de Ronald Reagan– precisa ser repensado para o século 21, e que é preciso voltar a Adam Smith. Mas a abordagem, de Biden, ele insiste, não funciona.

Glenn –ou professor Hubbard—, é fantástico podermos conversar hoje, porque estamos lidando com pelo menos três coisas [na economia], neste momento. Os números do PIB (Produto Interno Bruto) mostram que a economia está se recuperando muito rápido da pandemia, o Fed acaba de informar que não pretende elevar os juros, em curto prazo, e o presidente Joe Biden prometeu um imenso pacote fiscal. Assim, qual é sua previsão para a economia dos Estados Unidos?

A reabertura enquanto o vírus recua sempre conduziria a um salto significativo no PIB. Por isso, o curto prazo não é realmente a grande questão. Certamente, surgirá uma alta transitória na inflação, mas acredito que o Fed esteja em geral correto, e que a alta será mesmo transitória. Minha preocupação é quando ouço o Fed falar, como seu presidente Jay Powell fez, sobre querer observar o mercado de trabalho e esperar que ele “volte a se curar”, antes de agir. O problema do mercado de trabalho é, em boa medida, estrutural. E manter a economia aquecida com a ajuda do Fed não vai corrigi-lo.

Quanto à política fiscal, não estamos falando só de um “estímulo”. O primeiro plano de Biden era um estímulo. O American Rescue Plan (plano de estímulos financeiros dos EUA) foi planejado para servir como estímulo. Mas o American Jobs Act e o American Families Plan são, na verdade, um esforço para fazer com que o governo volte a ser grande. Eles precisarão ser pagos, e aritmeticamente não há como pagá-los com impostos sobre os ricos. Não existe dinheiro suficiente para isso. Assim, a conversa honesta com o povo americano sobre política econômica deveria ser uma questão de escolha pública: se as pessoas desejam um governo grande que faça o que o presidente Biden deseja, será preciso pagar por isso.

Você está confiante em que as pressões inflacionárias serão transitórias?

Não se pode confiar nisso inteiramente, mas acredito que se o Fed tivesse uma linha de política monetária mais clara eu estaria confiante em que os aumentos nos preços das commodities são transitórios. O que me preocupa é o Fed pensar que pode se posicionar contra mudanças estruturais no mercado de trabalho por meio de política monetária. Os riscos de inflação em longo prazo podem ser um pouco preocupantes –parte das forças estruturais que seguravam a inflação se relacionava à demografia e ao crescimento dos países emergentes, especialmente a China, e isso tudo está mudando.

Você acha que o Fed deveria estar indicando sua disposição de elevar os juros caso a inflação cresça?

Creio que é improvável que o Fed aja assim. Mas uma das razões de estarmos vendo uma volatilidade implícita tão alta nas taxas e mercados de crédito, com relação ao mercado de ações, é o temor no mercado de títulos de que o Fed talvez esteja dizendo uma coisa mas, caso se veja encurralado, termine fazendo o contrário. Tenha em mente que o Fed adquiriu cerca de metade dos títulos do Tesouro americano emitidos no ano passado, e detém cerca de 40% dos títulos de Tesouro com vencimento em 10 anos ou mais que estão em circulação, e por isso a forma de pensar do Fed quanto a isso, que não parece muito clara para o mercado de títulos, é realmente muito importante.

Larry Summers declarou que o estímulo é grande demais, está acontecendo rápido demais, e criará riscos inflacionários. Você e Larry raramente concordam, mas você concorda com isso?

Eu concordaria quanto ao risco, mas não é esse problema que mais me incomoda. O que me preocupa ainda mais é que, ao tentar criar um governo tão grande estejamos vendo uma matemática orçamentária desonesta. Estamos vendo um cenário no qual alguns poucos anos de gastos terão de ser pagos por muito mais anos de impostos mais altos. Estamos escondendo do povo americano que, se eles desejam um governo que faça essas coisas, a carga tributária terá de ser maior.

Se você considerar a matemática da carga tributária, o aumento proposto no imposto das empresas ou o aumento do imposto sobre ganhos de capital não são, nem de longe, suficientes. A outra coisa estrutural que me preocupa é que vejo reduções de produtividade e reduções de investimento como resultado desses grandes aumentos de impostos.
Biden disse que se a pessoa ganha menos de US$ 400 mil ao ano, seus impostos não subirão.

Bem, isso simplesmente não é verdade, nem em curto prazo e nem em longo prazo. Tome como exemplo o imposto das empresas. Muitos economistas concluíram que o peso dos impostos pagos pelas empresas recai sobre os trabalhadores.

Na década de 1970 e no começo da década de 1980, acreditávamos que era o capital que arcava com a maior parte do custo dos impostos empresariais. Mas não é nisso que os economistas acreditam agora. Assim, não se pode simplesmente afirmar que as pessoas com renda inferior a US$ 400 mil (R$ 2,1 milhões) anuais não arcarão com parte alguma do aumento na carga tributária.

Da mesma forma, no caso do imposto sobre ganhos de capital, o presidente diz que “só vou afetar 0,3% dos contribuintes”, o que quer dizer aqueles que ganham mais de US$ 1 milhão (R$ 5,3 milhões) ao ano e pagam imposto sobre ganhos de capital. Mas esses indivíduos não recebem 0,3% dos ganhos de capital –é provável que eles recebam a maioria deles. Assim, se isso causar qualquer efeito sobre a disposição de aceitar riscos, sobre a poupança e o investimento, temos riscos muito grandes.

Esses efeitos incidem sobre a economia toda e não sobre os 0,3% mais ricos, e por isso em curto prazo a declaração dele é simplesmente uma mentira. E em prazo mais longo ela se torna mentira ainda mais escancarada, porque, se você considerar a matemática orçamentária, haverá um grande rombo na arrecadação. Alguém terá de pagar por isso.

E se esse “alguém” forem as grandes empresas?

Vamos colocar as mudanças nos impostos em dois baldes. Quanto às alíquotas, não acredito que vamos querer elevá-las tanto quanto o presidente está propondo, e certamente não queremos de volta as alíquotas do passado. Quanto à base tributária, o presidente Biden está propondo um aumento de impostos por meio do alargamento da base tributária –e essa é uma mudança muito, muito grande. Antecipo que as companhias venham a reconhecer que terão de pagar um nível mínimo, mas a matemática não vai bater.

E quanto a impostos criados sob a cobertura das ações contra a mudança do clima, por exemplo um imposto sobre o combustível ou um imposto sobre valor adicionado?

Considero que seja uma grande ideia. Há anos apoio um imposto sobre a emissão de poluentes porque acredito que essa seja uma das melhores maneiras de enfrentar a mudança do clima. Sou muito cético quanto a subsídios para projetos verdes, mas, se você estipular um preço para o carbono, os empresários correrão para inovar e para operar de forma mais eficiente, e o imposto não precisa ser regressivo. Não compreendo por que um governo que se define como ao mesmo tempo progressista e ecológico está desconsiderando o único instrumento capaz de ajudar quanto às duas coisas.

Sobre o imposto por valor adicionado —não há questão de que se desejamos aquilo que o governo Biden está sugerindo, ter um imposto sobre valor adicionado é essencial.

Os países europeus, que tem setores estatais muito maiores que o dos Estados Unidos como proporção do PIB, não têm suas despesas financiadas por impostos sobre o capital. Na verdade, em muitos países europeus os impostos sobre o capital são mais baixos do que nos Estados Unidos. E as despesas são bancadas por impostos sobre o consumo.

É desconcertante que o governo Biden não tenha colocado em discussão impostos sobre a emissão de poluentes. Por quê?

Há uma fascinação da esquerda por regulamentação de comando e controle. Mas isso não é nem de perto tão eficiente quanto impor um preço às más práticas, em lugar de subsidiar as práticas supostamente boas.

Por que você acredita que o pacote de Biden esteja prejudicando a produtividade?

Permita-me dar um passo para trás. Algumas discussões sobre a estagnação secular se referem à insuficiência da demanda agregada. Outra escola de pensamento acredita que estruturalmente tenhamos um problema de crescimento da produtividade, em relação ao “supply side” da economia e ao potencial da economia para crescer. É esse aspecto que me interessa. Os planos de impostos são claramente um desincentivo ao investimento, já que a falta de aprofundamento do capital explica o baixo crescimento da produtividade e os aumentos no imposto sobre o ganho de capital podem reduzir o interesse em aceitar riscos. Certamente não há coisa alguma que melhore a produtividade nos planos de Biden, e muita coisa que a desencoraja.

Não é só a política tributária. Preocupa-me que a política monetária possa criar empresas zumbis –um ambiente de taxas de juros baixíssimas que sustenta empresas de baixa produtividade. Para crédito do presidente Biden, partes do que ele está propondo e se relaciona à infraestrutura real poderiam, de fato, elevar a produtividade, mas essas propostas são apenas uma pequena parte daquilo a que ele está dando o nome de infraestrutura.

A possibilidade de uma crise futura de dívida o preocupa?

Bem, nós somos o país que emite a moeda de reserva mundial, e realizamos nossa captação em nossa moeda, e por isso acredito que uma doença lenta mas duradoura é a consequência mais provável. Para oferecer um exemplo prático, o fundo do Medicare pode esgotar seu dinheiro dentro de um ano ou pouco mais, e o da previdência social em cinco anos ou pouco mais. Isso forçará discussões em Washington sobre se o público deseja ter um governo tão grande.

Assim, você não antecipa uma crise de dívida propriamente dita, por conta do status do dólar como moeda de reserva?
Não no momento.

Os republicanos deveriam cooperar para criar um projeto de lei bipartidário?

Seria possível obter apoio bipartidário a uma nova “GI Bill” [lei posterior à Segunda Guerra Mundial que financiava a educação dos veteranos de guerra], que ajudaria os trabalhadores a se prepararem para o mundo da Covid, por exemplo, com apoio a faculdades locais.

Não estou falando de ensino superior gratuito em faculdades locais, mas em apoio “supply side” —melhorar sua capacitação para treinar pessoal. Mas não haverá apoio bipartidário à ideia de que precisamos deixar de lado o sistema de seguro social sustentado pelo trabalho em troca de uma rede de segurança que cubra a pessoa do berço ao túmulo.

O governo realmente causou confusão nesse aspecto ao definir o que está fazendo como um projeto de infraestrutura. Infraestrutura não precisa ser só estradas, pontes e aeroportos –pode também incluir banda larga. Mas não serviços de saúde.

O apoio a crianças e a idosos é parte da “infraestrutura?”

Não. Esses são gastos sociais.

Uma das maneiras interessantes pelas quais você enquadra esse debate é pelo contraste entre Keynes e Hayek, ou seja, se o objetivo é escorar o sistema atual ou encorajar uma transformação mais rápida. O que você quer dizer com isso?

Pode-se pensar na Covid em termos de uma resposta keynesiana –tivemos um colapso na demanda. A resposta keynesiana não é fantasiosa. Mas Hayek diria que o mundo novo posterior à Covid não se parecerá com o mundo velho, e por isso qual é o motivo de apoiar cada empresa? Os dois estão certos. Fizemos um bom trabalho de política pública quanto à parte keynesiana. Mas nos saímos pior com relação a Hayek.

Qual é sua opinião sobre o conceito de estagnação secular de Larry Summers?

Há uma cena em “Um Conto de Natal”, de Dickens, em que Scrooge pergunta algo como “isso são sombras de coisas que são ou de coisas que poderiam ser?” Sinto-me da mesma maneira com relação às descrições de Bob Gordon sobre a economia dos Estados Unidos –Larry e Bob estão falando sobre sombras de coisas que poderiam ser, caso nossas políticas públicas forem ruins o suficiente, para retornar à nossa discussão sobre medidas que prejudicam a produtividade. Mas não acho que isso seja inevitável.

Todos os empreendedores com quem converso estão bem otimistas sobre a fronteira tecnológica da produtividade. Se existe uma razão para pessimismo, é mais quanto à capacidade e disposição do sistema político para permitir que o crescimento da produtividade aconteça livremente.

Você acredita que o Partido Republicano saiba o que defende em termos econômicos?

Creio que essa seja uma grande questão em aberto. Dou ao ex-presidente [Trump] crédito republicano clássico por coisas como as mudanças nos impostos das empresas ou a análise de custo/benefício da regulamentação; mas é evidente que coisas como o protecionismo e, a hostilidade à imigração não ideias republicanas clássicas. Para o partido atual, creio que exista uma sensação do que foi perdido mas não do que precisa ser ganho. A economia como um todo precisa de algo mais do que a receita neoliberal.

O que virá a seguir? Um dos sabores é o protecionismo –medo do comércio internacional e medo dos trabalhadores imigrantes. Outra abordagem que os republicanos poderiam adotar seria a de passar do neoliberalismo ao liberalismo (com L minúsculo), recuando a Adam Smith. Ele era inimigo do mercantilismo —era isso que o enraivecia em “A Riqueza das Nações” — e estava muito interessado na capacidade de competir de cada economia.

Assim, uma nova agenda republicana poderia fazer mais para ajudar as pessoas a competir –isso seria mais parecido com Lincoln, ou com o “GI Bill” de Roosevelt. Mas não vejo o partido avançando de fato nessa direção.

Tett: E quanto ao segundo livro de Smith, “A Teoria dos Sentimentos Morais?”

Smith se referia à “simpatia mútua”, o que hoje definiríamos como empatia. Os empreendedores e líderes de negócios progressistas pensam desse modo. Não vejo as questões ecológicas, sociais e de governança como inimigas dos acionistas –não estamos falando de Milton Friedman contra o socialismo -, e sim como uma questão do que realmente serve aos interesses da empresa em longo prazo. Recorde que Smith protestou contra a East India Company britânica, que ele via como um câncer. Ele acreditava que é necessário ser muito cuidadoso na estruturação social das corporações. Os empreendedores atuais precisam compreender que a estrutura corporativa é algo que a sociedade lhes dá. Na verdade, o capitalismo é algo que nos é dado pela sociedade. Se o público não o quiser, ele não acontece.

Vou lançar um livro dentro de algumas semanas que enfatiza o aspecto social e cultural dos negócios e das finanças e economia, e argumenta que os líderes empresariais precisam deixar para trás sua visão de túnel e começar a usar a visão lateral. Você concorda com isso?

Sim. Quando leciono sobre economia política, lembro aos alunos que grandes pensadores como Friedman, Hayek e Smith escreveram para as épocas em que viveram. Friedman e Hayek estavam escrevendo em resposta a um sistema econômico corporativista ineficiente e desleixado, e o fascismo os horrorizava. Se Ronald Reagan estivesse entre nós hoje, não creio que ele seria o Reagan da década de 1980. Se Friedman e Hayek estivessem entre nós hoje, eles talvez tivessem visões diferentes. Mudanças de contexto.

Friedman também estava operando quando as pessoas presumiam que podiam terceirizar as decisões sociais difíceis para o governo, e quando não existia transparência radical e os consumidores, clientes e empregados não eram capazes de ver claramente o que as empresas estavam fazendo. Isso faz diferença?

Sim. Se Friedman estivesse entre nós, ele nos lembraria, corretamente, de que existem grandes externalidades sociais que nenhuma empresa é capaz de corrigir. Mas não existe motivo para que os empreendedores não possam ser líderes. Quando o Plano Marshall foi aprovado, não foi porque o Congresso, em sua imensa sabedoria, decidiu fazer alguma coisa. Foi porque a comunidade de negócios se reuniu e disse “meu Deus, vamos ter comunismo na Europa Ocidental, e o que isso pode causar ao nosso sistema econômico?” Eles pressionaram o Congresso. Compreendo que os empresários atuais tenham medo. Mas isso não é desculpa para não agir. Em muitas companhias, os trabalhadores mesmos os pressionarão a agir.

Estamos começando a ver um nível de cooperação por parte das companhias que era inimaginável na era de Thatcher e Reagan. Isso vai durar?

Creio que sim, e Hayek teria celebrado essa resposta coordenada, porque ela veio de baixo. Se você comparar a produção de vacinas, em geral uma atividade do setor privado, à distribuição de vacinas, em geral uma atividade do setor público, acho que fica claro qual das duas pareceu funcionar melhor.

Existem coisas que poderiam ajudar quanto a isso. Imagine se Biden criasse centros de pesquisa aplicada em todo o país, vinculados às universidades. Isso poderia ajudar as companhias a resolver problemas localizados, e também resolveria grandes problemas como o das vacinas.

Por que ninguém no Partido Republicano está propondo uma agenda política positiva como essa?

Acredito que isso vai acontecer –mas por enquanto existe um vácuo. Biden não será derrotado pelo niilismo – o presidente Trump perdeu por mais de sete milhões de votos, não é um resultado assim tão próximo. Por isso as pessoas vão terminar por propor políticas novas, já que o que mais o Partido Republicano poderia fazer? A outra escolha seria retornar ao neoliberalismo escancarado, e creio que nem Ronald Reagan conseguiria se tornar presidente hoje se essa fosse sua plataforma!

Você se preocupa por talvez estarmos vivendo em uma bolha em termos de questões ecológicas, sociais e de governança?

Sim, de diversas maneiras. Estamos correndo o risco de política industrial e de rentismo, com subsídios a todo tipo de “coisa verde”. Também me preocupo com a maneira pela qual os presidentes-executivos lidarão com isso – ninguém quer que o presidente de uma empresa dedique metade de seu tempo a preocupações sociais.

E quanto ao protecionismo? Os republicanos serão capazes de apresentar uma voz alternativa, quanto a isso?

Espero que sim, mas não tenho certeza. Como quase todos os economistas exceto talvez Peter Navarro, acredito no livre comércio. Assim, por que algo que parece tão óbvio em qualquer curso de introdução à economia termina por não ser popular junto ao público?

Creio que por dois motivos. Um é que sempre que o professor de introdução à economia falava dos ganhos propiciados pelo comércio externo, ele tinha a ideia de que haveria perdedores, mas que uma compensação ocorreria naturalmente –o que não aconteceu.

Segundo, o livre comércio é um daqueles exemplos, como o do velho padrão ouro, de sistema que funciona de fora para dentro. É preciso aceitar as regras do jogo, e depois você se ajusta. Creio que precisemos recuar a um período em que se possa dizer, olha, é preciso compreender os grupos nacionais de interesse. Isso talvez signifique muito mais apoio ao treinamento, ou poderia significar garantia de salários, poderia ser muitas outras coisas além de simplesmente dizer “livre comércio”.

Assim, o que importa é tentar falar de livre comércio considerando as duas metades das ideias de Adam Smith.

Sim, exatamente. Mesmo Smith, o campeão da abertura, não teria aceitado que áreas inteiras [de uma economia] simplesmente fossem deixadas para trás. Smith falava muito sobre lugares –ele disse algo como “um homem é um tipo de bagagem difícil de carregar”, o que significa que é preciso considerar lugares como um todo, e não só empregos… considerar a cultura.

Ei, uma combinação de antropologia e economia!
Exatamente, duas ciências sociais, farinha do mesmo saco.

O que está acontecendo com a Economia como profissão? Com questões como o debate em torno das críticas de Summers às políticas de Biden, será estamos vendo uma guerra tribal entre economistas? A Economia está sendo repensada? Biden está se afastando dos economistas?

Bem, vou começar com boas notícias: os jovens astros da profissão [Economia] tendem hoje a ser pessoas que discutem grandes problemas, que variam do desenvolvimento à política monetária e mercados de trabalho, usando novos recursos e técnicas. Acho que isso é completamente saudável.

Creio que o governo precisa de pessoas com grandes ideias sobre macroeconomia. Se eu estivesse no lugar de Janet Yellen, conversaria com economistas que continuem a me dar essa perspectiva, mas também obteria perspectivas micro do mercado financeiro e do mercado de trabalho. Não é preciso haver uma guerra, portanto. Mas me preocupa a maneira pela qual o governo Biden fala de políticas na formulação das quais não há muito envolvimento de economistas. Não é o primeiro governo em que vejo isso acontecer –mas é uma preocupação para a Economia como profissão.

Qual é o próximo passo para você? Você vai tentar criar a nova visão republicana sobre a economia?

Sim –mas não por ser republicana, e sim porque acredito que seja uma visão importante para as políticas públicas.

Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci

Entraves políticos

0

Numa sociedade marcada pela concorrência e pela competição crescentes entre os agentes econômicos, os setores produtivos se sentem pressionados pelo incremento de seus lucros, buscando constantemente novos instrumentos de acumulação, reduzindo seus custos, investindo em tecnologia, máquinas e novos modelos de negócio. O ambiente da economia globalizada exige que todos os atores produtivos, empresas, trabalhadores e Estados, se reinventem, absorvam novas tecnologias, desenvolvam maior flexibilidade e agilidade, sob pena de perder espaços neste mundo altamente competitivos.

Neste ambiente de constantes transformações, percebemos um descompasso entre as questões econômicas e as respostas políticas. A lógica da economia prescinde de flexibilidade e agilidade, exigindo rapidez dos setores econômicos e produtivos, enquanto os setores políticos são mais lentos, exigem discussões e reflexões, estimulando debates e conversações. A conjunção dos setores é fundamental, compreender as diferenças auxilia na construção de um projeto de país, onde os setores, econômicos e políticos, devem caminhar em prol do desenvolvimento dos setores produtivos e na melhoria do bem-estar social da comunidade.

O cenário internacional exige a construção de um consenso econômico, social e político, como forma de angariar instrumentos para competir no novo mundo dos negócios. Diante deste ambiente de grande competitividade global, os atores econômicos e políticos precisam construir um ambiente saudável, definindo o papel de todos os agentes, mostrando que a dicotomia entre Estado versus Mercado é equivocada, gerando conflitos, ressentimentos e desgastes políticos. Os países que conseguiram ultrapassar a armadilha da renda média e conseguiram alçar a posição de uma sociedade desenvolvida, foram capazes de construir um consenso político entre todas as elites econômicas.

O desenvolvimento econômico é um assunto político que precisa da atuação de todos os atores sociais e políticos, com isso, cabe aos líderes a construção de um ambiente salutar para pensar a sociedade, imaginar os rumos e os passos necessários e fundamentais para que, num futuro mais próximo, a sociedade consiga vislumbrar novos espaços de desenvolvimento econômico. Neste desafio, precisamos agregar esforços de todos os setores, estimulando a participação das universidades, dos centros de pesquisas, os setores governamentais, os empresários, sindicatos, dentre estes.

Um dos grandes equívocos da sociedade é imaginar que o desenvolvimento econômico precisa apenas de lideranças econômicas e produtivas, neste ambiente é fundamental a construção de lideranças políticas com visão mais ampla, associados por profissionais capacitados, conscientes que vivemos numa sociedade dependente e periférica, criando consensos internos em prol da transformação social, estruturando os setores econômicos, preservando o meio ambiente, reduzindo as desigualdades sociais, aperfeiçoando a governança, melhorando os indicadores educacionais, capacitando os setores da saúde, consolidando as instituições e fortalecendo a democracia.

Numa sociedade marcada por grandes desigualdades como a brasileira, os desafios são imensos e crescentes, exigindo de todos os setores da sociedade um esforço que demanda muitos anos ou décadas, um verdadeiro projeto nacional, mesmo com a alternância de grupos políticos diferentes comandando o executivo, o projeto nacional deve continuar e sempre sendo aperfeiçoado, visando o objetivo do desenvolvimento econômico e da redução das desigualdades sociais.

Na contemporaneidade, percebemos na sociedade brasileira que os grupos políticos e forças econômicas estão sempre em confrontos abertos, criando espaços de desconfianças entre os atores sociais, o resultado deste ambiente é um incremento de inseguranças, incertezas e instabilidades. Neste ambiente de confrontos primários, agressividades e violências generalizadas, como vivemos na atualidade, o país caminha a passos largos a perpetuação da insignificância global, mesmo sendo dotados de grande potencial vivemos na indignidade e das desigualdades que nos aproximam da incivilidade e do retrocesso.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 26/05/2021.

A política do século 20 se foi para sempre, por Yascha Mounk.

0

Em algumas democracias, partidos social-democratas parecem estar prestes a desaparecer por completo

Yascha Mounk O cientista social Yascha Mounk é professor associado na Universidade Johns Hopkins e autor de “O Povo contra a Democracia”.

Folha de São Paulo, 25/05/2021

Nos últimos anos uma sucessão interminável de autores previu a morte da social-democracia.

Eles tinham razão, em parte: os tempos áureos da social-democracia nunca vão voltar. Mas também estavam em parte errados: outros partidos-ônibus, como os democratas cristãos, também se encaminham para a lata de lixo da história.

Na era do pós-Guerra, partidos social-democratas conquistaram uma grande parcela dos votos em virtualmente todos os países europeus, em partes da América Latina e em países que vão da Austrália a Israel. Eles eram um dos dois principais “Volksparteien”, ou “partidos do povo”, na França, na Alemanha e no Reino Unido. Dominaram a política nos países escandinavos.

Desfrutaram períodos no poder no Reino Unido, na Austrália e em boa parte da América Latina. Na virada do século, ainda parecia provável que exerceriam um papel crucial no século 21.

Desde então, os partidos social-democratas se enfraqueceram significativamente em quase todas as grandes democracias. Em algumas delas, parecem estar prestes a desaparecer por completo.

Na França, o Partido Socialista se viu reduzido a 25 cadeiras na Assembleia Nacional e mal tem chance de participar do segundo turno das eleições presidenciais do próximo ano. Na Alemanha, a parcela do voto dada ao SPD encolheu
pela metade ao longo de 20 anos. No Reino Unido, Tony Blair ainda é o único político trabalhista em mais de meio século a ter conquistado um mandato para governar, e o Partido Trabalhista agora está sendo eviscerado em sua base tradicional do nordeste proletário do país.

Na Escandinávia, os social-democratas deixaram há muito tempo de ser o partido naturalmente governante. E, do Peru a Israel, os partidos tradicionais de centro-esquerda foram eviscerados.

Existem algumas razões específicas que motivam os estertores de morte da social-democracia. O proletariado deixou de ser um contexto social coeso. Como observou o político trabalhista britânico Douglas Alexander após a última eleição no Reino Unido: “Oferecemos aos eleitores um passeio até o museu local de mineração. Eles queriam ir à EuroDisney”.

Em consequência disso, partidos de centro-direita, como o Conservador britânico, ou de ultradireita, como o Rassemblement Nationale francês, hoje recebem a maioria dos votos da classe trabalhadora.

As previsões amplas se concretizaram: a social-democracia está morta. Mas, como vamos descobrir, os social-democratas não passavam da vanguarda de uma tendência muito mais ampla: o declínio e queda dos partidos-ônibus do século 20 de qualquer vertente ideológica.

Numa escala de tempo mais longa, os democratas cristãos vêm sofrendo um declínio semelhante. Os Republicanos franceses estão se saindo apenas marginalmente melhor que o Partido Socialista.

Os democratas cristãos alemães caíram para 23% nas sondagens atuais, atrás dos Verdes. Na Itália, a Lega, de ultradireita, que tem raízes separatistas, é hoje o principal partido de direita, seguida pelo Irmãos da Itália, de ultradireita, que tem raízes fascistas. E, do Brasil aos Estados Unidos, os partidos tradicionais de centro-direita foram capturados ou derrotados por populistas de ultradireita.

As razões disso correm em paralelo com a razão que explica a queda dos social-democratas. Assim como restam poucos proletários no século 21 (e os que existem tendem a ser culturalmente de direita), também restam poucos burgueses no século 21 (e aqueles que existem tendem a ser culturalmente de esquerda).

Mas não é apenas que os dois ambientes tradicionais das principais famílias partidárias europeias estejam desaparecendo —é que as perguntas para as quais eles trazem respostas deixaram de figurar no epicentro da política.

Quatro ou cinco décadas atrás, uma pergunta simples lhe permitiria adivinhar em quem votara uma pessoa na França ou na Suécia, no Peru ou na Austrália: “Você preferiria ter um Estado de bem-estar social maior e pagar mais impostos ou ter um Estado de bem-estar social menor e pagar menos impostos?”.

Aqueles que optavam pelo Estado de bem-estar social maior —predominantemente mas de modo nenhum exclusivamente proletários— provavelmente votavam em social-democratas. Os que optavam por impostos mais baixos – predominantemente mas de modo nenhum exclusivamente burgueses—provavelmente votavam em conservadores ou democratas cristãos.

Hoje o campo de batalha principal da política passou das questões econômicas para as culturais.

Questões relativas a alíquotas de impostos e o Estado de bem-estar social são menos cruciais para a política do que eram no passado. Portanto, se você quiser saber se um eleitor se identifica como sendo de esquerda ou direita, provavelmente terá que lhe fazer algumas perguntas culturais sobre imigração, patriotismo ou possivelmente sobre a confiança nas instituições de elite.

Pelo fato de seus eleitorados tradicionais terem visões divergentes sobre essas questões culturais, os partidos-ônibus tradicionais têm grande dificuldade em desenvolver um perfil claro em relação a essas questões. E, por isso, pelo menos em países ricos, eles estão sendo substituídos rapidamente por movimentos que foram fundados para responder a questões culturais, não econômicas.

A política do século 21 tem muito mais chances de ter a cara da batalha de Emmanuel Macron contra Marine Le Pen, ou do Partido Verde alemão contra o partido de direita radical Alternativa para a Alemanha, do que de parecer uma disputa entre social-democratas e democratas cristãos.

Quer você ame ou odeie o fato, a política do século 20 ficou para trás. As tentativas de ressuscitá-la acabarão inevitavelmente em fracasso.

É enorme equívoco associar o auxílio à redução eficaz da pobreza, por Cecília Machado.

0

Se objetivo do auxílio fosse combater a Covid-19, ele deveria vir acompanhado por medidas mais severas de distanciamento social, o que não ocorreu

Cecília Machado Economista-chefe do Banco BOCOM BBM e professora da EPGE (Escola Brasileira de Economia e Finanças) da FGV

Folha de São Paulo, 25/05/2021

Depois de muitos anúncios sobre a reformulação da rede de assistência social, com direito a aumento do valor do benefício médio do Bolsa Família e registro de informações cadastrais via aplicativo, a semana passada terminou com a defesa —mais uma vez— da renovação do auxílio, em agosto deste ano, como a forma mais eficaz de combater uma possível terceira onda de Covid-19, o elevado desemprego e o aumento da pobreza.

Há, entretanto, muitas dúvidas sobre uma eficácia tão ampla do programa, e sua renovação por uma terceira vez parece indicar, ao contrário, despreparo e falta de planejamento no combate aos impactos adversos da crise sanitária na economia. Ou então ausência de compromisso com a redução das desigualdades sociais, já que há diversas vedações à distribuição de valores e benefícios em ano de eleição, e qualquer reformulação de programas sociais precisaria começar a valer ainda neste ano.

Primeiro, fosse o auxílio um programa estabelecido para mitigar a transmissão do vírus —garantindo a segurança alimentar das famílias em momentos de escalada da pandemia, quando o distanciamento social se torna necessário e a renda das famílias encolhe—, deveria ter sido pago nos momentos de recrudescimento da crise sanitária e retirado quando a economia reabrisse.

Mas, no primeiro trimestre do ano, quando a pandemia escalava para alcançar o seu pior momento —4.249 mortes, em 8 de abril—, a população enfrentava os efeitos adversos do distanciamento social sem nenhuma ajuda do governo.

Um auxílio emergencial que não responde ao número de caso e mortes ou às taxas de internação hospitalar —todos eles termômetros da crise sanitária— não cumpre o propósito de garantir subsistência das famílias quando a crise se amplifica. Pior, estabelecer uma transferência quando a mobilidade das pessoas segue sem restrição não casa com o objetivo de reposição de renda decorrente, justamente, do distanciamento.

Se o objetivo do auxílio fosse combater a Covid-19, ele deveria vir acompanhado por medidas mais severas de distanciamento social, o que não ocorreu.

Também vale lembrar que, ao fim do calendário de pagamento do atual auxílio, em agosto, muitos analistas estimam que grande parte da população já estará imunizada. São cerca de 600 milhões de doses contratadas até o fim do ano, tornando a renovação do auxílio, pelos motivos estritamente sanitários, menos relevante.

Tampouco é claro que o auxílio seja eficaz no combate ao problema do desemprego. Muitos indicadores apontam para a retomada da economia sem a recuperação do emprego, e é possível que o mundo pós-pandemia tenha uma confirmação do mercado de trabalho bastante distinta, já que o uso de tecnologias favorece mais que proporcionalmente trabalhadores mais qualificados e substitui serviços oferecidos pelos menos qualificados.

Mesmo em países que já se encontram avançados na vacinação e onde a retomada da economia é evidente, a taxa de desemprego ainda não retornou aos níveis pré-pandemia.

Ao que tudo indica, o problema do desemprego tem raízes mais estruturais, ainda que precipitadas pela conjuntura da pandemia, e a mera transferência de renda será incapaz de resolvê-lo, já que a inserção produtiva da mão de obra exige, ao contrário, um conjunto muito diferente de ações, como qualificação e treinamento dos trabalhadores sem emprego.

Por fim, é enorme equívoco associar o auxílio à redução eficaz da pobreza, pois, ainda que o orçamento do programa tenha sido expressivo, sua focalização foi baixa. Dito de outra forma, teria sido possível reduzir ainda mais a pobreza com maior direcionamento de recursos e ações para aqueles que realmente precisam.

Programas de combate à pobreza que fomentam a mobilidade social, ao contrário do auxílio, precisam também vir acompanhados da provisão de serviços, além de priorizar grupos onde os benefícios da assistência são maiores e mais persistentes no tempo, como crianças.

Faltam objetivos claros que justifiquem a renovação de um programa de baixo custo-efetividade, pouco relevante para frear a crise sanitária, combater o desemprego e dar fim a pobreza. Uma nova rodada do auxílio —sem maiores discussões— mostra de forma bastante clara que há dificuldades na definição de diagnósticos, prioridades e soluções para os problemas que emergiram e se amplificaram com a pandemia.

‘Ciberpopulismo não é fenômeno provisório, está instalado’, diz filósofo

0

Em seu primeiro livro, Andrés Bruzzone afirma que democracia terá de lidar com o encontro do populismo tradicional com a tecnologia

Entrevista com
Andrés Bruzzone, filósofo e comunicador

Tulio Kruse, O Estado de S.Paulo – 23/05/2021.

O filósofo e comunicador Andrés Bruzzone, de 57 anos, vive seu segundo confronto com a armadilha da polarização na política. Brasileiro nascido na Argentina, nutre desgosto pela divisão na sociedade que se aprofundou durante os anos de kirchnerismo no país vizinho, a partir da década de 2000. Ele diz que vê, há pelo menos cinco anos, o mesmo ocorrer no Brasil e tem poucos motivos para ser otimista em relação às eleições de 2022.

Esse desconforto o levou à pesquisa para o recém-lançado livro Ciberpopulismo (editora Contexto), um ensaio sobre o uso da tecnologia e das redes sociais pela extrema direita. Em entrevista ao Estadão, Bruzzone diz que o fenômeno do populismo digital veio para ficar e que, enquanto partidos democráticos sofrem para se adaptar ao novo cenário, haverá menos espaço para moderação. É por isso que ele se diz cético quanto à chamada “terceira via” no Brasil. “A minha leitura é de que estão fora do jogo, o que é muito triste. Assim perdemos nuances, estamos entre branco e preto, doença ou saúde, não tem meio-termo. No limite, é preciso escolher de maneira binária. Isso é muito ruim para a democracia.”

O tom do seu livro parece pessimista. O sr. diz que expectativas frustradas – na economia, nas condições de vida em sociedade – explicam o surgimento da onda populista à direita, mas os movimentos democráticos ainda não têm uma resposta para isso. Ou têm?

Eu realmente não sou otimista. De alguma maneira, acho que a democracia está encontrando mecanismos para se proteger – assim como a mídia tradicional, uma vez que a tendência digital estava colocando em risco o próprio jornalismo. A democracia, nesse sentido, tem mecanismos de defesa. Mas não sou otimista. Nós votamos com três órgãos do corpo. Com o coração naquilo que amamos – nos identificamos com uma pessoa, um partido. Votamos com o cérebro também, fazemos escolhas racionais. Essas duas coisas funcionam, mas o populismo age diretamente no terceiro órgão: a tripa, as entranhas. O populismo apela de maneira mais intensa para paixões negativas, o medo e o ódio. São muito intensas, muitas vezes mais do que as paixões positivas. As redes sociais são muito mais eficazes para odiar do que para gostar. Há muito mais haters do que lovers. Num ambiente polarizado e populista, olhar para as taxas de rejeição passa a ser mais importante do que para as taxas de adesão. Quando se juntam esses dois fenômenos – das mídias digitais e do populismo – e os dois apontam para o ódio, para frustrações, fúria e canalização do medo, é muito difícil fugir da armadilha.

Parece mais fácil usar as redes sociais para promover ódio e desinformação. As instituições democráticas não conseguem aprender com as ferramentas do extremismo?

Idealmente, sim. Não consigo encontrar motivos estruturais para que isso não seja possível. Ocorre que, até agora, não vemos isso. Houve a fase do otimismo digital, a Primavera Árabe e discussões sobre a possibilidade do voto direto (em leis). Isso ainda não está acontecendo de maneira consistente. Ainda que seja possível em teoria, não vemos na prática. Com certeza há uma infinidade de ferramentas para avaliar o trabalho dos eleitos, e uma militância digital claramente democrática muito forte. Há uma fiscalização nas redes sociais. Quando um ex-secretário mente numa CPI, isso se espalha na rede, não há como esconder. Há um ganho de transparência, e isso não deveria nunca significar menos democracia. Talvez seja necessário ainda algum tempo para a democracia e suas instituições aprenderem a lidar com essa realidade nova. Isso ainda está por ser visto.

O ciberpopulismo é apenas o uso da tecnologia para promover a polarização, a mesma que já vimos no século 20, ou há mais do que isso?

Ele (o ciberpopulismo) nasce desse encontro entre o populismo tradicional e a tecnologia, que é muito recente. Ele nasce disso, mas provoca uma mudança estrutural. Primeiro se aproveita de mudanças nos sistemas de meios de comunicação e de partidos políticos e, ao mesmo tempo, acentua essas mudanças estruturais. Acho que é muito mais do que um fenômeno contingente. Não é, provavelmente, um fenômeno provisório e, sim, algo que está instalado. A democracia vai precisar lidar com esse encontro do populismo com as possibilidades que a tecnologia coloca à disposição dos especialistas em campanhas políticas.

Mais comunicação é um problema para a democracia?

É um paradoxo. Por enquanto, o maior acesso a informações está enfraquecendo e ameaçando as democracias. Mas não devia. O que provavelmente está faltando é o poder fiscalizador do Estado, a regulamentação dos processos de produção e distribuição de informações. Eu não acredito, e não acho que seja sustentável hoje, que uma desregulação total seja positiva.

O sr. cita no livro o ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair, que diz que o populismo de esquerda não tem chance de alcançar o apelo populista da direita. Concorda?

Eu não concordo com nenhum prognóstico tão taxativo. Acho que não. Em uma primeira fase, vimos a extrema direita se armar muito bem digitalmente, conseguiu canalizar uma série de frustrações. Ela fez com que partes da população, que estavam invisíveis, fossem visibilizadas – isso nos EUA, França, Brasil. Havia pessoas pouco importantes politicamente porque não tinham meios de participar. O que a extrema direita viu foi que poderia dar a essas pessoas um horizonte de representação, fazê-las visíveis. E aí veio essa onda que estamos vivendo no Brasil e no mundo. Não acho que partidos de centro e de esquerda não consigam também aprender. Acho que, no Brasil, estamos vendo um momento muito preocupante, mas, ao mesmo tempo, interessante. A esquerda brasileira está aprendendo a usar redes sociais, vemos isso no cotidiano. E vem aí uma eleição que vai ser muito pautada pelos sistemas digitais de construção de discurso. Cabe a cada um apostar a favor ou contra Tony Blair. (A eleição) terá, claramente, um dinâmica de ciberpopulismo. Será uma polarização extrema, na qual quem eu odeio será tão importante quanto quem eu amo. O Brasil vai viver essas polarizações sobrepostas.

O sr. cita a possibilidade incerta da construção de um populismo de esquerda, que não tenha vocação antidemocrática. Acha que essa é uma porta de saída viável para manter a democracia?

Essa é uma questão extremamente delicada. Polarização, assim como populismo, é uma palavra que nomeia muitas coisas diferentes. Precisamos tomar cuidado com essa noção. Na discussão sobre a Terra ser redonda ou plana, por exemplo, não existe polarização e não existe ponto médio entre os dois. De um lado há a ciência, e do outro um pensamento não racional. Não existem polos equivalentes quando, de um lado, há uma força antidemocrática. Não há nenhuma equivalência entre qualquer candidato democrático e outro que quer explodir o sistema. Pode existir polarização, mas não existe equivalência entre os dois. Às vezes se pensa que a polarização leva a um equilíbrio, ao colocar uma situação de equivalência entre dois polos, e isso não é verdade. Existe um limite, que é o do jogo democrático.

Dentro dele, tudo. E fora dele, nada. Essa deve ser, entendo eu, a posição de qualquer democrata que acredita no pluralismo. Isso te leva a um paradoxo. Você é obrigado a votar, muitas vezes, em um candidato que você detesta – mas detesta dentro do jogo democrático. A polarização te leva a essas situações. O polo democrático é sempre melhor para a democracia. Não há justificativa de qualquer pessoa com o mínimo de decência cívica para apoiar um candidato que claramente é antidemocrático. O que vai marcar o jogo da próxima eleição é a equação de quantas pessoas apoiam cada um dos dois candidatos e quantas pessoas os detestam, a ponto de votar em alguém que normalmente não votariam.

Em um cenário conflagrado como esse, o ‘centro democrático’ ou a chamada ‘terceira via’ perdem? Têm alguma chance de ganhar discussões?

A minha leitura é de que estão fora do jogo – o que é muito triste. Assim perdemos nuances, estamos entre branco e preto, entre doença ou saúde, não tem meio-termo. No limite, é preciso escolher de maneira binária. Isso é muito ruim para a democracia.

Existe alguma saída para a armadilha do ciberpopulismo?

Eu diria que somente com um acordo muito claro das forças democráticas. O Brasil tem uma vocação de diálogo e contemporização muito maior, por exemplo, do que a Argentina. É um país federal, em que o poder está mais fragmentado. Faço essa comparação por dois motivos: porque conheço o modelo argentino e porque é um lugar interessante para entender o que pode acontecer quando uma polarização se impõe e perdura. Eu acho que um pacto democrático seria a única saída para esta situação, essa armadilha. Havendo esse pacto entre as forças de esquerda e direita democráticas, dá para se deixar de fora os antidemocráticos. É preciso fomentar o diálogo, procurar entender e abrir espaço para o diferente. Aprender a escutar e promover escuta. É muito difícil construir um pensamento coletivo se, mesmo com diferenças à direita e à esquerda, os que temos uma vocação sinceramente democrática não conseguirmos acordos básicos. Tem alguém querendo tacar fogo no circo, não podemos deixar. Se o circo queimar, estamos todos incinerados.

O fim da unipolaridade, por Mathias Alencastro,

0

Investida da China mudou cenário da América Latina

Folha de São Paulo, 24/05/2021

Mathias Alencastro
Pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento e doutor em ciência política pela Universidade de Oxford (Inglaterra).

Nenhuma dimensão da diplomacia contra a pandemia parece tão estruturante quanto o avanço da China na América Latina. Após atingir um milhão de mortos e com apenas 3% da população vacinada, a região depende, na quase totalidade, da alavancagem econômica e da cooperação sanitária promovida por Pequim para ter chance de sair da crise.

O caso da Colômbia, fortaleza de Washington e membro da OCDE, é o mais ilustrativo desse novo momento geopolítico.

A China enviou milhares de insumos e de ventiladores empacotados em campanhas com mensagens de Xi Jinping. Arrasado por uma explosão social, o governo de Bogotá não resistiu à operação de charme e desviou de décadas de alinhamento ocidental em nome da nova amizade.

A solidariedade chinesa é calibrada para atingir objetivos práticos. No caso do Paraguai e de Honduras, a China está aproveitando a pandemia para aprofundar o isolamento de Taiwan, independente desde 1949. Assunção chegou perto de aprovar o fim da aliança com Taipé no ano passado, e Tegucigalpa ameaça seguir o mesmo caminho.

Não deixa de ser curioso que a China avance com tanta facilidade numa região historicamente associada aos EUA.
Afinal, uma das premissas das relações internacionais é que uma superpotência precisa, primeiro, controlar a sua própria sub-região. Essa visão tem orientado o projeto hegemônico dos EUA nas Américas desde a Doutrina Monroe.

Como explicar a crise do sistema unipolar? Entre outros fatores, a diplomacia de “alinhamento automático” promovida por Donald Trump e Jair Bolsonaro criou a ilusão de que Brasília atuaria como o primeiro defensor dos interesses de Washington na América Latina.

Essa aposta desastrada nos talentos de Ernesto Araújo e de Eduardo Bolsonaro abriu espaço para a China. Na ausência do Brasil e de um poder moderador como o Mercosul, Pequim teve total liberdade para ampliar suas parcerias bilaterais. A administração Biden corre para reverter o desgaste, mas a América Latina parece ter entrado de forma irreversível numa nova era. Resta saber como os governos latino-americanos vão tirar proveito da competição entre superpotências. O balanço atual é cheio de contrastes.

Enquanto o Chile conseguiu emergir como o “Israel do Sul Global” da vacinação graças à cooperação com a China, Bolsonaro continua infantilizando a política externa brasileira. As últimas semanas foram dedicadas a superar mais um surto verborrágico do presidente, que associou, de novo, a pandemia a uma “guerra química” dos chineses.

Outros já experimentam mudanças nos sistemas políticos. A virada autoritária do governo de extrema direita de El Salvador, criticada pelo governo Biden, não parece trazer constrangimento à China. Da mesma forma, a aproximação do país com Honduras ganhou outro significado desde que o irmão do presidente Juan Orlando Hernández foi condenado por tráfico nos EUA em 2019.

Num passado recente, Pequim deu respaldo decisivo a um projeto de poder antidemocrático na Venezuela. Para os progressistas, o desafio será fazer com que a presença da China potencialize a autonomia da América Latina sem agravar a crise democrática que corrói a região.

Projeto da Câmara é incentivo à degradação ambiental, por M. H.Tavares.

0

A destruição do licenciamento ambiental atesta o quanto o Brasil bolsonaresco descarta o futuro

Folha de São Paulo, 19/05/2021

Maria Hermínia Tavares Professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap. Escreve às quintas-feiras.

Patrocinado pelo centrão, saiu da Câmara rumo ao Senado o projeto que, a pretexto de modernizar o arcabouço de regras que norteiam o licenciamento ambiental no Brasil, praticamente destrói o pilar da Política Nacional de Meio Ambiente.

Se virar lei na versão atual, o projeto 37/2004 abrirá alas para a insegurança jurídica, ao transferir a estados e municípios o poder de definir o processo de concessão de licenças.

Ao introduzir exceções à obrigatoriedade do licenciamento ou facilitar a sua obtenção, multiplicará as chances de danos ambientais graves –do desmatamento à poluição do ar e dos rios por atividades industriais mal concebidas e a catástrofes semelhantes às que destruíram Mariana e Brumadinho, poucos anos atrás. Finalmente, elevará à enésima potência os riscos a que já estão submetidos os povos indígenas e quilombolas à medida que isentar de licenciamento os territórios ainda em processo de demarcação.

Muitas atividades podem ser mais bem executadas quando livres de interferência e regulação estatais: a imprensa é uma delas, as artes e a cultura, outras tantas. Não é, de forma alguma, o caso da proteção ambiental. Esta requer que o cálculo de ganhos coletivos futuros –e, por isso, difíceis de aquilatar– tenha precedência sobre interesses imediatos e palpáveis. Aqui, o poder público é insubstituível para definir a norma e fazê-la cumprir, criando incentivos apropriados para os agentes privados.

A destruição do licenciamento ambiental atesta o quanto o Brasil bolsonaresco descarta o futuro em prol de mesquinhos objetivos da hora –no caso, contingente não desprezível das bases eleitorais do ex-capitão. Indica também como o país envereda pela contramão do mundo civilizado, onde a preocupação em limitar a mudança climática vai de mãos dadas com medidas concretas –e de forte teor regulatório–, destinadas a proteger as populações dos inevitáveis desastres ambientais que ela já está provocando e poderá ocasionar mais adiante.

O projeto de lei aprovado pelos deputados da coalizão governista é a primeira de quatro medidas com o mesmo propósito estritamente eleitoreiro, que o Executivo encaminhou ao Congresso quando da eleição dos presidentes das duas Casas. Tratam de mineração em terras indígenas, concessões florestais, estatuto do índio e regularização fundiária, apropriadamente conhecido como o “PL da grilagem”. Madeireiros, grileiros, desmatadores e companhia feia, produtores de resíduos tóxicos ou de obras malfeitas agradecem.

Os brasileiros ficam ainda mais à mercê dos desastres ambientais –e o país, ainda mais desprestigiado na cena internacional.

Supersalários que envergonham, por Hélio Beltrão.

0

Penduricalhos e conceito do vínculo duplo permitem estouro do teto

Folha de São Paulo, 19/05/2021

Hélio Beltrão Engenheiro com especialização em finanças e MBA na universidade Columbia, é presidente do instituto Mises Brasil.

Não duvido que nossa burocracia venha a regulamentar a profissão de “estouro -teto”. Há, por exemplo, batalhões de magistrados e servidores públicos dedicados a burlar o inciso XI do artigo 37 da Constituição de 1988 que estabelece o teto de remuneração de ocupantes de cargos públicos.

A remuneração —incluindo pensões, vantagens pessoais e outras remunerações, cumulativamente— não pode ultrapassar a dos ministros do STF, hoje de R$ 39,3 mil mensais. Caso ultrapasse, deveria se aplicar o chamado “abate-teto”, reduzindo-a ao teto.

Deveria, mas não ocorre. Segundo um estudo de 2019 do Partido Novo, a média salarial dos juízes do Brasil todo excedia R$ 46 mil mensais. Recebem acima do teto 65% dos juízes. Não é exceção: supersalários são o caso geral, pelo menos no Judiciário.

Já a partir de 1989, logo após a promulgação da Constituição, começou a dança frenética villa-lobiana (sem trocadilho) no STF para consagrar os “penduricalhos”, verbas variadas que ficariam fora do teto.
Entre os balangandãs, auxílio-paletó, dentista, auxílio-internet, alimentação, auxílio-transporte, moradia, verbas de representação, prêmios de produtividade, gratificação de Natal etc.

Ao longo do tempo, o STF aperfeiçoou a “hermenêutica criativa”, uma interpretação viva da Constituição. Não se tratou de uma mediação legítima entre a letra da lei, de um lado, e o espírito da lei, do outro. Ambos incontestavelmente bloqueiam o estouro do teto. Recorreu-se então a uma alquimia legal ao texto da carta magna: tinta e papel se transformaram em penduricalhos de ouro.

Mais recentemente, a mágica da discricionariedade interpretativa se sofisticou: o termo “cumulativamente” do artigo 37 passou a equivaler a “não cumulativamente” na jurisprudência vigente.

Anticonstitucionalissimamente, o STF decidiu que a Constituição é inconstitucional. Como disse o ministro Barroso, “é inconstitucional a Constituição, por emenda, dizer que um determinado trabalho legítimo, por ela autorizado, não vá ser remunerado”.

Assim, desde 2017 o STF estabeleceu o conceito de dois vínculos, um pé-direito duplo para o servidor público. Por exemplo, uma aposentadoria e a remuneração por um cargo de ministro se acumulam, implodindo o teto constitucional.

Na decisão, afirmou-se que a “acumulação de cargos não é para benefício do servidor, mas da coletividade”, e que o teto “gera enriquecimento sem causa do poder público”.

Em 2017, a ex-ministra do governo Temer Luislinda Valois argumentou em pedido oficial ao governo que não receber os valores acumulados corresponderia a trabalho escravo. É surreal como um roteiro de Orwell; menos para quem mora no Estado, no qual tudo observa precisamente a lógica do interesse interno.

O Ministério da Economia vinha resistindo a aplicar a “novisprudência” do STF, mas, após o parecer da AGU favorável ao duplo teto, capitulou.

Em Brasília, diz-se que o parecer foi encomendado por militares da reserva com cargos na Esplanada.

Na pandemia, milhares de empreendedores fecharam as portas e milhões de trabalhadores perderam o emprego ou tiveram o salário reduzido. Mas vergonhosamente a máquina pública continuou intacta, com supersalários pagos em dia.

Dentre 74 países, o Estado brasileiro tem o sétimo maior gasto com funcionários públicos, que, por sua vez, insistem na tese de que são mal pagos. Se fosse verdade, seria natural que os pedidos de demissão fossem equivalentes ou maiores que no setor privado. Porém, são praticamente inexistentes.

Há esperança. O Congresso pretende votar em breve a PEC 32, que, entre diversas mudanças, elimina o teto duplo, e o PL 6.726/16, que restringe os penduricalhos. Espera-se que sejam à prova de alquimia.

Escada Tecnológica

0

O desenvolvimento econômico é o anseio maior das sociedades contemporâneas, todas as economias buscam uma melhor inserção na comunidade internacional, garantindo um incremento de suas rendas com melhorias nas formas de consumo, renda e bem-estar social. Neste ambiente, os países que conseguiram angariar avanços substanciais construíram estratégias que combinavam uma efetiva ação política interna, investimentos crescentes em pesquisa, ciência e Tecnologia, planejamento econômico e consenso político entre os grupos sociais e políticos, sem estes, as nações não conseguiriam construir seu desenvolvimento. A história nos mostra que o desenvolvimento econômico é um tema político, nunca esqueçamos isso.

O avanço da escada tecnológica é um dos maiores desafios para as economias se desenvolverem, exigindo a intervenção maciça dos Estados nacionais, atuando em variadas frentes, investindo recursos em universidades, em centros de pesquisas e centros de desenvolvimentos tecnológicos, ao mesmo tempo, é fundamental que os atores estatais emprestem recursos a taxas de juros subsidiados, a proteção dos setores produtivos, compras governamentais e a construção de ambientes de credibilidade e de confiança.

Num ambiente de forte crescimento tecnológico, os países que conseguiram alçar o desenvolvimento econômico, conseguiram aumentar a escada tecnológica, transformando suas estruturas econômicas e produtivas, passando de produtores de mercadorias pouco sofisticadas e, com o passar dos tempos, conseguiram alçar novas capacidades produtivas, produzindo produtos mais sofisticados, construindo tecnologias inovadoras e elevando seus degraus produtivos. Estes países conseguiram transformar suas estruturas econômicas, enriqueceram e angariaram desenvolvimento econômico e melhoraram as condições de vida da população. Países que não conseguiram alçar a escada tecnológica ficaram para trás, sua população continua pobre, dependentes da importação de produtos de alto valor agregado e suas perspectivas econômicas são negativas e preocupantes.

Os economistas estruturalistas acreditam que os países que apresentam relevância em setores de mineração e de agricultura se encontram no começo da escada tecnológica, possuindo apenas solo fértil e reservas minerais. Com o crescimento da escada tecnológica, encontramos um processo de crescimento industrial em setores de baixo valor tecnológico, low tech, tais como vestuário, couros, alimentos processados, sabonete, bebidas, toalhas, sapato, manteiga, dentre outros, onde encontramos muitos países, com exceção dos algumas nações africanas.

Com o desenvolvimento da estrutura produtiva, os países conseguem crescer na escada tecnológica, chegando nos chamados de midian tech, suas estruturas econômicas são dominadas por setores mais elevados em tecnologia, produzindo produtos sofisticados, tais como as indústrias de autopeças, pneus, algumas maquinarias, angariando algum desenvolvimento industrial, embora modesto.

Com o passar dos tempos as estruturas produtivas são mais sofisticadas, as high tech, são grandes conglomerados, muitos setores oligopolizados ou duopólios, com a produção de máquina fina, maquinários de ponta, fármacos e mecânica de precisão, são setores que demandam capital humano sofisticado, grande inovação, alta tecnologia, pesquisa e desenvolvimento em relação as vendas e o faturamento. Neste mercado, os grandes atores são muito fortes e são dotados de grandes recursos monetários e financeiros, controlam o mercado e impõem seu poder financeiro como forma de controlar as sociedades e impedir a entrada de novos competidores, criando um ambiente de concentração de mercado e inviabilizando o surgimento de novos atores econômicos.

Neste ambiente, a atuação dos Estados Nacionais é imprescindível no desenvolvimento da escada tecnológica, como China e Coréia do Sul, que construíram setores altamente capacitados para competir no mercado global. Sem o desenvolvimento da escada tecnológica, países como o Brasil continuarão reféns de uma economia baseada em baixo valor agregado, dependentes de tecnologias e subordinados aos ditames dos mercados internacionais.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Especialista em Economia, Mestre, Doutor em Sociologia, professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 19/05/2021.

Pobreza estrutural, por Michael França.

0

Intervenções voltadas à primeira infância ajudam a quebrar o ciclo de perpetuação da pobreza

Michael França, Doutor em Teoria Econômica pela Universidade de São Paulo, foi pesquisador visitante na Universidade Columbia e é pesquisador do Insper.

Folha de São Paulo, 18/05/2021.

Existe vasta literatura voltada para compreender os mecanismos que retroalimentam a pobreza. Com o intuito de enfrentar esse desafio, diversas iniciativas e políticas públicas têm sido propostas e adotadas. Na economia, epidemiologia e psicologia têm ampliado a discussão em torno dos potenciais efeitos positivos de investimentos na primeira infância e na juventude.

Durante esse período da vida, são aprendidas habilidades que influenciam os resultados alcançados na idade adulta.
Considerando o contexto americano, estudos empíricos mostraram que o ambiente em que crianças e jovens estão inseridos consegue explicar uma parcela significativa das condições de saúde, desempenho educacional, engajamentos sociais e envolvimento futuro em atividades criminais.

Além do impacto social, também existem desdobramentos econômicos relevantes. Estima-se que cerca de 50% da variabilidade dos ganhos ao longo da vida entre as pessoas poderia ser explicada pelas habilidades desenvolvidas até os 18 anos de idade (“The economics of human development and social mobility”, 2014).

No entanto, construir essas habilidades não é algo trivial. Requer considerável esforço e políticas públicas bem orientadas. Existem inúmeros fatores que atuam conjuntamente no processo de formação de uma pessoa.

Um deles é a influência da família. Sabe-se que há uma expressiva correlação entre a renda domiciliar e o desempenho de um indivíduo. Isso ocorre porque a renda está associada a várias características que influenciam diretamente o progresso individual.

A literatura mostra, por exemplo, que crianças que vivem em ambientes desfavorecidos vão entrar em contato com um vocabulário significativamente menor, e isso leva a pior rendimento escolar.

Os pais, que podem ser considerados os primeiros professores de um indivíduo, costumam apresentar baixo conhecimento formal para transmitir a seus descendentes. Além disso, famílias carentes tendem a encorajar menos as crianças no seu processo de aprendizagem.

Possivelmente, o círculo de amizades dessas crianças será formado por pessoas que apresentam baixo nível educacional. Desse modo, o potencial aprendizado derivado das interações humanas também fica comprometido.

Isso tende a fazer com que transferências irrestritas de renda apresentem fraco efeito no processo de desenvolvimento das habilidades de um indivíduo. Deve-se pontuar que as políticas de transferências de renda desempenham um importante papel na suavização das restrições derivadas da pobreza. Entretanto, também é necessário realizar intervenções que ajudem a corrigir outras distorções sociais geradas pelos locais de nascimento.

Nesse cenário, estudos empíricos têm encontrado evidências de que intervenções voltadas para a primeira infância e juventude apresentam significativo potencial de ajudar a quebrar o ciclo de perpetuação da pobreza.

No caso dos Estados Unidos, iniciativas bem-sucedidas conseguiram impactar positivamente o desenvolvimento cognitivo de crianças e melhoraram as capacidades não cognitivas de adolescentes.

Simples programas de mentoria, por exemplo, têm significativo potencial de fornecer informações valiosas para os jovens desfavorecidos, ajudando, assim, a fazer melhores escolhas.

Sem uma intervenção profunda e organizada do Estado, é difícil imaginar que conseguiremos vencer a pobreza estrutural, pois existem muitos canais pelos quais o status socioeconômico se reproduz entre as gerações.

O texto é uma homenagem à música “Não é Sério”, interpretada por Charlie Brown Jr. e Negra Li.

Países em que algumas vidas valem menos explicam recordes na pandemia, diz ganhadora do Pulitzer

0

Jornalista Isabel Wilkerson defende em livro que EUA não são apenas racistas, mas organizados em castas

ANGELA BOLDRINI – FSP – 16/05/2021

BRASÍLIA
“O coronavírus não liga para nacionalidade ou cor da pele, mas são os países com maior divisão hierárquica na sociedade que estão no topo de mortes e casos”, diz a autora americana Isabel Wilkerson, citando os três líderes globais em óbitos por Covid-19: EUA, Brasil e Índia.

Essas divisões, argumenta ela, fazem com que alguns grupos sintam ter menos responsabilidade pela vida de outras pessoas. “Isso tem impacto nas nossas sociedades”, afirma a autora de “Casta: As Origens de Nosso Mal-Estar”, que chegou ao Brasil no final de abril pela editora Zahar.

No best-seller, a vencedora do Pulitzer defende a tese de que os EUA são mais do que um país racista. São, como a Índia, uma sociedade de castas, em que a raça é apenas o elemento visível da divisão social.

À Folha Wilkerson afirmou que é preciso cautela quanto à disseminação de vídeos de casos com o de George Floyd, homem negro assassinado por um policial em 2020, cuja morte gerou comoção mundial. “Esse acesso irrestrito a vídeos de morte e abuso de pessoas negras pode ter a consequência não planejada de anestesiar as pessoas, de contribuir para a desumanização das pessoas negras”, diz.

Ela defende que um caminho para combater a noção de hierarquia embutida na sociedade é conhecer a própria história e o processo que levou a essa hierarquização, e cita semelhanças com a Alemanha nazista e o caminho de reconstrução feito no país europeu e ignorado nos EUA e no Brasil pós-escravidão.

A sra. defende que a sociedade americana é mais do que racista, é uma sociedade de castas. Como começou a desenvolver essa tese?

Ela surgiu a partir do meu primeiro livro, “The Warmth of Other Suns” [o calor de outros sóis], que trata da migração de seis milhões de pessoas negras do Sul dos EUA, fugindo do regime Jim Crow [conjunto de leis segregacionistas estabelecidas no sul dos EUA após o fim da escravidão]. Passei a olhar para os antropólogos que estudaram esse tema na época, e eles usavam a palavra “casta”, porque não era só uma questão de ódio a um grupo, era a manutenção de uma estrutura divisiva em que tudo que uma pessoa podia ou não fazer estava baseado na sua posição em uma hierarquia. E essa posição era baseada apenas na sua aparência.

Então, em 2012, aconteceu o caso Trayvon Martin, em que um adolescente negro foi morto por um homem que achou que ele, por sua aparência, não pertencia àquele local. A partir daí comecei a pensar sobre como a noção de casta ainda nos afeta, como ainda é presente e não ficou apenas na época do Jim Crow.

A sra. já afirmou que a casta dominante atua mais quando se sente ameaçada. É este o caso com o Black Lives Matter e os recentes casos de abuso contra negros?

Sim. Na história americana, qualquer brecha no sistema de castas é vista como uma ameaça à ordem social. Se você olhar para o período que seguiu a Guerra Civil, há por 12 anos a chamada Reconstrução, em que ex-escravos estavam tendo acesso a educação, construindo instituições para si mesmos. Isso gerou um rebote muito grande, e o governo federal deixou de ajudar. A partir daí essas pessoas foram arremessadas de volta para a base do sistema de castas, e se instituíram as leis Jim Crow, 
que duraram quase 90 anos. Então você tem um período curto em que os negros estavam livres, e isso levou a gerações e gerações de um regime brutal. Essa ideia de que pessoas negras podem estar na sociedade é muito nova, a maior parte da história americana foi de exclusão.

A sra. acha que as redes sociais atuam de maneira positiva para a geração atual de jovens negros no combate a esse sistema?

A habilidade de gravar os abusos a pessoas pretas e pardas nos EUA e no mundo significa que coisas que aconteciam antes agora têm milhões de testemunhas. O caso George Floyd, algo que não deveria acontecer com nenhum ser humano, foi testemunhado pelo mundo todo. Quantos George Floyds não existiam antes? Por outro lado, esse acesso irrestrito a vídeos de morte e abuso contra pessoas negras pode ter a consequência não planejada de anestesiar as pessoas, de contribuir para a desumanização das pessoas negras. Nós sabemos dos linchamentos que ocorriam durante o Jim Crow porque as pessoas que os perpetravam tiravam fotos e as transformavam em cartões postais para enviar à família, tinham orgulho. Antigamente 5.000, 10 mil pessoas se reuniam para ver uma atrocidade sendo cometida. Hoje, devido às redes sociais, esse número passou a ser de dezenas de milhões. Além disso, é profundamente perturbador pensar que, quando vemos um desses vídeos, ele é precedido por anúncios, que tem alguém ganhando dinheiro com isso.

Quando a sra. decidiu fazer uma comparação entre Índia, EUA e a Alemanha nazista?

Após o caso Trayvon Martin e dos que aconteceram depois, pareceu-me claro que havia algo que valia investigar. A primeira coisa que fiz foi olhar a definição de “casta” e o sistema mais antigo em que isso foi aplicado, a Índia.

A Alemanha é menos óbvia, mas em 2017 houve o protesto de Charlottesville [EUA] contra a derrubada das estátuas de generais confederados. E os próprios manifestantes fundiram os símbolos da Confederação com os ícones nazistas, eles viram essa conexão.

A sra. reconta no livro que Martin Luther King Jr. foi à Índia e, lá, foi comparado aos intocáveis, a casta mais baixa. É marcante, considerando sua tese. A sra. já conhecia esse episódio?

Não conhecia. Pesquisando sobre sua viagem à Índia descobri a visita a uma escola de dalits. Lá, o diretor o introduziu aos alunos assim: “Quero apresentar a vocês um colega intocável dos EUA”. Ele ficou irritado de ser chamado dessa maneira, mas refletiu e pensou nos 20 milhões de negros americanos que naquela época não podiam votar e concluiu que, sim, era um intocável.

E que todos os negros americanos eram intocáveis. Quando você toca um projeto de longo prazo você tem alguns marcos de que está na direção certa, e este certamente foi um deles.

E quais similaridades encontrou entre os três sistemas?

Foi chocante ver quantas intersecções havia. Eu terminei listando oito pilares para o sistema de casta e diria que o mais profundamente embutido em todas as três sociedades é o de “pureza”. Isto é, nos três casos as castas dominantes se preocupavam muito com evitar uma contaminação da sua suposta pureza a partir do contato com aqueles que eram supostamente sujos. Na Índia, a casta inferior é chamada de intocável literalmente porque essa pureza seria comprometida pelo toque. No caso dos nazistas, judeus eram proibidos de usar as mesmas águas que os “arianos”, no caso dos EUA os negros não podiam usar as mesmas piscinas e praias.

A noção de “pureza” foi o que criou nos EUA a regra da “gota de sangue” [leis que determinavam que qualquer ancestralidade negra, ainda que remota, é suficiente para que uma pessoa seja considerada negra]? Esse princípio ainda é levado em conta?

Essa noção existe há tanto tempo que nós ainda vivemos sob sua sombra. Se a raça é uma construção social, como definir quem é ou não é de algum grupo? Se você enfileirar pessoas com base na sua cor de pele, da mais escura para a mais clara, como você cria a nota de corte? É tão arbitrário que cada estado tinha uma regra.

Nos EUA, a escravidão era muito lucrativa, e se estabeleceu que só negros eram escravizáveis. Portanto, você tinha que criar uma regra que colocasse o máximo de pessoas possível sob esse guarda-chuva.

E um dos pilares da casta é a endogamia, então você tinha que ter definições muito claras de raça para poder saber quem podia casar com quem. Isso acabou gerando famílias e linhagens, já que as pessoas se reproduziam com aqueles que eram mais parecidos com eles próprios. Dá para dizer que a população americana foi “curada” por esse tipo de lei. E, ainda hoje, se a sua família é identificada como sendo de um dos grupos, não importa a sua aparência, você também será definido dentro dele.

É possível abolir as castas? Como?

Numa peça, o elenco [em inglês, “cast”, similar a casta, “caste”] sabe suas falas, sabe exatamente o papel de cada um e, se alguém sai do roteiro, todos sabem que há algo errado. O que precisa primeiro ser feito é que as pessoas reconheçam que há um roteiro e que, se ele foi escrito por humanos, ele também pode ser reimaginado por humanos.

Para isso, é necessário conhecer nossa história, saber qual a origem do que estamos batalhando.

Como engajar a casta dominante na sua destruição? 

Na Alemanha, eles lidaram com a própria história. Eles fazem questão que as crianças aprendam o que aconteceu, não há monumentos homenageando os perpetradores dos horrores, e os espaços de terror foram transformados em espaços de aprendizado. A sociedade pode não concordar em tudo, mas concorda com um básico de história. E isso não acontece em vários países que lidam com o passado de um horror diferente, o da escravidão. Isso não é um “capítulo triste” da história dos países, é algo que se embute na sua sociedade e que tem que ser reconhecido como tal. E, por fim, acho que é preciso reconhecer que isso machuca todos. A pandemia mostra isso com clareza. O coronavírus não liga para nacionalidade ou cor da pele, mas são os países com maior divisão hierárquica na sociedade que estão no topo de mortes e casos.

Os países que vêm à mente são os EUA, que estão em primeiro lugar nas mortes, o Brasil, que está em segundo, e a Índia, em terceiro. O que eles têm em comum?

Hierarquias embutidas, quer eles admitam, quer não. Essas divisões fazem com que grupos sintam que têm menos responsabilidade pela vida de outras pessoas, que lhes disseram que não têm tanto valor. Isso tem impacto nas nossas sociedades.

ISABEL WILKERSON, 60
Jornalista americana formada pela Howard University, é autora dos livros “The Warmth of Other Suns”, sobre a migração em massa da população negra para o norte dos EUA durante a época Jim Crow, e “Casta: A Origem de Nosso Mal-Estar”, lançado no Brasil pela editora Zahar. Em 1994, como chefe da sucursal de Chicago do jornal The New York Times, tornou-se a primeira mulher negra a ganhar um Prêmio Pulitzer de jornalismo.

FHC revê trajetória em novo livro e diz que Brasil naturalizou pobreza e desigualdade

0

Às vésperas de completar 90 anos, ex-presidente publica memórias sobre origens familiares e formação intelectual

Ricardo Balthazar – Folha de São Paulo, 16/05/2021.

Na Folha desde 2010, foi editor de Poder e Mercado. É repórter especial.

[resumo] Em entrevista sobre seu novo livro de memórias, Fernando Henrique Cardoso analisa o impacto da formação acadêmica em sua carreira política e afirma que Brasil se acomodou diante da pobreza e da desigualdade, que não há avanços sociais sem luta por parte dos excluídos, que as instituições seguem funcionando a despeito de eventuais turbulências e que Bolsonaro não tem o propósito de instalar uma ditadura no país.

Nas páginas iniciais de seu novo livro de memórias, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso dedica algumas linhas à babá que cuidou dele na infância. Alzira era filha de uma ex-escrava de seu bisavô materno, ele conta, e viveu próxima da família por muitos anos como agregada, assim como sua mãe.

“De pequeno, e mesmo já grandote, eu não calçava meias nem sapatos: esticava as pernas e ela os punha”, escreve FHC. “Se perdi esses maus hábitos, eu devo isso à minha mãe e, mais tarde, à minha primeira mulher, Ruth. Se hoje não guardo esses costumes senhoriais, foi pela boa educação que delas recebi.”

Em “Um intelectual na Política”, que chega às livrarias nesta sexta-feira (14), o ex-presidente revisita suas origens familiares e sua formação acadêmica para discutir os efeitos que produziram em sua atuação na política e nos dois mandatos que exerceu como presidente da República, de 1995 a 2002.

Ele cita a empregada da família uma segunda vez perto do fim do volume, em um parágrafo em que também são lembrados o sociólogo Florestan Fernandes, o professor que mais o influenciou na USP, e o deputado Ulysses Guimarães, que liderou o antigo PMDB na oposição à ditadura militar (1964-1985).

“São pessoas que todos conhecem”, diz Fernando Henrique, que completará 90 anos em 18 de junho. “Mas existem aquelas que ninguém conhece que também tiveram muita importância.” Alzira entrou no livro como coadjuvante, mas saiu como símbolo dos que acompanharam à margem a trajetória do seu autor.

Professor de sociologia na USP até ser aposentado pelo regime militar, FHC dedicou seus primeiros estudos acadêmicos à escravidão e às cicatrizes que ela deixou na sociedade brasileira. Exilado e trabalhando na Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), da Organização das Nações Unidas, apontou a integração com as economias mais avançadas como caminho para o desenvolvimento do Brasil e de seus vizinhos.

Nesta entrevista, em que discute os principais temas do novo livro, o ex-presidente afirma que o Brasil não soube aproveitar as chances oferecidas pela globalização tão bem quanto outras nações, como a China, e lamenta que o país tenha se acomodado diante dos elevados índices de pobreza e desigualdade que marcam a sociedade brasileira.

Revendo o seu percurso no livro, é fácil perceber como sua obra acadêmica iluminou o entendimento de alguns problemas do país e orientou sua ação política no passado. De que forma ela ainda pode contribuir para enfrentar os problemas do presente? Nunca perdi meus laços com a academia. Minha formação sempre me obrigou a ter uma certa objetividade, o que me ajudou na política, mas também atrapalhou. Na política, é preciso mergulhar de cabeça. E tenho dificuldade de mergulhar, porque fico pensando nas alternativas e no que está errado.

O mundo mudou, obviamente. Nasci em 1931, em um país que era basicamente rural. Mudei do Rio para São Paulo em 1940. Foi um choque para mim. São Paulo já era uma cidade industrial, mas você olhava em volta e as ruas não tinham calçamento. Uma coisa que eu nunca tinha visto no Rio.

O Brasil tinha crença nesses anos, e o que talvez nos falte hoje é acreditar no futuro. Somos agora um país integrado ao mundo. Temos, portanto, os problemas do mundo, além dos decorrentes do nosso atraso. Não é fácil.
Nossa política reflete um pouco essa dualidade que há no país.

Hoje temos um presidente que não parece sofisticado, mas ele capta um pouco essa vulgaridade. É uma palavra forte, mas é algo que tem peso nas coisas do Brasil. Uma pessoa com a formação intelectual como a que eu tive tem mais dificuldade de se ajustar ao mundo das pessoas.

Nunca fui uma pessoa difícil para se relacionar. Pensam que eu sou metido a besta, mas sou mais simples do que parece. Mas como é que você vai fazer a síntese do Brasil de hoje? Não é fácil.

No livro, o sr. diz que a grande obra da sua geração foi a redemocratização após o regime militar. A ditadura acabou, e o país ganhou uma nova Constituição, mas muita gente acha que esse processo de certa forma ainda não se completou. Concorda? O Brasil não é fácil de entender. Dá impressão de ser uma geleia geral. A sociedade mudou rápido, e agora parece um pouco paralisada, ou sedimentada. Nosso sistema partidário é muito pulverizado. Mas temos liberdade, e a gente só dá valor à liberdade quando ela acaba.

Não dá para imaginar que não se tenha um sistema político que corresponda às aspirações populares. Bem ou mal, na hora da eleição todos votam, mas democracia não é só isso. Tem o sistema judiciário, o Parlamento, a imprensa, os partidos. Embora às vezes haja ímpetos autoritários de um ou de outro, nosso regime não é autoritário. Você tem liberdade, tem recursos, instituições que funcionam.

O desgaste que essas instituições têm sofrido no governo Jair Bolsonaro corrói a confiança que as pessoas depositaram nelas? Pode ser. Na democracia, você tem que estar sempre com o olho na liberdade, nas instituições, naquilo que se organiza, que garante a alternância no poder. Se você não toma cuidado, vira outra coisa. O regime político nunca é dado para sempre. Bem ou mal, conseguimos construir uma base institucional razoável para a democracia. Pode se perder? Pode. Mas está perdida? Não.

O aumento da presença de militares em postos-chave do governo representa um risco? Você tem gente competente nas Forças Armadas, e eles aderiram ao sistema democrático. Isso pode mudar? Pode. Todos nós podemos mudar de uma hora para outra. Mas não acho que exista um risco de militarização.

Tem muito militar no governo porque o presidente, além da origem no Exército, tem pouco contato com o resto da sociedade. Ele conhece esse pessoal, foram seus colegas na escola militar, ele tem mais naturalidade com eles. O risco é acabar perdendo a capacidade de falar com os civis.

Mas não creio que exista no meio militar hoje uma vocação para fechar as instituições. Conheço um ou outro. São
pessoas de cabeça normal, criadas com valores democráticos. Não atribuo ao presidente Bolsonaro o propósito de fazer aqui uma ditadura militar.

Meu pai era general, meu avô era marechal. Os militares, no passado, eram um partido político. Derrubavam governos. Agora não. Eles aceitam o resultado da vontade popular, aceitam a institucionalidade. O que não quer dizer que você não tenha que cuidar o tempo todo.

O sr. revisita mais uma vez seu trabalho sobre a teoria da dependência, em especial o livro escrito com o chileno Enzo Faletto. Acha que a obra foi mal compreendida? Ela foi exageradamente compreendida. O objetivo do trabalho era fazer uma crítica às teses da Cepal sobre o desenvolvimento econômico, chamando atenção para aspectos que não eram tomados em conta, como as instituições, a democracia e as diferenças na estrutura econômica dos países.

Muitos pensavam na época que éramos todos dependentes e continuaríamos sendo, a menos que viesse o socialismo. Nunca foi a nossa visão. Não era automático que passaríamos da dependência para o socialismo. Nem haveria, como não existe hoje, uma independência completa.

Muitos leram nosso livro como se fosse um manifesto terceiro-mundista, mas ele nunca foi isso. Queríamos que os países tivessem o máximo de autonomia que pudessem, mas no contexto da globalização, que ainda não tinha esse nome e estávamos descobrindo.

Acha que o Brasil aproveitou bem as oportunidades oferecidas pelo processo de globalização, ou perdemos esse bonde enquanto outros países aproveitaram melhor as chances que tiveram? A China aproveitou melhor. Entenderam a importância da tecnologia, deram muita atenção à ciência, à educação. No Brasil, as coisas se deram como se os ganhos viessem de barato, mas não era assim. Tinha que fazer mais esforço.

O Brasil está situado em uma região do mundo em que temos um peso grande e por isso ficamos, talvez, confortáveis demais na nossa cadeira. Teria sido melhor se tivéssemos um pouco mais de necessidade de competir, nos termos do futuro.

Nós aqui aceitamos muito a marginalização de pessoas e grupos sociais. Não incluímos essa gente. Então temos ainda uma agenda mais complicada do que a dos países que conseguiram incluir. Os chineses perceberam, com mais rapidez do que outros povos, e se ajeitaram.

Ainda temos aqui problemas que não se justificam, porque a desigualdade de renda no Brasil é muito acentuada. Além do que seria razoável, mesmo para um país capitalista. E acho que tem uma coisa mais grave do que isso, ou tão grave quanto. Nós naturalizamos a pobreza.

Tivemos um grande avanço na educação primária e com a criação do Sistema Único de Saúde, mas precisamos também de empregos para quem tem só esse nível de conhecimento.

Os danos causados pela pandemia serão duradouros? Não acho que o Brasil vá ficar paralisado quando isso terminar. O país levou um susto, claro, todo o mundo leva, mas tem capacidade de recuperação. Teremos momentos difíceis. Todo o mundo está com medo agora. Medo de morrer, principalmente. Mas você não tem trabalho também, e a renda diminuiu.

Depois da pandemia, teremos uma agitação grande. As pessoas vão querer espaço. E precisaremos de governos capazes de entender a realidade, que não fechem os olhos à realidade. O Brasil tem muitas bolhas, mas não dá para governar numa bolha.

Por muito tempo, em especial a partir do seu governo, houve a crença de que reformas e uma maior integração econômica permitiriam reduzir de forma mais expressiva as nossas desigualdades. Por que isso não aconteceu? Não foi só aqui. Muitas vezes os países crescem e você deixa de olhar os que ficaram para trás. Agora, quando é que você olha os que estão para trás? Quando eles reclamam. Quando não havia liberdade, era mais difícil perceber. Quando há liberdade, eles reclamam. É assim no Brasil também.

Em São Paulo, eu morei em uma região próxima de onde estavam as fábricas da família Matarazzo. Na hora do almoço, os operários comiam na calçada, com as marmitas que traziam de casa. Quando passava um engravatado, abriam espaço para o sujeito passar. Hoje, duvido que abrissem espaço.

Porque hoje essas pessoas existem. Quem está por cima não olha para baixo. A não ser que o de baixo machuque o pé de quem está em cima. É chato isso, mas é necessário. Quando o dominado começa a se movimentar é que você percebe. Nada vem de graça na vida, na sociedade.

O sr. dedicou boa parte de sua vida acadêmica ao estudo da escravidão e recorda no novo livro a babá da sua infância, filha de uma ex-escrava de seu bisavô. O que ela representa para o sr. hoje? Na casa do meu pai, Alzira comia na mesa conosco. Isso não era comum na época. Ela era quase branca. Mas o habitual era uma coisa mais discriminatória. Nesse tempo, as famílias tradicionais tinham muitos agregados, e Alzira sentava na nossa mesa. Na minha avó, não.

Então ela simbolizou para mim tanto a escravidão como a necessidade de tomar consciência de que os negros não eram mais escravos. Eles têm liberdade, e você tem que tratá-los como iguais. É fácil falar e dificílimo fazer. Você sentir o outro como igual.

As famílias tradicionais eram assim. Quer dizer, tinha muita empregada, era fácil, era barato. Viviam mal as empregadas. Eu nem percebia, não notava. Isso mudou completamente. Nós aqui nascemos com a ideia de que ter empregada é eterno. Não é. Cada um vai ter que cuidar de si.

Como o sr. vê as formulações teóricas mais recentes sobre a questão racial no Brasil, como o conceito de racismo estrutural? A sociedade está melhorando, está avançando, está reconhecendo o outro, independentemente da posição social. Agora, isso é fácil de falar, mas quando você tem posição de mando, é complicado.

O racismo estrutural existe. Vem da escravidão e está enraizado. Os estrangeiros que vieram para cá, que não conviveram com a nossa escravidão, sentiram isso também. Mas também existe hoje um sentimento de autossuficiência da parte dos negros, a valorização da cor, da religião, do seu modo de viver.

Então acho que as coisas melhoraram, no sentido de que o mundo atual permite mais convivência. Quando não tem convivência, você vê o outro como estrangeiro. Quando você está ao lado, percebe a humanidade da pessoa, se você for minimamente aberto. Acho que isso melhorou no Brasil.

Há espaço para aprofundar políticas afirmativas como as cotas para acesso à universidade pública? Sou favorável às cotas. Acho que foram benéficas, porque levam à convivência e ao respeito ao outro e dão uma certa garantia para aqueles que eram discriminados. Você já vê, mesmo em restaurantes melhores, pessoas negras com mais frequência. Eu acho isso um sinal positivo.

Tem que melhorar mais? Tem. Pode. Mas melhoraram. E isso em parte porque houve luta para que melhorasse. Sem luta, nada acontece. Tem que haver sempre quem reclame. Eu não sou do tipo de reclamar, porque nunca precisei reclamar muito. Mas quem precisa tem de reclamar.

Como tem sido sua rotina na pandemia? Durmo oito horas por dia. Levanto, tomo café, leio jornais, venho para o computador e começo a trabalhar. Paro, almoço, durmo depois um pouquinho. Vejo os amigos que moram perto, ando pelo bairro. Mas é chato. É uma vida pobre, esse semi-isolamento em que somos obrigados a viver.

Eu não tenho medo de morrer, nem de pegar o coronavírus. Tomei a vacina e tomo cuidados, por causa dos outros, mas não fico preocupado com esse negócio. Está chato.

TRECHOS DO LIVRO

Exílio em 1964 “No avião, chorei baixinho; não entendia por que eu. Por que comigo? Estava mais interessado na tese e em ocupar uma cátedra [na USP] do que em apoiar João Goulart ou ‘as esquerdas’.”

Maio de 1968 na França “Os operários haviam sido convidados a entrar [na universidade de Nanterre] e assistiam, com certo pasmo, as discussões nas quais se falava de amor, de solidariedade, da cultura, mas nada sobre salários.”

Teoria da dependência “Critiquei, às vezes duramente, os que acreditavam na inviabilidade do crescimento do capitalismo na região latino-americana e viam, por todo lado, o aumento das populações marginais. Não que estas inexistissem, mas eu julgava que não seriam empecilhos para que alguns países da região se industrializassem.”

Assembleia Nacional Constituinte “As discussões apaixonantes sobre o sistema de governo e mesmo sobre as regras para a formação de partidos passavam longe de algumas das questões sociais, como, por exemplo, as relativas aos preconceitos de cor (supunha-se fossemos uma democracia racial), ou ao desemprego. Mesmo nas econômicas, primava o interesse nacional, camuflando as questões da desigualdade de rendas. Era como se, havendo crescimento da economia e manutenção da democracia, a sociedade e também a política mudariam sem haver necessidade de que essas questões se colocassem.”

Candidatura presidencial em 1994 “Lula estava crescendo e alguém tinha que enfrentá-lo. O PT criticava duramente o Plano Real, a eleição de Lula parecia ser um risco de retrocesso. Foi por isso que aceitei ser candidato. Não era uma aspiração minha, pelo menos consciente. Pode ser que no fundo eu quisesse, não sei.”

Tucanos e petistas “Não é apenas a extrema direita que se perde em sua própria intolerância e negacionismo. Lula e o PT cometeram o erro estratégico de considerar o PSDB como seu principal inimigo. Não éramos, nunca fomos. A principal ameaça à democracia era e é a extrema direita autoritária e regressiva.”

Bolsonaro no poder “Enganam-se os que pensam que ‘o fascismo’ venceu. Enganam-se tanto quanto os que vêm o ‘comunismo’ por todos os lados. Essa polarização não existe mais no mundo real, apenas na mente dos que acreditam nos delírios que propagam.”

Entenda o fim da escravidão no Brasil e as consequências do 13 de maio de 1888

0

Há 133 anos, Lei Áurea oficializou abolição, mas não criou mecanismos de inserção dos ex-escravos na sociedade; movimento negro critica a data

Tayguara Ribeiro, Folha de São Paulo, 13/05/2021.

Em 13 de maio de 1888, há 133 anos, o Brasil oficializava o fim da escravidão no país, com a assinatura da Lei Áurea. A data, entretanto, não é celebrada pelo movimento negro. Um dos motivos alegados é que, apesar da lei, a situação dos que se tornaram ex-escravos quase nada mudou à época.

O governo brasileiro, seja o então Império, seja a República proclamada no ano seguinte, não realizou projetos de inserção dos ex-escravos na sociedade, tampouco indenizou-os após gerações permanecerem escravizadas por mais de 300 anos.

As mazelas desse período apresentam reflexos em desigualdades sociais que ocorrem até os dias de hoje, outro dos motivos pelos quais o movimento negro não celebra a data. O processo também é chamado de “abolição não concluída”.
O tráfico de negros para o país começou no século 16. Estima-se que mais de 12 milhões de africanos cruzaram o Atlântico, trazidos à força, e desembarcaram em terras do continente americano durante o período. A maior parte deles, mais de 5 milhões, foram trazidos para o Brasil.

Confira alguns aspectos do processo de abolição da escravatura brasileira.

Como foi a escravidão no Brasil? Milhões de pessoas foram escravizadas no Brasil pelos portugueses após a chegada dos europeus, em 1500.

Em um primeiro momento, os índios —nativos do território— eram usados como mão de obra para o trabalho forçado. Depois de algumas décadas, os negros começaram a ser trazidos à força para o país, vindos da África.

Entre as principais atividades que utilizavam pessoas escravizadas estavam o cultivo da cana-de-açúcar e a mineração. Além de trabalhos forçados, os africanos e seus descendentes eram comercializados e recebiam punições físicas.

Quanto tempo durou a escravidão no Brasil? Mais de três séculos. O tráfico de negros ao Brasil começou nas primeiras décadas do século 16 e a escravidão terminou somente em 1888, com a assinatura da Lei Áurea.

Os escravos eram trazidos nos porões de navios, em condições sub-humanas e com alimentação e higiene precárias. Milhares de pessoas morreram durante as viagens.

Segundo Kleber Amâncio, professor de história da UFRB (Universidade Federal do Recôncavo da Bahia), a maioria das pessoas escravizadas chegaram ao Brasil no século 19, inclusive, no momento em que o tráfico de escravos já estava proibido.

Quantas pessoas foram trazidas da África para o Brasil à força? O Brasil recebeu a maior parte dos cerca de 12 milhões de africanos trazidos à força para as Américas. O país abrigou também o maior porto de receptação de escravos da história, no Rio de Janeiro. Ao todo, mais 5 milhões de pessoas foram traficadas da África para o Brasil, ao longo do período, sendo que mais de 600 mil morreram durante a viagem.

Quando foi oficializado pelo governo brasileiro o fim da escravidão? Em 13 de maio de 1888, a princesa Isabel, filha do imperador dom Pedro 2º, assinou a Lei Áurea, que marcou o fim da escravidão no país.

Como foi o processo de abolição? A abolição está longe de ter sido uma consequência da benevolência da monarquia que governava o Brasil à época.

O fim da escravidão foi resultado de um processo complexo e longo que envolveu diversos fatores, como o crescimento das adesões ao movimento abolicionista, pressões políticas externas e as revoltas e fugas organizadas pela população negra.

Em 1850, o tráfico de escravos foi proibido. Apesar disso, a escravidão prosseguiu. Alguns anos depois, foi decretada a liberdade das crianças negras nascidas no Brasil, embora seus pais continuassem a ser escravos, em sua maioria.

Pouco depois, foi implantada a liberdade para os escravos sexagenários, embora a expectativa de vida de uma pessoa negra que exercia trabalho forçado fosse muito menor do que 60 anos.

Além disso, o Brasil foi pressionado pela Inglaterra, que desejava expandir o mercado consumidor de seus produtos. Esse foi um dos fatores que impulsionou o debate sobre o fim do trabalho escravo na primeira metade do século 19.

Pressionados pela expectativa de um fim total da escravidão, agricultores de várias províncias começaram a buscar alternativas, e a fuga de pessoas negras se intensificou.

Como foi a luta pela abolição? Entre as formas de resistência, estavam debates, manifestações artísticas, revoltas e fugas de escravos.

Ao longo de séculos de escravidão, ocorreram diversos momentos de luta protagonizados pelos negros como a Revolta dos Malês, a Rebelião de Santana e a Revolta de Carrancas.

Os negros também organizaram quilombos, locais nos quais os escravos fugidos recebiam abrigo e que serviam como simbolo de resistência, sendo o mais famoso deles o Quilombo dos Palmares, liderado por Zumbi (1655-1695).

Em 1884, quatro anos antes do governo brasileiro, a província do Ceará decretou o fim da escravidão, impulsionada por movimentos locais.

A mobilização seguiu mesmo após a libertação oficial. A luta passou a ser pela implantação de políticas de inserção, distribuição de terras para os ex-escravos e indenizações. Entretanto, nenhuma dessas medidas foi
implementada pelos governos brasileiros.

QUEM ERAM ALGUNS DOS PRINCIPAIS ABOLICIONISTAS?
Luiz Gama
Ex-escravo, virou advogado e ativista. Entrou com processos para conseguir a libertação de escravos na Justiça. A estimativa é que ele tenha conseguido libertar centenas de pessoas.

André Rebouças
Engenheiro, nascido em uma família negra livre. A partir da década de 1870, ele intensificou sua participação nas manifestações pelo fim da escravidão, se tornando um dos principais articuladores do movimento abolicionista. Ele defendia o fim da escravidão, acesso à terra e integração à sociedade.

Francisco José do Nascimento, o Dragão do Mar
Participou do movimento abolicionista no Ceará. Na década de 1880, ele liderou uma greve entre os jangadeiros que levavam os negros escravizados para navios que os transportavam a outras províncias.

Maria Firmina dos Reis
Maranhense, negra e livre, ela se tornou professora e publicou no ano de 1859 o romance “Úrsula”, que tratava de questões ligadas à abolição. Maria Firmina também publicava poemas e textos contrários à escravidão na imprensa do Nordeste.

A Lei Áurea foi a única lei relacionada ao fim da escravidão? O Brasil teve algumas leis antes de oficializar o fim da escravidão, entre as mais famosas estão a Lei do Ventre Livre e a Lei dos Sexagenários.

Em 1850, a Lei Eusébio de Queirós proibiu o tráfico de escravos no país e está relacionada às pressões britânicas sobre o governo brasileiro para o fim da escravidão.

Em 1871, foi decretada a Lei do Ventre Livre, que dava liberdade a todos os negros nascidos no país a partir daquela data. Embora na prática não funcionasse muito bem, já que os pais das crianças seguiam escravizados, a lei é considerada um dos primeiros passos concretos para a oficialização do fim da escravidão no Brasil.

Em 1885, foi instituída a Lei dos Sexagenários, que concedia liberdade aos escravos com mais de 60 anos de idade. Finalmente, no dia 13 de maio de 1888, a princesa Isabel, que substituía seu pai, d. Pedro 2º, no governo, assinou a Lei Áurea.

O Brasil demorou para abolir a escravidão? O Brasil foi o último país independente das Américas a abolir completamente a escravatura.

Por que os negros não comemoram o 13 de maio? Embora a data marque oficialmente o fim da escravidão no Brasil, ela não é celebrada pelo movimento negro. Um dos motivos alegados é o tratamento dispensado aos ex-escravos.

É criticada a falta de políticas públicas para que a população negra fosse inserida na sociedade brasileira. Após mais de três séculos como escravos, essa população não recebeu nenhum tipo de indenização ou ajuda.
Historiadores apontam este como uma das origens para problemas sociais enfrentados até hoje, como a profunda desigualdade social no Brasil.

Qual a diferença entre as datas de 20 de novembro e 13 de maio? O dia 13 de maio está associado à assinatura da Lei Áurea pela princesa Isabel. O episódio costuma ser retratado como um ato de generosidade da elite branca da época, o que ofuscaria o papel dos próprios negros no processo de conquista da liberdade.

Por isso, o dia 20 de novembro, que faz referência à morte do líder negro Zumbi dos Palmares, foi escolhido como o Dia da Consciência Negra para simbolizar a resistência dos próprios negros contra a escravidão, com a formação de quilombos, por exemplo.

Ascensão chinesa

0

Nos últimos anos percebemos grandes alterações geopolíticas internacionais, levando países coadjuvantes ao protagonismo, alterando as bases da sociedade global, mudando a estrutura de poder político e o arranjo produtivo. A globalização reestruturou as nações, alguns países estão perdendo espaço e outras nações estão ganhando força, gerando preocupações, medos e constrangimentos.

Dentre as economias que vem ganhando espaço na sociedade global, destacamos a China. De um país intermediário no cenário global, os chineses se tornaram, em curto prazo, um dos grandes jogadores internacionais. A transformação começou no final dos anos 70 com a adoção de um modelo de abertura econômica, atraindo investimentos estrangeiros em parcerias com grupos locais, onde os estrangeiros se comprometeram a transferir tecnologia em troca de um mercado consumidor de mais de 1 bilhão de pessoas. Destas parcerias, pensadas e construídas pelo governo, a China começou a se transformar no grande competidor internacional. Inicialmente nos mercados industriais de baixo valor agregado e, posteriormente, nos produtos de alta tecnologia, ganhando espaço, escala e produtividade, inundando mercados e tornando-se o maior exportador da economia global, desbancando países com tradição exportadora, como a Alemanha e os Estados Unidos.

A ascensão chinesa deve ser compreendida como a construção de um modelo que comunga forte intervenção estatal, políticas pragmáticas em comércio internacional, câmbio desvalorizado, fortíssimos investimentos em ciência e tecnologia, fortalecimentos das empresas estatais, enfoque no cenário global e a busca crescente de incremento de produtividade. Todas estas políticas foram somadas aos fartos empréstimos concedidos por instituições governamentais, com condições favoráveis, taxas de juros reduzidas e pagamentos no longo prazo.

Quarenta anos atrás a China não possuía nenhum conglomerado econômico e financeiro internacionais, atualmente os chineses contam com mais de noventa grandes conglomerados produtivos. Empresas inexpressíveis anteriormente se tornaram grandes grupos econômicos, nomes como Alibaba, Tencent, Baidu, Lenovo, Chery, Huawei, Sinopec, Xiaomi, ICBC, PetroChina, dentre outras. Muitas destas empresas o público brasileiro nunca ouviu falar, são grandes conglomerados econômicos e financeiros dotados de força política e grande capacidade produtiva, que contribuíram para que a China se tornasse o maior setor industrial mundial, com capacidade produtiva de mais de 4 trilhões de dólares. A China não é mais um país exportador de quinquilharias e produtos de baixo valor agregado, neste momento percebemos que os chineses são grandes atores econômicos e que buscam a liderança na economia internacional.

O crescimento econômico da China está transformando a geopolítica internacional, gerando medos e preocupações de países que estão amedrontados com o crescimento chinês. A ascensão chinesa está criando novas oportunidades para países como o Brasil, dono de grandes estoques de produtos primários e commodities, produtos necessários para garantir a segurança alimentar do parceiro asiático. Neste momento, cabe ao Brasil construir uma estratégia para garantir espaços privilegiados de comércio com o gigante chinês, exigindo transferência de tecnologia e fortes investimentos internos no desenvolvimento científico e tecnológico. Cabe a sociedade o fortalecimento de setores estratégicos, estimulando políticas industriais, exigindo contrapartidas viáveis e imediatas e a consolidação de instituições políticas.

Nos anos 80 os chineses vieram conhecer o modelo econômico que garantiu grande crescimento econômico para o Brasil no pós-guerra, desde então os chineses adotaram políticas parecidas com o modelo brasileiro, colhendo crescimento e espaços na geopolítica internacional. Neste ínterim o Brasil se perdeu na ortodoxia, esquecendo da produção e dos setores industriais, abrindo espaço para o crescimento das finanças especulativas, garantindo grandes lucros para os rentistas e nos transformando num paraíso dos juros altos e um inferno para os empreendedores e dos vocacionados para o desenvolvimento econômico.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno de Economia, 12/05/2021.

O Estado tem um papel na inovação? Por Ronaldo Lemos

0

Faz sentido o Brasil abrir mão de fabricar chips quando esse mercado está aquecido?

Ronaldo Lemos, Folha de São Paulo, 10/05/2021.

Uma das crises mais impressionantes dos tempos atuais é a escassez de microchips para a fabricação de equipamentos eletrônicos, computadores, celulares e mais. Essa crise deriva principalmente da batalha entre Estados Unidos e China em torno do avanço tecnológico.

No ano passado, os EUA baniram a Huawei e outras empresas chinesas de terem acesso a qualquer chip fabricado com equipamento ou propriedade intelectual americana.

O resultado dessa política foi um frenesi por parte das empresas chinesas adquirindo e estocando chips agressivamente, enquanto ganham tempo para desenvolver seu próprio parque industrial capaz de fabricar de forma autônoma esses componentes.

Essa briga tem tido desdobramentos inusitados. Por exemplo, o governo de Boris Johnson decidiu há poucos dias interromper a aquisição da gigantesca empresa de chips inglesa Arm pela americana Nvidia.

A história da Arm é incrível.

A empresa surgiu na cidade de Cambridge puxada por um esforço da BBC de promover educação digital nos anos 80. Esse esforço não só formou um contingente enorme de pessoas capazes de trabalhar com tecnologia, como criou um computador doméstico estatal de enorme sucesso na época, o BBC Micro, com chips fabricados pela empresa.

Esse primeiro esforço levou a inovações maiores. Na sequência a Arm desenhou o revolucionário chip Risc. A arquitetura desse chip está hoje presente nos componentes de praticamente todos os smartphones. Vale dizer que foi desenhada por Sophie Wilson, cientista da computação transgênero —pouco lembrada— que literalmente criou as bases para o mundo contemporâneo.

A Arm é hoje a joia da coroa do mundo dos chips. Isso porque especializou-se em desenhar chips, que são então fabricados por empresas no mundo todo. O governo de Boris Johnson —eminentemente liberal— não só impediu a aquisição pela Nvidia como está considerando uma possível aquisição estatal da empresa, isto é, reestatizá-la.

Esse movimento da Inglaterra, que simboliza estados nacionais entrando pesado em investimentos em inovação, virou tendência. A China já vinha colhendo sucesso atrás de sucesso derivado dos seus planos nacionais de desenvolvimento tecnológico, visíveis no Tik Tok ou no Clubhouse.

Os EUA agora entraram pesado no mesmo jogo. O plano do presidente Joe Biden vai na mesma linha, prevendo investimentos estatais massivos em tecnologia e inovação. É como se além dos esforços do GovTech (do uso da tecnologia por governos) o mundo esteja caminhando para um TechGov, a promoção massiva de tecnologias por governos, como aconteceu nos anos 1980.

Já no Brasil a notícia é em sentido diametralmente oposto. O governo federal decidiu simplesmente liquidar a Cietec, estatal que é a única empresa de chips do país e de toda a América Latina.

Faz sentido o Brasil abrir mão totalmente de fabricar chips quando esse mercado está enormemente aquecido? Faz sentido abrirmos mão do know-how e da logística desenvolvida pela Cietec? Faz sentido abdicarmos de uma planta fabril capaz de ser embrião para saltos maiores, como outras empresas como a Arm fizeram no passado?

Espero realmente que essas perguntas tenham sido feitas antes de se decidir pela liquidação da única empresa de chips do país.

Um país de covardes, por Lygia Jobim.

0

O que nos faz aceitar passivamente sermos a chacota do mundo e o gozo de um psicopata?

Lygia Jobim – Carta Maior – 09/05/2021

A julgar pelo que aconteceu no dia 06 de maio no Jacarezinho, quando uma operação da Polícia Civil, realizada apenas 12 horas após Jair Bolsonaro ter se encontrado com Cláudio Castro, governador do Rio de Janeiro e digno sucessor de Wilson Witzel, aquele que queria atirar na cabecinha, covardes não nos faltam, pois somos cada um de nós.

A operação deixou vinte e nove mortos, vários feridos e inúmeras crianças com traumas psicológicos que as acompanharão pelo resto da vida. O Governador defendeu a ação da polícia ao dizer que foi apenas um “fiel cumprimento de mandados”. Aqui temos a primeira dúvida: o determinado nos mandados era a execução sumária de pessoas que já não tinham capacidade de reação?

Segundo a Secretaria de Polícia do Rio de Janeiro a Justiça expediu 21 mandados de prisão de pessoas acusadas de tráfico de drogas. Dos nomes que ali constavam, sempre segundo essa Secretaria, apenas três foram presos e três foram mortos. Ora, se o número de mortos, excluindo-se o policial, foi 28, como explicar as outras 25 vítimas fatais? Cabe à Polícia Civil e ao Governador do Estado nos dizer o que ocorreu. Não queremos ficar na dúvida entre uma ação desastrosa por falta de preparo, ou uma ação bem sucedida de milicianos, seguindo ordens que numa cadeia de comando, tem origem no morador da Casa de Vidro.

O General Braga Netto, que em 2018 comandou a intervenção no Rio de Janeiro, conhece na intimidade, e melhor do que ninguém, o esquema das milícias e suas ligações com a Primeira Família. Nós sabemos apenas o que é de domínio público – as condecorações a milicianos presos, a vizinhança promíscua, os elogios públicos, os empregos à custa dos cofres públicos e os depósitos em conta de familiares. Bolsonaro também sabe o que ele sabe. Talvez por isso o mantenha por perto, mesmo quando, desobediente, vai tomar vacina escondido. Mas o General fica bem perto, mesmo vendo que, o que ele sabe cada vez é mais despudoramente exibido pelo Comandante Supremo das Forças Armadas ao adotar um linguajar miliciano e falar por exemplo em CPFs cancelados.

O General Mourão, ao saber do resultado da operação, antes de terem sido revelados os nomes das vítimas declarou que eram todos bandidos. Não, General. Isso é uma inverdade. Dos 21 nomes que deveriam ter sido presos – e não mortos -, segundo o El País, 15 ainda não foram identificados e devem ter fugido. Aqui me vem mais uma dúvida. General, o senhor errou apenas por preconceito ou por lhe ser, ao que parece, difícil identificar quem é bandido?

Cada dia se faz mais necessário afastar do poder, pela via constitucional, a erva daninha que nele se instalou e que vem se alastrando, lentamente, por alguns setores do país. A omissão de Rodrigo Maia e Artur Lira em aplicar o remédio previsto em lei é também responsável não só pela Chacina do Jacarezinho como pelas 420.000 mortes causadas, até esta data, pelo Coronavírus-Covid19.

Que medo é esse que nos transformou em poltrões? De onde saiu essa paralisia que nos faz cair mortos como moscas e não fazermos nada para fugir da triste situação de vítimas de um genocida. O que nos faz aceitar que a maioria da população se desloque para o trabalho espremida em latas de sardinha, às quais nos habituamos a chamar de ônibus, respirando o vírus que mata cada vez mais? O que nos faz aceitar trabalharmos confortavelmente em home office enquanto nos queixamos de sermos interrompidos pelas nossas crianças ou por afazeres domésticos? O que nos faz aceitar passivamente sermos a chacota do mundo e o gozo de um psicopata?

Responsáveis e covardes também somos nós que não os pressionamos, ordeira e pacificamente, nas ruas e nos contentamos em emitir notas de protesto e falar bonito para quem pensa igual. Temos que romper o medo de nos infectarmos e, com as precauções sanitárias que se fazem necessárias neste momento, ocuparmos as ruas com nossa indignação, como fazem nossos irmãos latino-americanos.

Plano Biden

0

Nos últimos dias a comunidade acadêmica, a mídia e os formadores de opinião estão se debatendo sobre a política apresentada pelo novo presidente dos Estados Unidos, o democrata Joe Biden, suas limitações, seus desafios e seus impactos sobre os norte-americanos e para toda sociedade internacional, gerando questionamentos e reflexões sobre economia. Os bastidores dos grandes templos da economia mundial mostram a construção de um novo consenso, deixando de lado as ideias da ortodoxia e da austeridade para momentos de maior intervenção nos Estados Nacionais.

O Plano Biden está sendo comparado com as políticas intervencionistas nos anos 30, quando a Crise de 1929 alterou toda a dinâmica do sistema econômico, exigindo um novo consenso econômico, diante disso, surgiu um Estado mais interventor, com políticas mais ativas, com maior crédito e maiores investimentos em infraestrutura que auxiliou a recuperação da economia norte-americana, com impactos internacionais.

A política desenhada pelo presidente preconiza a criação de empregos para a classe média e trabalhadores com menor qualificação, apoiar as pequenas empresas, ampliação da educação pública, melhorar o acesso à saúde, prolongar o seguro desemprego, aumentar a vacinação, além de consertar rodovias, reconstruir pontes, atualizar portos, revitalizar o setor industrial com o intuito de superar a concorrência chinesa, criar empregos bem remunerados e treinar os trabalhadores para os empregos do futuro. O plano é bastante ambicioso, os gastos são estimados em mais de 4 trilhões de dólares.

A nova política econômica norte-americana está reformulando o pensamento econômico, com impactos para todas as regiões, retomando as atuações do Estado Nacional e estimulando os investimentos produtivos que tendem a alavancar a economia e atuar como um verdadeiro motor para a economia internacional. A perda de espaço dos Estados Unidos motiva esta política que, nos últimos anos foi vitimado por três fenômenos que enfraqueceram a economia: a crise de 2008, a pandemia e a ascensão da China.

Os recursos para os investimentos nos moldes do Plano Biden sairão do aumento da tributação de grandes empresas, algo em torno de 2,3 trilhões de dólares, que, no governo anterior, estes conglomerados foram agraciados com redução de impostos, ou seja, o governo Biden está apenas retomando às alíquotas de impostos adotadas anteriormente.

A reestruturação do sistema tributário é fundamental para garantir recursos para os serviços públicos, garantindo valores para os investimentos produtivos, reduzindo as desigualdades tributárias, estimulando emprego e crescimento da renda e do consumo, garantindo melhores condições de vida e perspectivas mais saudáveis para a coletividade. A sociedade internacional já se conscientizou de onde sairá os recursos para as políticas públicas que a sociedade demanda, infelizmente aqui, as políticas estão sempre em ritmo lento e seguindo por caminhos equivocados, incrementando a ortodoxia, reduzindo investimentos públicos, diminuindo repasses para a educação e limitando as pesquisas.

Internamente, estamos seguindo caminhos diferentes como os dos países desenvolvidos, reduzindo os auxílios emergenciais e limitando nossas potencialidades. No mundo desenvolvido, norte-americanos, sul-coreanos, japoneses e chineses, se digladiam na guerra da indústria de semicondutores, investindo trilhões em pesquisas e novas tecnologias, aqui, no Brasil, estamos liquidando a única empresa estatal de semicondutores e nos contentando com o papel de coadjuvante e importadores de tecnologias.

No mundo desenvolvido, a pandemia está alterando a agenda econômica, aumentando os tributos de grandes conglomerados econômicos e financeiros. Na sociedade brasileira deveríamos deixar de lado velhas ideias e pensamentos atrasados e perceber que o mundo está caminhando em outras direções, a contemporaneidade exige novos consensos, deixando de cultivar o atraso, a intolerância e a desigualdade.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 05/05/2021.

Outra Década Perdida

0

Vivemos uma das maiores crises na sociedade brasileira, ao mesmo tempo, estamos no centro de várias crises sanitária, política, econômica e social. Diante deste momento de desagregação, exigimos políticas concatenadas e orquestradas entre todos os agentes econômicos e políticos, sem esta, dificilmente conseguiremos superar o maior desafio de nossa geração. O enfrentamento da situação exige maturidade da sociedade e, com isso, buscarmos compreender o que queremos para o futuro e, ao responder esta indagação, construiremos os consensos necessários para uma sociedade melhor e mais capacitada para este mundo de instabilidades e incertezas.

Sem a atuação do Estado dificilmente superaremos este momento de desagregação, necessitamos de políticas inclusivas, investimentos em ciência e tecnologia, obras públicas e combate às desigualdades, deixando de lado os interesses mesquinhos e imediatistas que se enriquecem em detrimento da maioria da sociedade. Estamos no momento de construirmos novos consensos, deixando ideias retrógradas e ultrapassadas, fortalecendo os serviços públicos e estimulando o retorno dos investimentos do Estado, tributando setores que sobrevivem com isenções elevadas e canalizando estes recursos na reativação das demandas e os consumos, sem estas medidas o país caminha para mais uma década perdida.

A adoção destas medidas de incentivo econômico, estímulo direto a demanda agregada, investimentos produtivos, incremento de recursos para a pesquisa, enfatizando saúde e educação, todas estas medidas devem criar um ambiente mais saudável para a atração dos investimentos e a reconstrução da confiança dos agentes, com impactos diretos sobre o sistema econômico. Se o governo adotar políticas de estímulo, como os países desenvolvidos estão adotando, no começo de 2022 a economia conseguirá dar sinais de crescimento consistente, mas ao observar a composição da equipe econômica, estas medidas de estímulo estão longe de ser prioridades.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre e Doutor em Sociologia (Unesp/Araraquara), professor da Unirp, coordenador do curso de Gestão Pública, modalidade EaD/Unirp e das Faculdades de Tecnologia de Catanduva e Rio Preto.

Bobagens de Guedes sobre saúde e pobres, por Vinícius Torres.

0

Ministro nada sabe sobre política pública e vive de fantasia caricata reacionária

Folha de São Paulo, 01;05/2021

“Pobre? Está doente? Dá um voucher para ele. Quer ir no Einstein? Vai no Einstein. Quer ir no SUS, pode usar seu voucher onde quiser”, disse Paulo Guedes em seu mais recente surto de ignorância e horror a pobre.

Estritamente falando, um voucher é um vale, como um vale-refeição. No desvario de Guedes, “um pobre” receberia um vale-saúde para se tratar onde quisesse, no SUS ou no Einstein, um dos grandes e excelentes hospitais privados de São Paulo. Nem Guedes deve acreditar estritamente nessa idiotice. Mas argumente-se por absurdo e a favor do ministro.

O setor público gasta por ano 3,9% do PIB de saúde (na média trienal até 2017, do IBGE, ou até 2018, da OMS).
Equivale a uns R$ 1.380 por pessoa, R$ 115 por mês. Dá para pagar um plano de saúde dos mais baratos, sem contar coparticipação, com serviço inferior ao do SUS. Daria um pouco mais por pessoa caso o dinheiro todo fosse reservado para quem ora não tem plano de saúde (71,5% da população, segundo o IBGE).

O vale-plano-de-saúde não daria para escolher o Einstein, ocioso ressaltar, nem o SUS. Não haveria mais SUS. O dinheiro da saúde pública teria sido confiscado pelo vale-guedes. Não haveria mais serviço público de vacina, de emergência (ambulância, PS), remédio, exame, nada. Se o seu plano baratinho não cobrisse certos tratamentos ou se você se arrebentasse em um local descoberto (quase todos), que você pagasse ou morresse.

Obviamente esse argumento é louco, simplificação da mais grosseira. Serve apenas para sugerir que a coisa não funciona assim, aqui ou alhures.

O gasto em saúde no Brasil já é majoritariamente privado (famílias, empresas, filantropia): 58% do total. Não é assim na Argentina (38%) ou no México (48,7%), menos ainda é o caso de França (27%), Reino Unido (21%) ou Alemanha (22%) e nem mesmo o do Chile (49,7%) e o dos EUA (49,6%). Na mão de um Guedes da vida (ou da morte) iremos na direção dos EUA, que tem um dos gastos em saúde mais ineficientes da OCDE (clube de três dúzias de países ricos).

Mas, afora para ricos, e olhe lá, o SUS é o recurso de primeira ou última instância, que banca tratamentos que muito plano não cobre, por falta de dinheiro ou competência. O SUS é uma rara preciosidade nacional, com problemas de administração, sim, mas não é conversa para o bico de Guedes.

A discussão não cabe em poucas colunas de jornal. A comparação entre sistemas nacionais de saúde, muito diversos, é complexa. Existem vários esquemas de financiamento público, com serviços quase todos prestados pelo setor privado, mas inteiramente pagos e vigiados pelo governo (Canadá), ou como o SUS original, estatal, do Reino Unido. Em geral, voucher, no sentido estrito, é alternativa parcial onde o sistema de saúde é tão precário que se dá um vale aos muito pobres de país muito pobre, na África ou na América Central.

O problema aqui é Guedes e seu mundo de caricaturas reacionárias. Não trata de assuntos de modo técnico: adora dar aulas magnas genéricas baseadas em suas fantasias liberalóides apodrecidas. Não propõe políticas públicas específicas e fundamentadas, com planos e apoio político para implementá-las.

Vive de tiradas, truques com os quais pensa engambelar o Congresso e mentiras lunáticas (trilhão de privatização, 44 milhões de testes de Covid, déficit público zero em um ano etc.). Adora velhos mitos extremistas da direita americana e tem saudade do Chile de Pinochet.

Essa barbaridade guedista, variação pedante do bolsonarismo dá mais pano para a manga. Vamos voltar a tratar disso.