Heranças coloniais e inserção econômica internacional

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Um dos grandes desafios para a economia de um país gigantesco como o Brasil, é como se inserir na economia internacional, numa sociedade que passa por grandes e rápidas transformações, se posicionar no novo modelo econômico e produtivo global é um imenso desafio, sem esta inserção o país estará condenado a uma mediocridade perpétua, relegando sua autonomia e soberania para outros países e outras nações, perdendo uma grande oportunidade de levar o país a alçar altos voos e melhorar as condições de vida da população.

Se olharmos para a história econômica brasileira, perceberemos que o país já se inseriu na lógica global em alguns momentos de sua trajetória, principalmente quando ainda era uma colônia de Portugal e nos caracterizávamos como uma economia agroexportadora, baseada em produtos primários de baixo valor agregado, voltado ao mercado externo e marcada por ciclos de monoculturas que se alteravam com constância, sem uma maior profissionalização e marcado por um grande amadorismo na gestão.

Como destacou o economista Celso Furtado no monumental Formação Econômica do Brasil, nossa nação durante muitos séculos foi descrita como uma economia baseada em ciclos econômicos que se alternavam, inicialmente com o pau-brasil, depois a cana de açúcar, os metais preciosos e o ciclo cafeeiro, todos estes ciclos contribuíram para que a metrópole extraísse uma ampla gama de recursos da colônia, mantendo esta última empobrecida e não melhorando de forma estrutural a riqueza de Portugal, estes recursos serviram apenas para satisfazer os luxos e os confortos de uma elite degradada.

Nestes ciclos encontramos uma estrutura centrada na extração e posterior embarque de produtos para a metrópole, com isso, as mercadorias daqui extraídas não colaboraram para melhorar as condições sociais da população, eram riquezas que foram transportadas para Portugal e este se utilizou dos recursos advindos desta venda para a aquisição de produtos e mercadorias industrializadas da Inglaterra, sem visão estratégia os portugueses perderam a oportunidade de construir uma estrutura produtiva moderna e dinâmica.

O Brasil estava inserido no comércio global, os portugueses carregavam seus navios com mercadorias advindas do Oriente Médio, principalmente temperos, frutos do mar, tecidos, lãs, dentre outros. Estes produtos eram trocados com as colônias portuguesas da África por escravos e levados ao Brasil, onde estes últimos eram deixados e os navios eram novamente carregados com produtos extraídos da colônia, principalmente cana de açúcar, pau-brasil e metais preciosos, o Brasil desde seu nascimento estava inserido no comércio internacional como uma colônia produtora de produtos primários e de baixo valor agregado.

Neste período de grande exploração, os portugueses não conseguiram introduzir um novo modelo econômico e produtivo, embora tenham extraído grandes fortunas e imensas riquezas do “comércio” com o Brasil, uma pequena parte destes recursos foi diretamente investido na economia portuguesa, como o país não tinha as perspectivas imediatas de desenvolver sua indústria ou outros setores estratégicos, continuou sua dependência de outros países na região, principalmente sua ampla dependência dos ingleses, na época a maior economia do mundo e dona da hegemonia no comércio internacional, país com inúmeras colônias, grande capacidade de empreender e ótima localização geográfica

A colonização brasileira teve início com a descoberta do país, em 1500, e terminou com a independência, fato este ocorrido em 1822, nestes mais de trezentos anos, a economia do país esteve sempre atrelada a uma economia mais estruturada, depois da colonização nossa dependência econômica passou para a Inglaterra, na época a grande pioneira da Revolução Industrial, momento central da história da humanidade que trouxe um salto tecnológico e produtivo em escala internacional e contribuiu para o crescimento da migração das pessoas do campo para as cidades e para um incremento de produtividade.

A colonização brasileira foi descrita como uma colonização de exploração, o que nos diferenciou da colonização dos Estados Unidos, cuja modelo foi chamada de povoamento, enquanto as riquezas da colônia portuguesas eram nítidas e bastante evidentes, na colônia inglesa, as montanhas e os territórios inóspitos, contribuíram para que os Estados Unidos fossem pouco explorados pelos descobridores, algo diferente aconteceu com o Brasil, que desde seus primórdios se caracterizou como uma economia explorada e muito mal gerida pela metrópole, com heranças negativas que se perpetuaram no tempo e ainda hoje podem ser vistas como características intrínsecas ao país.

Os portugueses legaram ao Brasil, um modelo muito burocratizado e marcado por traços fortes de intervencionismo e corrupção, as decisões deviam ser sempre tomadas e autorizadas pelo imperador, o que fazia com que tais decisões demorassem muitos meses, obrigando os investimentos e os empreendimentos a se perpetuarem durante muitos anos. Nos Estados Unidos encontramos uma situação bastante diferente, com um modelo mais descentralizado e dinâmico, as decisões eram sempre mais rápidas e dinâmicas, marcadas por um espírito mais acelerado, empreendedor e bastante flexível.

A base da economia colonial estava assentava na mão de obra escrava, com isso, o Brasil vai ficar muito distante da introdução de um mercado consumidor de massas, com grande parte do trabalho centrada na escravidão, o sistema capitalista nacional apresentava severas limitações, sem emprego e renda o sistema ficava inviabilizado na sua essência.

A escravidão também foi central para a construção de uma sociedade excludente, como uma grande parcela desta sociedade estava ausente desta estrutura de emprego, salário, renda e consumo, construímos um modelo onde a renda e a riqueza se concentrou na mão de poucos e a pobreza era uma característica geral e marcante, esta herança se mantem até os dias atuais fazendo do Brasil um dos países mais desiguais do mundo.

Dos quatro grandes ciclos econômicos vividos pelo país no período da colonização, o que mais contribuiu para o crescimento do país foi o ciclo do café, iniciado na metade do século XVIII, este ciclo teve seu maior progresso no século XIX, quando impulsionou a economia do país e contribuiu para que o processo de desenvolvimento adentrasse ao interior do país, inicialmente na região do norte fluminense, região de Campos dos Goytacazes e Vassoura e, posteriormente, na região do noroeste paulista, principalmente no entorno de Bauru, onde se desenvolveu imensamente, contribuindo para o crescimento do país e o fortalecimento do capitalismo nacional, além de impulsionar o crescimento das ferrovias que transformaram a região e abriram caminho para um forte ciclo de crescimento e desenvolvimento da região.

No século XIX, o país visualiza um embate na cultura cafeeira, que denota claramente como era a estrutura produtiva do país, de um lado o Brasil arcaico, escravista, marcado por baixa produtividade e com apoio político como instrumento de controle das varáveis econômicas e, de outro, um Brasil mais moderno, a favor de trabalhadores livres e adepto de investimentos variados para diversificar a produção e diminuir a dependência dos produtos primários de baixo valor agregado, neste embate  o Brasil moderno se sai melhor mas, quando toma o poder, percebe-se que o chamado de moderno não é tão moderno assim, com o poder nas mãos passa a adotar políticas tradicionais e conservadoras, mantendo o poder político para extrair do Estado Nacional as mais variadas benesses.

Ao analisarmos a sociedade brasileira percebemos que esta é uma das grandes características do Brasil, o moderno se une ao arcaico e constroem juntos um novo modelo de gestão, não existe uma ruptura com a sociedade tradicional e a construção de uma nova organização social, com isto estamos sempre presos a interesses e teorias antigas e ultrapassadas, enquanto o mundo avança o país se ressente de mais modernidade, uma modernidade verdadeira e dinâmica, mas o que vemos é uma modernidade conservadora.

Os ciclos anteriores foram pródigos em extrair grandes somas de riquezas do país e levá-las para o exterior, alimentando uma casta portuguesa cheia de interesses imediatistas, muito dinheiro, muita riqueza e nenhum projeto de desenvolvimento, o resultado desta política foi um incremento na importações de produtos ingleses que, com estes recursos, angariaram grandes somas de recursos para financiar o seu desenvolvimento industrial, se tornando o berço da civilização industrial e a economia dominante do mundo até o começo do século XX.

A ausência de uma estratégia de desenvolvimento para Portugal foi transplantada para o Brasil que, durante muitos anos depois da independência, se caracterizou por disputas predatórias entres grupos variados, principalmente entre setores da economia agrícola e, posteriormente, depois da Revolução de 1930, quando se confrontaram os agroexportadores e defensores de um Brasil agrícola e, de outro, um Brasil industrializado, que via na indústria uma estratégia central de desenvolvimento e de melhoria nas condições sociais da população, na sua maioria marcada pela pobreza extrema e pela marginalidade, tão bem retratados na obra Os bestializados de José Murilo de Carvalho.

A inserção do país na economia global, no período colonial, trazia alguns constrangimentos para a economia brasileira, de um lado, os produtos agrícolas tinham seus preços definidos pelo mercado externo, os demandantes tinham grande poder sobre a definição dos preços destes produtos. De outro, os produtos importados por países como o Brasil, na sua maioria mercadorias industrializadas, tinham seus preços definidos pelo produtor, com esta estrutura de preços do comércio internacional, percebíamos que a economia global privilegiava os países dotados de um maior desenvolvimento industrial em detrimento dos países agrícolas, o que inviabilizava uma estratégia de planejamento estratégico e perpetuava o poder e a dominação dos países ricos e industrializados.

O Brasil foi um dos últimos países a acabar com a escravidão, postergamos o máximo possível em colocar um ponto final nesta situação degradante, mesmo sofrendo a pressão dos ingleses, que viam na escravidão um entrave ao desenvolvimento do capitalismo no Brasil, ainda conseguimos manter uma estrutura escravocrata durante muitas décadas, desta forma percebemos uma herança de exploração, sofrimentos, altos custos e baixa produtividade, todas estas características que dão ao Brasil uma sociedade dividida entre exploradores e exploradas, com salários baixos e pouco dinamismo econômico.

As nossas escolhas sempre foram truncadas, nossas chamadas revoluções carecem de transformações estruturais, nossas leis sempre foram burladas de acordo com interesses de grupos poderosos e forças escusas e nossos sonhos sempre foram deixados de lado, desde sempre somos o país do futuro, nosso passado foi marcado por grandes exploração e desigualdade, fomos fundamentais para financiar grandes revoluções em outros países e regiões, impulsionamos com estas riquezas solos e regiões distantes mas, ainda não conseguimos encontrar um caminho para nosso próprio desenvolvimento, nossa elite se satisfaz com o desenvolvimento de outras regiões e evita contribuir para o desenvolvimento local, algo que só as teorias da psicanálise podem nos explicar convincentemente.

A estrutura agroexportadora perdeu força no Brasil com a crise de 1929, neste momento os nossos maiores compradores reduziram imensamente a compra de produtos brasileiros em decorrência da depressão em curso nos Estados Unidos e que se espalhou para toda a economia internacional. Com estoques elevados e preços em queda, o governo foi obrigado a interferir no mercado para evitar a quebra da economia cafeeira, neste momento os estoques de café são incinerados e os preços voltam ao ponto de equilíbrio, mas a economia cafeeira entra em colapso e abre espaço para novos grupos políticos, econômicos e sociais, tudo isso culmina na chamada Revolução de 30 e na ascensão de Getúlio Vargas ao poder, inicia-se o processo de industrialização brasileira.

O Estado sempre foi o local das grandes lutas políticas no Brasil, desde a independência até a Revolução de 30, o grande detentor dos poderes estatais eram os cafeicultores, que se utilizaram de seu poder para criar leis e construir políticas para satisfazer seus interesses econômicos e financeiros. Com a ascensão dos industriais a partir de Getúlio Vargas, percebemos uma outra elite dominando as estruturas do Estado e se utilizando deste poder para demarcar suas políticas e interesses, o Brasil rural perde espaço para um país mais urbano, novas formas de trabalho e instrumentos de estímulo ao setor produtivo, determinando os interesses do setor industrial.

O Estado brasileiro sempre defendeu os interesses dos grupos que o comanda, os setores mais fragilizados e depauperados são relegados ao esquecimento, sendo entregues a estes setores apenas as migalhas do capitalismo e os pequenos benesses do capital.

No começo do século XXI o Brasil se depara com desafios diferentes, a industrialização não trouxe os ganhos prometidos e o grande agente econômico é o setor do agronegócio, o país hoje pode ser descrito como um dos maiores exportadores de produtos agrícolas, para muitos especialistas temos um potencial para sermos o celeiro do mundo, temos clima e terra em abundância e solos e regiões ainda inexplorados, temos tecnologias de pontas construídas pelas empresas em parcerias com universidades e centros de pesquisas públicas e privadas, somos um dos maiores responsáveis pelos saltos de produtividade no campo e temos espaços de sobra para assumir esta liderança, o que nos falta é uma estratégia centrada em interesses maiores, estratégias que coloquem no centro os desejos e os anseios da sociedade brasileira, o fim da desigualdade e da pobreza, sem isto o país vai continuar sendo descrito como o país do futuro, um futuro sempre distante e que nunca chega.

 

 

 

 

 

 

 

O desafio dos bons empregos

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Dani Rodrik – Valor Econômico – 11/02/2019

No mundo inteiro, atualmente, o principal desafio para conquistar a prosperidade econômica inclusiva é a criação de números suficientes de “bons empregos”. Sem emprego produtivo e confiável para a vasta maioria da população em idade ativa de um país, ou o crescimento da economia continua fugaz ou seus benefícios acabam concentrados em uma minoria insignificante. A escassez de bons empregos também solapa a confiança nas elites políticas, o que alimenta a reação adversa autoritária e nativista que afeta muitos países atualmente.

A definição de um bom emprego depende, evidentemente, do nível de desenvolvimento econômico do país em questão. É, normalmente, um cargo estável no setor formal que vem acompanhado de salvaguardas trabalhistas essenciais, como condições de trabalho seguras, direitos de barganha coletivos e regulamentações contra demissões arbitrárias. Isso possibilita, no mínimo, manter um estilo de vida de classe média, de acordo com os padrões do país em questão, com renda suficiente para moradia, alimentação, transportes, educação e outros gastos da família, além de alguma poupança. Como argumenta há muito tempo Zeynep Ton, do MIT, as estratégias de “bons empregos” podem ser tão lucrativas para as empresas quanto o são para os trabalhadores.

Mas o problema mais profundo é o de caráter estrutural. Tanto países desenvolvidos quanto em desenvolvimento sofrem hoje de uma crescente incompatibilidade entre a estrutura da produção e a estrutura da população em idade ativa. A produção está se tornando cada vez mais intensiva em qualificação, enquanto o grosso da força de trabalho continua de baixa qualificação. Isso gera uma disparidade entre os tipos de empregos e os tipos de trabalhadores disponíveis.

A tecnologia e a globalização conspiraram para ampliar essa discrepância, com a automação e a digitalização cada vez maiores da indústria e dos serviços. Embora as novas tecnologias pudessem ter beneficiado trabalhadores de baixas qualificações, em princípio, na prática o avanço tecnológico foi, em grande medida, de substituição de mão de obra. Além disso, o comércio e os fluxos de investimento internacionais, e as cadeias de valor mundiais, em especial, homogeneizaram as técnicas de produção no mundo inteiro, tornando muito difícil para países mais pobres competir nos mercados mundiais sem adotar técnicas intensivas em qualificações e em capital semelhantes às utilizadas nas economias avançadas.

O resultado disso é a intensificação do dualismo econômico. Toda economia do mundo de hoje é dividida entre um segmento avançado, geralmente mundialmente integrado, que emprega uma parcela minoritária da população em idade ativa, e um segmento de baixa produtividade que absorve o grosso dessa população, muitas vezes a baixos salários e sob condições precárias.

Há apenas três maneiras de reduzir a incompatibilidade entre a estrutura dos setores produtivos e a da população em idade ativa. A primeira estratégia, e a que concentra o grosso da atenção das políticas públicas, é o investimento em qualificações e em educação. Se a maioria dos trabalhadores adquirirem a capacitação e as qualificações exigidas pelas tecnologias avançadas, o dualismo acabará se desfazendo, com a expansão dos setores de alta produtividade em detrimento dos demais.

Toda economia do mundo hoje é dividida entre um segmento avançado, mundialmente integrado, que emprega parcela minoritária da população em idade ativa, e um segmento de baixa produtividade que absorve o grosso dessa população, muitas vezes a baixos salários.

Essas políticas voltadas para o capital humano são importantes, mas seus efeitos serão sentidos no futuro. Elas são pouco operantes no enfrentamento das realidades presentes do mercado de trabalho. Não é possível transformar a população em idade ativa da noite para o dia. Além disso, sempre há ao risco real de que a tecnologia avance mais rapidamente do que a capacidade da sociedade de educar os recém-ingressos em sua população em idade ativa.

Uma segunda estratégia é convencer empresas bem-sucedidas a empregar mais trabalhadores pouco qualificados. Em países em que as diferenças de qualificações não são enormes, os governos podem (e devem) convencer suas empresas de sucesso a aumentar o nível de emprego – ou diretamente ou por meio de seus fornecedores locais. Os governos dos países desenvolvidos também têm um papel a desempenhar para mudar a natureza da inovação tecnológica. Frequentemente, eles subsidiam tecnologias substitutivas de mão de obra, capital intensivas, em vez de conduzir a inovação para direções socialmente mais benéficas, voltadas para aumentar, em vez de substituir, o contingente de trabalhadores menos qualificados.

Essas políticas pouco tendem a fazer muita diferença em países em desenvolvimento. Para eles, o principal obstáculo continuará a ser o fato de que as tecnologias já adotadas dão espaço insuficiente à substituição de fatores: usar mão de obra menos qualificada em vez de profissionais qualificados ou capital físico. Os exigentes padrões de qualidade necessários para abastecer as cadeias de valor mundiais não podem ser atendidos facilmente pela substituição de máquinas por mão de obra manual. É por isso que a produção mundialmente integrada, mesmo nos países mais abundantes em mão de obra, como a Índia ou a Etiópia, recorre a métodos relativamente intensivos em utilização de capital.

Isso coloca um largo segmento de economias em desenvolvimento – desde países de renda média, como o México e a África do Sul até países de baixa renda, como a Etiópia – diante de um enigma. A solução padrão de melhorar as instituições educacionais não rende benefícios de curto prazo, enquanto os setores mais avançados da economia são incapazes de absorver a superoferta de trabalhadores de baixa qualificação.

A resolução desse problema pode exigir uma terceira estratégia, que é a que capta o menor grau de atenção: impulsionar uma faixa intermediária de atividades de baixa qualificação intensivas em uso de mão de obra. O turismo e a agricultura não tradicional são os principais exemplos desses setores que absorvem mão de obra. O emprego público (em construção e prestação de serviços), há muito desprezado pelos especialistas em desenvolvimento, é outra área que pode exigir atenção.

A política governamental, tanto nos países desenvolvidos quanto nos em desenvolvimento, está, com muita frequência, preocupada em impulsionar as tecnologias mais avançadas e em promover as empresas mais produtivas. Mas a incapacidade de gerar empregos bons, de classe média, tem custos sociais e políticos muito altos. Reduzir esses custos exige um foco diferente, voltado especificamente para o tipo de emprego alinhado com a composição de qualificações dominante na economia em questão. (Tradução de Rachel Warszawski).

Dani Rodrik, professor de economia política internacional da Faculdade de Governo John F. Kennedy, da Universidade de Harvard, é autor de “Straight Talk on Trade: Ideas for a Sane World Economy”.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O resultado disso é Há apenas três maneiras de reduzir a incompatibilidade entre a estrutura dos setores produtivos e a da população em idade ativa. A primeira estratégia, e a que concentra o grosso da atenção das políticas públicas, é o investimento em qualificações e em educação. Se a maioria dos trabalhadores adquirirem a capacitação e as qualificações exigidas pelas tecnologias avançadas, o dualismo acabará se desfazendo, com a expansão dos setores de alta produtividade em detrimento dos demais. Toda economia do mundo hoje é dividida entre um segmento avançado, mundialmente integrado, que emprega parcela minoritária da população em idade ativa, e um segmento de baixa produtividade que absorve o grosso dessa população, muitas vezes a baixos salários Essas políticas voltadas para o capital humano são importantes, mas seus efeitos serão sentidos no futuro. Elas são pouco operantes no enfrentamento das realidades presentes do mercado de trabalho. Não é possível transformar a população em idade ativa da noite para o dia. Além disso, sempre há ao risco real de que a tecnologia avance mais rapidamente do que a capacidade da sociedade de educar os recém-ingressos em sua população em idade ativa. Uma segunda estratégia é convencer empresas bem-sucedidas a empregar mais trabalhadores pouco qualificados. Em países em que as diferenças de qualificações não são enormes, os governos podem (e devem) convencer suas empresas de sucesso a aumentar o nível de emprego – ou diretamente ou por meio de seus fornecedores locais. Os governos dos países desenvolvidos também têm um papel a desempenhar para mudar a natureza da inovação tecnológica. Frequentemente, eles subsidiam tecnologias substitutivas de mão de obra, capital intensivas, em vez de conduzir a inovação para direções socialmente mais benéficas, voltadas para aumentar, em vez de substituir, o contingente de trabalhadores menos qualificados. Essas políticas pouco tendem a fazer muita diferença em países em desenvolvimento. Para eles, o principal obstáculo continuará a ser o fato de que as tecnologias já adotadas dão espaço insuficiente à substituição de fatores: usar mão de obra menos qualificada em vez de profissionais qualificados ou capital físico. Os exigentes padrões de qualidade necessários para abastecer as cadeias de valor mundiais não podem ser atendidos facilmente pela substituição de máquinas por mão de obra manual. É por isso que a produção mundialmente integrada, mesmo nos países mais abundantes em mão de obra, como a Índia ou a Etiópia, recorre a métodos relativamente intensivos em utilização de capital. Isso coloca um largo segmento de economias em desenvolvimento – desde países de renda média, como o México e a África do Sul até países de baixa renda, como a Etiópia – diante de um enigma. A solução padrão de melhorar as instituições educacionais não rende benefícios de curto prazo, enquanto os setores mais avançados da economia são incapazes de absorver a superoferta de trabalhadores de baixa qualificação. A resolução desse problema pode exigir uma terceira estratégia, que é a que capta o menor grau de atenção: impulsionar uma faixa intermediária de atividades de baixa qualificação intensivas em uso de mão de obra. O turismo e a agricultura não tradicional são os principais exemplos desses setores que absorvem mão de obra. O emprego público (em construção e prestação de serviços), há muito desprezado pelos especialistas em desenvolvimento, é outra área que pode exigir atenção. A política governamental, tanto nos países desenvolvidos quanto nos em desenvolvimento, está, com muita frequência, preocupada em impulsionar as tecnologias mais avançadas e em promover as empresas mais produtivas. Mas a incapacidade de gerar empregos bons, de classe média, tem custos sociais e políticos muito altos. Reduzir esses custos exige um foco diferente, voltado especificamente para o tipo de emprego alinhado com a composição de qualificações dominante na economia em questão. (Tradução de Rachel Warszawski)

Dani Rodrik, professor de economia política internacional da Faculdade de Governo John F. Kennedy, da Universidade de Harvard, é autor de “Straight Talk on Trade: Ideas for a Sane World Economy”.

Desigualdade, Políticas Sociais e crescimento econômico: uma análise de duas experiências exitosas de combate à exclusão social no Brasil contemporâneo.

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Artigo escrito com o intuito de contribuir para a discussão da desigualdade recente no Brasil e no mundo, destacando os avanços na sociedade brasileira e analisando dois programas exitosos de políticas públicas.

Sociedade da vigilância em rede

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Ricardo Abramovay – Revista Quatro Cinco Um: a revista dos livros – 08/03/2019

Três livros ainda inéditos no Brasil expõem o desencanto de pensadores com as promessas da inteligência artificial

A vigilância tornou-se a marca característica das sociedades contemporâneas ao final da segunda década do milênio. Não se trata de perseguição política, de arapongas ou de bisbilhotice, e sim de algo muito mais profundo, pervasivo e impactante: a vigilância se converteu em parte decisiva da nossa sociabilidade, ou seja, da maneira como nos relacionamos uns com os outros e com as coisas. E assim é porque a vigilância ocupa o epicentro do modelo de negócios das mais importantes empresas da economia contemporânea, ou seja, as de maior valor, de maior presença em nossa vida cotidiana, que concentram o cerne da inovação tecnológica e espalham pelo conjunto da sociedade o uso de dispositivos conectados ao ecossistema corporativo que lideram. O Estado não é seu principal vetor, embora tenha participado (às vezes ativamente, às vezes por omissão) em sua emergência.

“Compartilhamento” é a forma adocicada de sua apresentação pública. Os 510 mil comentários e as 136 mil fotos postadas no Facebook por minuto, as 40 mil buscas no Google por segundo (1,2 trilhão em 2018) ou os 60 milhões de fotos que sobem ao Instagram todos os dias nos perfis de seus 500 milhões de usuários diários são a matéria-prima da mais importante inovação tecnológica do século 21: a inteligência artificial.

O que caracteriza a vigilância não é só o sistema de captação de dados embutidos em nossos computadores, celulares e em todas as dimensões de nossa vida — quando fazemos compras, quando nos deslocamos de carro ou de transporte coletivo, e também os momentos em que estamos dentro de casa ou no trabalho. Tão importante quanto a captação desses dados é a capacidade daqueles que os usam de fazer inferências a respeito do nosso comportamento, abrindo caminho para que nos conheçam melhor e possam aplicar modelos às nossas atitudes com o objetivo de prever o que faremos.

O que foi caracterizado, há vinte anos, por Manuel Castells, em sua clássica trilogia, como a “sociedade da informação em rede”, converteu-se na “sociedade da vigilância em rede, que integra um conjunto de sensores embutidos não só nos dispositivos que identificamos como produtores de dados (computadores e celulares), mas também em equipamentos que se integram de maneira imperceptível para nós, com o objetivo não só de conhecer o nosso comportamento, mas, sobretudo, de interferir em nossa conduta como consumidores e cidadãos. A computação não é mais uma atividade específica: ela se tornou ubíqua.

Churchill dizia: ‘Moldamos os nossos prédios e depois eles nos moldam’. Isso se aplica às tecnologias que marcam as mudanças sociais, em qualquer época

É verdade que novas tecnologias têm sempre o impressionante poder de modificar a sociabilidade humana. Como mostra Robert Gordon  em The Rise and Fall of American Growth [ascensão e queda do crescimento americano], a água encanada, a coleta de lixo, a eletricidade, o telefone, o rádio, a TV, o automóvel, o transporte de massas, os antibióticos e o raio X mudaram completamente a sociabilidade e a própria subjetividade dos habitantes dos países que puderam adotar essas transformações de forma generalizada, no início do século 20. Winston Churchill dizia: “Moldamos os nossos prédios e depois eles nos moldam”. É claro que isso se aplica às tecnologias que marcam as mais importantes mudanças sociais, em qualquer época. Elas sempre nos moldam de alguma forma, assim como os prédios de Churchill.

Mas a capacidade de nos moldar vinda das tecnologias contemporâneas, sobretudo da inteligência artificial, é inédita. Por mais que o automóvel, o elevador, os túneis e os viadutos alterem a nossa percepção sobre o espaço, as distâncias e os territórios, eles estão fora de nós, diferentemente dos dispositivos digitais, que não apenas colocam a vigilância no nosso bolso, no nosso corpo, na nossa casa, no nosso carro e nas ruas, mas usam-na para prever e, cada vez mais, determinar o que fazemos. São tecnologias que interferem de maneira direta e voluntária em nossa mente.

Três livros recentes, ainda não publicados no Brasil, estudam algumas das mais importantes dimensões desse fenômeno: a moldagem dos comportamentos humanos, a orientação da política na era da vigilância em rede e o lugar histórico da vigilância na evolução do próprio capitalismo.

Arquitetura do comportamento

Não existe em português uma boa tradução para o verbo que dá título ao livro de Brett Frischmann (da Villanova University e de Stanford) e Evan Selinger (do Rochester Institute of Tecnology), Re-Engineering HumanityEngineering, em inglês, aproxima-se de um conjunto que inclui construir, influenciar, moldar, manipular e fazer. “Re-engenheirar” a humanidade não é simplesmente um meio de ampliar as vendas, com base nas informações coletadas sobre as preferências das pessoas oferecendo-lhes, nas palavras de Mark Zuckerberg, anúncios que lhes sejam relevantes. Na verdade, as informações permanentemente coletadas e analisadas por algoritmos, cujo funcionamento nos é completamente opaco, permitem que nossa conduta seja previsível e, justamente por isso, abrem caminho a uma interferência em nosso cotidiano que é inédita e atinge todas as esferas da vida social.

Em 2014, por exemplo, a Amazon patenteou um sistema que permite antecipar o que os clientes querem comprar, antes mesmo que eles próprios o saibam. A mágica está nas informações reunidas sobre cada um de nós e na análise que delas é feita. Essa é uma das explicações para a compra pela Amazon, em fevereiro de 2019, da Eero, uma start up que amplia o alcance das conexões de wi-fi e elimina os pontos cegos (ou surdos) no interior das residências. Boa notícia, salvo, como lembra matéria do Financial Times, o fato de que o dispositivo terá o condão de ampliar a quantidade e a variedade de dados domésticos que a Amazon recebe sobre os usuários da inovação, fortalecendo assim sua capacidade preditiva sobre o nosso comportamento e somando-se às informações já hoje fornecidas pelo robô doméstico Alexa, do qual já foram vendidos nada menos que 100 milhões de unidades. Somando-se Alexa, Siri (da Apple) ou Google Assistant, um quarto dos domicílios norte-americanos possui hoje um smart speaker. A eles podem-se acrescentar outros dispositivos de vigilância como as tvs inteligentes da Samsung, que não só respondem a comandos de voz, mas registram e armazenam as informações derivadas de conversas no local onde o aparelho se encontra. Ou, então, equipamentos capazes de informar a quem está em casa sobre o estado de espírito de um membro da família que vem chegando da rua.

A Amazon patenteou um sistema que antecipa o que os clientes querem comprar, antes que eles o saibam

Da mesma forma que o gps vai subtraindo das pessoas a capacidade de se localizar, serão cada vez mais frequentes os dispositivos voltados a substituir a nossa percepção, a nossa intuição e a nossa empatia por informações que orientam o nosso comportamento. A atenção moral e o cuidado com o outro são superados pelos resultados matematicamente certeiros da mineração de dados. Reduzem-se os custos de transação nas relações pessoais, mas essa redução, ao mesmo tempo, abre caminho para que a compreensão do outro seja terceirizada para as máquinas. As trocas pessoais são “re-engenheiradas”.

Em última análise, o caminho tomado pelas tecnologias digitais está desafiando a ideia-chave do Iluminismo de que somos indivíduos autônomos e responsáveis por nossas decisões. Claro que essas capacidades humanas são aprendidas e desenvolvidas na vida social. O problema é que as bases para uma formação individual voltada ao exercício da liberdade podem ser solapadas por dispositivos que, sob o pretexto de ampliar nossa mente, de operar como próteses cognitivas, acabam inibindo o nosso maior bem comum, que é a capacidade autônoma de conviver com os outros.

A conclusão é que um dos mais importantes desafios do século 21 está na liberdade de nos desconectarmos e de nos tornarmos independentes do poder, embutido nos dispositivos em que estamos imersos, de determinar quem somos e como nos relacionamos.

Engenheiros filósofos

Os impactos políticos das tecnologias de vigilância são estudados pelo advogado britânico Jamie Susskind, ex-assessor de Tony Blair e do senador Edward Kennedy, em Future Politics. Sua tese central é que as leis, nas sociedades contemporâneas, serão executadas (enforced) e estarão cada vez mais embutidas nos dispositivos digitais que usamos. É o veículo autônomo (e não seu condutor) que vai submeter-se aos limites de velocidade e à regulamentação para estacionar. O tema já havia sido estudado, desde 1999, nos trabalhos do advogado e ativista norte-americano Lawrence Lessig, que o sintetizou na fórmula “code is law”. Os programas digitais terão a força de determinar a nossa conduta.

Se, durante o século 20, se tratava de saber em que medida a nossa vida era determinada pelo Estado, pelo mercado e pela sociedade civil, agora a questão (que norteia o livro de Susskind) é outra: em que medida a nossa vida será determinada por poderosos sistemas digitais e em que termos esse poder será exercido.

A dominação — a capacidade de fazer os outros agirem segundo a vontade do dominador, na célebre definição de Max Weber — cada vez mais estará em códigos a partir dos quais nossos equipamentos trarão a instrução sobre o que podemos e o que não podemos fazer. No lugar das regulamentações escritas virão as prescrições programadas. A força, até aqui concentrada numa esfera pública (o Estado), vai se transferindo para a esfera privada, controlada pelos gigantes das tecnologias digitais. Assim, os que controlam essas tecnologias terão crescente poder sobre a vida social e, portanto, sobre o futuro da democracia e da liberdade.

Nos processos legislativos democráticos, as leis mudam com base em discussões públicas, orientadas por representantes eleitos, por mais que haja falhas nessa representação. No mundo da vida digital, a mudança é adaptativa, e, mesmo quando responde a pressões sociais (como a decisão do WhatsApp de reduzir para cinco o número de destinatários de mensagens encaminhadas simultaneamente), ela não passa por um debate público.

Mais que isso: a tradição liberal na política sempre exaltou o caráter experimental dos processos legislativos. Tanto Karl Popper quanto Friedrich Hayek sustentavam a impossibilidade de conhecer a vida social na sua totalidade e a importância do erro e de suas correções como expressões das virtudes da democracia. Ninguém poderia ter certeza de que possuía a solução correta para determinado problema, e por isso o debate democrático deveria ocupar o centro da vida política. A principal consequência política da nossa dependência dos dispositivos digitais é que eles abrem caminho a soluções políticas resultantes daquilo que pontificam os algoritmos e não dos representantes políticos.

Os algoritmos vão se tornando cada vez mais misteriosos conforme ganham autonomia no processo de aprendizagem das máquinas

A nossa própria percepção do mundo é cada vez mais controlada pelos sistemas digitais que filtram a maneira como nos informamos. Os mediadores humanos são substituídos por sistemas automatizados. Daí resulta, para Susskind, uma fragmentação social que bloqueia o próprio debate público. Contrariamente à expectativa inicial de seus pioneiros e de seus mais importantes teóricos, o alargamento esperado da nossa capacidade comunicativa e da variedade de informações que formam a nossa cultura política converteu-se nas bolhas de repetição e redundância a que o escrutínio minucioso e personalizado dos algoritmos nos submete. Tanto mais que os algoritmos, além de propriedade privada, vão se tornando eles mesmos cada vez mais misteriosos, conforme ganham autonomia no processo de aprendizagem das máquinas.

A opacidade das decisões tomadas pelos algoritmos chegou a tal ponto que a Darpa (a agência militar norte-americana onde nasceu a internet) criou um programa (Explainable Artificial Intelligence) para que os pesquisadores tentem entender as decisões resultantes dos processos autônomos de aprendizagem de máquinas.  Pois é essa autonomia (das máquinas, não nossa!) que está desempenhando e vai desempenhar um papel cada vez mais importante na regulação das nossas atividades, ou seja, na política.

A mais importante conclusão de Susskind, inspirada por Tim Berners Lee, inventor da World Wide Web, é que o mundo precisa com urgência de “engenheiros filósofos”. Não se trata de uma opção tecnocrática que concentre ainda mais poder em alguns sábios, e sim da urgência de que o desenvolvimento tecnológico esteja organicamente vinculado a opções éticas não só sobre os impactos, mas também sobre o próprio sentido dos aparatos digitais em que nossa vida está mergulhada. E isso só se faz com amplo debate público.

Capitalismo de vigilância

Publicado em janeiro, The Age of Surveillance Capitalism [A era do capitalismo de vigilância], de Shoshana Zuboff — psicóloga e uma das primeiras mulheres a conquistar uma cátedra na escola de negócios de Harvard —, já foi comparado à Primavera silenciosa de Rachel Carson e até ao Capital de Marx. O evidente exagero deve-se à ambição de suas setecentas páginas. Zuboff procura nada menos que os fundamentos teóricos capazes de explicar a nova modalidade de capitalismo trazida pelos gigantes digitais e cuja essência pode ser assim resumida: se no capitalismo do século 20 o controle dos meios de produção era a base para a extração do trabalho humano em que se apoiam os ganhos empresariais, hoje os lucros corporativos provêm de um conjunto amplo e generalizado de meios de modificação do nosso comportamento.

Não é mais o trabalho, e sim a experiência humana, em todas as suas dimensões, que é apropriada e transformada em dados para servir de base para uma interferência cada vez maior na nossa vida. A marca central das sociedades contemporâneas (o que já havia sido antecipado de forma pioneira pela obra de André Gorz, que, infelizmente, Zuboff nem sequer menciona) não é mais a exploração do trabalho, e sim aquilo que Jürgen Habermas chamou de colonização do mundo da vida, ou seja, a transformação de nossas relações pessoais, de nossa intimidade, de nossa interação, em base para a acumulação capitalista por meio justamente da vigilância. No lugar de “modo de produção”, surgem dispositivos que criam “modos de modificação de comportamento”. O excedente econômico torna-se, assim, comportamental, e os ativos que permitem a extração desse excedente são ativos de vigilância, em que é fundamental o sistema ubíquo de computação que a internet das coisas está ampliando com velocidade estonteante.

Mas a vigilância está longe de ser um fenômeno fundamentalmente econômico. Psicóloga de formação, Zuboff conheceu pessoalmente B. F. Skinner durante sua graduação. Skinner concebia a liberdade humana como uma completa ilusão, derivada apenas da nossa ignorância. Caso tivéssemos instrumentos capazes de obter e analisar os dados em função dos quais agimos, veríamos, sustentava Skinner, que as nossas ações são sempre condicionadas a estímulos, incentivos, punições ou aos contextos que produzem esses estímulos. Assim, para Skinner, a liberdade e os valores básicos que o Iluminismo (sobretudo Kant) expressou na ideia de autonomia humana são fruto da nossa ignorância, e não virtudes que deveríamos exaltar. Essas ideias, publicadas por Skinner em Além da liberdade e da dignidade (1971), estão, mostra Zuboff, na raiz do capitalismo de vigilância.

Em nossa época, o excedente econômico torna-se comportamental, e os ativos que permitem a extração desse excedente são ativos de vigilância 

É claro que estas linhas não fazem justiça à riqueza de dados e de explicações sobre essa obra, que já está marcando tão fortemente o debate sobre o significado histórico da revolução digital e de sua modalidade presente, que Zuboff denomina capitalismo de vigilância. Chama a atenção a escassez de menções a movimentos de resistência às práticas dos gigantes digitais contemporâneos. Da mesma forma, há uma hesitação no livro entre a ideia de que o que está em questão é o capitalismo (e não as tecnologias) e a ausência total de qualquer menção àquilo que poderia ser uma abordagem não capitalista do uso dos dispositivos digitais na vida social. Nada disso, porém, tira o imenso valor do livro.

Na verdade, os três livros aqui comentados exprimem o desencanto do pensamento contemporâneo com relação a dispositivos que vinte anos atrás prometiam abrir portas para a emancipação social. Mas, em comum, as três obras levantam a bandeira da liberdade e da autonomia humanas contra um sistema que, em nome da eficiência, reduz a nossa iniciativa, a nossa capacidade de ação independente e ameaça a nossa dignidade.

Frischmann, Brett; Selinger, Evan
Re-Engineering Humanity  Cambridge University Press • 430 pp • R$ a definir

Susskind, Jamie
Future Politics Oxford University Press • 544 pp • R$ a definir

Zuboff, Shoshana
The Age of Surveillance Capitalism PublicAffairs • 704 pp • R$ a definer

https://www.quatrocincoum.com.br/br/resenhas/economia/sociedade-da-vigilancia-em-rede

Economia do baixo crescimento e das Instabilidades crescentes

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Depois de um período de recessão marcado por baixíssimo crescimento econômico, aumento no desemprego, redução na renda e nos salários e queda vertiginosa nos investimentos, as perspectivas para este ano são menos empolgantes, depois de um momento de êxtase nos mercados financeiros, com queda no dólar e recorde na Bolsa, o Brasil vive um período de incertezas e inseguranças no campo econômico.

Nos primeiros sessenta dias do novo governo percebemos um misto de imaturidade política, amadorismo crescente e um falatório generalizado, um governo novo com vícios antigos e conhecidos, alguns falam demais, emitem opinião sobre tudo e todos, enquanto outros falam de menos, com isso, percebemos na sociedade e no mercado financeiro uma grande apreensão, sem mudanças sólidas o país não tem chances de superar este crescimento medíocre e insuficiente.

Depois de uma década de forte crescimento, o país se depara, a partir de 2014, com graves problemas econômicos e políticos, o lado fiscal da economia se ressente de um maior equilíbrio, os déficits crescem de forma acelerada, os gastos públicos são reduzidos e a economia perde seu motor mais importante, com isso, o país amarga uma de suas maiores recessões, em 2015 o PIB caiu 3,9%, em 2016 outro tombo de 3,6%, em 2017 algum crescimento, modestos 1,1%, neste momento a economia sai da recessão e as perspectivas para o ano seguinte passam a ser melhores, uns acreditando em quase 3%, outros defendendo números mais modestos, na casa do 2%, depois dos doze meses percebemos um crescimento ridículo na casa dos 1,1%, repetindo valores do ano anterior e aumentando as incertezas sobre a economia e as perspectivas para o sistema produtivo.

O Brasil vive um período de grandes transformações, depois de um aumento das intervenções estatais e de gastos públicos que incrementaram o crescimento econômico mas, ao mesmo tempo, degradaram as finanças públicas e abriram espaço para uma recessão sem precedentes, obrigando os governantes a adotarem políticas mais efetivas no controle dos gastos públicos, com isso, a economia literalmente entrou em um sinal de baixo crescimento e a recuperação está se mostrando cada vez mais complexa, exigindo novos esforços de uma população depauperada pelas crises constantes.

Se olharmos para os indicadores macroeconômicos, perceberemos que o país apresenta um superávit nas contas externas e uma grande quantidade de reservas em moeda estrangeira, os preços internos estão controlados e a taxa de juros se encontra em números reduzidos se comparado com períodos anteriores, de outro lado encontramos uma situação fiscal degradada com déficits acima dos 100 bilhões de reais e um desemprego na casa dos 12% da população, inviabilizando investimentos e melhores resultados no futuro.

A inflação baixa e controlada está mais atrelada ao baixo consumo e a recessão do que a outros instrumentos de política monetária, a população se encontra endividada, as empresas de análise de crédito estimam em mais de 60 milhões de brasileiros inadimplentes, os empresários estão com estoques altos e as vendas estão em compasso de espera, com isso, os investimentos estão sendo postergados para momentos melhores e mais consistentes, sem consumo e sem investimentos a economia não anda e a situação do país se agrava, gerando incertezas e instabilidades crescentes.

A situação econômica exige um forte choque de confiança e de credibilidade, cabe aos agentes econômicos mostrar a sociedade novos caminhos para o crescimento, para que isso aconteça algumas medidas importantes precisam de tomadas, controlar os gastos do Estado é fundamental para melhorar as perspectivas fiscais e abrir espaço para novos investimentos governamentais, gerando novos empregos, melhorando a renda e estimulando o sistema econômico. Controlar os gastos é uma medida crucial, mas insuficiente para melhorar o universo fiscal do Estado, uma política mais estrutural exige uma consistente reforma previdenciária, que seja implementada para produzir uma economia no médio e no curto prazos, reduzindo os privilégios e melhorando as condições de alguns grupos vulneráveis da sociedade brasileira, uma reforma tributária que aumente a quantidade de pessoas que pagam impostos, um forte combate a sonegação e a evasão fiscal, e uma maior tributação sobre setores mais abastados, inclusive reduzindo isenções de inúmeros setores econômicos, dentre eles o agronegócio e o financeiro, segundo especialistas, o Brasil vem, nos últimos anos, deixando de arrecadar mais de 4% do produto interno Bruto, algo em torno de 250 bilhões de reais, com estes recursos os déficits nas contas públicos não existiriam e o país poderia melhorar rapidamente sua condição macroeconômica.

Destacamos ainda, como fundamental para a melhora das instituições do país a reforma política e eleitoral, como se governa uma sociedade com uma gama tão ampla de partidos políticos como temos na atualidade no Brasil? Uma grande parte destas agremiações foram criadas por grupos políticos minoritários que se utilizem destas estruturas para abocanhar os fundos partidários, com prestação de contas inexistentes e desvios generosos para políticos e expoentes de destaque na organização político-partidária.

Outro ponto importante que deve ser privilegiado pelo novo governo é referente ao sistema bancário e financeiro, os bancos são detentores de grandes lucro, mesmo com uma economia em forte recessão, faz-se fundamental aumentar a competição no sistema estimulando e regulando as fintechs, incrementando a inserção da população no sistema financeiro, acelerando reformas microeconômicas, aumentando o acesso ao crédito, reduzindo as taxas de juros de forma consistente e melhorando o ambiente de negócios. Uma política forte na diminuição da burocracia é fundamental para o crescimento dos investimentos públicos e privados, nos últimos anos foram sendo criadas instituições estatais que atuam de forma exagerada na fiscalização e regulação, ministérios, agências reguladoras, cada uma disputando poder e buscando uma maior influência nos negócios, isso sem falar no aparelhamento políticos destas organizações, instrumentos importantes tecnicamente acabaram se tornando espaços degenerados e disputados por grupos políticos como forma de mostrar poder e influência sobre a sociedade.

No cenário internacional, faz-se necessário uma observação mais consistente da economia global, depois da crise de 2008, os governos atuaram fortemente no sentido de injetar bilhões e bilhões de dólares e euros nos mercados domésticos, os países conseguiram melhorar suas performances mas não conseguiram gerar crescimentos mais sólidos, diante disso, os governos dos países desenvolvidos estão, novamente, aumentando os incentivos para seus setores produtivos, como se vê na China, Estados Unidos, Japão e Europa, incrementando suas dívidas e empurrando a resolução do problema para um futuro muito próximo, neste ambiente de protecionismo e nacionalismo, onde os governos estão protegendo empresas e setores temos que tomar cuidado com um discurso liberal, por mais que concordemos com grande parte deste discurso, faz-se fundamental observar os cenários externos, privatização e redução do papel do Estado é fundamental, apenas precisamos entender se este é o momento correto para a alienação deste patrimônio.

Estamos vivendo um período muito conturbado na economia mundial, o protagonismo asiático no cenário internacional, conquistado nas últimas décadas tem levado países desenvolvidos a adotarem políticas para reduzir a perda de espaço de suas empresas para as empresas asiáticas, estas políticas, claramente protecionistas, estão aumentando as divergências e os conflitos comerciais, reduzindo os acordos e as trocas entre nações, ao Brasil cabe uma política mais moderada, nosso comércio com a China se tornou muito relevante e precisa ser conservado em bases sólidas e consistentes, além disso, precisamos abrir novos mercados para nossos produtos, a redução da burocracia é fundamental e a melhora da competitividade dos nossos produtos uma condição primordial, para que isto aconteça, o país precisa se abrir para o comércio internacional como é o desejo do novo Ministro da Economia, Paulo Guedes, o fundamental é encontrar a melhor forma de fazer e exigindo sempre contrapartidas palpáveis dos nossos parceiros comerciais, menos ideologia e mais pragmatismo.

O discurso liberal é bem encantador e sedutor, a redução da intervenção do Estado na economia depois do malogro petista agrada a classe média e os grupos empresariais formadores de opinião, o grande problema desta visão, ou limitação, é que muitos setores precisam fortemente dos incentivos e subsídios estatais para a sua sobrevivência, sem estes muitas empresas sucumbiriam a competição com grupos transnacionais externos, o que percebemos deste discurso é de defesa de mais competição e maior concorrência mas, nas entrelinhas percebemos dos grupos nacionais, que seus privilégios e subsídios devem ser mantidos e, se possível, ampliados e melhorados.

Neste ambiente de controle dos gastos públicos e austeridade fiscal, muitos grupos econômicos precisam se conscientizar da importância de uma política econômica mais racional, percebendo com isso, que muitas das antigas tradições econômicas precisam ser alteradas, os subsídios fiscais que sempre foram dados pelo governo brasileiro precisam ser repensados a luz de um momento de escassez, estudar as políticas de subsídios e compreender seus resultados, consertando os erros cometidos anteriormente e mantendo as políticas exitosas e, além disso, privilegiando os mais eficientes, esta deve ser a tônica desta nova empreitada econômica, mais concorrência e menos protecionismo.

Depois de um começo de governo avassalador, o mercado passou a se preocupar mais com os rumos da economia neste novo governo, se na agenda econômica percebemos uma maior clareza, embora o ritmo ainda esteja bastante lento, no front político percebemos muitas dissonâncias, falas desnecessárias e discursos inflamados, tudo como se estivéssemos, ainda, em um ambiente de embate eleitoral, percebemos autoridades com discursos detonando os partidos políticos, a classe política e os grupos sociais, muitos destes grupos são fundamentais para a aprovação de reformas importantes para o êxito deste governo, descer do palanque eleitoral, moderar o discurso político, construir maiorias sólidas e consistentes, deveriam ser as prioridades centrais do novo governo, acreditamos que não se governa democraticamente um país como o Brasil detonando a classe política e contra os adversários, o regime democrático nos estimula a lidar com o contraditório, esta postura imatura tende a levar o governo a acumular derrotas e reduzir as perspectivas positivas da sociedade para o futuro e, sem mudanças nas expectativas, dificilmente teremos a transformação que almejamos para o país.

Novas tecnologias alterando o mundo do trabalho, incertezas generalizadas no cenário econômico nacional, endividamento elevado da população, guerras comerciais, aumento do nacionalismo e do protecionismo, crescimento da intolerância e do sectarismo e um ambiente conflagrado nas redes sociais, todas estas situações fomentam um clima de grandes medos e desesperanças para a economia brasileira, diante disso, o que nos resta é acreditar que os grupos responsáveis pela gestão do Estado consigam transformar sonhos em esperanças e os medos em perspectivas mais promissoras, todos devemos acreditar, embora estejamos dominados por um certo ceticismo, a esperança deve sempre prevalecer, embora não tenha votado neste grupo político, o caos e a degradação não nos interesse, este clima apenas nos trará destruição e desigualdades.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Trabalhos, resgates e assistências no mundo espiritual

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A grande maioria das pessoas acredita que a morte é o fim de todos os laços que unem os seres humanos a vida, desconhecem a existência de um mundo espiritual e acreditam que quando a morte chegar, entrarão em compasso de espera para o grande julgamento, o juízo final, onde os bons serão admitidos no mundo dos justos enquanto os ruins serão condenados ao fogo intenso do purgatório, como nos foi ensinado, a colheita é livre e a semeadura é obrigatória.

            Nesta teoria, ao morrermos esperaremos o fim dos tempos para o verdadeiro julgamento, neste momento o sono nos dominará por completo e seremos condenados a uma posição de passividade total, onde aguardaremos durante muitos anos, décadas, séculos ou milênios. Quando imaginamos aqueles indivíduos que povoaram a Terra a muitos séculos e se encontram nas fileiras do sono eterno aguardando o juízo final nos perguntamos, quanto tempo mais aguardaremos a justiça divina para o julgamento final?

A Doutrina Espírita nos traz uma nova forma de compreender a vida, nos mostra que a morte não existe e que o mundo espiritual é o local de vivência onde os espíritos realmente se entrelaçam em prol de seu crescimento e desenvolvimento, neste local a vida transcorre naturalmente, nele acordamos dos períodos vividos no mundo material, nele compreendemos realidades que muitas vezes não queremos enxergar e nele nos percebemos quanto espíritos imortais, o Espiritismo nos descortina uma vida até então desconhecida para uma grande parte da humanidade, com ele não podemos mais alegar ignorância nem desconhecimento das Leis de Deus.

O trabalho é uma benção divina, no mundo material temos que agradecer a oportunidade de, com ele, angariar recursos para suprir nossas necessidades materiais, adquirir alimentos e vestuários, além de dispêndios com lazer e diversão. No mundo espiritual, o trabalho deve ser visto como uma forma sublime de crescimento espiritual e moral, quando chegamos do mundo material envolto em desajustes e desequilíbrios, necessitamos deste trabalho para nos equilibrar e compreender mais claramente as necessidades e equívocos cometidos em vidas anteriores.

O Espiritismo nos mostra a existência de cidades e colônias no mundo espiritual, nelas vivem inúmeras pessoas, estes espaços são dotados de regras, de governantes, de casas e conjuntos habitacionais, pavilhões de estudo e de reflexão, além de departamentos variados, todos visando o comprometimento de cada um de seus moradores nas atividades cotidianos, na organização e no desenvolvimento individual e coletivo.

No livro Nosso Lar, o espírito André Luiz nos mostra claramente como se dá a vida em uma colônia espiritual, as ruas, as avenidas, a organização, as regras e a função de cada um de seus moradores, o funcionamento do bônus hora, remuneração dada a todos os trabalhadores que se dedicam em prol da comunidade, neste local não existe espaço para o chamado jeitinho brasileiro, a palavra meritocracia se mostra na sua essência, tudo se dá de acordo com o merecimento individual de cada morador.

Nas cidades espirituais encontramos dirigentes que se caracterizam por sua liderança técnica, sua competência e, principalmente, por sua alta envergadura ética e moral, onde seu cargo está diretamente atrelado a anos de trabalho ininterruptos na causa, passando por inúmeras áreas da colônia angariando admiração, respeito e merecimento.

As moradias são garantidas a todos aqueles que se desdobram no auxílio no bem, a entrega efetiva nos trabalhos da colônia lhes garante recursos amoedados – os bônus horas – que são trocados por residências nas colônias que são utilizadas para abrigar a todos os seus familiares, garantindo um certo conforto aos que trabalham e se dedicam ao bem coletivo.

Encontramos trabalhadores nas mais variadas áreas e setores no mundo espiritual, nos atendimentos emergenciais de espíritos que chegam debilitados depois de resgates em cidades espirituais de baixo teor vibratório, em enfermarias e em hospitais de tratamentos que atendem irmãos que se recuperam de intervenções cirúrgicas feitas para remover danos nos períspiritos contaminados por energias negativas e desequilibradas.

Muitos irmãos no plano material se utilizam de frases de efeito quando pessoas desencarnam, dentre elas destacamos, o irmão passou desta para uma melhor, embora esta frase seja muito utilizada no mundo material, a doutrina espírita nos mostra que as coisas não funcionam desta forma na maioria das vezes, muitos irmãos, com o desencarne vão para planos muito piores, mais agressivos e centrados no mal, no rancor e no ressentimento, tudo isto está diretamente ligado aos valores e aos sentimentos que pululam no coração de cada pessoa, ninguém se transforma com a morte, ninguém se melhora com o desencarne, a morte serve como um instrumento para nos desnudar, se somos bons, dotados de bons sentimentos, cultivamos o hábito da oração e nos mantemos equilibrados espiritualmente, o desencarne servirá como um alento para o espírito que, com certeza, vai se encontrar em uma situação melhor e mais desenvolvida, lembremos sempre da lei de ação e reação, pois ela nos ajuda a compreender melhor a sociedade e, principalmente, as Leis eternas e imutáveis de Deus.

Outro ponto importante que devemos destacar, é o papel desempenhado pelos espíritos que atuam em regiões umbralinas, são espíritos iluminados e destemidos que se embrenham em regiões tenebrosas e assustadoras para resgatar irmãos sofredores que, depois de muito tempo sofrendo e sendo molestados por espíritos ora renitentes no mal e na vingança, oram e pedem socorro para Deus, neste momento estes irmãos se endereçam para os resgates, um exemplo destes trabalhadores foi retratado no livro Memórias de um suicida, psicografado por Yvonne Pereira e ditado pelo escritor português Camilo Castelo Branco, nesta obra destacamos o trabalho abnegado da Legião dos Servos de Maria, trabalhadores incansáveis que se dedicam ao resgate de irmãos em condições deploráveis, muitos deles vivendo nestas condições durante muitos séculos.

A imersão nestas regiões exige destes espíritos um alto teor de equilíbrio, constante refúgio na oração, treinamentos constantes e grande confiança no poder de Deus, somente espíritos dotados destas habilidades e conscientes da importância do auxílio como instrumento de depuração conseguem vencer estes desafios e auxiliar os irmãos que se descuidaram dos mais sinceros ensinamentos deixados pela passagem de Jesus Cristo.

Nos resgates, nossos irmãos missionários são testados diretamente, ao mergulhar nos escaninhos do Umbral se deparam com estupradores, prostitutas, assassinos contumazes, pedófilos, além de corruptos de todas as naturezas, estes irmãos que ora mourejam no mal, no rancor e no ressentimento, exalam uma energia degradante, marcadas por teores intensos de negatividades, são espíritos que se comprazem com estas energias e usam seu poder de persuasão e hipnose para converter os trabalhadores mais incautos, diante disso, estes irmãos são preparados para os combater mais terríveis e violentos, mergulham no fundo do poço, resgatam irmãos agredidos e violentados e se equilibram mostrando a importância dos ideais eternos da espiritualidade maior.

Nos variados resgates nos deparamos com histórias variadas, nestas experiências percebemos que todos, inicialmente, se dizem vítimas de algozes terríveis e violentos, justificam suas desditas a vingança de irmãos que lhes orquestraram maldades e agressividades, esquecem deliberadamente que nas rodas da vida não existem vítimas, somos todos algozes uns dos outros, se na experiência anterior cometemos equívocos contra algum desafeto e nesta somos por ele perturbado, se não perdoarmos e nos desvencilharmos deste irmão, vamos carregar durante muitos séculos sentimentos de vingança, sendo tragados pelos caminhos mais nebulosos do mundo espiritual inferior e pior, tendo ao nosso lado um obsessor que nos agride e é por nós agredido.

O trabalho é constante no mundo espiritual, aqueles que acreditarem que, ao morrer, vão descansar ou entrar em um momento de hibernação até a chegada do juízo final, podem esquecer estas teorias e se acostumar com a certeza de que o trabalho é uma lei universal e todos trabalhamos e trabalharemos sempre, encarnados e desencarnados.

O livro Nosso Lar nos trouxe grandes informações sobre a vida no mundo espiritual, nesta obra percebemos claramente que os espíritos estudam constantemente, nos relatos da obra, percebemos que muitos espíritos estudam todos os dias, leem obras de grande conteúdo moral e científica para se preparar para mais uma aventura na carne, estes irmãos estão sendo preparados para uma breve reencarnação, estudam línguas, informática, genética, química, matemática. Filosofia, sociologia, dentre outras áreas e ciências, objetivando um maior avanço em suas encarnações, como percebemos o planejamento caracteriza o mundo espiritual, visando um maior êxito e sucesso nas novas oportunidades no corpo material.

A literatura nos mostra claramente que todos nós já fomos resgatados nos mundos espirituais inferiores, se olharmos para dentro de cada um de nós, vamos nos deparar com um alto teor de degradação, somos um pouco de cada coisa ruim que encontramos no mundo, nossas inúmeras experiências no mundo material cunharam pessoas melhores, sem dúvida, hoje somos melhores que nas vidas anteriores mas, mesmo assim, estamos longe dos ideais dos missionários descritos nas obras de Emmanuel, ainda vamos chegar a uma situação intermediária, mas para isso temos que nos dedicar intensamente, expulsando os males e a intolerância que ainda mourejam em nossos espíritos.

Somos espíritos em constante aperfeiçoamento, o trabalho e a assistência espiritual é uma constante em nosso processo evolutivo, o desencarne nada mais é que a passagem de um mundo material para o imaterial, nesta passagem não existe mudanças de valores e comportamentos, o desencarne não impulsiona a evolução, o trabalho constante nos auxilia imensamente neste crescimento espiritual, como na obra Missionários da Luz, psicografia de Francisco Cândido Xavier, a transformação de Segismundo nos leva a compreender a importância deste crescimento ascensional, depois de graves desequilíbrios na experiência anterior, marcados por assassinatos e suicídios, com o desencarne, a conscientização e o trabalho incessante no bem, no auxílio aos mais desvalidos e na intransigência nos ideais do bem, a recompensa surge de forma verdadeira e imediata, o trabalho é uma das fontes mais seguras e serenas para o progresso espiritual, entendamos esta lei e nos conscientizemos de que fora do trabalho não existe salvação.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Libertação

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O livro Libertação, de André Luiz e Francisco Cândido Xavier, da coleção A vida no mundo espiritual, nos leva a cidade dos gregorianos para acompanhar um resgate emocionante, nesta aventura vamos conhecer muitas histórias envolventes e entender um pouco mais do trabalhos dos amigos espirituais, uma obra envolvente.

 

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Morte e o morrer:  medos, tabus e os dilemas da humanidade

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Um dos maiores medos do homem e da civilização humana está associado à morte, todos sabemos que estamos condenados a perecer mas, constantemente, ficamos apavorados e amedrontados com a chegada deste momento que gera tanto desespero nos indivíduos e nas coletividades, levando muitos indivíduos a desequilíbrios intensos e frenéticos.

Desde os primórdios da humanidade, o ser humano vem se debatendo com a possibilidade da morte, tribos indígenas e culturas orientais constroem verdadeiros rituais para homenagear seus mortos e fazer com que estejam todos vivos na mente e no imaginário da sociedade, mesmo assim a morte causa repulsa e desespero em muitos indivíduos, somos racionais e nos julgamos modernos, mas ainda temos medo daquilo que pretensamente não conhecemos, digo pretensamente porque, segundo o conhecimento espírita, nascemos e morremos muitas vezes.

As religiões apresentam visões diferentes da morte, umas acreditam que o indivíduo quando morre passa a viver ao lado de Deus, outros acreditam que vamos mergulhar em um sono intenso, acordando apenas no dia do juízo final, neste momento seremos julgados por nossos atos na vida física, se formos absolvidos ganharemos o reino do céu agora, se formos condenados seremos expurgados para os locais de desesperança, rancor e desequilíbrios.

A doutrina espírita apresenta uma visão muito particular sobre a morte, para os espíritas a morte não existe, somos espíritos e estagiamos no corpo material como um instrumento de depuração e crescimento, nascemos e morremos inúmeras vezes para nos melhorarmos como seres humanos, desenvolvermos nosso desprendimento e nossos valores mais íntimos e pessoais, a vida no corpo material funciona como uma grande escola de aprendizados e ensinamentos onde aprendemos os verdadeiros sentidos da palavra amor.

Muitos questionam o porque não nos lembramos de nossas existências anteriores, se tivéssemos a possibilidade de lembrar as nossas vidas pregressas, poderíamos evoluir de uma forma mais rápida, argumentam estes indivíduos. A doutrina dos espíritos estimula o livre pensamento e aceita bem estas colocações mas acredita que, dentre os motivos de não lembrarmos de nossas vidas anteriores, é que não saberíamos como reagir a descobertas intimas e pessoais assustadoras, se vivemos inúmeras vezes e nestas experiências acumulamos muitos afetos, amores e sentimentos nobres, em contrapartida, acumulamos ainda, inúmeros desafetos, desamores e sentimentos menores, nas vivências passamos por muitas coisas e a lembrança efetiva poderia nos gerar graves constrangimentos morais, físicos e psicológicos.

Para o espiritismo as vivências são oportunidades sublimes de crescimento e de melhorias comportamentais e para o desenvolvimento de sentimentos e pensamentos mais avançados, deixando de lado uma vida marcada por desejos e buscas materiais e hedonistas e sua substituição por sentimentos e vivências mais intensas e estimulantes, com crescimento e desenvolvimento espiritual, nossa passagem pelo mundo espiritual tem este objetivo, crescer e se melhorar continuamente, afinal, esta é a lei de Deus, a lei natural que rege a sociedade e todos estamos naturalmente sujeitos a ela.

Vivemos em uma sociedade muito materializada, os valores do dinheiro e do poder material domina as mentes e os corações incautos, estamos nas afastando de Deus e as religiões tradicionais estão se deixando conduzir por interesses mesquinhos e, cada vez mais, marcados pelo materialismo, o dinheiro como meio está se tornando um fim para muitas sociedades e os excessos estão surgindo de forma acelerada, neste ambiente estamos tendo que conviver com um forte crescimento tecnológico em consonância com graves desajustes íntimos dos indivíduos, depressão, ansiedade, transtornos generalizados e suicídio são males modernos que estão afetando a todos os indivíduos e coletividades.

Neste mundo dominado pelo prazer material, pelo imediatismo e pelo hedonismo, somos impulsionados a gozar a vida todos os momentos, nos despindo do futuro e nos entregando ao gozo imediato, quando desencarnamos e percebemos que ainda nos encontramos vivos, somos acometidos de uma grande frustração, os momentos perdidos em farras e em prazeres sensoriais passam a nos cobrar a ausência de obras edificantes, quando acordamos estamos em situação de desespero e desesperança, marcados pelo medo e pela intensa decepção.

Outro ponto importante para se destacar, grande parte daqueles espíritos que desencarnam, desconhecem a sua nova situação, percebem algumas mudanças em suas vidas mais relutam em aceitar que desencarnaram, acreditam ou querem acreditar que o mal estar é algo temporário, com isso geram constrangimentos intensos em seus familiares e postergam esclarecimentos que são cruciais para sua nova condição de vida.

A morte é uma grande incógnita para a sociedade mundial e para o indivíduo particularmente, todos ouvimos desde pequenos que a morte é certa, a hora é que é incerta.   Esta frase representa uma grande verdade, sabemos que um determinado momento iremos passar para um outro mundo, este conhecimento nos parece inscrito no interior de cada um de nós, são informações que estão inseridas em nosso corpo espiritual e levamos para todo sempre.

Muitos acreditam que quando o indivíduo morre, ele parte desta vida para uma melhor, apesar de ser uma frase repetida exaustivamente pela sociedade e muitos acreditarem, os espíritas acreditam que existe uma inconsistência muito forte neste pensamento, muitos ao desencarnarem partem desta vida para locais muito piores, assustadores e infelizes, marcados por dores intensas, gemidos ensurdecedores e um cheiro insuportável, para muitos se trata do inferno agora, para os espíritas, o local é conhecido como umbral, local este imortalizado na obra clássica de André Luiz, Nosso lar.

            Existem vários equívocos sobre a morte que foram construídos pela sociedade desde seus primórdios, dentre elas,  que a morte torna a pessoa mais sábia, incrementa seus conhecimentos e as exime de seus erros ou equívocos anteriores, diante disso, todos que partem para o mundo espiritual devem ser lembrados com carinho e com atenção, os familiares e amigos daqueles que “partiram” devem orar constantemente e guardar sempre um respeito e um pensamento positivo de sua memória, como forma de auxiliá-lo em sua nova condição de vida e em seu aprimoramento espiritual.

Muitos fazem inúmeros pedidos para seus familiares e amigos desencarnados, pedem ajuda para superar momentos de dificuldades e estão, constantemente, solicitando a presença do desencarnado, estas atitudes geram severos constrangimentos no recém desencarnado, criando neste graves desequilíbrios e desajustes. Muitos desencarnados, ou ouvirem os pedidos e os choros de seus colegas ou familiares desencarnados entram em desespero querendo auxiliar, muitos deixam suas colônias e retornam ao mundo material com o intuito de amparar, infelizmente nesta atitude acabam causando maiores desequilíbrios e constrangimento aos colegas encarnados, gerando processos constantes de desequilíbrios mútuos e obsessões severas.

            Para muitos a morte assusta porque leva o indivíduo a um local desconhecido, com o conhecimento espírita a sociedade passou a conhecer melhor o significado da morte, destacando a vida no mundo espiritual, as vivências do espírito, as atividades desenvolvidas e os sentimentos que os dominam, deixando claro a existência de um verdadeiro espaço de interdependência entre os indivíduos encarnados e desencarnados, todos convivendo lado a lado, sofrendo as dores e gozando os prazeres da convivência compartilhada.

A Doutrina Espírita nos descortina a existência da morte, somos espíritos estagiando em corpos materiais, reencarnamos lado a lado para progredirmos coletivamente, nesta convivência nos encontramos debaixo dos mesmos lares como familiares, recebemos como filhos desafetos de outras existências físicas e nos embrenhamos em relacionamentos com pessoas conhecidas de muitas existências como forma de nos depurarmos de desajustes e desequilíbrios anteriores, onde ofendemos e fomos ofendidos, onde agredimos e fomos agredidos, onde matamos e fomos mortos, num espiral incrível regido pela espiritualidade maior em busca de um progresso que será alcançado por todos, indistintamente.

Ao desencarnar nos deparamos com nossas virtudes e nossos equívocos, quando acordamos no mundo espiritual vamos perceber como foi nossa existência no corpo físico, se formos para locais ermos, mal cheirosos e violentos, pode ter certeza que sua construção na matéria foi deficiente agora, se ao acordar pudermos nos enxergar em locais mais sublimes, acompanhados por pessoas mais equilibradas e serenas, nossos passagem no mundo da matéria foi exitosa e os frutos destes merecidos êxitos serão colhidos intensamente.

Na coleção  A vida no mundo espiritual, ditada pelo espírito André Luiz ao médium Francisco Cândido Xavier, os espíritos nos mostram que quando retornam ao mundo espiritual se entregam ao trabalho estimulador, servir aos irmãos mais necessitados, estudar as leis da natureza e se entregar ao conhecimento libertador auxilia e abre espaço para um crescimento continuado e edificante, para aqueles que se veem na ociosidade no mundo espiritual, o pós morte pode ser algo frustrante e decepcionante.

O crescimento deve ser visto como um esforço pessoal e individual, todos podemos e devemos crescer e nos desenvolver, nos melhorarmos como espírito, agregarmos conhecimento e buscarmos uma evolução constante, para isso somos auxiliados por missionários espirituais, irmãos dedicados que se entregam ao melhoramento contínuo. Um exemplo sempre presente nas obras iluminadas da doutrina espírita, é o caso de Segismundo, contida no livro Missionários da Luz, da lavra de André Luiz em parceria com o médium Francisco Cândido Xavier, depois de muitos desequilíbrios e desajustes na vida anterior, onde cometeu as mais severas insanidades, no mundo espiritual, depois de muitas dificuldades, tomou consciência de seus desajustes mais intensos, trabalhou intensamente, se dedicando de corpo e de alma para o auxílio dos irmãos sofredores e, com isso, conseguiu angariar virtudes e inúmeros créditos para uma verdadeira transformação moral e espiritual, que possamos acompanhar a experiência deste espírito abençoado e iluminado.

Numa sociedade marcada por intensa violência, como a que vivemos na atualidade, muitos irmãos estão retornando ao mundo espiritual em condições difíceis, exigindo dos trabalhadores da imortalidade uma vigília constante na sociedade, estes trabalhadores se desdobram no processo de orientação e auxílio para os recém chegados, amparando e auxiliando neste momento que, embora acreditem ser inéditos, são momentos vividos por todos os indivíduos inúmeras vezes nas mais variadas existências que todos experienciamos.

A morte é um momento doloroso para muitos, ainda mais quando somos separados daqueles que amamos intensamente, nestas separações somos tentados a bradar contra Deus, a xingar e a ofender, como se desta forma pudéssemos colocar pra fora nossa ira e nosso ressentimento, embora muitas vezes não entendamos os verdadeiros motivos da separação, a verdadeira fé nos leva a acreditar nos desígnios divinos, nestes momentos passamos a compreender que, na verdade, somos muito pequenos e insignificantes, conhecemos muito pouco da vida e estamos no mundo para crescer e as perdas são instrumentos importantes para compreender a justiça divina.

Diante do exposto acima, percebemos que a morte não mais existe como acreditamos, a doutrina codificada por Allan Kardec nos auxilia na compreensão dos verdadeiros ideais do mundo e da sociedade, mesmo assim sabemos que, com nossa insignificância e pequenez, temos muitas experiências para viver neste mundo e muitas perdas para computar em nossa trajetória de crescimento e de melhoramento espiritual.

 

Adriano Calsone, autor do livro Madame Kardec

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Adriano Calsoni

Olá Adriano, desde já agradecemos pela atenção e presteza em nos responder a algumas perguntas a respeito do livro espírita “Madame Kardec” que foi recentemente lançado.

Agradeço muitíssimo a confiança em nosso livro Madame Kardec, ciente de que estamos apresentando, aos leitores do Clube do Livro Letra Espírita, uma literatura genuinamente espírita e de qualidade.

A seguir algumas perguntas formuladas por nossa equipe com base nas curiosidades dos nossos leitores sobre a obra literária em comento.

Quando você tornou-se espírita e como descobriu o dom de escrever livros? Por que optou por escrever obras espíritas?

Me tornei espiritista nos anos 2000, na época da faculdade. Foi uma situação bastante inusitada, pois “desafiei” os espíritos a me transmitirem uma comunicação mediúnica na biblioteca da universidade. Daí, eu apanhei uma caneta e um pedaço de papel e me concentrei com muito ceticismo para um transe mediúnico – sem saber ao certo o que estava fazendo. Foi quando a minha mão direita (involuntariamente) começou a se movimentar e a escrever um pensamento muito diferente do meu. O acontecimento mecânico me chocou por horas. Ao sair da universidade, passei numa papelaria e comprei telas e tintas, e o ato se repetiu com muito mais intensidade. Em casa, logo me chamaram de médium e fui orientado a procurar a Federação Espírita do Estado de São Paulo. Permaneci nessa Instituição por quatro anos, fazendo os cursos de evangelização e de educação mediúnica. Minha chegada no Espiritismo foi assim: um misto de curiosidade com desafio.

Não enxergo, necessariamente, o ato de escrever livros como um dom. Vejo mais como uma paixão pela literatura espírita de qualidade, reforçada por uma entrega desinteressada em prol da Doutrina-Luz. É o que venho fazendo e é o que vem funcionando, sem pretensão alguma, em nome da verdade mais próxima da verdade.

A opção por escrever obras espíritas surgiu em 2002, quando senti a necessidade de se pesquisar sobre a pintura mediúnica que vinha exercendo à época, pois eu tinha muitas dúvidas sobre essa mediunidade. Foi aí que surgiu o nosso primeiro livro, Pintura Mediúnica – A visão espírita em ampla pesquisa (Mythos Books), coletânea espírita que nos facilitou o acesso à participação na primeira pesquisa científica mundial sobre pintura mediúnica e neuroimagem, que aconteceu em 2013, na Universidade de Aachen, na Alemanha.

Qual foi a sua principal motivação para escrever o livro “Madame Kardec” e o que pretende transmitir ao leitor?

A principal motivação surgiu ao constatarmos que a biografia de Amélie-Gabrielle Boudet estava completamente apagada dos anais do Espiritismo mundial, e que os espíritas haviam se esquecido da importância que a esposa de Allan Kardec exerceu na Doutrina Espírita, seja como espírita empreendedora, seja como a continuadora do legado espírita deixado pelo seu marido. Por meio de nossas pesquisas, fomos descobrindo que desapareceram (propositalmente) com a história de Amélie, ou seja, ocultaram a sua biografia num descaso sem tamanho. Tudo por conta dos interesses escusos de um grupo de “amigos” de Allan Kardec, os que se sentiram incomodados com as muitas iniciativas espíritas de Amélie. Em verdade: quiseram riscá-la do mapa do Espiritismo, mas não conseguiram…

O que pretendemos transmitir ao leitor, por meio da obra Madame Kardec é, justamente, a relevante militância da mulher mais importante do Espiritismo francês do século 19. Madame Kardec, como empreendedora inteligente, soube conduzir o legado espírita de maneira exemplar, cuidando da imagem póstuma de Allan Kardec e preservando as dez obras fundamentais do Espiritismo, principalmente contra as deturpações em seus originais, que se tornaram uma sorrateira ameaça.

Talvez, o principal destaque do trabalho discreto de Amélie está na defesa de nossa Doutrina. Ele teve que enfrentar os muitos “reformadores” sincréticos de plantão, que desejavam imiscuir teorias e sistemas esdrúxulos na água potável do Espiritismo. Muitas dessas enxertias
atentavam contra os preceitos espíritas, como fora o caso dos conceitos roustenistas e teosóficos (ambos aceitam, por exemplo, a retrogradação dos espíritos por meio da metempsicose), concepções que surgiram com a pretensão de “atualizar” a Doutrina ou mesmo “modernizar” Allan Kardec. Um aspecto contraditório nisso tudo foi que os próprios “espíritas” franceses consentiram essas aproximações difamatórias, o que ocasionou um fenômeno irreversível de cisão que, infelizmente, vem se repetindo nos dias de hoje, dentro do sincrético Movimento Espírita Brasileiro. Enfim, o passado espírita se repete…

Como foi realizada a elaboração e o desenvolvimento da obra? Houve orientações da Espiritualidade? Em caso afirmativo, poderia nos contar como ocorreram?

Madame Kardec é um trabalho de pesquisa espírita, não se trata de romance ou obra de ficção. Procuramos compor uma leitura leve e agradável, indo direto aos assuntos, sem rodeiros. O livro levou cinco anos para ficar pronto, haja vista a enorme dificuldade que encontramos para localizar, no Brasil e no exterior, fontes primárias e secundárias (inéditas) sobre a esposa do mestre. Tudo foi muito difícil, pois os historiadores espíritas do passado nos fizeram o grande favor de estilhaçar a biografia de Amélie, tendo nós, na atualidade, que juntar esses cacos biográficos, a fim de preservarmos a história que quase se apagou e o trabalho espírita de nossa biografada.

No decorrer das pesquisas, descobrimos a existência de Madame Berthe Fropo, mulher forte que fora amiga íntima de Amélie, e que a ajudou na manutenção da coerência doutrinária depois da morte de Allan Kardec. Durante a escrita da nossa obra, pressentimos, por diversas vezes, a aproximação do Espírito Fropo, nos sugerindo orientações sobre os caminhos literários que a biografia de Madame Kardec podia tomar. Inclusive, é da valente Fropo a belíssima mensagem espiritual que abre a nossa obra, psicografada pela médium Sandra Carneiro, de Atibaia-SP.

Mensalmente são lançadas dezenas de obras espíritas, mas poucas alcançam tanta repercussão como “Madame Kardec” está tendo nas redes sociais. Você esperava tamanha repercussão?

Acredito que a nossa obra vem ganhando tal repercussão por conta do ineditismo da pesquisa biográfica sobre Madame Kardec, como também pelo trabalho editorial realizado pela Vivaluz Editora Espírita. Eles produzem livros espíritas como obras de arte, com projetos gráficos impecáveis, como deveria ser toda obra espírita, pois os nossos leitores merecem um produto de alta qualidade.

O nosso trabalho alcança popularidade porque há nele muitas verdades, revelando uma Madame Kardec em sua plenitude. A obra não engana os seus leitores com distorções historiográficas, muito menos maquia os fatos espíritas do passado, já que é dever de todo historiador não ser conivente com falsários e exploradores que se passam (até hoje) por “benfeitores” do Espiritismo francês. Enfim, o livro deposita valores espíritas em quem realmente os merece: Madame Kardec, Berthe Fropo e Gabriel Delanne são exemplos de espíritas merecedores desses valores, principalmente pela vigilância redobrada na coerência doutrinária – em respeito ao legado espírita que Allan Kardec nos deixou.

Madame Kardec é considerada uma das figuras femininas mais importantes para a história do Espiritismo que em modo geral sempre teve homens como grandes expositores. Como você vê a relevância da mulher à frente da Divulgação Doutrinária?

Vejo como atos de conquista e persistência femininas. Hoje, nos encontramos num cenário muito diferente, onde a mulher espírita tem liberdade e voz ativa, é escritora respeitada, conferencista competente, dirigente eficiente e até vice-presidente de instituições espíritas respeitadas, como é o caso atual da Federação Espírita Brasileira. Sou otimista em acreditar que, em menos de uma década, uma mulher assumirá a presidência da FEB, posição secular que até hoje foi absorvida apenas por homens. Tempos atrás, essa presença feminina em cargos importantes no meio espírita nacional ou internacional era muito subjetiva e, no Espiritismo francês do século 19, pouco provável, também por conta dos preconceitos de gênero.

Fizemos um levantamento para descobrir quantas mulheres espíritas francesas frequentaram a antiga Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, presidida por Kardec nos idos de 1860. Descobrimos que não passavam de meia dúzia. Na década de 1880, esse número subiu para uma dúzia de militantes, diante de centenas de sócios homens, muitos desses, machistas e com ideias preconcebidas sobre como deveria se comportar a mulher na sociedade francesa.

Amélie-Gabrielle Boudet foi rara exceção entre as mulheres espíritas francesas, sempre respeitada pelo marido Allan Kardec, que compreendia muitíssimo bem a sua importância. Isso deixou de acontecer quando Kardec desencarnou, depois de março de 1869. Viúva Kardec, acabrunhada, passou a ser extremamente desrespeitada por aqueles mesmos “amigos” íntimos do mestre, sendo, inclusive, assediada moralmente pelo seu mandatário, o senhor Pierre-Gaëtan Leymarie, que foi o braço direito do mestre. Leymarie, como teósofo e roustenista convicto, sentiu-se “o sucessor de Kardec” sem o ser, o que o levou a subestimar as iniciativas espíritas da idosa viúva, a ponto de ignorá-la completamente como a responsável pela Revista Espírita, pela Livraria Espírita e demais ações que criou e desempenhou, onde seguia como a detentora do legado kardeciano. Infelizmente, encontramos algumas citações de fontes confiáveis sobre o assédio moral praticado por esse sincretista, o que levou a lúcida Amélie a um rápido adoecimento, como relatamos minuciosamente em nosso livro. Inclusive, as tristes circunstâncias da morte de nossa biografada têm muitíssima relação com essa montanha de descaso e assédio moral.

Como você vê o Movimento Espírita Brasileiro na atualidade com a expansão da literatura espírita?

A literatura genuinamente espírita sempre será o maior patrimônio da nossa cultura espírita. O que vemos hoje, no Movimento Espírita Brasileiro, é uma enxurrada de literatices se passando por espírita. São as abusivas pseudo-literaturas espíritas de baixíssima qualidade, até mesmo como literatura espiritualista.

Há um compromisso importante que o leitor espírita, ou simpatizante da literatura espírita, deve assumir como confrade consciencioso: ler de tudo que pousar em suas mãos, mas prezando sempre a qualidade doutrinária em Kardec. Isso equivale a dizer que as obras que contradizerem os preceitos espíritas devem ser compreendidas como literaturas não espíritas, e que essas não deveriam ser vendidas em livrarias espíritas, não deveriam ser aceitas em bibliotecas espíritas ou mesmo em feiras do livro espírita. Neste sentido também, sempre haverá a necessidade de seleção editorial rigorosa por parte dos dirigentes e/ou responsáveis por departamentos vitais nas casas espíritas. O que vem acontecendo ultimamente é uma verdadeira inversão de valores: obras não espíritas se passando por espíritas e sendo aceitas no Espiritismo sem critério algum. Isso incorre numa incoerência coletiva: a de estarmos sendo coniventes com esses rasos literatismos, permitindo a adoção e a prática de seus conceitos ou sistemas que impugnam o que já foi estabelecido como preceito espírita pelos espíritos superiores nas obras fundamentais da Doutrina Espírita.

Por fim, não façamos do incorruptível Espiritismo caricatura grosseira, permitindo a infiltração dos caracteres maléficos dessas literatices oportunistas.

 

Grupos religiosos promovem revanche teológica no país.

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Roberto Romano – Folha de São Paulo, Ilustríssima, 24 de fevereiro de 2019.

[RESUMO] Firmada pela Constituição de 1891, separação de Estado e igreja no Brasil passou por retrocessos desde então e permanece sob ataque de grupos que pretendem impor a religião à vida pública, diz autor.

Nos tratos entre poder civil e mando religioso, a grande tese da Igreja Romana foi expressa por Leão 13 na encíclica “Immortale Dei”: “A Igreja e o Estado devem ser unidos um ao outro como alma e corpo, que constituem no homem um todo natural”. A doutrina vem de longe, mas foi sintetizada por Roberto Belarmino, com a proposta de uma “soberania espiritual indireta” do papa sobre o Estado secular. Se o dirigente político deixa a fé, surgem ameaças à saúde coletiva.

Ao mover sua imprensa e para censurar os jornais não católicos, o clero brasileiro gastou recursos de propaganda contra os maçons (algo que já vinha do Império), liberais, espíritas, anarquistas e todos os que poderiam pôr em dúvida a “soberania espiritual” do Sumo Pontífice. O protestantismo foi particularmente visado. Na Revista Eclesiástica Brasileira, na Revista Vozes ou em pasquins diocesanos, os protestantes eram descritos como o grande malefício.

Um livro virulento do padre Soares d’Azevedo comparava o protestantismo à peste, ao anarquismo e a outras “doenças” sociais. Quem no Brasil adere à reforma, diz o sacerdote, só pode ser espião imperialista —no caso, dos EUA. A invasão protestante ameaçaria a integridade do Estado, visto que as instituições nacionais tinham como essência e origem o catolicismo. Apenas os católicos seriam patriotas, somente eles garantiriam a soberania nacional.

O mesmo ataque foi retribuído, contra os católicos, pelos defensores do laicismo: o Vaticano seria uma potência estrangeira capaz de ameaçar nosso Estado soberano. Note-se a mudança nas cores da paleta: no século 20 ser católico era prova de patriotismo. Hoje, na visão de grupos do governo Bolsonaro, a Igreja Romana põe em perigo a segurança e a soberania do Estado. Mudaram os personagens, o problema continua: agora os evangélicos imaginam que suas congregações e o poder estatal formam um só corpo.

Acusam-se os católicos de lesa-pátria, sobretudo com o próximo sínodo sobre a Amazônia, congresso de bispos a ser realizado em outubro, em Roma. O general Augusto Heleno queixou-se de que o encontro seria “interferência em assunto interno” do Brasil, o que evidencia nova crise entre Estado e Igreja. Segundo o jornal O Estado de S. Paulo, o governo brasileiro monitora com preocupação a ação do clero e pediria ajuda à Itália para travar a exploração de temas da Igreja que considera ligados à esquerda.

Depois Heleno negou plano de espionar membros da igreja, mas reafirmou sua preocupação, uma vez que alguns dos temas do Congresso, segundo ele, “são de interesse da segurança nacional”. “Quem cuida da Amazônia brasileira é o Brasil”, afirmou. Espionar clérigos, de fato, não é uma tarefa digna da sociedade civil ou do Estado. E, no campo diplomático, pedir auxílio da Itália para pressionar o Vaticano é ignorar a natureza do adversário.

Num gesto cesaropapista, setores oficiais postulam a participação, no sínodo, de autoridades civis. Todos esses programas e teses, que tentam expulsar da vida pública religiões concorrentes, levam à única conclusão racional: o Estado não pode ser o corpo de uma crença no sagrado; deve permanecer neutro para escapar da destruição que devastou a Europa moderna nas guerras de religião.

O que significa um Estado laico? Examinemos a tese política que recusa qualquer religião como fonte do poder público. Ao contrário do vocábulo “demos”, “laós” (povo) não tem etimologia confiável, mas o nome surge na prosa e poesia gregas. Em Homero pode significar “gente, súditos, cidadãos, assembleia”. Como não há na Grécia distinção forte entre clero e fiéis, apenas no Egito são diretamente opostos o laós e o sacerdote.

No aristocrata autor da “Ilíada”, o nome se aproxima do pejorativo. Em Platão indica um aglomerado humano. As pessoas no teatro e na assembleia integravam o laós. No cristianismo primitivo o termo representa os fiéis opostos aos pagãos.

A Igreja assumiu várias doutrinas filosóficas para refletir sobre o Cristo e a vida coletiva. Alguns padres seguiram o estoicismo, outros o neoplatonismo. Neste último o representante máximo foi Santo Agostinho, cuja importância sofreu a concorrência do misterioso Dionísio, o Areopagita. No livro dos Atos mencionam-se discursos do apóstolo Paulo em Atenas. Aquelas falas teriam sido assumidas por Dionísio.

Apenas como curiosidade, com ele havia uma crente cujo nome era Damaris…. Soa atual no Brasil, apesar de a letra “i” ter sumido em favor do “e”.

Por volta de 840, os escritos de Dionísio foram traduzidos por João Escoto Erígena e usados como autoridade na Idade Média. Neles, o conceito fundamental é o de hierarquia. O termo reúne “hieros” (sagrado) e “arché” (princípio, poder, início). O que é uma hierarquia? Resposta: “Um sistema de patamares com respeito ao conhecimento e à eficácia”. Até hoje a Igreja segue os parâmetros definidos por Dionísio nos campos do saber e da realidade.

Ao dizermos algo a respeito de Deus, sabemos que dele jorra uma luz espalhada pelos seres. Quanto mais próximo do ser divino, mais brilhante e digna a criatura. Há na ordem cósmica e humana uma escada para cima (superior) e outra para baixo. Aos seus degraus chamamos hierarquia.

Cada ente, natural ou humano, recebe sua luz de outro, mais elevado, e a transmite ao inferior. O mundo terreno reflete o celeste, os anjos são “espelhos espirituais do abismo divino”, disse o teólogo Paul Tillich. Jacques Maritain, filósofo importante da Igreja no século 20, publicou um livro célebre cujo título é totalmente dionisíaco: “Distinguir para Unir, os Graus do Saber”.

Cosmos e saber são hierarquizados, assim como a estrutura da Igreja e dos poderes políticos. A diferença entre superiores e inferiores não pode ser abolida. Tentar sua igualização é destruir a ordem divina. No mais alto posto situa-se o clero. Abaixo, os reis e nobres. E no plano mais baixo estão os leigos, o povo, o laós. Tal sistema nega a igualdade política. A Igreja Católica exibe na sua forma de governo e pensamento semelhante imaginário.

É impossível quebrar a escala hierárquica, dos anjos aos homens. À pergunta “se Deus fez todas as coisas, por que não as fez iguais?”, Agostinho apresenta uma fórmula: “Non essent omnia, si essent aequalia”. Cada coisa ocupa um lugar diferente na ordem dos seres. A igualdade seria oposta à natureza, ao mundo social e político. Daí surge a tese da soberania eclesiástica na Idade Média —e depois a da soberania pontifícia indireta, após a Reforma Protestante.

Com Lutero e Calvino temos uma inversão do pensamento ordenado por Dionísio. Quando os reformadores negam a autoridade eclesiástica, bem como a existência de intermediários entre o mundo finito e o além, abrem a via para instaurar uma sociedade laica e um Estado idem. Evidentemente, tal mudança não ocorre de imediato. Nos “heréticos” restam traços do poder clerical e da hierarquia na vida humana.

Quando seus discípulos se insurgem, exigindo igualdade política, Lutero defende os príncipes e amaldiçoa os líderes da Revolução Camponesa, sobretudo Thomas Münzer. Apesar de tudo, na reforma, o poder laico firma-se de modo perene. A Igreja é a união do povo comum, os leigos, e dispensa hierarcas religiosos. Logo dispensará os hierarcas políticos. Todos os reacionários do século 19, de Joseph de Maistre a Donoso Cortés, identificam a gênese da “fatal democracia” em Lutero.

No movimento luterano —e depois, calvinista—, fortaleceu-se a luta pela igualdade e a busca do poder laico sem guantes clericais. Não por acaso, o coletivo que mais contribuiu para o reforço do sistema parlamentar e da república inglesa ostenta o nome de Os Niveladores (Levellers). No mesmo passo, Francis Bacon defende a ciência e o ensino com base no método, não em fórmulas metafísicas. Exemplo dado por ele: para desenhar um círculo perfeito é preciso raro gênio. Com o compasso, todos cometem a proeza.

A democratização trazida pelo método segue para as hostes políticas puritanas e civis. A genialidade e o milagre, bases do aristocratismo hierárquico, deixam a cena em prol do trabalho científico disciplinado. O mundo perde o encanto e se transforma em algo prosaico, sem hierarquias sagradas.

As Luzes continuam as lutas da reforma e da ciência. Desde então, o saber se transforma na política cujas bases é a laicidade plena, afastando o religioso. Kant, um filósofo que segue a reforma, proclama: “Nosso tempo é o tempo da crítica, à qual tudo deve se submeter. A religião, por sua santidade, a legislação, por sua majestade, desejam dela fugir. Mas então elas suscitam uma justa suspeita e não podem desejar o respeito sincero que a razão concede apenas ao que pode ser sustentado em livre e público exame”.

No poder e na ciência laicos não existe “magister dixit” (porque o mestre falou). Quem diz hierarquia religiosa diz ocultamento ou censura, como no “Index Librorum Prohibitorum” (índice dos livros proibidos). Daquele volume para a totalitária fogueira de livros o passo é curto. A vida laica repele todo ato censor ou tutela sobre coletivos e indivíduos. Nenhuma autoridade recebe o mando do ser divino, mas do povo.

É a tese avançada pelo francês Diderot, assumida na Constituição dos Estados Unidos da América: “Nous, le peuple”… “We, the people” (nós, o povo). O Estado laico, ou do povo, triunfa e, com ele, a democracia. É abolida no espaço público a figura da hierarquia divina. Todos são iguais. Contra semelhante atitude, nos séculos 19 e 20, a Santa Sé se une aos movimentos baseados na hierarquia do mando, com Mussolini, Hitler e outros.

Logo após 1500, o Brasil conhece a contrarreforma, reação aos movimentos protestantes. Adeptos da nova religião aqui estiveram, sobretudo franceses e holandeses. Mostraram posição mais etnocêntrica do que os jesuítas. Intolerantes para com as crenças indígenas, afirmavam serem as danças e cantos das tribos, bem como seus costumes, obra do Diabo.

Com a expulsão dos invasores (como se os portugueses não tivessem invadido o território…), o catolicismo retoma a hegemonia. Nos séculos seguintes, tal preponderância sofre sob o padroado, o acordo entre Estado e Vaticano cujo modelo herdamos de Portugal. O poder laico do rei controla a Igreja, dá-lhe pouca liberdade. Várias medidas estatais reduzem o poder de fogo eclesiástico. No final do Império, a “soberania espiritual” era só um desejo do clero ultramontano.

Na República, são claras duas políticas contrárias à presença religiosa no ordenamento coletivo. Os seguidores de Auguste Comte, embora com forte número de militares, almejam um poder civil: “Se, no regime democrático (…), é condenada a preponderância de qualquer classe, muito maior condenação deve haver para o predomínio da espada, que tem sempre mais fáceis e melhores meios de executar abusos e prepotências”, afirmou Benjamin Constant em 1877.

Os positivistas adotam a separação de Igreja e Estado e proclamam que o segundo não deve “apoiar com a força do poder o ensino de qualquer doutrina”. Como diz João Cruz Costa, o programa positivista lançou “as bases de uma política racional para o Brasil”, a despeito de recuos táticos (com o voto positivista foi mantida a proibição do divórcio).

Entre os liberais a predominância da Igreja foi entendida como “imperialismo católico”. O Vaticano, pensavam, seria um Estado com agências no Brasil, o que traria óbices para o país soberano. O mais forte argumento liberal encontra-se na tese, como vimos acima fundamentada, de que o ensino da Igreja pregava a desigualdade civil.

Radicalizando, Saldanha Marinho denuncia o poder eclesiástico “por sua campanha infernal contra a civilização”. O programa se firmou como laico para garantir ao Estado o monopólio da imposição legal. “Medida indispensável de progresso e até de segurança pública a decretação do divórcio perpétuo da Roma eclesiástica do Brasil político” (Saldanha Marinho, citado por Maria Stella Bresciani).

Na Constituição de 1891, a primeira da República, surgem os pontos defendidos por positivistas e liberais. Na Carta se firmou a laicidade do Estado. A partir daí, vicissitudes nacionais definiram avanços e retrocessos no trato entre religião e vida pública.

Sob Getúlio Vargas ocorreu um retorno aos privilégios eclesiásticos em detrimento da laicidade, apesar dos elos getulistas com as raízes positivistas. Foi a hora em que a Igreja moveu massas humanas para garantir leis favoráveis às suas exigências. Seguindo a retomada do vínculo entre poder civil e religioso (cujos resultados marcantes foram o Tratado de Latrão com Mussolini e a Concordata com Hitler), a Igreja “consagrou” o Brasil ao Sagrado Coração de Jesus, marca da “soberania espiritual” católica. O símbolo de tal consagração é o Cristo Redentor no Rio de Janeiro.

No regime militar de 1964, a Igreja Católica, via CNBB, aprova os atos institucionais, incluindo o de número 5. Fora a minoria de bispos, padres, freiras e leigos, ela apoia o Executivo. Naquele momento, as seitas neopentecostais aumentam seu número e a quantidade de fiéis. Os protestantes, antes minoritários e perseguidos, expandem suas hostes.

Embalada desde Vargas pelas benesses do Estado, a Igreja não percebeu, sobretudo no pontificado de João Paulo 2º —personagem presente em escândalos como o Irã-Contras, apoiador de Pinochet e outros regimes absolutistas—, a concorrência que ameaçava sua hegemonia.

Hoje lideranças católicas, unidas a igrejas e movimentos evangélicos, pretendem dar ao Estado e à sociedade formas legais contra o laicismo. Os evangélicos substituem o catolicismo, agora se imaginam a nova alma do corpo estatal.

O presidente eleito deu a senha: somos um Estado cristão, não laico. Assim, o religioso retoma suas pretensões políticas sob a diretriz de seitas que não seguem com justeza a reforma, não valorizam o traço civil dos assuntos estatais. Por enquanto, notemos, os pastores são obrigados a dividir espaço com os militares de tradição católica e laica.

Assistimos à revanche do campo teológico-político contra os princípios democráticos da Reforma Protestante, do liberalismo e do programa positivista que exigiam a separação de Igreja e Estado. Os sinais de imposição religiosa nos campi e nas escolas brasileiras são evidentes, com ataques à teoria da evolução e com a defesa do criacionismo.

Mais grave é a guerra contra os direitos humanos, sobretudo os da mulher e das minorias. A acreditar nas declarações de representantes religiosos acerca de como deve ser o Estado brasileiro, à mulher se reservam os famosos três C vigentes no período mais negro da história ocidental: casa, cozinha, crianças.
Estado laico é sinônimo de poder democrático, do povo. Se ocorrer a sua morte e se forem restaurados os hierarcas (de qualquer religião), a democracia será definitivamente banida. O futuro dirá.

Roberto Romano, professor de ética e política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, é autor de “Razão de Estado e Outros Estados da Razão” (ed. Perspectiva), entre outros.

 

Bancada religiosa e baixo número de filhos desafiam Estado laico

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 LUIZ FELIPE PONDÉ Folha de São Paulo, Ilustríssima, 24 de fevereiro de 2019.

[RESUMO] Escritor identifica na atividade legislativa e na baixa taxa de natalidade verificada entre defensores do secularismo os desafios mais importantes para a manutenção do Estado laico.

O Brasil corre o risco de deixar de ser um Estado laico? E pior: passaria a ser um Estado teocrático? E pior ainda: seria o Deus brega da classe média que tomaria conta do país? Sim, porque até entre os deuses há diferenças de classes. Se for um Deus chique que combine com vinho branco gelado no verão e incenso, está valendo. Mas, se for um Deus brega de “crente”, “tô fora”. Seria essa afirmação um preconceito?

Estado laico e sociedade secular, conceitos afins, são realidades históricas; logo, podem deixar de existir, pelo menos em teoria. Tudo que é histórico é, de alguma forma, efêmero. As angústias pela fundamentação absoluta da moral brotam dessa agonia com o transitório, o relativo e o efêmero. Por isso, a questão de se o Brasil (ou qualquer outro Estado) corre o risco de deixar de ser laico pode ser sempre levantada.

A máxima de Bolsonaro, “Deus acima de todos”, é uma ameaça velada ao Estado laico no Brasil ou é pura retórica? Na democracia tudo é retórica e, por isso, tudo é para valer, já que não existe nada fora da retórica. Não acho que Bolsonaro esteja “brincando” quando fala isso, mas não acho que ele vá pegar ninguém pelo braço e jogar dentro da igreja ou proibir o ensino de Darwin (e se tentar proibir o de Marx ou qualquer outro autor, vamos berrar) nas escolas.

Pelo contrário: acho que ele fala isso porque grande parte do povo brasileiro pensa assim, mas não no sentido de abrir mão do Estado laico ou da sociedade secular; pensa assim como quem se lembra de uma antiga cantiga de ninar familiar —se bem que hoje, como não existem quase mães e avós, essa comparação que fiz pode ser incompreensível. Você não entendeu o que Estado laico e sociedade secular têm a ver com o assunto de mães e avós em extinção? Têm muito, espere um pouco e verá.

Enfim, Bolsonaro fala “Deus acima de todos” da mesma forma que pode falar “bandido bom é bandido preso” ou “vou acabar com a corrupção”. Dizer “Deus acima de todos” acalma muitas almas. Outras se acalmam com #EleNão, outras com “namastê”, outras com Viagra.

Há gradientes entre uma sociedade secular e seu irmão gêmeo, o Estado laico, e seu oposto teocrático —e o Brasil está bem longe deste oposto. Há, no entanto, nuances, e o vetor pode pender mais para um lado ou para o outro.

Um teste possível para ver se um Estado deixou, de fato, de ser laico não é se há crucifixo nas paredes ou se na Constituição daquele país se evoca Deus, mas sim se um juiz aceita o depoimento de um pastor dizendo que fulano matou a mulher porque ouviu vozes do Diabo mandando que a matasse. E a partir disso declara que fulano foi vítima de manipulação espiritual maligna.

Por outro lado, se um Estado proíbe o aborto em nome da crença de que “a vida pertence a Deus”, está dando uma atenuada na sua condição de laicidade. Entre esses dois polos, já vemos o gradiente em ação.

O chamado Estado laico (separação de religião e Estado) é fruto histórico das guerras religiosas na Europa entre católicos e protestantes. A defesa de um Estado “sem religião” decorreu do esgotamento espiritual, físico, econômico, social, político e psicológico causado por essas guerras.

O filósofo romeno Emil Cioran dizia que sua busca na vida era “tornar-se virtuoso pelo cansaço”. Essa máxima aplica-se bem ao caso. O Estado laico não foi buscado como meta —chegou como resultado do cansaço das guerras religiosas na Europa. A discussão sobre o conceito vai nascendo como fruto dessa constatação.

Os acordos conhecidos como Paz de Vestfália —que não existiu como tratado único— são identificados como a data fundante (1648), de modo simbólico, do Estado moderno, e, consequentemente, do nascimento do Estado laico. Por quê? Porque as guerras entre católicos e protestantes deram empate.

Homens, mulheres, crianças, estradas, casas, cavalos, cidades, riquezas, tudo destruído e ninguém vencia ninguém. Como consequência, decidiu-se que ninguém poderia interferir no território de outro príncipe a fim de se meter na religião ali vigente.

Para quem conhece um pouco a história, a vitória simbólica foi do protestantismo, pois este já nasceu submetido ao poder secular (não religioso, isto é, poder sobre o tempo histórico), enquanto os católicos combatiam a favor de uma Igreja Católica que sempre viveu às turras com o poder secular, caso este não aceitasse a ingerência “divina” do papa e seu clero.

Por isso os protestantes cultos, quando indagados se o movimento evangélico gostaria de destruir o Estado laico, respondem com a seguinte pergunta: “Você acha que queremos destruir nossa própria invenção?”.

Um Estado sem religião é bom para todos, porque a opinião religiosa das pessoas pode mudar —e quem mandava pode passar a vítima dos novos mandantes. A neutralidade religiosa garante a vida saudável das próprias religiões. É isso o que significa ser um religioso moderno. Religiosos ignorantes querem que o Estado se mele com religiões.

O filósofo Charles Taylor, no seu monumental “Uma Era Secular”, ensina que o processo de secularização da sociedade foi longo. Iniciado no século 15, passou pelas guerras religiosas, pelos avanços da burguesia comercial urbana e acabou por se organizar ao redor de dois vetores essenciais, que são, por si próprios, externos à política, ainda que a tenham impactado, levando a Europa à experiência laica e secular. Taylor fala de duas condições básicas de possibilidade do surgimento do Estado laico e da sociedade secular.

A primeira condição é o sucesso da técnica causado pelo avanço do método científico, baseado na experimentação empírica, a partir da “matematização” da natureza. Isso significou uma relativização, ainda que “inconsciente”, da necessidade das práticas religiosas cotidianas para resolução de problemas relacionados à saúde e ao sofrimento físico em geral.

A melhoria das condições materiais de vida, impactando as condições psicológicas e sociais, levaram a população europeia a experimentar um recuo na dependência da crença.

A segunda condição é o surgimento da organização do Estado moderno e de Direito. A melhoria da operação do Estado na lida com a organização da vida social, que dependeu do avanço técnico e científico, também implicou um recuo prático da dependência das expectativas religiosas como solução para os problemas do dia do dia no que tange a condições materiais urbanas, resolução de conflitos jurídicos, avanços na racionalização econômica —enfim, tudo que causa uma redução no sofrimento em escala social e política.

Segundo Taylor, mesmo o ateísmo orgânico —aquele ao qual a pessoa chega sem esforço de pensamento, mas por desinteresse prático numa vida religiosa— é fruto desse processo. Muitas pessoas mantiveram suas crenças, ainda que de modo atenuado.

A pergunta que deve ser feita: quem optaria pela mágica ou pela oração antes de buscar o antibiótico ou o juiz? Isso não significa que muitas pessoas não busquem ajuda de xamãs, como o ex-famoso João de Deus, mas o fato é que o médico e o juiz são os arquétipos do processo bem-sucedido de combate ao sofrimento levado a cabo pela condição laica e secular.

Agora perguntemos, os brasileiros estariam dispostos a abrir mão do médico e do juiz em favor da mágica e da oração naquilo que de fato impacta o sofrimento e a morte, por conta de uma frase de Bolsonaro ou de sua eleição? Não creio. Mas há risco de atenuação do gradiente de nuances em favor de uma religiosidade mais prática? Sim, há algum risco. Apontaria dois deles, maiores em termos de processo.

O primeiro é o uso do Legislativo para atingir hábitos e costumes. Se uma bancada religiosa prática se tornar significativa, pode haver algum risco.

No entanto, o histórico do movimento evangélico no Brasil tem sido de pragmatismo político beirando o fisiologismo (mesmo o PT, que posa de defensor do Estado laico e da sociedade secular, foi parceiro de atores políticos evangélicos) e de liberalismo popular periférico, melhorando mesmo as condições de vida de populações abaixo da classe média que perderam a “fé na política”. Talvez essas camadas a tenham recuperado na última eleição, mas isso leva tempo.

Outro impacto, também lento no seu efeito, contra o experimento laico e secular, e que não é apenas traço do Brasil —e nisso ele é mais sério, de certa forma—, é aquele ligado a mães e avós, que citei acima. Eric Kaufmann, demógrafo das religiões, publicou em 2010 um estudo comparativo, e provocativo, da fertilidade feminina entre mulheres seculares e mulheres de adesão religiosa estrita no Ocidente (em português comum, “religiosas praticantes”).

Em “Shall the Religious Inherit the Earth?” (os religiosos herdarão a Terra?), ele mostra como o experimento laico e secular pode ser duramente afetado nos próximos 50 a 100 anos pelo fato de que “os seculares têm ótimas ideias, mas os religiosos têm mais bebês”.

Os seculares defendem o darwinismo, mas quem o pratica são os religiosos, segundo Kaufmann, porque o darwinismo é, no limite, uma teoria demográfica: quem tem mais prole está mais bem adaptado —e se impõe. Resultado: a sociedade secular e o Estado laico podem sofrer sérias baixas, simplesmente, pelo fato de que os seculares preferem cachorros, um filho só (quando muito), bikes e mídia social.

À medida que as mulheres optam por papéis sociais que não a maternidade, “bebês seculares” deixam de nascer. A Europa agoniza de pânico diante desse risco. A solução é “atacar” os muitos jovens que vivem em famílias de adesão estrita e “convertê-los” à vida secular. O ciclo, porém, tende a se repetir. Cachorros e bikes não sustentarão o Estado laico nem a sociedade secular.

Luiz Felipe Pondé, colunista da Folha, escritor e ensaísta, é autor de “Os Dez Mandamentos (+ Um)” e “Marketing Existencial”, ambos da Três Estrelas. É doutor em filosofia pela USP.

 

 

Só a retomada salva o País

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José Luís Oreiro – Valor Econômico, 22 de fevereiro de 2019.

A sociedade brasileira passa por uma profunda crise econômica, política e social desde 2013. As manifestações de 2013 foram o evento catalizador de um processo de crescente descrédito na classe política e, posteriormente, de outras instituições da República.

A insatisfação de parte expressiva da população com a performance dos políticos, em particular, e do Estado, em geral, foi incrementada pelos efeitos deletérios da recessão iniciada no segundo trimestre de 2014 – que foi detonada por um colapso do investimento do setor privado, que se contraiu por três trimestres consecutivos, a taxa de 10% por trimestre. Isso resultou de um processo de “profit squeeze”, ou seja, queda das margens de lucro e da taxa de retorno sobre o capital próprio das empresas não financeiras, a qual se tornou na mais duradoura e profunda crise econômica do Brasil nos últimos 30 anos. No auge da crise, mais de 14 milhões de brasileiros estavam desempregados e o PIB apresentou retração superior a 8% em termos reais, com destruição de riqueza de R$ 600 bilhões.

A recessão acelerou o desequilíbrio fiscal da União e dos entes subnacionais, muitos dos quais passaram a enfrentar dificuldades crescentes para manter o pagamento dos servidores em dia. A deterioração crescente do resultado primário da União a partir de 2014 gerou um crescimento acelerado da dívida pública como proporção do PIB, colocando o endividamento da União em trajetória claramente insustentável. A perda de espaço fiscal decorrente desses desdobramentos impediu a realização de uma política fiscal anticíclica justamente no momento em que a mesma era mais necessária. Pelo contrário, a política fiscal executada em 2015 foi francamente contracionista, amplificando assim os efeitos da recessão iniciada em 2014.

Outro fator que amplificou os efeitos recessivos do colapso do investimento privado foi a elevação da taxa básica de juros promovida pelo Banco Central em 2015, na tentativa de debelar os efeitos de segunda ordem que o aumento das tarifas dos públicas e dos combustíveis poderiam ter sobre a dinâmica da taxa de inflação.

O desemprego crescente aguçou a percepção de que a crise brasileira era o resultado da corrupção generalizada dentro do Estado, tal como estava sendo revelado ao público pela Lava-Jato. Essa percepção acabou por gerar um sentimento difuso de “ódio” à classe política, principalmente aos políticos diretamente ligados ao PT.

O imenso apoio popular ao impeachment da presidente Dilma Rousseff foi a demonstração clara de que, na cabeça do cidadão mediano, a crise era resultado direto da corrupção dirigida e organizada pelo PT e seus aliados. Nesse contexto, uma ampla parcela da população acreditava que o afastamento do PT do poder, pelo impeachment, cujas bases jurídicas eram duvidosas, seria uma condição necessária, quando não suficiente, para o fim da corrupção e para a retomada do crescimento econômico.

Os primeiros meses do governo Michel Temer pareciam apontar para uma retomada robusta do crescimento no início de 2017, ainda que poucas pessoas acreditassem na vontade do governo de combater a corrupção.

O governo Temer apresentou à sociedade brasileira uma narrativa essencialmente ortodoxa das causas da crise de 2014 a 2016. O problema fundamental era o desequilíbrio fiscal estrutural, resultado do “contrato social” estabelecido pela Constituição de 1988. Segundo economistas ligados ao governo, a Constituição havia produzido um conjunto de benefícios sociais para os mais pobres e de privilégios para os funcionários públicos que impunham um ritmo para o crescimento dos gastos públicos (entre 5 a 6% ao ano em termos reais) que era muito superior à capacidade de crescimento da economia.

Durante um certo período foi possível acomodar esse aumento dos gastos com o aumento da carga tributária. Contudo, a partir de 2011, a receita passou a crescer mais ou menos em linha com o PIB de tal forma que a deterioração do resultado primário da União tornou-se inevitável. Essa deterioração teria sido “mascarada” pelas “pedaladas fiscais” e outros artifícios de “contabilidade criativa”; mas, a partir de 2014, ficou impossível encobrir a verdade nua e crua de que o governo não era mais capaz de gerar superávits primários e que, portanto, a dívida pública entraria em trajetória explosiva. O desequilíbrio fiscal crescente acabou por gerar perda de confiança dos empresários no governo, o que se refletiu em elevação do prêmio de risco país, desvalorização da taxa de câmbio, queda dos preços das ações e elevação dos juros futuros. Esse quadro levou a uma queda dos gastos de investimento e de consumo, fazendo com que o país entrasse na pior recessão dos últimos 30 anos.

Face a essa narrativa, a solução para a crise era muito clara: o governo precisava fazer um ajuste fiscal estrutural, cujo foco deveria ser a redução do ritmo de crescimento das despesas. Para tanto, foi desenhada uma estratégia em duas etapas. Na primeira, o governo enviou para o Congresso uma PEC criando um teto de gastos para o governo federal. Esse teto não seria a solução do problema fiscal, mas apenas uma espécie de mecanismo que explicitaria o conflito distributivo existente dentro do orçamento. A ideia era congelar os gastos primários da União em termos reais por dez anos, ao final dos quais poderia ser modificado o indexador dos gastos públicos, que havia sido definido como a variação do IPCA no período inicial de vigência do teto.

O problema é que todos os itens das despesas obrigatórias (aposentadorias, pensões, salários do funcionalismo público, gastos com saúde e educação) apresentaram nos últimos 20 anos uma taxa de crescimento muito acima da variação do IPCA. Dessa forma, se nada fosse feito para reduzir o ritmo de crescimento desses gastos, o cumprimento da regra do teto obrigaria a administração federal a reduzir progressivamente os gastos discricionários, que incluem gastos com o investimento em infraestrutura, com o reaparelhamento das Forças Armadas e com a manutenção de instalações do governo federal.

Como é impossível manter o funcionamento da máquina pública federal sem a realização de um valor mínimo de gastos discricionários, segue-se que a ameaça de “shutdown” obrigaria o Congresso a realizar aquilo que foi denominado de “a mãe de todas as reformas”, a reforma da Previdência. Uma vez aprovada uma “boa” reforma, o desequilíbrio fiscal estrutural seria eliminado, e o teto dos gastos poderia, eventualmente, ser abolido. Nessas condições, o Brasil poderia retomar o crescimento em bases sustentáveis, pois se produziria uma “contração fiscal expansionista”, ou seja, o ajuste das contas públicas levaria automaticamente a um aumento do investimento e do consumo do setor privado.

A PEC do teto dos gastos foi aprovada no final de 2016 e tudo apontava para a aprovação de uma reforma da Previdência em 2017. As condições financeiras da economia brasileira (risco país, taxa de câmbio, juros futuros e índice Bovespa) apresentavam nítidos sinais de melhora no primeiro trimestre de 2017. A melhoria das condições financeiras ocorrida a partir do segundo semestre de 2016 permitiu ao BC iniciar um processo “lento, gradual e seguro” de redução da taxa de juros, o qual deveria, em algum momento, estimular o crescimento.

Mas no meio do caminho havia uma pedra, e essa pedra foi o escândalo da gravação das conversas, por assim dizer, pouco republicanas, entre o presidente da República e Joesley Batista, da JBS. A divulgação desses áudios produziu uma crise política de proporções gigantescas, obrigando o presidente a gastar todo o seu capital político e otras cositas más na tentativa de angariar apoio político para o seu governo e impedir um novo processo de impeachment. No fim do ano de 2017 já estava claro que a reforma da Previdência não teria condições políticas de ser aprovada durante o governo Temer.

Surpreendentemente os mercados financeiros não desabaram com o adiamento da reforma da Previdência. Índices de condições financeiras continuaram relativamente bem-comportados ao longo do segundo semestre de 2017 e no primeiro trimestre de 2018. Apesar disso, o crescimento foi decepcionante em 2017. O PIB apresentou expansão de 1,1% em termos reais, após dois anos de queda acentuada. No fim de 2017, a economia ainda se encontrava 6% abaixo do nível observado em 2013. E o pior, o desemprego superava 13 milhões de pessoas. A produção industrial encontrava-se ao nível de 2004, recuo de mais de 10 anos.

O ano de 2018 se inicia com grandes expectativas de aceleração do crescimento. O ministro da Fazenda esperava um crescimento entre 2,5% a 3%. Se essas expectativas se confirmassem, a taxa de desemprego poderia fechar o ano em torno de 10% da força de trabalho, gerando um saldo de 2 a 3 milhões de novos empregos. Nesse cenário róseo, o candidato à Presidência da República que encarnasse a continuidade da política econômica do governo Temer seria praticamente imbatível nas eleições de outubro.

Mas o otimismo de Henrique Meirelles mostrou-se sem fundamento. No primeiro semestre de 2018 a atividade mostrava sinais de recuperação muito lenta, embora a grande recessão tivesse oficialmente terminado no fim de 2016. A implantação do teto dos gastos pode ter até ancorado as expectativas dos agentes do mercado financeiro, contribuindo assim para a relativa estabilidade dos índices de condições financeiras; contudo, o seu cumprimento estava impondo redução sem precedentes, nos últimos 15 anos, dos gastos com investimento público.

A contração do investimento público – justamente o componente da despesa primária que possui o maior efeito multiplicador – atuou como mecanismo de desestímulo à demanda agregada, numa economia que estava operando com nível absurdamente elevado, para seus padrões históricos, de ociosidade da capacidade produtiva. A greve dos caminhoneiros, a crise econômica na Turquia e Argentina e a indefinição do quadro eleitoral contribuíram para aumentar a incerteza reinante entre agentes econômicos, que se expressou numa deterioração significativa do índice de condições financeiras ao longo do segundo semestre de 2018. Como resultado desses desdobramentos, o ritmo de recuperação da atividade econômica desacelerou e a economia deve ter fechado o ano passado com um crescimento em torno de 1%.

O quadro econômico desolador combinado com a constatação de que a corrupção na máquina pública não estava restrita ao PT levou uma ampla parcela da população a acreditar que os problemas só seriam resolvidos por um outsider da política tradicional. A maioria dos eleitores identificou em Jair Bolsonaro a pessoa que encarnava o anti-establishment.

Mas será que o governo Bolsonaro poderá atender ao desejo de mudança, ou melhor, será que o novo governo poderá recolocar o Brasil na trajetória de desenvolvimento?

Bolsonaro, influenciado pelo czar da economia, Paulo Guedes, parece acreditar que a reforma da Previdência, combinada com um programa ambicioso de privatizações, irá fazer o país sair daquilo que o próprio Guedes chamou de “armadilha de baixo crescimento”. Não é a primeira vez que se propõe uma ampla agenda de privatizações como solução para os problemas nacionais. Essa agenda foi extensamente adotada nos governos Collor e FHC.

A taxa média de crescimento no período 1990-2002 foi inferior a 2,5%, mesmo se expurgarmos os dois primeiros anos do governo Collor, quando a economia entrou em recessão devido ao “confisco das poupanças”. Também não é a primeira vez que se diz que um ajuste fiscal é fundamental para a retomada do desenvolvimento. Ajustes fiscais foram feitos em 1994-1995; 1999-2000, 2003-2004, 2011, 2015, 2016-2018. Nesses casos, apenas um deles, o período 2003-2004, foi seguido por um período de aceleração significativa e razoavelmente duradoura do crescimento. Nesse caso, a contração fiscal se mostrou expansionista devido ao espetacular aumento das exportações de manufaturados ocorrida no período 2002-2004, decorrente da enorme desvalorização da taxa de câmbio ocorrida em 2002. Em todos os demais casos, ou não houve aceleração do crescimento, ou a aceleração foi pequena e curta ou ocorreu queda do nível de atividade econômica. Em suma, o ajuste fiscal pode ser necessário para evitar um desastre, mas não é nem de perto condição suficiente para a retomada do crescimento.

Esta requer o atendimento de duas condições. No curto prazo é necessária expansão da demanda agregada para que se possa eliminar a ociosidade na capacidade produtiva e para dar emprego digno a mais de 12 milhões de brasileiros. Essa expansão da demanda agregada não poderá vir do investimento, devido à enorme ociosidade da capacidade produtiva e nem do consumo das famílias, devido ao nível elevado de desemprego. O desequilíbrio fiscal também impede uma expansão significativa do investimento público.

A expansão da demanda agregada só pode advir de um forte crescimento das exportações, principalmente das exportações de produtos manufaturados, o que requer taxa real de câmbio estável e competitiva. No médio e longo prazos, contudo, o crescimento só será sustentável se for acompanhado por aumento da produtividade. Ao contrário do que pregam economistas liberais que acham que a produtividade é uma característica embutida nos trabalhadores por intermédio da educação, a boa teoria econômica e a experiência internacional mostram que a produtividade é uma variável cujo comportamento é regido por uma série de fatores, sendo a educação apenas um entre vários.

A produtividade é afetada pela quantidade e a diversificação do conhecimento técnico e científico que está embutido nas pessoas (capital humano), nas máquinas e equipamentos (capital físico), na capacidade das pessoas em se conectarem e assim trocar informações (capital social). Dessa forma, aquilo que uma economia produz e exporta revela a sofisticação ou complexidade das suas capacitações produtivas. A estrutura produtiva importa para o crescimento econômico.

Tendo em vista esse entendimento sobre as causas da produtividade, a retomada do desenvolvimento exige que o Brasil reinicie o processo de “catching-up” industrial e tecnológico interrompido na década de 1980. Um elemento essencial dessa retomada será a reindustrialização, ou seja, o crescimento da participação do valor adicionado da indústria no PIB e do emprego industrial no emprego total. Esse processo irá demandar uma mudança no regime macroeconômico, de forma a manter a taxa de câmbio em níveis competitivos internacionalmente, a exemplo do que foi adotado, de forma bem-sucedida, nos países do Leste Asiático; como também a adoção de uma política industrial que permita aumentar a complexidade tecnológica da pauta de exportações do Brasil. A exemplo do que é feito nos Estados Unidos, Japão, China, e países da Europa Ocidental, o desenvolvimento de um complexo industrial militar no Brasil, puxado por gastos necessários para o reaparelhamento das Forças Armadas, atualmente em grau acentuado de sucateamento, pode ser um dos eixos dessa política.

Se o governo Bolsonaro não trilhar esse caminho e insistir apenas na agenda privatização-reforma da Previdência, então a economia continuará trilhando trajetória de baixo crescimento, provavelmente em torno de 2% ao ano. Esse ritmo será insuficiente para gerar empregos na quantidade suficiente para absorver a enorme massa de desempregados, bem como os brasileiros que ingressam todos os anos no mercado de trabalho. A força de trabalho cresce atualmente 1% ao ano, o que significa que, para manter a taxa de desemprego estável ao longo do tempo, é necessário criar, pelo menos, 1 milhão de postos de trabalho por ano. Considerando crescimento da produtividade de 1% ao ano (o que destrói postos de trabalho na velocidade de 1 milhão de empregos por ano) no cenário no qual não ocorre a mudança estrutural descrita, uma taxa de crescimento de 2% ao ano irá criar postos de trabalho apenas na magnitude necessária para manter o desemprego indefinidamente acima de 10 % da força de trabalho.

Dada a pequena duração do seguro-desemprego e a baixa densidade da rede de proteção social, é pouco provável que a permanência da taxa de desemprego em patamares tão elevados por um período tão longo de tempo seja social e politicamente sustentável. Nesse cenário a desordem social poderá aumentar rapidamente. Além disso, o crescimento econômico anêmico irá agudizar a crise fiscal dos Estados, podendo, inclusive, fortalecer movimentos separatistas no Sul, haja vista que, para parte significativa da população desses Estados, a sua crise fiscal resulta do fato de que (sic) “o Sul tem que sustentar os vagabundos do Nordeste com o Bolsa Família”.

O exemplo recente da tentativa de secessão na Catalunha – resultado dos efeitos da crise econômica de 2008-2012 – mostra que o risco de movimento separatista no Brasil não pode ser subestimado. Daqui se segue, portanto, que ou o governo Bolsonaro coloca o Brasil na rota do desenvolvimento econômico – o que implica em mudança estrutural e catching-up com respeito aos países ricos – ou o clima de insatisfação social reinante culmine numa crescente desordem, podendo levar, no limite, à guerra civil.

José Luis Oreiro é professor associado do Departamento de Economia da Universidade de Brasília, Pesquisador Nível IB do CNPq

 

A técnica na sofisticada marcha da humanidade em direção ao precipício

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Modelo de desenvolvimento conduz a sacrifício da vida e destruição da natureza, escreve autor

Márcio Seligmann-Silva – Folha de São Paulo – Ilustríssima 17 de fevereiro de 2019.

[RESUMO] Antigo meio para garantir a sobrevivência da humanidade, a técnica, argumenta o autor, acoplou-se a um modelo de desenvolvimento que passou a ter por fim o sacrifício da vida e a destruição da natureza.

De certo modo, a história da técnica se confunde com a história da humanidade. Tornamo-nos humanos na medida em que nos separamos da natureza: ao menos esse é o nosso mito originário “ocidental”. Prometeu presenteou a humanidade com o fogo, ou seja, com o saber técnico, e foi castigado por isso. Zeus não o perdoou por tornar os humanos inteligentes como os deuses.

Já em outro veio poderoso dessa tradição, no Antigo Testamento, quando, no Gênesis, Deus nos expulsou do Paraíso, condenou-nos ao trabalho duro e a suar para podermos garantir o nosso sustento. Segundo o relato, Ele nos deu vestes, os primeiros produtos de uma técnica ainda divina. O homem trabalhador é o homem que vai depender cada vez mais de técnicas.

Por outro lado, é notório que desde o início do século 19, com a Revolução Industrial, a técnica sofreu uma abrupta mudança em sua natureza. De meio de garantir a sobrevivência humana na face da Terra, ela foi acoplada a um projeto capitalista que em pouco tempo —200 anos diante dos mais de 5 bilhões de anos da Terra e de dezenas de milênios de existência do que podemos chamar de humanidade— transformou o planeta a tal ponto que ele não só está irreconhecível, como à beira de um colapso.

Desde seu nascimento, essa técnica moderna dividiu as opiniões entre entusiastas e críticos. Dentre estes últimos, havia tanto uma corrente conservadora como uma de tendência transformadora, que percebia na técnica capitalista apenas uma perversão dos verdadeiros e revolucionários potenciais da técnica.

Na primeira categoria, Goethe, em 1825, ou seja, de dentro de uma Alemanha ainda fragmentada em pequenos Estados e predominantemente agrícola, queixava-se em carta a seu amigo Zelter: “Riqueza e rapidez, eis o que o mundo admira e o que todo o mundo quer. Ferrovias, correio expresso, navios a vapor, e todas as possíveis facilidades de comunicação são as coisas que o mundo culto deseja a fim de se sofisticar e assim permanecer na mediocridade”. Incrível a atualidade dessas palavras, de quase 200 atrás.

No final de sua obra máxima, o “Fausto”, Goethe imagina justamente esse moderno homem empreendedor, desapropriando e atropelando os mais frágeis economicamente para abrir terreno para a agricultura, conquistando terras à água por meio de um dique. Ele não deixa, porém, de destacar o tema da arrogância dessa empreitada e do seu risco: “Cá dentro é um paraíso a terra nossa;/ Que suba lá fora a maré furiosa/ E se, violenta, tentar abrir brecha,/ Em comum esforço acorre o povo e a fecha”.

O capitalismo e sua técnica já eram vistos pelo velho Goethe, portanto, como ambíguos portadores de belas invenções e de altos riscos. Represas estavam na origem da riqueza e do terror. Também aqui encontramos uma macabra contemporaneidade. Diques e represas são marcos decisivos na história da técnica, símbolos da domesticação da natureza e de sua força.

Pouco mais de um século depois, Walter Benjamin, que admirava e citava essas passagens de Goethe mencionadas aqui, lapidou a máxima nas suas famosas teses “Sobre o Conceito da História”, de 1939: “Nunca houve um documento da cultura que não fosse simultaneamente um documento da barbárie”.

Não há, portanto, nenhum motivo para que nos surpreendamos diante das catástrofes tecnológicas: elas fazem parte do programa e, devido à rápida velocidade do avanço da técnica predatória, devem ser cada vez mais aniquiladoras e frequentes. A menos, é claro, que a humanidade —ou aqueles que decidem por ela— desperte para a necessidade de puxar um freio nesse percurso em direção ao abismo.

Para Benjamin, essa técnica moderna, que denominou de “primeira técnica”, tem como fim o sacrifício da vida, a destruição, o controle e a dominação da natureza que leva à sua asfixia. A vanguarda dessa técnica, não por acaso, é a indústria armamentista. Ela leva a uma política da morte, tanatopolítica, à nossa autoaniquilação. Nas palavras de Benjamin: “Para que falar de progresso a um mundo que afunda na rigidez cadavérica? (…) Deve-se fundar o conceito de progresso na ideia da catástrofe”.

Nessa mencionada linhagem de crítica positiva, ele sonhou com uma “segunda técnica”, emancipadora, calcada em um jogo com a natureza e que nos libertaria das penas do trabalho. Em sua visão, a fotografia e o cinema seriam os exemplos principais: duas técnicas que alargam o nosso campo de ação, nos empoderam, ao invés de destruírem as naturezas interna (tornando o homem alienado) e externa (acabando com a nossa “casa”): “A técnica não é dominação da natureza: é dominação da relação entre natureza e humanidade”.

Benjamin criticou o conceito utilitarista da social-democracia de um Josef Dietzgen, que via no trabalho apenas um meio de conquista e submissão da natureza: “Já estão visíveis, nessa concepção, os traços tecnocráticos que mais tarde vão aflorar no fascismo”.

Ou seja, essa concepção capitalista (e mesmo a social-democrata) do trabalho associa-se à “primeira técnica” e tem a sua figura máxima no fascismo. Esse raciocínio de Benjamin também se revela acurado e profético. Como anotou em 1948 Robert Antelme, que lutou na resistência à ocupação nazista na França: “Quando o pobre torna-se proletário, o rico torna-se SS”.

Aparentemente, a marcha incontornável da humanidade em direção ao precipício (em regimes capitalistas puros, nos de capitalismo de Estado e nos que tentaram, de modo infeliz, a ditadura dos partidos comunistas) não pode ser alterada sem um levante de uma população que, lamentavelmente, parece cada vez mais fascinada pelo mundo da técnica e dos gadgets.

Como no mito dos lemingues que se suicidam no mar, nossa espécie supostamente racional faria algo semelhante por meios mais “sofisticados”. Benjamin, novamente, criticando o modelo de progresso incorporado inclusive pelo marxismo, anotou: “Marx afirma que as revoluções são as locomotivas da história do mundo. Mas talvez isso seja totalmente diferente. Talvez as revoluções sejam o freio de emergência da humanidade que viaja neste trem”. Se não soubermos responder ao Kairós, ao tempo oportuno, para ceder a esse reflexo de puxar o freio, poderá ser tarde demais.

A chamada “força do mercado”, esse “quarto poder” que efetivamente manda e desmanda no mundo, está calcada nesse modelo de técnica predadora sem o qual as indústrias (e suas ações no mercado) não existiriam. O capitalismo se alimenta da Terra, mas desconsidera que esta mesma Terra é finita e está sendo exaurida.

O filósofo Hans Jonas dedicou os últimos anos de sua longa vida (1903-1993) à construção de uma nova ética da responsabilidade à altura desses desafios contemporâneos. Ele afirmava que “não temos o direito de hipotecar a existência das gerações futuras por conta de nosso comodismo” e propôs uma virada.

Ao invés de construir um modelo calcado no presente, com o objetivo do viver bem e da felicidade conectados ao aqui e agora, estabeleceu o desafio de construir uma ética do futuro: da destruição da casa-Terra, ele deduz o imperativo de salvar essa morada para garantir a possibilidade de vida futura.

Em vez de apostar no modelo liberal do progresso infinito a qualquer custo ou de acreditar na promessa revolucionária que traria de um golpe o “paraíso sobre a Terra”, ele aposta em um “summum bonum” moderado, modesto, o único possível para a nossa sobrevivência. Fala de um “princípio de moderação”, reconhecendo que a conta deveria ser paga pelos que mais possuem.

Hoje, podemos dizer que esse futuro que ele desenhava, ou seja, esse tempo já sem muito tempo de sobrevida, tornou-se o nosso tempo. Sua “heurística do medo” —a saber, uma pedagogia da humanidade que se transformaria a partir do confronto com a visão medonha de seu fim muito próximo— soa ainda poderosa, mas um tanto inocente, mesmo reconhecendo que suas ideias influenciaram protocolos como o Acordo de Paris, de 2015.

Observando a sequência de crimes socioambientais, parece que essa heurística não está rendendo frutos. Não aprendemos com as catástrofes, e isso nos levará, caso não alteremos nosso curso, à catástrofe final. Ou seja, a emoção do medo do Armagedom está sendo vencida pela razão instrumental e sua promessa (distópica) de transformar a natureza em mercadoria.

A questão é: quem vai estar aqui para consumir quando apenas 50 bilionários tiverem a mesma riqueza que 6 bilhões de habitantes da Terra e, pior, quando a Terra estiver chapinhando no cafarnaum a que nos leva esse modelo de progresso?

Diretora da Oxfam Internacional, Winnie Byanyima tem repetido que os 26 bilionários mais ricos do mundo possuem o mesmo que os 3,8 bilhões de habitantes mais pobres dessa bola azul. A entropia ecológica e a social caminham de mãos dadas e devem ser combatidas juntas.

Um lamentável e terrível exemplo da situação em que nos encontramos em termos dessa submissão a um determinado modelo liberal associado a uma técnica espoliadora e destrutiva é justamente o que acaba de ocorrer com o rompimento da barragem da empresa Vale em Brumadinho (MG).

Apenas a arrogância fáustica, a hybris que cega, o sentimento de onipotência pode justificar que essa barragem (como tantas outras) tenha sido construída logo acima de uma área urbana e das instalações dos funcionários da empresa. Novamente a situação de risco associada a esse tipo de tecnologia ficou exposta. Os alarmes que não soaram reproduzem o silêncio da humanidade diante das repetidas manifestações da violência da técnica.

O cerne do capitalismo é o lucro e isso explica, nesse caso e em outros, tudo de modo simples e direto. O crime de Brumadinho deve ultrapassar 300 vítimas fatais diretas, fora a destruição de toda uma região habitada também por pescadores, ribeirinhos e indígenas pataxó que dependiam diretamente do rio Paraopeba para a sua sobrevivência. Se pensarmos nos inúmeros atingidos, apenas no Brasil, por barragens (de mineradoras e de hidroelétricas), fica claro que não se trata apenas de uma questão de “barragem a montante”.

O caso dos índios juruna da Volta Grande do Xingu é paradigmático: essa população que vivia (apesar das pressões do agronegócio e da proximidade da rodovia Transamazônica) em harmonia com o seu meio e de modo feliz viu o seu rio —fonte de sua vida, água, alimentos, transporte, rituais, lazer etc.— baixar a um nível que a transformou, da noite para o dia, em uma população empobrecida e dependente de ajuda.

Detalhe: a queda do nível do rio foi decorrência da instalação e do funcionamento, desde 2015, a poucos quilômetros de sua aldeia, da hidrelétrica de Belo Monte, a terceira maior do mundo.

Esse fato possibilitou que uma mineradora canadense, a gigante Belo Sun, tente agora implementar na mesma região o que será a maior mineração de ouro a céu aberto do Brasil, com direito a uma barragem de rejeito ao lado do rio Xingu. Sintomaticamente, uma grande operação técnica abre caminho para outra.

O ISA (Instituto Socioambiental) tem alertado em muitas ocasiões que, das 63 espécies endêmicas de peixes conhecidas da bacia do rio Xingu, 26 podem ser encontradas apenas na Volta Grande. Com apenas 20% da vazão, elas e uma riqueza de animais e plantas incalculável estão sob risco, para não dizer condenadas à extinção.

O atual modelo de política deste governo, aplicado aos indígenas, implica uma continuidade da ideologia colonial que via no Brasil e na sua população autóctone mera fonte de obtenção de riqueza: a terra é reduzida à categoria de commodity e os habitantes são reduzidos a trabalho escravo ou mal remunerado e (eventualmente) a consumidores de produtos baratos.

A negação da diferença, a anulação do “outro”, a ideia de que “o índio quer vir para a cidade, quer trabalhar e ter seu carro” significam uma continuação do genocídio indígena.

Durante a ditadura militar (1964-1985), esse mesmo tipo de ideologia era propagada. A partir da Doutrina de Segurança Nacional, baseada na ideia de integridade do território e do povo e de proteção contra as ameaças e agressões —base que, portanto, influencia bastante o governo hoje—, a população indígena era vista como “estrangeira” que deveria ou ser forçada a abandonar a sua cultura (produzindo o etnicídio) ou ser exterminada (perpetrando o genocídio).

A princípio, concebia-se a região amazônica como deserta de pessoas, ou seja, negava-se a existência de uma pungente e riquíssima cultura plural, milenar e exemplar. O Estatuto do Índio (lei nº 6.001/1973) permitiu a exploração de madeira em terras indígenas bem como a remoção de suas populações para liberar áreas para a mineração ou outras obras públicas.

Vários e abalizados estudos mostram que as terras indígenas são as mais capazes de preservar a natureza. Essa preservação vai no sentido oposto ao da entropia a que leva nosso atual modelo econômico-tecnológico. Os indígenas são, como mostrou recentemente a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha em um artigo na revista piauí (“Povos da megadiversidade”), portadores da diversidade que está no cerne do seu mundo.

No Brasil existem 305 etnias que falam ao todo 274 línguas —que país no mundo possui riqueza cultural igual? São responsáveis pelas “terras pretas”, locais de fantástica fertilidade, herança de milênios de práticas técnicas indígenas, e pela agrodiversidade, sem a qual não pode haver segurança alimentar, deixando a humanidade à mercê de pragas e da fome.

Cito a antropóloga: “No Alto Rio Negro há mais de cem variedades de mandioca; nos caiapós, 56 variedades de batata-doce; nos canelas, 52 de favas; nos kawaiwetes, 27 de amendoim; nos wajãpis, 17 de algodão; nos baniuas, 78 de pimento”. Já o agronegócio com suas monoculturas, como se sabe, via “primeira técnica”, tende a reduzir a biodiversidade a um mínimo.

Voltando ao modelo da “segunda técnica”, podemos dizer que também as técnicas indígenas são lúdicas e visam não uma dominação da natureza, mas um jogar com ela. Na cosmovisão indígena não existe esse traçado entre natureza e cultura, mas, antes, uma série de transformações e mutações que conectam deuses, humanos, animais, vegetais e minerais. Não há espaço em seu panteão para um deus Prometeu da técnica na forma de profeta do deus capital.

A artista mineira Lais Myrrha transmitiu essa ideia de modo muito delicado e preciso em seu trabalho “Dois Pesos e Duas Medidas”, que ocupava o vão central da Bienal de São Paulo de 2016. Essa obra consiste em dois enormes pilares em forma de totens: um construído com material presente nas construções indígenas (barro, palha, cipó, madeira) e outro com técnica “ocidental” de alvenaria (tijolo, cimento, ferragens, PVC, vidro).

O título é importantíssimo, como costuma acontecer em obras conceituais: por que desprezamos a tecnologia indígena, que dura já milênios e nunca destruiu de modo irreversível um centímetro da Terra, e, por outro lado, veneramos a nossa técnica prometeica ocidental, que em 200 anos praticamente asfixiou a Terra, mudou seu clima e instaurou uma nova era geológica, o Antropoceno?

Hans Jonas notou que o sonho da civilização, ou seja, de domesticação da natureza, nascera do medo dessa mesma natureza e da ideia de sua conquista como um ato heroico. Hoje as coisas estão invertidas. Nós somos o perigo para a natureza. As marés que nos destroem (de água ou de lama) são respostas dessa natureza ferida.

Como escreve Jonas: “A euforia do sonho fáustico se dissipou e nós despertamos sob a luz diurna e fria do medo”. A resposta a esse medo, no entanto, não deve ser o pânico, mas a ativação de uma nova ética que inclui pela primeira vez a natureza e não se limita a ser apenas intersubjetiva.

Afinal, o ser humano é, antes de mais nada, capaz de responder pelos seus atos. Se somos essencialmente seres capazes de assumir responsabilidade, aparentemente uma parte de nossa humanidade está sendo negada quando crimes socioambientais —ou seja, contra a população e a natureza— como esses ocorridos no Brasil são assimilados sem que ninguém seja responsabilizado.

Temos que reestabelecer a lei da multiplicidade que até hoje garantiu a reprodução da vida sobre a Terra. Os perigos da (primeira) técnica não podem ser ocultados sob a luz brilhante do fascínio por suas conquistas.

Entenda-se: não se trata de uma cruzada obscurantista contra a técnica, muito menos contra as ciências, muito pelo contrário. A própria ciência de ponta aporta os dados incontornáveis quanto à necessidade de mudarmos de rumo. Temos poder demais, não de menos —e, por outro lado, também temos a liberdade de escolher um novo rumo. Ou pelo menos: temos a liberdade de poder lutar por essa liberdade.

A responsabilidade não poderia existir sem o “a priori” da liberdade. O poder tecnológico pode ser transformado em potência que nos permitirá frear nossa “locomotiva”, evitando outras Bhopal, Chernobyl, Fukushima, Samarco, Vale, o césio 137 em Goiânia, o derrame de óleo do Exxon Valdez, o aquecimento global etc.

No entanto, a dificuldade da ética do futuro, proposta por Hans Jonas, é que a compaixão se dá com relação aos que estão próximos. O filósofo afirma: “A caridade começa em casa”. Exigir compaixão para com os pósteros demanda um nível de abstração e de altruísmo raros. Daí ser mais efetiva uma heurística do medo voltada para os perigos do presente e que inscreva a história das nossas catástrofes, em oposição a uma falsa história triunfal autocomplacente.

Um amigo e contemporâneo de Hans Jonas, Günther Anders (o primeiro marido de Hannah Arendt e primo de Walter Benjamin), pensou de modo claro essa necessidade de termos diante dos olhos as catástrofes do passado e do presente, como meio de uma educação moral da humanidade.

Ele afirmava que é necessário, seguindo-se um imperativo da memória, dar-se uma “nota de eternidade” a cada choque. Anders tinha consciência de que vivemos em um estado de emergência no que tange a nosso (des)equilíbrio ecológico, que exige atitudes firmes.

Concluo citando as generosas palavras que compõem o último trecho do poderoso relato que Davi Kopenawa fez ao antropólogo Bruce Albert, publicado no livro que precisamente leva o título de “A Queda do Céu – Palavras de um Xamã Yanomami”: “Os xapiri [espíritos] se esforçam para defender os brancos tanto quanto a nós. Se o sol escurecer e a terra ficar toda alagada, eles não vão poder mais ficar empoleirados em seus prédios nem correr no peito do céu sentados em seus aviões! Se Omoari, o ser do tempo seco, se instalar de vez perto deles, eles só terão fios de água para beber e assim vão morrer de sede. É bem possível que isso aconteça mesmo! No entanto, os xapiri continuam lutando com valentia para nos defender a todos, por mais numerosos que sejamos. Fazem isso porque os humanos lhes parecem sós e desamparados. Nós somos mortais e essa fraqueza lhes causa pesar”.

Ao invés da autoimagem arrogante do “homo faber” prometeico e poderoso, que levou a um modelo de desenvolvimento que privilegia a poucos e destrói o chão em que vivemos, essa figura de nossa fragilidade me parece muito mais empoderadora para enfrentarmos os enormes desafios que temos diante de nós.

Ela poderá estar na base de um “princípio de moderação” que seria capaz de nos garantir uma maior sobrevivência sobre esta esfera azul e, sobretudo, um “viver em comum” mais ético.

Márcio Seligmann-Silva é professor titular de teoria literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp.

 

‘Aposentadoria como conhecemos hoje vai desaparecer’, diz economista

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Para Hélio Zylberstajn, com menos vínculos de emprego, Previdência do futuro vai depender de renda básica universal e poupança individual

Ana Estela de Sousa Pinto Folha de São Paulo – 21 de janeiro de 2019

Os vínculos de emprego são cada vez mais raros e, no futuro, a aposentadoria como conhecemos vai acabar, afirma o professor da USP e pesquisador da Fipe Hélio Zylberstajn.

Para substituir um sistema hoje dependente de contribuições sobre a folha de salário, ele defende uma aposentadoria de três pernas: renda universal para idosos, Previdência no modelo atual e sistema de capitalização (no qual quem ganha acima de um teto tem uma conta individual).

A proposta da Fipe, coordenada por Zylberstajn, é apoiada por entidades do mercado de planos de previdência —Fenaprevi, Abrapp, CNseg e ICSS. “É um avanço enorme, um setor empresarial que não tem receio de dizer que gostaria que essa reforma fosse feita. É boa para eles? É. Mas é boa para o país.”

No modelo sugerido, o setor privado administraria  as contas individuais. Para impedir que má gestão pulverize a poupança do trabalhador, planos que não entreguem bom rendimento seriam dissolvidos, e as contas seriam transferidas para os mais rentáveis.

“É a melhor forma de garantir que os recursos vão ser alocados da melhor maneira. Se deixar com o Estado, aí, sim, pode haver problemas de governança”, afirma ele.

O economista afirma que o ideal seria votar primeiro a reforma do setor público. “Assim ficariam no palco, com a iluminação ligada, e teriam que explicar por que defendem seus privilégios.” Mas também vê riscos na estratégia de fatiamento da reforma.

Para os críticos, uma reforma mais radical da Previdência, estrutural, pode atrasar mais mudanças urgentes. Vale a pena correr esse risco?

A reforma estrutural é para o futuro, não teria por que atrasar. Mas, se atrasar mais três, seis meses e chegar a uma solução definitiva, vale a pena. E, se mudar tudo junto, quem está há pouco tempo no sistema atual já migra para o novo, o que traz ganhos mais imediatos.

Outra crítica é que a capitalização tem mais risco. Exemplos citados são o do Chile e os de Argentina e Hungria, que recuaram.

Nesses países, eles transformaram totalmente o sistema de repartição em capitalização. Nossa proposta dilui os riscos, porque tem três pilares. Renda básica, de risco zero, e sistema de repartição —pequeno e sustentável— repõem a renda de 75% dos trabalhadores. A capitalização tem o risco de mercado, mas também a possibilidade de ganhar valor.

Uma questão importante é o financiamento da transição. Nosso projeto não afeta as contas públicas. A arrecadação do INSS é preservada. A parte de capitalização recebe dinheiro que hoje vai para o Fundo de Garantia [FGTS]. Outras propostas sugerem capitalização só escritural. Uma parte da arrecadação do INSS é remunerada, mas continua no Estado. Nós propomos investir no mercado, e gerar investimento e crescimento.

O fato de ter o apoio de entidades desse mercado não abre um flanco para críticas de que serve aos interesses desses agentes?

Neste país, sempre que há um setor empresarial querendo propor uma política aparece o temor da identificação. As entidades que apoiam o projeto da Fipe concordaram em aparecer como financiadoras. É o contrário do que se critica: é transparência. É um avanço enorme, um setor empresarial que não tem receio de dizer que gostaria que essa reforma fosse feita. É boa para eles? É. Mas é boa para o país.

Seriam poucos tipos de plano, parecidos, e quem oferecer mais rentabilidade a menor custo ganha a competição. Estamos propondo um mercado competitivo, e o Brasil tem escala para criá-lo de forma transparente e regulada.

Como impedir que má gestão acabe com a previdência do trabalhador?

O mercado terá que criar regras. Por exemplo, um rendimento menor que uma faixa em torno da média levaria à dissolução do plano e as contas seriam transferidas para outro plano mais rentável. É a melhor forma de garantir que os recursos vão ser alocados da melhor maneira. Se deixar com o Estado, aí, sim, pode haver problemas de governança.

Tanto a Fipe quanto a equipe de Paulo Tafner propõem uma renda mínima para o idoso, mas na sua proposta o valor é mais baixo, pouco mais da metade do salário mínimo. Não é pouco para quem não conseguir entrar no mercado de trabalho formal?

É um incentivo para que as pessoas procurem entrar no mercado de trabalho. Alguém que ficou 20 anos registrado vai ter a renda mínima mais metade do salário de contribuição. Se ela ganhava o salário mínimo, a aposentadoria será 75% do salário mínimo. Ela não parte do zero, e ao mesmo tempo você está dizendo “esforce-se para conseguir”.

Mas não falamos em salário mínimo, e sim em reais. O salário mínimo desaparece como moeda na Previdência.

Um sistema de Previdência está ligado ao mercado de trabalho formal. Mas caminhamos para um mundo com menos vínculos.

É verdade, todas essas políticas estão sedimentadas no vínculo de emprego, e ele está desaparecendo. Será preciso repensar toda a regulamentação, todo o direito do trabalho.

Daqui a 30 ou 40 anos, a aposentadoria como conhecemos vai desaparecer ou se reduzir muito, porque ninguém vai ter emprego. Mas todo mundo precisará ter poupança. Provavelmente a aposentadoria do futuro vai ser a renda universal e a capitalização, e nossa proposta já encaminha para isso.

A proposta da Fipe menciona um pilar de poupança voluntária, mas estudos mostram que os brasileiros têm pouca propensão à poupança.

Em parte isso acontece por causa do nosso modelo atual, de repartição. Por que vou poupar se o Estado vai cuidar da minha aposentadoria? Para incentivar o investimento, é preciso reduzir a parte de repartição.

Nos Estados Unidos, por exemplo, o trabalhador tem um plano fechado, da empresa em que trabalha e faz uma aposentadoria privada. A aposentadoria de Previdência é deste tamanhinho.

É uma concepção diferente de papel do Estado, não é?

As propostas que criam pilar de capitalização vão nesse sentido também, de transferir responsabilidade para o indivíduo. Pelo que vem sendo divulgado, eles vão propor uma perna de mercado, mas ela não vai ser dominante.

Temer errou na comunicação. Prevaleceu o discurso de que iriam “matar os velhinhos”. Como evitar esse revés?

A estratégia pode ser ainda mais importante que a comunicação. Quando junta tudo, grupos que não querem ter seus privilégios atingidos atacam o projeto dizendo que ele prejudica os pobres. Bagunça tudo.

Defende fatiar a reforma? Sim e não. Se fosse possível, o ideal seria votar primeiro a nova Previdência, que é só para o futuro, mais fácil de explicar e de passar. Depois, a parte dos funcionários públicos. Só eles. Porque aí ficariam no palco, com a iluminação ligada, e teriam que explicar por que defendem tanto seus privilégios. Por que se aposentam com salário integral? Reajuste igual ao da ativa?

O terceiro passo seria o INSS, e mostrar que o pobre já se aposenta por idade mínima, de 65 anos. Nada mais justo que 65 para todo mundo.

O ideal seria fatiar nessa ordem. Mas qual é o governo que conseguiria ganhar três batalhas de PEC [proposta de emenda constitucional, que precisa ser aprovada por dois terços dos parlamentares] num mesmo ano?

O trade-off é este:  enviar tudo junto, com alto risco de ter que ceder em pontos importantes, ou algo mais seguro, mas mais difícil de passar.

Sua proposta retira parte da Previdência da Constituição. Não é uma faca de dois gumes? Não facilita mudanças que agravam as contas públicas?

É um dilema que temos enfrentado desde 1988. A ideia de vincular tudo, para que ninguém mexa. Prefiro tratar tudo em legislação complementar ou ordinária, porque essa é a função do Congresso. Quer mudar? Faz um grande debate e vota. Qual o sentido de congelar tudo na Constituição e depois não conseguir mexer?

Raio-X
Hélio Zylberstajn, 73, é professor da Faculdade de Economia da USP, especialista em mercado de trabalho, pesquisador da Fipe (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas) e coordenador de uma proposta de reforma da Previdência enviada ao governo Bolsonaro

 

Os africanos devem se livrar do desejo da Europa

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“De todos os grandes desafios que a África enfrenta nesse início de século, nenhum é tão urgente e tão cheio de consequências quanto a mobilidade de sua população. Em grande medida, o seu futuro imediato dependerá da sua capacidade de garantir que as pessoas possam se deslocar pelo continente tão frequentemente quanto possível, o mais longe possível, o mais rápido possível e, de preferência, sem nenhum entrave”. A reflexão é de Achille Mbembe, em artigo publicado por Le Monde, 10-02-2019. A tradução é de André Langer.

E faz um alerta: “Mas para que os africanos não sejam transformados em fragmentos de um planeta dotado de torres de vigilância, a Africa deve tornar-se seu próprio centro, sua própria potência, um vasto espaço de circulação, um continente-mundo. Deve completar o projeto de descolonização forjando para si uma nova política africana de mobilidade”.

Achille Mbembe é, juntamente com Felwine Sarr, co-autor de Écrire l’Afrique-Monde (Paris, Philippe Rey, 2017) e co-iniciador dos Ateliers de la Pensée de Dakar.

Achille Mbembe é autor do livro A Crítica da razão negra, São Paulo: n-1 edições, 2018.

Eis o artigo.

De todos os grandes desafios que a Africa enfrenta nesse início de século, nenhum é tão urgente e tão cheio de consequências quanto a mobilidade de sua população. Em grande medida, o seu futuro imediato dependerá da sua capacidade de garantir que as pessoas possam se deslocar pelo continente tão frequentemente quanto possível, o mais longe possível, o mais rápido possível e, de preferência, sem nenhum entrave. Além disso, tudo aí se desenvolve: tanto o crescimento da população, a intensificação da depredação econômica, quanto as dinâmicas da mudança climática.

Além disso, as grandes lutas sociais na África neste século se concentrarão tanto na transformação dos sistemas políticos, na extração dos recursos naturais e na distribuição da riqueza quanto no direito à mobilidade. Não há nada na criação digital que não se articulará aos processos de circulação. A revolução da mobilidade provocará profundas tensões e terá um peso nos equilíbrios futuros do continente, bem como sobre os de outras regiões do mundo, como já atestou a chamada crise migratória. E nós somos convidados a refletir sobre essas mudanças.

Para entender as implicações, ainda temos que dar as costas aos discursos neomaltusianos, muitas vezes alimentados com fantasmagorias racistas e que continuam a se espalhar.

 

Violência nas fronteiras

 

A “corrida para a Europa” é, a este respeito, um grande mito. O fato de que um habitante do planeta em quatro seja africano não representa nenhum perigo para ninguém. Afinal, atualmente, dos 420 milhões de habitantes da Europa Ocidental, apenas 1% é composto por africanos subsaarianos. Dos quase 1,3 bilhão de africanos, apenas 29,3 milhões vivem no exterior. Destes 29,3 milhões, 70% não tomaram o caminho da Europa ou de qualquer outra região do mundo. Eles se estabeleceram em outros países da África.

Na realidade, além de ser relativamente pouco povoada em vista de seus 30 milhões de quilômetros quadrados, a África emigra pouco. Em comparação com outros conjuntos continentais, a circulação de bens e de pessoas sofre muitos obstáculos, e é para desmantelar esses obstáculos que os tempos clamam.

Entretanto, é verdade que o custo humano das políticas europeias de controle das fronteiras continua a crescer, acentuando de passagem os riscos em que incorrem os eventuais migrantes. São incontáveis os migrantes que morrem durante a travessia. Cada semana traz a sua cota de histórias, umas mais escabrosas que as outras. Trata-se muitas vezes de histórias de homens, de mulheres e de crianças afogados, desidratados, intoxicados ou asfixiados nas costas do Mediterrâneo, do Mar Egeu, do Atlântico ou, cada vez mais, no deserto do Saara.

A violência nas fronteiras e pelas fronteiras tornou-se uma das características marcantes da situação contemporânea. Pouco a pouco, a luta contra as chamadas migrações ilegais assume a forma de uma guerra social agora travada em escala planetária. Dirigida mais contra as classes de populações do que contra indivíduos em particular, ela combina agora técnicas militares, policiais e de segurança e técnicas burocrático-administrativas, liberando fluxos de uma violência fria e, de vez em quando, não menos sangrenta.

Basta observar, a esse respeito, o vasto mecanismo administrativo que permite a cada ano mergulhar na ilegalidade milhares de pessoas legalmente estabelecidas, a cadeia de expulsões e deportações em condições realmente de tirar o fôlego, a abolição gradual do direito de asilo e a criminalização da hospitalidade.

O que dizer, além disso, da implantação de tecnologias coloniais para a regulação dos movimentos migratórios na era eletrônica, com seu cortejo de violências cotidiana, a exemplo dos intermináveis controles faciais, das incessantes caçadas de migrantes indocumentados, das muitas humilhações nos centros de detenção, dos olhos desfigurados e dos corpos algemados de jovens negros que são arrastados pelos corredores das delegacias de polícia, de onde saem com um olho roxo, com um dente quebrado, com uma mandíbula quebrada, o rosto desfigurado, a multidão de migrantes aos quais arrancam as últimas roupas e os últimos cobertores em pleno inverno, que são impedidos de se sentar nos bancos públicos, na aproximação dos quais fechamos as torneiras de água potável?

 

Novos êxodos

 

No entanto, o século não será apenas o dos obstáculos à mobilidade, tendo como pano de fundo a crise ecológica e a aceleração das velocidades. Também será caracterizado por uma reconfiguração planetária do espaço, da aceleração constante do tempo e uma profunda divisão demográfica.

Com efeito, em 2050, dois continentes reunirão quase dois terços da humanidade. A África subsaariana terá 2,2 bilhões de habitantes, ou seja, 22% da população mundial. A partir de 2060, estará entre as regiões mais populosas do mundo. A mudança demográfica da humanidade em prol do mundo afro-asiático será um fato consumado. O planeta se dividirá em um mundo de pessoas idosas (EuropaEstados UnidosJapão e partes da América Latina) e um mundo emergente, que abrigará as populações mais jovens e numerosas do planeta. O declínio demográfico da Europa e da América do Norte continuará inexoravelmente. As migrações não vão parar. Pelo contrário, a Terra está às vésperas de novos êxodos.

O envelhecimento acelerado das nações ricas do mundo é um evento de grande alcance. Será o reverso dos grandes choques causados pelos excedentes demográficos do século XIX, que levou à colonização europeia de partes inteiras da Terra. Mais do que no passado, o governo da mobilidade humana será o meio pelo qual uma nova repartição do globo será colocada em prática.

Uma linha de fratura de um novo tipo e de alcance planetário desempatará a humanidade. Ela oporá aqueles que gozarão do direito incondicional de circulação e de seu corolário, o direito à velocidade, e aqueles que, tipificados essencialmente pela raça, serão excluídos do desfrute desses privilégios. Aqueles que assumirão os meios de produção da velocidade e das tecnologias da circulação se tornarão os novos mestres do mundo. Somente esses poderão decidir quem pode circular, quem deve ser condenado à imobilidade e quem deve se deslocar apenas em condições cada vez mais draconianas.

 

Um enorme Bantustão

 

Se, nesta nova ordem global da mobilidade, a África não se encarregar do reordenamento de sua economia espacial, ela será duplamente penalizada, de dentro e de fora. Porque a Europa decidiu não apenas militarizar suas fronteiras, mas ampliá-las por toda parte. Estas não se limitam mais ao Mediterrâneo. Elas agora se situam ao longo das rotas em fuga e dos percursos sinuosos que os candidatos à migração tomam. Elas se movem conforme as trajetórias que eles seguem. Na realidade, é o corpo do africano, de cada indivíduo africano tomado individualmente, e de todos os africanos como uma classe racial, que constitui agora a fronteira da Europa.

Esse novo tipo de corpo humano não é apenas a pele do corpo e o corpo abjeto do racismo epidérmico, mas o da segregação. É também o corpo-prisão dobrado do corpo-fronteira, aquele cuja mera aparição no campo fenomenal desperta, desde o início, desconfiança, hostilidade e agressão. O imaginário georacial e geocarcerário que tinha sido aperfeiçoado, não muito tempo atrás, pela África do Sul da época do apartheid não para de se universalizar.

Mais ainda, a Europa quer se arrogar o direito de determinar unilateralmente qual africano poderá se mover e sob quais condições, inclusive dentro do próprio continente. Depois de tê-la desmembrado em 1884-1885, ela busca, no início do século XXI, transformá-la em um imenso Bantustão e acentuar sua inclusão diferencial nos circuitos da guerra e do capital, ao mesmo tempo em que intensifica sua depredação. A política europeia de luta contra a imigração visa, portanto, o advento de um novo regime de segregação global. Isto é, em muitos aspectos, o equivalente da “política racial” de ontem. A África é seu principal alvo.

governo das mobilidades em escala global constitui, como a crise ecológica, um dos maiores desafios do século XXI. A reativação das fronteiras é uma das respostas de curto prazo ao processo de longo prazo de repovoamento do planeta. As fronteiras, no entanto, não resolvem estritamente nada. Elas apenas agravam as contradições resultantes da contração do planeta.

De fato, nosso mundo tornou-se muito pequeno. Nisso, distingue-se do mundo do período das “grandes descobertas”, do mundo colonial das explorações, das conquistas e dos assentamentos. Ele não é mais extensível ao infinito. É um mundo finito, atravessado por todos os tipos de fluxos descontrolados e até mesmo incontroláveis, dos movimentos migratórios, dos movimentos de capital ligados à financeirização extrema das nossas economias e às forças extrativas que dominam a maior parte delas, especialmente no Sul. A tudo isso se deve acrescentar os fluxos imateriais conduzidos pelo advento da razão eletrônica e digital, a aceleração das velocidades e a transformação dos regimes do tempo.

 

Desbalcanizar o continente

 

Como, nesse contexto, pensar a África que vem? Se, fugindo de seus países de origem, muitos africanos correm para lugares onde ninguém os espera ou quer, este é o caso de cidadãos de outras regiões do mundo que, por mais curioso que possa parecer, esperam reconstruir suas vidas na África. Como quem não quer nada com nada, o continente também está prestes a se tornar o centro de gravidade de um novo ciclo de migrações globais. Os chineses se estabeleceram no coração de suas principais cidades e até mesmo em suas aldeias mais remotas, enquanto colônias comerciais africanas se estabelecem em várias megacidades da Ásia.

Dubai, Hong Kong, Istambul, Guangdong e Xangai substituem os principais destinos euro-americanos. Dezenas de milhares de estudantes estão indo para a China, ao passo que Brasil, Índia, Turquia e outras potências emergentes estão batendo à porta. Uma extraordinária vernacularização das formas e estilos está em curso, e está transformando as grandes cidades africanas em capitais mundiais de uma imaginação ao mesmo tempo barroca, crioula e mestiça.

Mas para que os africanos não sejam transformados em fragmentos de um planeta dotado de torres de vigilância, a África deve tornar-se seu próprio centro, sua própria potência, um vasto espaço de circulação, um continente-mundo. Deve completar o projeto de descolonização forjando para si uma nova política africana de mobilidade.

Este não vai acontecer sem uma descolonização cultural. Os africanos devem se livrar do desejo da Europa e aprender a guardar entre si o melhor de si mesmos e da sua gente. O desejo da Europa não pode ser nem seu horizonte existencial nem a última palavra de sua condição.

Depois, a descolonização territorial. Nada, historicamente, justifica o corte do continente entre o norte e o sul do deserto do Saara. Além disso, nenhum africano ou pessoa de origem africana pode ser tratado como um estrangeiro em qualquer parte do continente africano. Desbalcanizar o continente aparece, portanto, cada vez mais, como uma das condições para proteger vidas africanas atormentadas em todo o mundo.

Para conseguir isso, é urgente repensar de alto a baixo o princípio da glaciação das fronteiras coloniais adotado pela Organização da Unidade Africana (OUA, ancestral da União Africana) em 1963. Ao consagrar sua intangibilidade, as fronteiras herdadas da colonização foram transformadas na pedra jurídica explorada pela Europa para acelerar a “bantustanização” do continente.

 

Barreiras a serem removidas

 

A descolonização dificilmente será concluída antes de todos os africanos terem o direito de circular livremente pelo continente. Um primeiro passo nessa direção seria generalizar a concessão de vistos na chegada a todo viajante portador de um passaporte africano. A longo prazo, a liberalização do direito de residência deve complementar o direito de livre circulação das pessoas.

O maior desafio que a África enfrenta não é demográfico. Não é, como na época colonial, fixar as fronteiras, restringir a passagem, forçar as populações a permanecerem imóveis e sedentárias e intensificar os laços locais. É para organizar a circulação e permitir uma intensificação da mobilidade no interior do continente.

É intensificando as mobilidades e desenvolvendo as interconexões entre os lugares que serão desmantelados os antigos esquemas espaciais e infraestruturais que remontam à época da colonização. Hoje, não se trata mais de construir a soberania estatal com base em uma clara diferença entre o interior e o exterior. Trata-se de remover os obstáculos à mobilidade abolindo a multiplicidade de postos de fronteira, removendo barreiras físicas e políticas à fluidificação dos fluxos e desburocratizando o movimento. É assim que a África ganhará em velocidade e os africanos poderão se deslocar dentro do seu continente ao menor custo.

 

Uma fábula de improdutividade

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Marcos Mendes – 10 Setembro 2015

João é inteligente e nasceu numa família de classe alta. Estudou em boas escolas e entrou para uma universidade pública, gratuita, no curso de Engenharia. Formado, viu que os melhores salários iniciais de engenheiros estavam em R$ 5 mil. Fez concurso para um cargo de nível médio num tribunal: salário de R$ 9 mil mais gratificações, aposentadoria integral, estabilidade, expediente de seis horas. O contribuinte custeou a formação de um engenheiro e recebeu um arquivador de processos sobrerremunerado. Amanhã João estará em frente ao Congresso, com seus colegas, todos em greve por aumento salarial. Não terá o dia de trabalho descontado nem se sente remotamente ameaçado de demissão.

Pedro não tem muito talento intelectual. Mas sua família pôde pagar uma boa escola, o que lhe garantiu uma vaga num curso não muito concorrido em universidade pública. Carente de habilidades acadêmicas, Pedro não se adaptou e mudou de curso duas vezes, deixando para trás centenas de horas-aula desperdiçadas e duas vagas que poderiam ter sido ocupadas por outros estudantes que jamais terão acesso àquela universidade. Foi fácil desistir dos cursos, pois Pedro nada pagou por eles.

Após oito anos na universidade, Pedro finalmente se formou em Biologia. Sonha em ter um emprego igual ao de João. Entrou num cursinho preparatório para concursos públicos. Lá conheceu centenas de jovens formados em universidades públicas que, em vez de irem para o mercado de trabalho aplicar os seus conhecimentos, estão em sala de aula decorando apostilas para conseguirem um emprego público.

Jorge, o dono do cursinho, é um brilhante advogado que poderia contribuir para a sociedade redigindo contratos empresariais. Mas descobriu que ganha mais dinheiro preparando candidatos ao serviço público.

Um dos professores do cursinho de Jorge é Manuel, que também abandonou sua formação universitária e mudou de ramo. Ao perceber que jamais exercerá a profissão original, ele pediu desfiliação do respectivo conselho profissional.

Mas não consegue, porque Márcia, funcionária daquele conselho, tem como missão criar todo tipo de dificuldade às desfiliações e manter em dia a arrecadação compulsória. Manuel desistiu e vai pagar a contribuição pelo resto de sua vida profissional, ainda que não se beneficie em nada e pouca satisfação seja dada pelo conselho profissional acerca do uso desse dinheiro.

As limitações acadêmicas de Pedro o impedem de ser aprovado em concurso público. Ele vai ser um medíocre professor numa escola de ensino fundamental de segunda linha (pública ou privada), oferecendo ensino de baixa qualidade às novas gerações das famílias que não podem pagar por uma escola melhor. Pedro só conseguiu essa vaga porque há uma reserva de mercado: por lei, as escolas de ensino fundamental só podem contratar professores com diploma de nível superior. Fosse permitido contratar universitários, diversos graduandos em Biologia mais talentosos e motivados que o diplomado Pedro estariam em sala de aula, oferecendo boas aulas às crianças.

Antônio é tão brilhante quanto João. Daria um excelente engenheiro, mas nasceu em família pobre e estudou em escola pública. Teve professores limitados, no padrão de Pedro, e a desorganização administrativa da escola piorava as coisas: muitas vezes não havia professores em sala. Falta com atestado médico não dá demissão.

Antônio até conseguiu passar no vestibular de Engenharia em universidade pública, pelo sistema de cotas, mas sua formação deficiente em Matemática foi uma barreira intransponível. Abandou o curso, deixando mais horas-aula perdidas e mais uma vaga ociosa na conta dos contribuintes.

Antônio, porém, é empreendedor. Não se abalou com o insucesso universitário, aprendeu a consertar eletrônicos por meio de vídeos no YouTube. Montou um pequeno negócio de manutenção de smartphones e computadores. Seu talento poderia torná-lo um grande empresário. Mas para crescer ele precisa transferir sua empresa do regime de tributação Simples para a tributação normal, pagando impostos muito mais altos, porque o governo precisa de muito dinheiro para pagar altos salários, para custear a universidade gratuita que desperdiça vagas e para sustentar escolas públicas que não dão aula, entre outras despesas. Mesmo assim, o governo permanece em déficit e toma empréstimo para se financiar, aumentando a taxa de juros. Com impostos altos e crédito caro, Antônio prefere manter seu negócio pequeno. A grande empresa e seus empregos morreram antes de nascer.

Chico é um líder talentoso. Dirige uma central sindical que congrega os sindicatos dos companheiros do Judiciário e dos professores, entre outras categorias. Chico está em frente ao Congresso Nacional apoiando a greve de Pedro por melhores salários. Faz um discurso contra os neoliberais, que só pensam em cortar gastos públicos e arrochar os trabalhadores. Chico não tem muito do que reclamar (embora, como líder sindical, a sua especialidade seja, justamente, reclamar): além da remuneração paga pelo sindicato (e custeada pelo imposto sindical, cobrado obrigatoriamente dos contribuintes), ele está aposentado pelo INSS desde os 52 anos de idade. Até o fim da sua vida receberá muito mais do que contribuiu para a Previdência.

Nenhum dos personagens acima citados tem comportamento ilegal. Eles jogam o jogo de acordo com as regras que estão postas. O erro está nas regras. Mudá-las requer superar as dificuldades das decisões coletivas. Não mudá-las implica continuar com talentos profissionais e dinheiro público mal alocados, empregos improdutivos, potenciais inexplorados, gasto público excessivo, oportunidades perdidas, incentivos errados. Uma fábula de improdutividade.

*Marcos Mendes tem graduação, mestrado e doutorado em economia, custeados pelos contribuintes, em universidades públicas. Não se anuncia como ‘economista’, pois não é filiado ao conselho regional de economia e não quer ser processado por isso. É servidor público bem remunerado

 

“Não existe desenvolvimento sem mercado, e não existe desenvolvimento sem Estado” destaca Paulo Gala

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Economista da FGV, Paulo Gala tem se tornado enormemente popular na internet em grupos que se sentem incomodados ou que de alguma forma contestam a hegemonia liberal no campo econômico. Proponente de uma corrente de cunho keynesiana e  estruturalista, Gala é um dos economistas que vêm se destacando entre os chamados novos desenvolvimentistas. Gala concedeu-nos uma breve entrevista, onde responde a algumas perguntas feitas pela equipe do Reação.

Professor, além de economista e de professor, o senhor é autor de alguns livros. Qual deles lhe deu mais prazer escrever?

Acho que o livro que a gente mais gosta é em geral o último que a gente escreveu (risos), até porque é o livro que temos as informações e teorias mais frescas na cabeça. Eu gosto muito do mais recente, porque nele eu consegui sintetizar e unificar tudo o que eu aprendi no meu doutorado nele. Utilizei este ferramental mais recente de redes, de big data e complexidade fazendo paralelos, ao meu ver, muito bons entre Ásia e América Latina.

Alguns economistas ortodoxos questionam sua linha de trabalho, de viés setorial, apresentando exemplos em contrário, como ocaso do México e Bangladesh que tem uma enorme participação de manufaturados nas exportações e, entretanto, não são desenvolvidos. Como você responderia a eles?

De fato, nem sempre existe correlação entre o que é exportado nominalmente e o que de fato existe no tecido produtivo.  Mas isso não fragiliza a minha tese, ao contrário, quando um país exporta tudo o que ele importa, ele torna-se uma maquila plena. Ou seja, existe uma distinção entre importar insumos e agregar valor com a adição de novas tecnologias a um produto exportável e a condição de maquila, como é o caso do México. O México hoje exporta 30 milhões de televisores para os Estados Unidos, mas quando se faz um olhar mais atento, eles apenas embalam, fazem a caixa de papelão e confeccionam os manuais de instruçãoA TV chega pronta da Ásia e vai para os Estados Unidos sem qualquer agregado técnico novo. O caso de Bangladesh é exatamente a mesma situação.

Entretanto, a condição inicial de maquila pode ser útil para que o país possa começar a aprender a ele próprio agregar valor e produzir de fato. E existem controles para identificar e distinguir casos de produtividade real e de maquila. Usa-se uma série de varáveis auxiliares para distinguir casos genuínos de complexidade de casos de complexidade aparente.

Os ortodoxos apontam que as instituições são mais importantes que o desenvolvimento setorial, e que, portanto, a abordagem estruturalista seria falha. O que responderia?

Trabalhei muito com instituições no mestrado, inclusive usando a obra do Douglass North. Instituições e sistema produtivo se retroalimentam, de forma que um ajuda o outro e vice-versa. Contudo, a causa eficiente e primeira, historicamente falando, foi a estrutura produtiva, que ao fornecer mudanças técnicas de grande impacto produtivo força as instituições a se modernizarem e a se adequarem, o que de fato ajuda em contrapartida o sistema produtivo a se tornar mais eficiente ainda.  Um caso notável é a própria revolução industrial inglesa, que foi mais fruto do mercantilismo dos britânicos, e da expansão das manufaturas britânicas pelo mundo, do que de uma revolução institucional. Veneza e a Holanda foram casos análogos, no qual as instituições respondem a uma mudança profunda na estrutura produtiva.

Dado que nossa entrevista se deu a princípio, ao redor de algumas respostas a ortodoxia, qual sua opinião sobre o que se entende por ortodoxia em economia?

Eu sou pragmático, pois acho que a ortodoxia econômica tem aspectos interessantes, é muito importante, e, inclusive, minha graduação e mestrado foram todos sobre autores ortodoxos. Entretanto, a ortodoxia eu vejo apenas como um primeiro passo para se aprender sobre o desenvolvimento, e como eu gosto de empregar conhecimentos de outros campos do saber e de outras ciências sociais na minha maneira de ver o mundo, e não apenas fixar-se em modelos, acabei virando um “heterodoxo”. Inclusive sobre os papéis do Estado e do mercado, eu acredito que nós temos que ser pragmáticos. Não existe desenvolvimento sem mercado, e não existe desenvolvimento sem Estado. Os casos de sucesso são exemplos de relações simbióticas entre Estado e mercado, onde o mercado e o Estado se ajudam mutuamente.

Hoje o Estado se tornou um fator de despoupança na economia brasileira. Diversos economistas heterodoxos argumentam que o país não retomará os investimentos sem o auxílio de uma poupança pública, e por isso defendem alterações no arranjo macroeconômico. Qual o caminho para o desenvolvimento dessa poupança na sua perspectiva?

Para mim, o arranjo macroeconômico ideal sempre foi política fiscal contracionista, política cambial competitiva e uma política monetária que mantenha a inflação na meta de inflação. Se tudo for feito de maneira correta, o câmbio aumenta a lucratividade das empresas, e serão esses lucros que irão financiar o crescimento econômico. Os casos da China e da Coréia foram ilustrativos de que o crescimento veio do lucro das empresas e não da poupança das famílias. Num país pobre, a propensão a consumir é alta e as pessoas não têm como poupar, então uma política que dependa exclusivamente disso fica limitada. Por isso é necessário um sistema de crédito de longo prazo favorável. A parte pública, quanto mais superavitária for, melhor. Sobretudo os superávits servem para financiar toda a infraestrutura necessária ao setor produtivo. Temos os exemplos dos Estados Unidos do século XIX e a Coréia do Sul e a China mais recentemente como bons exemplos de que investimentos grandes em infraestrutura têm um papel chave nisto.

Entrevista teve perguntas formuladas por Arthur Rizzi, Raphael Mirko e Ricardo Carvalho.

 

“Uma leitura marxiana nos ilumina as reflexões sobre a realidade brasileira”, destaca Belluzzo.

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João Vitor Santos – Edição 525 – Instituto Humanitas Unisinos IHU – 30 de julho de 2018

Luiz Gonzaga Belluzzo considera que o filósofo e economista desvelou a dinâmica do capital, que possibilidade ainda hoje usar suas reflexões para compreender os cenários mundial e local

Há quem defenda que o pensamento de Karl Marx se dá por superado por estar inscrito no século XIX. Assim, observando apenas os movimentos do capitalismo nesse tempo, suas ideias seriam incapazes de dar conta de outro capitalismo, completamente atravessado pela tecnologia e pela velocidade tão características do século XXI. Para o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, é um grande equívoco adotar essa concepção reducionista. Segundo ele, Marx não descobriu como o capitalismo movia os sentidos numa sociedade industrial ainda em desenvolvimento na Inglaterra. “Marx desvendou com grande precisão a dinâmica do regime do capital. Não se trata de uma antecipação, mas da compreensão das ‘leis de movimento’ desse modo de produção”, analisa. Ou seja, apresentando como esse capital funciona, ele também concebe possibilidades de análises para possíveis transformações que ainda estão por vir.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Belluzzo ainda detalha que “o movimento de reconstituição teórica de Marx parte da circulação simples de mercadorias como a dimensão mais abstrata do regime do capital investido em todas as suas formas, já ‘dotado’ do capital a juros e das ‘normas’ da concorrência generalizada, ademais de amparado nas forças produtivas da grande indústria que abriga em suas entranhas o progresso técnico ‘autonomizado’”. Assim, reitera a ideia de que Marx pensa em possibilidades metodológicas muito mais do que em descrição e observação de realidades. “Vou simplificar: O Capital é um exercício da dialética materialista, de passagem do abstrato ao concreto”, acrescenta.

Luiz Gonzaga Belluzzo é graduado em Direito pela Universidade de São Paulo – USP, mestre em Economia Industrial pelo Instituto Latino-Americano de Planificação-Cepal e doutor em Economia pela Universidade de Campinas – Unicamp. Foi secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda e, atualmente, é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. É um dos fundadores da Faculdades de Campinas – Facamp, onde é professor. Entre suas obras publicadas, destacamos Manda quem pode, obedece quem tem prejuízo (São Paulo: Facamp/Editora Contracorrente, 2017), Capital e suas metamorfoses (São Paulo: Unesp, 2013), Os antecedentes da tormenta: origens da crise global (Campinas: Facamp, 2009) e Temporalidade da Riqueza – Teoria da Dinâmica e Financeirização do Capitalismo (Campinas: Oficinas Gráficas da Unicamp, 2000).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como Karl Marx pode contribuir para compreendermos a realidade brasileira de hoje e conceber saídas para impasses?

Luiz Gonzaga Belluzzo – Marx afirmou que em todas as etapas de expansão do capitalismo o jogo do mercado global envolve transformações financeiras, tecnológicas, patrimoniais e espaciais. A globalização financeira e produtiva da segunda metade do século XX descortinou uma nova fase, marcada por desencontros nas relações entre o modo de funcionamento dos mercados, movidos pelas estratégias da grande empresa transnacional e os espaços jurídico-políticos nacionais, espaços “desintegrados” pela aceleração do tempo de produção e da circulação do capital. Nesse movimento, o Brasil perdeu espaço e continua perdendo.

O processo de concorrência movido pela grande empresa se dá sob a tutela das instituições nucleares de “governança” do sistema, que são a finança e o Estado hegemônico, pelos quais passam as estratégias nacionais de “inserção” das regiões periféricas. As transformações que hoje observamos são impulsionadas pelo jogo estratégico entre o “polo dominante” – no caso a economia americana, sua capacidade tecnológica, a liquidez e profundidade de seu mercado financeiro, o poder de seignorage de sua moeda – e a capacidade de “resposta” dos países em desenvolvimento às alterações no ambiente internacional.

É desnecessário dizer que as economias periféricas dispõem de estruturas e trajetórias sociais, econômicas e políticas muito dessemelhantes, o que dificulta para umas e facilita para outras a chamada “integração competitiva” nas diversas etapas de evolução do capitalismo. O sucesso do Brasil, até o início dos anos 1980, desencadeou a crise da dívida externa que iria provocar o seu reiterado “fracasso” na tentativa de se ajustar às novas condições internacionais. No polo oposto, o fracasso chinês até os anos 1980 propiciou condições iniciais mais favoráveis para o sucesso das reformas empreendidas a partir de então.

A “globalização do século XXI”, ao operar nas órbitas financeira, patrimonial e produtiva, engendrou dois tipos de regiões: aquelas cuja inserção internacional se faz pela atração do investimento direto destinado aos setores produtivos afetados pelo comércio internacional; e aquelas, como Brasil e Argentina, que buscaram sua integração mediante a abertura comercial passiva e a flexibilização da conta de capitais.

IHU On-Line – Como podemos compreender o caso da China, que cresce tentando manter um socialismo que não rompe com a ordem capitalista mundial?
Luiz Gonzaga Belluzzo – É impossível resistir à constatação de que a China enfrenta os desafios da globalização com concepções e objetivos que desmentem a propalada perda de importância das políticas nacionais e intencionais de industrialização e desenvolvimento. Em discurso de abertura do 19º Congresso do Partido Comunista da China , o presidente Xi Jinping discorreu a respeito do socialismo com características chinesas. Fosse possível pinçar a visão “econômica” da sesquipedal arenga, eu arriscaria a pele apontando a conexão Partido-Estado-Mercado.

A formulação estratégica é do Partido Comunista da China povoado de 80 milhões de membros. O sistema de consultas da base para a cúpula e vice-versa é inçado de instâncias, marchas e contramarchas. Tomada a decisão, as burocracias de Estado, os gestores das empresas estatais, os governos provinciais, o People’s Bank of China cuidam de implementar as diretrizes. Obedecem às máximas de Deng Xiao Ping : “não importa a cor do gato, se o bicho caça ratos” ou “atravessar o rio das reformas saltando as pedras”. Devagar e sempre é o lema do socialismo à moda chinesa.

O presidente Xi Jinping anunciou as políticas de “ampliação do papel do mercado” e de reforço às empresas estatais. O propósito é alentar o empreendedorismo e a inovação.

IHU On-Line – Ainda sobre a China, que socialismo emerge dessa sua experiência econômica? E o que difere de outras experiências como a da ex-União Soviética?

Luiz Gonzaga Belluzzo – A experiência chinesa combina o máximo de competição – a utilização do mercado como instrumento de desenvolvimento – e o máximo de controle. Entenderam perfeitamente que as políticas liberais recomendadas pelo Consenso de Washington não deveriam ser “copiadas” pelos países emergentes. Também compreenderam que a “proposta” americana para a economia global incluía oportunidades para o seu projeto nacional de desenvolvimento. Assim controlaram as instituições centrais da economia moderna: o sistema de crédito e a política de comércio exterior, aí incluída a administração da taxa de câmbio. Os bancos públicos foram utilizados para dirigir e facilitar o investimento produtivo e em infraestrutura.

O que realmente importa para o desenvolvimento chinês é a capacidade de adaptação do sistema às novas condições impostas pelas transformações da economia global, sem destruir o que foi herdado do passado. Não interessa se o sistema é “melhor” no sentido de atender a configurações abstratas, frequentemente irrealistas e, portanto, perigosas. Nesta perspectiva, é vital assegurar que o sistema econômico tenha sempre canais abertos para reformas institucionais.

O professor Yao Yang da Universidade de Pequim atribui a flexibilidade institucional à capacidade do governo de promover as políticas corretas sem atender aos grupos de interesses (dentro e fora do Estado, é bom lembrar) que buscam influenciar as decisões. Essa neutralidade, diz ele, explica o sucesso da transição econômica da China de uma economia de comando para uma economia “mista” em que o mercado tem papel importante, mas não tem influência na formulação das estratégias de longo prazo.

Na Rússia de Gorbachev , as oligarquias particularistas (cientistas acadêmicos, dirigentes industriais e cúpulas militares) que proliferaram à sombra da oligarquia partidária não tiveram maiores dificuldades em manter e ampliar os privilégios na democracia de Yeltsin . Os novos ricos da Rússia contemporânea não desembarcaram de uma nave espacial enviada à Terra diretamente do Planeta Marte, mas foram criados nas entranhas do regime soviético.

IHU On-Line – Que relações podemos estabelecer entre Marx e Keynes ? Em que medida esse segundo abre outras perspectivas de leitura do marxismo?

Luiz Gonzaga Belluzzo – Marx e Keynes compreenderam que a característica central do capitalismo não é a produção de mercadorias por meio de mercadorias, nem vai ser encontrada na coordenação, efetuada através dos mercados competitivos, dos planos dos indivíduos racionais, na busca da maximização da utilidade. Admiradores da sua enorme capacidade de produção de mercadorias e de seu formidável potencial de satisfação de necessidades, para eles o capitalismo é um regime de acumulação de riqueza abstrata, monetária.

Se, por um lado, é admirável o seu potencial de criação de riqueza material, de progresso tecnológico e de bem-estar das nações, de outra parte é assustador o seu inerente desprezo pelas condições particulares da existência dos povos e pelos conteúdos da vida. Assim, o capitalismo é o regime de produção em que a riqueza acumulada sob a forma monetária está sempre disposta a dobrar-se sobre si mesma, na busca da autorreprodução. D-D’, e não D-M-D’, é o processo em estado puro, adequado a seu conceito, livre dos incômodos e empecilhos de suas formas materiais particulares.

Não se trata de uma deformação, mas do aperfeiçoamento de sua substância, na medida em que o dinheiro é o suposto e o resultado do processo de acumulação de riqueza no capitalismo. É este processo fantasmagórico de autorreprodução que o capital está realizando sob os nossos olhos nos mercados financeiros contemporâneos.

O capital a juros e a circulação financeira

Marx trata no volume III do circuito próprio do loanable capital – o capital a juros – que mais tarde Keynes chamaria de “circulação financeira” em contraposição à “circulação industrial”. No capítulo 30, Marx estabelece as relações entre capital-mercadoria, capital produtivo e capital monetário: “Em nossa análise da forma peculiar da acumulação do capital monetário e da riqueza monetária em geral, vimos que ela se reduziu à acumulação de títulos de propriedade sobre o trabalho. A acumulação de capital da dívida pública revelou-se como sendo apenas um aumento na classe de credores do Estado, que detêm o privilégio de retirar antecipadamente para si certas somas sobre a massa de impostos públicos. […] Esses títulos de dívida que são emitidos sobre o capital originalmente emprestado e gasto há muito tempo, essas duplicatas de um capital já consumido, servem para seus possuidores como capital na medida em que são mercadorias que podem ser vendidas e, com isso, reconvertidas em capital. […] ganhar ou perder em virtude de preços desses títulos de propriedade e de sua centralização nas mãos dos reis das ferrovias etc. converte-se cada vez mais em obra do acaso, que agora toma lugar do trabalho como modo original de aquisição da propriedade do capital, e também o lugar da violência direta. Esse tipo de riqueza monetária imaginária constitui uma parte considerável não só da riqueza monetária dos particulares, mas também, como já dissemos, do capital dos banqueiros.”

Keynes tinha familiaridade com os mercados financeiros. Escreveu na Teoria Geral : “Este é o resultado inevitável dos mercados financeiros organizados em torno da chamada ‘liquidez’. Entre as máximas da finança ortodoxa, seguramente nenhuma é mais antissocial que o fetiche da liquidez, a doutrina que diz ser uma das virtudes positivas das instituições investidoras concentra seus recursos na posse de valores ‘líquidos’. Ela ignora que não existe algo como a liquidez do investimento para a comunidade como um todo. A finalidade social do investimento bem orientado deveria ser o domínio das forças obscuras do tempo e da ignorância que rodeiam o nosso futuro. O objetivo real e secreto dos investimentos mais habilmente efetuados em nossos dias é ‘sair disparado na frente’ como se diz coloquialmente, estimular a multidão e transferir adiante a moeda falsa ou em depreciação.”

Prossegue: “Esta luta de esperteza para prever com alguns meses de antecedência as bases de avaliação convencional, muito mais do que a renda provável de um investimento durante anos, nem sequer exige que haja idiotas no público para encher a pança dos profissionais: a partida pode ser jogada entre estes mesmos. Também não é necessário que alguns continuem acreditando, ingenuamente, que a base convencional de avaliação tenha qualquer validez real a longo prazo. Trata-se, por assim dizer, de brincadeiras como o jogo do anel, a cabra-cega, as cadeiras musicais. É preciso passar o anel ao vizinho antes do jogo acabar, agarrar o outro para ser por este substituído, encontrar uma cadeira antes que a música pare. Estes passatempos podem constituir agradáveis distrações e despertar muito entusiasmo, embora todos os participantes saibam que é a cabra-cega que está dando voltas a esmo ou que, quando a música para, alguém ficará sem assento.”

IHU On-Line – Como a crítica que Polanyi faz à razão moderna pode ser cotejada com a crítica ao capitalismo de Marx?

Luiz Gonzaga Belluzzo – Em A Grande Transformação , Karl Polanyi chamou de moinho satânico as engrenagens do mercado autorregulado. O católico Polanyi procura mostrar em seu livro que a transformação da terra, da mão de obra e do dinheiro em mercadorias significa subordinar a própria substância da sociedade às intempéries da economia “desencastrada” das demais instâncias da vida social.

A terra (recursos naturais), a mão de obra (capacidade de trabalho) e o dinheiro (poder de compra) não podem estar sujeitos aos processos imprevisíveis e frequentemente catastróficos do mercado porque são, antes de mais nada, condições de sobrevivência humana, meios que permitem o acesso aos bens da vida. Condicionar o acesso a esses meios de vida a decisões que não têm outra finalidade senão a maníaca acumulação de riqueza abstrata, monetária, significa lançar os indivíduos na insegurança permanente. Atingidos pelo desemprego, pela falência ou pela desvalorização de sua riqueza, os indivíduos são afastados dos meios que permitem a sua sobrevivência. O colapso do mercado autorregulado e de sua utopia moral desencadeou reações de autoproteção da sociedade contra o desemprego, o desamparo, a falência, a bancarrota, enfim, contra a exclusão dos circuitos mercantis, o que significa, na prática, a impossibilidade de acesso aos meios necessários à sobrevivência humana.

Nos anos de 1930, Polanyi observa um momento da história do século XX em que a revolta contra o “moinho satânico” revelou-se, na maioria dos países europeus, tão brutal quanto os males que a economia destravada impôs à sociedade. O avanço do coletivismo, diz ele, não foi fruto de uma patologia ou de uma conspiração irracional de classes ou grupos, mas sim de forças gestadas nas entranhas da sociedade “dos indivíduos racionais”.

Com o colapso dos nexos mercantis, a superpolitização das relações sociais tornou-se inevitável. O despotismo social-darwinista da mão invisível é substituído pela tirania visível do chefe. O político se transfigura na polícia, no policiamento da vida social, como se fossem suspeitas quaisquer formas de espontaneidade.

IHU On-Line – Ainda é possível, à luz do marxismo, compreender as transformações do capitalismo de nosso tempo?

Luiz Gonzaga Belluzzo – Marx desvendou com grande precisão a dinâmica do regime do capital. Não se trata de uma antecipação, mas da compreensão das “leis de movimento” desse modo de produção. Muitos cometem o equívoco de afirmar que Marx analisou o capitalismo inglês do século XIX.

Não é trivial enfrentar o percurso conceitual de Marx em seu empenho para investigar os desdobramentos da forma valor. O movimento de reconstituição teórica de Marx parte da circulação simples de mercadorias como a dimensão mais abstrata do regime do capital investido em todas as suas formas, já “dotado” do capital a juros e das “normas” da concorrência generalizada, ademais de amparado nas forças produtivas da grande indústria que abriga em suas entranhas o progresso técnico “autonomizado”. Vou simplificar: O Capital é um exercício da dialética materialista, de passagem do abstrato ao concreto.

Vamos conversar sobre um tema atual: o progresso técnico no regime do capital. Nos Grundrisse , Marx vislumbrou o momento em que o avanço dos métodos capitalistas de produção tornaria o tempo de trabalho uma “base miserável” para a valorização da imensa massa de valor que deverá funcionar como capital. “Quando o processo de trabalho em sua totalidade não está mais submetido à habilidade do trabalhador, mas à aplicação tecnológica da ciência, então a tendência do capital é dar à produção um caráter científico. […] o desenvolvimento do capital fixo indica o grau em que o conhecimento social tornou-se uma força direta de produção e em que medida, portanto, o processo da vida social foi colocado sob o controle do General Intellect e passou a ser transformado de acordo com ele.”

Em seu desenvolvimento, a Indústria 4.0 exprime o avanço do capital fixo. São fábricas inteligentes com máquinas conectadas em rede e a sistemas que podem visualizar toda cadeia produtiva, podendo tomar decisões por si só. A nova fase da digitalização da manufatura é conduzida pelo aumento do volume de dados, ampliação do poder computacional e conectividade, a emergência de capacidades analíticas aplicada aos negócios, novas formas de interação entre homem e máquina, e melhorias na transferência de instruções digitais para o mundo físico, como a robótica avançada e impressoras 3-D.

Nos Grundrisse e em O Capital, Marx investiga, como já foi dito, a “natureza” do regime do capital como modalidade histórica cujo propósito é a acumulação de riqueza monetária, abstrata; assim abre espaço para a compreensão da predominância do capital a juros e do capital fictício, como formas de riqueza e de enriquecimento derivadas da propriedade do capital e não da atividade inovadora e fáustica do empreendedor capitalista. No capitalismo carregado de todas as suas determinações, riqueza agregada compreende não só o estoque de ativos físicos, reprodutivos, mas também aparece sob a forma “duplicada” de direitos de propriedade sobre as empresas (ações), títulos de dívida gerados ao longo de vários ciclos de crédito e de criação de valor. Esses ativos financeiros – ações e títulos de dívida – são avaliados diariamente em mercados especializados.

No Livro III de O Capital, Marx estabelece a conexão entre a expansão do crédito e a valorização dos ativos financeiros: “Ao desenvolver-se o capital-dinheiro disponível também se desenvolve a massa de valores rentáveis, títulos do Estado, ações, etc. Mas aumenta ao mesmo tempo a demanda de capital-dinheiro disponível posto que os que especulam com títulos e valores desempenham um papel fundamental no mercado de dinheiro. […] Se todas as compras e vendas desses títulos não fossem mais do que a expressão dos investimentos reais de capital, seria acertado dizer que não influem na demanda de capital de empréstimo.”

IHU On-line – Que respostas a economia política marxista é capaz de dar a crises, como as geradas pelo capital fictício, o sistema de crédito?

Luiz Gonzaga Belluzzo – No dia 11 de julho de 1856, o “New York Tribune” publicou o terceiro artigo de Marx sobre o Crédit Mobilier. Sob os auspícios de Napoleão III , o banco de investimento empreendido pelos irmãos Pereire , Emile e Isaac, tinha o propósito de “concentrar grandes somas de capital de empréstimo para investimento em empresas industriais”. Depois de ironias e sarcasmos lançados sobre o “socialismo imperial” de Luís Napoleão e das habituais estocadas nas concepções reformistas de Saint-Simon e discípulos, Marx reconhece que as transformações da finança capitalista e o surgimento da sociedade por ações, sobretudo da sociedade anônima, “marcam uma nova época na vida econômica das nações modernas”.

Os bancos comerciais, diz ele, “fluidificam temporariamente o capital fixo”, enquanto os bancos de investimento cuidam de “fixar o capital líquido” em estruturas empresariais cada vez maiores e de administração mais complexa. Marx conclui: “Quase todas as crises comerciais dos tempos modernos estão relacionadas com o desarranjo nas proporções entre o capital fixo e o “floating capital” (os títulos de dívida e de propriedade negociados diariamente nas Bolsas de Valores e nos demais mercados secundários).

A série de artigos sobre o Crédit Mobilier foi estampada nas páginas do “New York Tribune” no período em que Marx trabalhava nos Grundrisse e dez anos antes da publicação do primeiro volume de O Capital. Quatro décadas iriam transcorrer entre as primeiras e pontuais investigações de Marx sobre as peripécias do capital financeiro e o esforço de Engels para completar os alfarrábios do terceiro volume, publicado em 1894.

Formas concretas que brotam do capital

Marx adverte, na abertura do Livro III de O Capital, que até então, nos Livros I e II, o processo capitalista de produção foi considerado em seu conjunto, representando a unidade do processo de produção e de circulação. “Aqui no livro III, não se trata de formular reflexões gerais sobre essa unidade, senão, ao contrário, de descobrir e expor as formas concretas que brotam do movimento do capital considerado como um todo. Em seu movimento real, os capitais se enfrentam sob essas formas concretas […] As manifestações do capital se aproximam, pois, gradualmente da forma sob a qual se apresentam na superfície da sociedade, mediante a ação recíproca dos diversos capitais que se enfrentam na concorrência e tal como (essas manifestações) se refletem na consciência habitual dos agentes de produção.” Marx procura articular teoricamente essas formas de modo a demonstrar como o capital, no exercício de sua natureza expansionista, rompe continuamente as limitações do seu processo mais geral e “elementar” de circulação e reprodução. O capital precisa existir permanentemente de forma “livre” e líquida e, ao mesmo tempo, crescentemente centralizada, para revolucionar periodicamente a base técnica, submeter massas crescentes de força de trabalho a seu domínio e criar novos mercados. Apenas dessa maneira pode fluir para colher novas oportunidades de lucro e, concomitantemente, reforçar o poder do capital industrial e mercantil imobilizado nos circuitos prévios de acumulação. Daí as análises da concorrência, do crédito e, portanto, do processo de concentração e centralização do capital se constituírem na parte mais rica e substantiva da investigação marxista sobre a dinâmica do sistema capitalista e suas metamorfoses.

Uma leitura cuidadosa dos Grundrisse e dos três volumes de O Capital permite compreender que o dinheiro transformado em capital – origem e finalidade da circulação e da produção capitalistas (Dinheiro-Mercadoria-Dinheiro) – não só exige a submissão real da força de trabalho ao domínio das forças produtivas como também impõe aos trabalhadores (e aos proprietários do valor-capital) os ditames da acumulação de riqueza abstrata. A acumulação de mais dinheiro mediante o uso do dinheiro para capturar mais valor sob a forma monetária suscita a transfiguração das formas de expansão do valor, isto é, impõe o predomínio das formas “desenvolvidas”: o capital a juros, o dinheiro de crédito e o capital fictício. Nessas formas, o dinheiro-capital realiza o seu conceito de valor que se valoriza e tenta continuamente romper os seus próprios limites ao buscar o acrescentamento do valor sem a mediação da mercadoria força de trabalho. “D-M-D” se converte em “D-D”.

Na (re)constituição teórica do modo capitalista de produção, o dinheiro, enquanto substantivação do valor e objetivo do processo de valorização, assume a forma de dinheiro de crédito. As determinações mercantis e capitalistas do modo de produção não são distorcidas, mas, ao contrário, alcançam o ápice de seu desenvolvimento quando são introduzidos o capital a juros e o dinheiro bancário. O sistema de crédito é a forma mais adequada para cumprir as determinações do dinheiro: ele “aperfeiçoa” a execução das funções monetárias no capitalismo e constitui uma esfera de “valorização” em que o capital monetário ensaia estabelecer uma relação consigo mesmo, “D-D”. Aqui, o dinheiro realiza o seu conceito de substantivação do valor e de forma universal da riqueza. O movimento de abstração real e o fetichismo chegam ao estágio supremo. “O crédito, que também é uma forma social da riqueza, substitui o dinheiro (metálico) e usurpa o lugar que lhe correspondia. A confiança no caráter social da produção faz a forma dinheiro dos produtos algo destinado a desaparecer. […] Ao se desenvolver o sistema de crédito, a produção capitalista tende a suprimir continuamente o limite metálico-material e fantástico da riqueza e de seu movimento – mas quebrando seguidamente sua cabeça contra ele.”

Ao concentrar capital monetário, os bancos ganharam a prerrogativa de emitir notas que abastecem a circulação monetária. Com a evolução do sistema de crédito, os passivos bancários mudam de forma: a emissão de notas é substituída por depósitos à vista que podem ser mobilizados por seus titulares como meios de pagamento. “Se B deposita no banco o dinheiro recebido de A e o banqueiro entrega esse dinheiro a C como desconto de uma letra, C faz uma compra a D e este deposita no banco, que por sua vez empresta a E, que compra de F, teremos que o ritmo (da criação monetária) como meio de circulação se opera mediante várias operações de crédito.” (O Capital, vol. III, p. 489).

O “salto” no potencial de acumulação promovido pelas formas financeiras engendra a criação de modalidades de negócios e de enriquecimento que pretendem se tornar independentes das leis da produção de mais-valia e das normas de reprodução e acumulação do capital produtivo. A concentração da riqueza líquida nos bancos e demais instituições financeiras enseja o adiantamento de recursos livres e líquidos para sancionar a aposta do capitalista em funções que resolveu colocar o seu estoque de capital em operação, contratando trabalhadores e adquirindo meios de produção. Concomitantemente, o movimento de expansão do valor, ao ampliar as relações de débito e crédito, “cria” o circuito de negociação de valores – títulos de dívida e direitos de propriedade. A avaliação e negociação dos direitos de propriedade e de dívidas abre espaço para episódios especulativos.

Valorização fictícia

O capital a juros patrocina a valorização “fictícia” da riqueza, o que acentua e acelera as tendências da economia capitalista para deflagrar crises de superacumulação e de crédito, provocando com violência a continuidade do processo de “expropriação dos expropriadores” e de destruição de valor na esfera produtiva e financeira. A “reunião do que não deveria estar separado” impõe o “retorno” aos fundamentos, o que se efetua mediante a desvalorização dos títulos que representam direitos à apropriação da renda futura e do patrimônio: títulos de dívida e de propriedade, mercadorias não vendidas e sem valor, capacidade produtiva excedente. Nas crises, fica demonstrado que não é possível preservar o capital em funções [capital produtivo] das escaladas de valorização da riqueza capitalista na esfera financeira.

As relações entre a “economia real” e a economia monetário-financeira não são de exterioridade, mas nascem das formas necessárias assumidas pelo capital em seu movimento de expansão e transformação permanentes. Aí estão inscritas a concentração e centralização do controle do capital líquido em instituições de grande porte e cada vez mais interdependentes. O circuito “D-D” nasce das tendências centrais do regime do capital: um processo necessário e inexorável, porque a acumulação capitalista é acumulação de riqueza abstrata e, ao mesmo tempo, um movimento de abstração real que transfigura o dinheiro, a encarnação substantivada do valor e da riqueza, nas formas “desenvolvidas” do dinheiro de crédito, do capital a juros e do capital fictício.

Do capital produtivo ao financeiro, um desenvolvimento contraditório

Não há oposição entre as formas – capital produtivo versus capital financeiro – mas um desenvolvimento contraditório. Por isso, o capital financeiro, em seu movimento de valorização, tende a arrastar o capital em funções para o frenesi especulativo, a criação contábil de capital fictício. A chamada desregulamentação financeira mostrou de forma cabal como a “natureza” intrinsecamente especulativa do capital fictício se apoderou da gestão empresarial, impondo práticas destinadas a aumentar a participação dos ativos financeiros na composição do patrimônio, inflar o valor desses ativos e conferir maior poder aos acionistas. Particularmente significativas são as implicações da “nova finança” sobre a governança corporativa. A dominância da “criação de valor” na esfera financeira expressa o poder do acionista, agora reforçado pela nova modalidade de remuneração dos administradores, efetivada mediante o exercício de opções de compra das ações da empresa.

A “geração de valor” para os acionistas acirra a concorrência entre as empresas na busca de ganhos especulativos de curto prazo, enquanto a liquidez dos mercados permite a constante reestruturação das carteiras pelos administradores dos fundos financeiros “coletivizados”. No sistema de crédito, os prestamistas finais disponibilizam – através dos bancos comerciais e demais intermediários financeiros – recursos destinados ao conjunto da classe capitalista, para um empreendimento que eles não sabem qual é. Entregam aos especialistas das finanças a administração de suas “poupanças” e dependem de seus critérios para a obtenção de rendimentos.

Exuberância financeira e crise

No último ciclo de exuberância financeira, que culminou na crise de 2008, foi ampla e irrestrita a utilização das técnicas de alavancagem com o propósito de elevar os rendimentos das carteiras em um ambiente de taxas de juros reduzidas. Isso favoreceu a concentração da massa de ativos mobiliários em um número reduzido de instituições financeiras grandes demais para falir. Os administradores dessas instituições ganharam poder na definição de estratégias de utilização das “poupanças” das famílias e dos lucros acumulados pelas empresas, assim como no direcionamento do crédito. Na esfera internacional, a abertura das contas de capital suscitou a disseminação dos regimes de taxas de câmbio flutuantes, que ampliaram o papel de “ativos financeiros” das moedas nacionais, não raro em detrimento de sua dimensão de preço relativo entre importações e exportações.

Na esteira da liberalização das contas de capital e da desregulamentação, as grandes instituições construíram uma teia de relações “internacionalizadas” de débito-crédito entre bancos de depósito, bancos de investimento e investidores institucionais. O avanço dessas inter-relações foi respaldado pela expansão do mercado interbancário global e pelo aperfeiçoamento dos sistemas de pagamentos. Os bancos de investimento e os demais bancos “sombra” aproximaram-se das funções monetárias dos bancos comerciais, abastecendo seus passivos nos “mercados atacadistas de dinheiro” (“wholesale money markets”), amparados nas aplicações de curto prazo de empresas e famílias. Não por acaso, nos anos 2000 a dívida intrafinanceira como proporção do PIB americano cresceu mais rapidamente do que o endividamento das famílias e das empresas. A “endogeinização” da criação monetária mediante a expansão do crédito chegou à perfeição em suas relações com o crescimento do estoque de quase-moedas abrigado nos “money markets funds”. Esses fenômenos correspondem ao que Marx designou “controle privado da riqueza social”, fenômeno que se realiza no movimento de expansão do sistema capitalista.

Essa socialização da riqueza significa não apenas que o crédito permite o aumento das escalas produtivas, da massa de trabalhadores reunidos sob o comando de um só capitalista. Significa mais que isso: os capitais individuais passam a ser mais interdependentes e “solidários” no sistema de crédito e, portanto, mais sujeitos a episódio de crise sistêmica. A “separação” entre o capital em funções e o capital a juros (capital-propriedade) promove a subordinação “solidária” do capital produtivo à sua forma mais “desencarnada”.

Juros e dividendos

A remuneração do capital em geral “aparece” sob a forma de juros e dividendos. Formas ‘aparenciais’ são, ao mesmo tempo, formas ilusórias, no sentido de que ocultam as conexões fundamentais desse modo de produção, mas também são formas necessárias, expressões das relações de produção “transformadas” pelo processo de abstração real. Os juros aparecem como forma de remuneração do capital “sans phrase” e sua formação nos mercados de riqueza mobiliária depende da demanda e oferta de capital-dinheiro transfigurado na forma de capital a juros, capital-propriedade. Essa é a forma mais abstrata de existência do capital, a sua forma “verdadeira”, no sentido de que é a mais desenvolvida. “É evidente que no capital a juros, o capital se completa como fonte misteriosa e autocriativa de seu próprio acrescentamento […] é o capital par excellence.”

IHU On-Line – Durante muito tempo, falou-se da incompatibilidade entre o marxismo e o cristianismo. Mas o senhor é um marxista cristão, correto? Que chaves de leitura essas duas perspectivas são capazes de oferecer para se compreender o mundo?

Luiz Gonzaga Belluzzo – As afinidades entre marxismo e cristianismo são muito mais profundas do que admitem as visões estreitas do materialismo vulgar e do fanatismo religioso. Há tempos, escrevi que, em 2013, o papa Francisco ofereceu aos católicos e cristãos a Primeira Exortação Apostólica Evangelii Gaudium . Assim como as encíclicas Rerum Novarum de Leão XIII , Mater et Magistra e Pacem in Terris de João XXIII , a exortação apostólica de Francisco abordava as vicissitudes e alegrias da vida cristã no mundo contemporâneo.

Os olhares do nosso tempo perderam de vista a ideia de comunidade cristã, expressão tantas vezes repetida no texto do Papa e incrustrada nas origens do cristianismo. Jacques Le Goff diz com razão que no cristianismo primitivo e no judaísmo a eternidade não irrompia no tempo (abstrato) para “vencê-lo”. A eternidade não é a “ausência do tempo”, mas a dilatação do tempo ao infinito. Depois da encarnação, o tempo adquire uma dimensão histórica. Cristo trouxe a certeza da eventualidade da salvação, mas cabe à história coletiva e individual realizar essa possibilidade oferecida aos homens pelo sacrifício da cruz e pela ressurreição. “Não nos é pedido que sejamos imaculados, mas que não cessamos de melhorar, vivamos o desejo profundo de progredir no caminho do Evangelho, e não deixemos cair os braços”.

O cristianismo – o mistério libertador da Encarnação – foi um divisor de águas na história da humanidade, um movimento revolucionário, nascido das crueldades e das sabedorias do mundo greco-romano. Em uma entrevista sobre seu filme Satyricon , Fellini desvelou a alma que se escondia no rosto de seus personagens no crepúsculo do império romano. As máscaras se debatiam entre o tédio das concupiscências e as angústias da desesperança. Para o grande Federico, o filme escancarava “a nostalgia do Cristo que ainda não havia chegado”.

 

“Está explodindo uma bomba-relógio que ninguém quis ver” Entrevista com Wladimir Safatle

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Filósofo da USP diz que bravatas de Bolsonaro tiram o foco de projeto econômico rejeitado por maioria dos brasileiros e que nunca um candidato havia retirado da eleição o espaço público de discussão.

Os posicionamentos de Jair Bolsonaro (PSL) sobre pautas identitárias, como os direitos das mulheres e LGBTs, dominaram o debate eleitoral no primeiro turno e atraíram o foco das atenções internacionais. Na leitura do filósofo Wladimir Safatle, professor da Universidade de São Paulo (USP), as declarações são utilizadas pelo candidato a partir de um cálculo estratégico para esvaziar a discussão política.

Em entrevista à DW Brasil, Safatle argumenta que a rejeição da sociedade brasileira a medidas neoliberais trouxe o país a uma situação “atípica” no cenário global, com universidades gratuitas e duas das maiores empresas do país sendo públicas.

“Os defensores dessa agenda compreenderam que a única maneira de impor suas reformas seria de uma maneira autoritária”, afirma. “Só tinha um jeito de ser implementada: escondendo-a, não deixando que fosse claramente exposta e tematizada”.

A entrevista é de João Soares, publicada por Deustsche Welle, 08-10-2018.

Eis a entrevista.

Como explicar a crescente adesão ao autoritarismo no Brasil?

Nada da situação atual é compreensível sem remetermos ao que aconteceu com o fim da ditadura militar. O Brasil fracassou redondamente em conseguir superar seu passado ditatorial, que volta a assombrar agora. Nenhum país da América Latina tem um risco tão explícito de militarização e mesmo de um golpe de Estado nos moldes tradicionais quanto o Brasil. Nenhum tem uma presença tão forte das Forças Armadas no cotidiano da vida pública. Isso mostra, muito claramente, que a solução conciliatória produzida pela transição em direção à democracia foi a maior covardia histórica que o país conheceu.

Esse passo conciliatório conservou setores da classe política que estavam completamente vinculados à ditadura, assim como preservou, no seio das Forças Armadas, uma mentalidade de justificativa de situações de exceção que volta agora. Também preservou, no seio da sociedade civil, um potencial de apoio a governos aparentemente fortes e autoritários devido ao fato de o Brasil, em momento algum, ter imposto um dever de memória e justiça de transição, que seria fundamental para que não estivéssemos vendo regressões como as de agora.

E qual foi o papel da Constituição de 1988, que acaba de completar 30 anos, nesse processo?

A Constituição de 88 foi a expressão dessa grande política conciliatória. Fala-se muito que é uma constituição cidadã, que garante direitos fundamentais. Por um lado, foi uma constituição sem vigência. Até hoje, tivemos 95 emendas constitucionais – mais ou menos três por ano. Para aprovar uma emenda, o Congresso precisa de dois terços. No caso brasileiro, essa negociação dura meses. Chega-se a uma conclusão muito clara de que a função do Congresso Nacional desde o fim da Constituinte foi simplesmente desconstituir a Constituição. Ela já nasceu com esse selo.

Por outro lado, 30 anos depois, há leis constitucionais que nunca foram implementadas por falta de lei complementar. É uma aberração. A lei que estabelece o imposto sobre grandes fortunas é constitucional e nunca foi aplicada, por mera falta de lei complementar. A Constituição nasce letra-morta. Por outro lado, ela era também resultado de uma grande estrutura de conciliação entre vários setores da sociedade brasileira, inclusive ligados à vida militar. O Exército chegou com 28 parágrafos fechados, praticamente empurrados goela abaixo aos constituintes. Entre eles, o artigo que define a função das Forças Armadas. No caso brasileiro, a preservação da ordem, outra aberração completa, porque a função delas é a defesa da integridade do território nacional e ponto. Logo, o que está explodindo hoje era uma bomba-relógio que ninguém quis ver.

É possível pensar em um governo Bolsonaro nos moldes tradicionais, articulando no Congresso para governar com maioria?

Dentro de um possível governo Bolsonaro, várias opções se colocam à mesa. Elas vão depender muito dos sistemas de resistência que ocorrerão. Agora, é importante lembrar algumas coisas. A primeira delas é que o Brasil é uma certa aberração do ponto de vista dos ajustes neoliberais até hoje. Devido aos pactos da Nova República, não havia condição de avançar muito, tampouco de regredir. Havia forças sociais claramente constituídas que criavam um certo equilíbrio. Isso fez, por exemplo, que os grandes ajustes neoliberais aplicados em outros países latino-americanos, como a Argentina, não fossem feitos aqui.

Brasil chega em 2018 com duas de suas maiores empresas sendo públicas, assim como dois entre seus maiores bancos. Além disso, com um sistema de saúde que cobre 207 milhões de pessoas e é gratuito, universal, coisa que nenhum país com mais de 100 milhões de habitantes tem. Há, também, 57 universidades federais completamente gratuitas. Não são universidades para a elite. Só na USP, 60% dos alunos vêm de famílias que ganham até dez salários mínimos. Percebe-se que o Brasil chega aos dias atuais numa situação muito atípica do ponto de vista do neoliberalismo.

Os defensores dessa agenda compreenderam que a única maneira de impor suas reformas seria de uma maneira autoritária, como no modelo chileno do Pinochet. É um neoliberalismo claramente autoritário, diferente do que se tem na Europa. Lá, a extrema direita é antiliberal, protecionista, que incorpora certas pautas sociais vindas da esquerda e usa a luta contra o sistema financeiro em seu discurso. Exatamente por isso, o neoliberalismo na Europa tem que ser implementado por figuras mais ao centro. Não é o que acontece no Brasil. Até porque pesquisas mostram que 68% da população brasileira são contra as privatizações; 71%, contra reformas nas leis trabalhistas e 85% contra reformas na previdência.

A adoção dessa agenda seria, portanto, eleitoralmente inviável?

Só tinha um jeito de ser implementada: escondendo-a, não deixando que fosse claramente exposta e tematizada. A única forma de fazer isso era alimentar e ressuscitar os piores fantasmas autoritários da sociedade brasileira, colocando-os no centro do debate político. Todas essas bravatas preconceituosas são peças fundamentais na estratégia retórica de anulação do espaço político. O que nós vimos foi uma anticampanha, baseada no esvaziamento do espaço político, exatamente por meio desse tipo de provocação às minorias vulneráveis – negros, mulheres, LGBTs – que se revoltam, com toda a justiça, e esse jogo ocupa toda a cena da campanha.

Por um lado, um potencial fascista que estava mais ou menos recalcado ganha direito de existência e aflora de maneira muito forte. Isso vem de longe. A ditadura militar teve apoiadores, e a gente conhece muito bem o padrão rascista e preconceituoso de vários setores da sociedade brasileira. Por outro lado, há um elemento fundamental e absolutamente impressionante: a campanha sai do espaço público e se desloca para o ambiente virtual, difícil de ser partilhado pela sociedade. Nesse espaço, a produção contínua de imagens e vídeos falsos de forte apelo retórico, que podem ser partilhados, acabam dando o tom.

Vimos o que aconteceu com os atos do sábado retrasado: grandes manifestações populares que ocuparam as ruas do Brasil e, de repente, foram anuladas. Ninguém estava sabendo exatamente o que aconteceu. Justo após essas manifestações, Bolsonaro teve um salto nas pesquisas. Depois, fomos entendendo. Com uma organização impressionante, uma rede muito vasta de circulação de imagens, profissionalmente constituída, tentou anular o ato pela construção de um evento falso no lugar. Faziam circular fotos que não tinham nada a ver com aqueles protestos, com o objetivo claro de denegrir suas propostas. Conseguiram anular um evento de rua por meio de uma mobilização virtual.

Esses dois elementos constituem um outro modelo de campanha completamente fora dos padrões tradicionais da democracia liberal. Ela já tem seus limites, mas era obrigada a conservar um espaço público no interior do qual a sociedade, como um todo, podia operar um embate. Esse elemento foi brutalmente retirado. O candidato Bolsonaro levou uma facada e passou a campanha inteira fora dela. Todas as vezes em que seu vice ou economista fazia alguma declaração, eram falas catastróficas, imediatamente rechaçadas. Ou seja, não houve campanha, no sentido tradicional do termo.

Esta eleição já é marcada pela circulação massiva de notícias falsas e rejeição ao jornalismo. Como é possível haver debate se alguns grupos estão fechados ao contraditório?

A política nunca foi uma questão de argumentação. É um erro achar isso. Trata-se da mobilização de afetos, que, por sua vez, expressam adesões a formas de vidas distintas e conflituais. Você não argumenta contra afetos, mas os desconstitui. É um processo diferente. Afetos não são irracionais, no entanto. Eles têm uma dinâmica própria, e devem ser compreendidos na sua especificidade. Em certo sentido, numa situação tecnológica como a nossa, qualquer um pode produzir fake news. Quando eram só setores consolidados da imprensa, existia maneiras de utilizar o processo judicial para contestar e saber quem fez. De uma forma ou de outra, um certo nível era preservado, mas, mesmo assim, longe de ser uma coisa simples. Há várias modalidades de construção de notícias, utilizadas constantemente por grupos midiáticos. Mas, agora, há um processo no qual essa função é invisível: você não sabe quem produziu.

A campanha do Bolsonaro parecia mambembe, amadora, feita às pressas. Mas começamos a perceber que não. Era extremamente organizada, pela qualidade do material que circulava. Os materiais que anularam a manifestação contra ele começaram a circular horas depois dos atos e eram extremamente bem produzidos. Eu me pergunto: quem foi o responsável? Em que produtora isso foi feito? Não se sabe nem quem é o publicitário do Bolsonaro. Será, então, que não haveria estratégia de campanha, ou, na verdade, ela está sendo pensada em outro lugar onde a gente não consegue sequer enxergar? Nada bate nessa história. São organizadas redes no WhatsApp com mais de 8 mil pessoas, que se articulam entre si e proliferam um conjunto enorme de imagens extremamente bem editadas por profissionais.

Os cientistas políticos costumam analisar a atual crise política partindo da eleição de 2014. Mas qual é a relação do momento atual com os protestos de 2013?

Este é um evento fundamental da história brasileira. O fenômeno de 2013 foi a maior oportunidade perdida pela esquerda daqui. Era uma manifestação popular, que deixava muito claro o nível de descontentamento, frustração social, com uma perspectiva de enriquecimento que não ocorreu. Poderia, sim, ter sido utilizada pela esquerda para dizer: estamos presos em uma camisa de força para conseguir fazer um segundo ciclo de políticas de crescimento e redistribuição de renda. A gente precisa assumir isso e lutar contra vários entraves políticos e coisas dessa natureza. Mas isso não foi feito. A esquerda ficou com medo do fato de que a manifestação jogou para a rua tanto aqueles dispostos a ir mais longe, quanto os setores reativos da sociedade.

Toda manifestação popular traz os sujeitos emergentes e os reativos. Se você não souber dar forma aos emergentes, os reativos vão tomar conta. Foi isso que aconteceu. Um clássico, literalmente. Marx mostrava isso desde 1848, quando tentou investigar como a revolução proletária se perdeu, transformando-se na ascensão de Napoleão Terceiro, pelo golpe do 18 Brumário. Os protestos de 2013 mostraram imagens do povo contra o poder. Diante das imagens do povo que foi quebrar o Congresso Nacional e acabou tacando fogo no Palácio do Itamaraty, sempre tem aqueles que começam a gritar “ordem”.

Começaram a fazer isso, e aí veio 2014. Após a eleição, eu escrevi no jornal Folha de S. Paulo que a polarização não terminaria na semana seguinte e só iria aprofundar. É preciso estar preparado para isso. Não adianta imaginar que acabou a eleição e, agora, vai tudo voltar ao normal. Mas o governo achou que isso seria possível e tentou criar um modelo de conciliação. Juntou todos os setores conservadores dentro do governo, desmobilizou o seu lado, enquanto o outro lado foi para cima no vácuo, porque não havia mobilização em reação. Em uma sociedade polarizada, a primeira coisa que você faz é fortalecer o seu polo, porque a única possibilidade de sobrevivência é uma espécie de balança, jogo de bola parada. Você vê que, se avançar demais, o outro avança também. Isso não foi feito.

esquerda brasileira ficou embalsamando um cadáver, que é o lulismo. Deu o que tinha que dar, não dava mais. Fala-se que Lula teria 40% dos votos, e é verdade. Se estivesse em campanha, ele ia ganhar, isso é claro. Por esse motivo, teve que ser preso. Caso contrário, virava presidente. Mas o fato é: isso aconteceria por uma lógica muito racional da população. O presente é catastrófico; o futuro, completamente incerto. Portanto, volto ao passado, que era melhor. De fato, era. Isso não tem a ver com o potencial de transformação que Lula representa, mas com uma situação de pavor social. Enquanto dinâmica de transformação, o lulismo já era um cadáver, mesmo que ganhasse.

 

 

Desigualdade social e pobreza: desafios para o movimento espírita

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Vivemos em uma sociedade marcada por um crescimento vertiginosa da desigualdade social entre os indivíduos, entre os países e dentro dos próprios países, países até então descritos como ricos e desenvolvidos se encontram em situação de incertezas, crescimento da pobreza e da desigualdade, gerando um incremento da violência, da insegurança e do xenofobismo.

A Europa, centro da civilização ocidental, marcada pelo grande crescimento tecnológico, onde a Ciência foi fundamental para garantir o crescimento da produção e da riqueza do mundo, se encontra em franca decadência, depois de séculos de exploração aos povos africanos, nos últimos anos percebemos uma chegada de uma ampla leva de cidadãos do continente explorado, fazendo com que os europeus recebam aqueles que anteriormente foram por eles explorados, com isso, buscam se retratar com as leis do mais alto, buscando a harmonia e a conscientização espiritual entre povos irmãos.

Neste século XXI, percebemos inúmeros movimentos preocupantes, de um lado um incremento da pobreza e da desigualdade social e, de outro, uma maior degradação da natureza e do meio ambiente, gerando um clima esquisito, de um lado um calor que beira os cinquenta graus e de outro um frio que leva a temperatura a um outro extremo, chegando a menos cinquenta graus, além de tsunamis, enchentes e tempestades, uma situação jamais vista no planeta Terra.

Desde que o economista francês Thomas Piketty publicou a obra O Capital no Século XXI, nos revelando dados, gráficos e informações de que a concentração de renda na sociedade global vem aumentando cada vez mais nos últimos anos e que, os dados atuais são muito parecidos com os do início do século XX, com ricos e poderosos abocanhando grande parte da riqueza global, com estas revelações o mundo começou a compreender muitos dos desajustes e dos desequilíbrios internacionais, uma sociedade que cria grande riqueza e que, em sua grande maioria é apropriada por uma pequena parte de afortunados, um grupo de privilegiado que usufrui do melhor do sistema capitalista, dos luxos e do hedonismo propiciados pela posse do capital.

Segundo algumas organizações não governamentais globais, como a respeitadíssima Oxfam, a sociedade mundial é composta por 7 bilhões de pessoas, dentre elas, 1 bilhão consome mais de 50% de todos os recursos naturais disponíveis, outros 3 bilhões de pessoas consomem 45% destes recursos e os outros 3 bilhões de pessoas restantes se apropriam de apenas 5% de todos os recursos, encontramos ai uma grande desigualdade, onde menos de 15% dos privilegiados globais usufruem das maiores benesses do sistema capitalista global.

Na situação descrita acima, percebemos que as reservas naturais existentes no meio ambiente não conseguem dar a todos os indivíduos do planeta Terra, o padrão de vida dos países ricos e desenvolvidos mas, com certeza, conseguiria dar a todos os habitantes deste mundo uma condição digna de vida, desde que a distribuição desta riqueza fosse mais igualitária.

Recentemente, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgou dados assustadores, segundo o instituto, após quinze anos, a desigualdade voltou a aumentar no Brasil, com exceção da região norte. Pelos cálculos do IBGE, o número de cidadãos na faixa de extrema pobreza pulou de 6,6% da população em 2016 para 7,4% em 2017, diante disso, percebemos que havia 15,2 milhões de brasileiros com renda inferior a 140 reais por mês em 2017 – contra um contingente de 13,5 milhões registrados em 2016.

Os dados trazidos pelo Banco Mundial e pelos institutos de pesquisas locais são assustadores, no caso brasileiros se somarmos todos os dados disponíveis, encontraremos um contingente de mais de 55 milhões de pessoas vivendo com menos de meio salário mínimo mensal, numa sociedade marcada por muita riqueza natural, um país que como nos diz Pero Vaz …em se plantando tudo dá.

Como nos mostrou Allan Kardec, na questão 930 de O Livro dos Espíritos, de que a culpa das desigualdades reside mesmo nas imperfeições humanas, os grandes responsáveis por esta situação de degradação social de muitos irmãos na sociedade contemporânea somos nós mesmos os seres humanos que residimos neste mundo, marcados pelo orgulho e pela ganância: “Com uma organização social criteriosa e previdente, ao homem só por culpa sua pode faltar o necessário”. Na mesma obra, publicada em 1857, Kardec ainda nos alerta: “Quando praticar a lei de Deus, terá uma ordem social fundada na justiça e na solidariedade, e ele próprio também será melhor”

Neste ambiente de incremento na desigualdade, aumento da pobreza e de instabilidades crescentes, os espíritas se subdividem, uns acreditam que, como somos reencarnacionistas, acreditamos que vivemos várias vezes em corpos diferentes, tudo que passamos na vida material está diretamente ligado aos resgates que servem para nos auxiliar em nosso crescimento espiritual. De outro lado, encontramos outros indivíduos que se condoem com a situação destes irmãos e buscam auxiliar, de uma forma ou de outra, visando mitigar os sofrimentos neles impingidos.

Ao analisar estas visões descritas acima, acreditamos que o melhor a fazer é seguir auxiliando sempre, mesmo sabendo que colhemos na vida material as plantações das várias experiências físicas, auxiliar os irmãos em dificuldade, dar-lhes um prato de comida, conversar e ser gentil com todos, além de orar e pedir para cada um em dificuldade, é sempre uma forma de auxiliar no crescimento dos irmãos em dificuldade e mais, se estivéssemos no lugar destes irmãos, com certeza, gostaríamos de ser auxiliados nos momentos de maior dificuldade, lembremos neste momento da máxima de Jesus de Nazaré, que dentre seus inúmeros legados nos deixou a sublime frase não faça aos outros o que você não quer que seja feito a você.

No caso brasileiro, em particular, o país vem vivendo, nos anos recentes, graves desequilíbrios econômicos com severos comprometimentos sociais e espirituais, de uma década de crescimento e melhorias generalizadas, o país mergulhou em uma grande depressão, com incremento no desemprego e no subemprego, além da deterioração na renda agregada e aumento nos crimes hediondos e assassinatos, apenas em 2017 foram mais de 63 mil homicídios, colocando o Brasil entre os países mais violentos do mundo.

Muitos tendem ao comodismo quando veem uma situação como essa, acreditando que o problema é tão grande e complexo que atitudes individuais só serviriam para mascarar o problema, levando-os a uma atuação comodista, sabemos que o problema demanda a adoção de políticas mais amplas mas, cabe a cada um de nós, seres humanos, contribuir para o melhoramento coletivo da humanidade, se não possuímos os recursos econômicos necessários para auxiliar no combate da pobreza e da desigualdade, cabe o pensamento edificante, a oração, o não julgamento e a pacificação dos corações, tudo isto contribui para o melhoramento individual e, por conseguinte, da coletividade.

A Doutrina Espirita nos mostra que muitos irmãos altamente inteligentes, com comprometimentos variados por uso indiscriminado de suas aptidões para enriquecimento próprio, para destruição de seus semelhantes e para satisfação de seus desejos e caprichos ilimitados, renascem em países ou regiões atrasadas e, com isso, passam por limitações das mais intensas, muitas vezes sem alimentos e privados das mais elementares mercadorias utilizadas no cotidiano. Embora estes irmãos estejam caminhando e construindo um futuro melhor para as próximas encarnações, faz-se necessário que nós, espíritas, entendamos que um auxílio ajudaria muito este irmão, dando-lhe as condições necessárias para sobreviver e cumprir com sua jornada com mais dignidade.

Os espíritos amigos nos mostram claramente a importância do auxílio aos irmãos sofredores, como nos diz Joanna de Ângelis, no livro Episódios diários: “Não te escuses de auxiliar. Se não consegue ir à causa do problema, minimiza-lhe os efeitos” considera ela ainda. Em outra passagem nos informa: “Desde que não podes erradicar, de um golpe, a fome, a enfermidade, a ignorância, contribui para a tua cota de amor, por mínimo que seja”, acrescenta.

Vivemos em uma sociedade marcada pela Transição Planetária, um momento de grandes transformações sociais, econômicas e espirituais no mundo contemporânea, mesmo sabendo que este momento é de grandes dificuldades para todos os espíritos encarnados e desencarnados, cabe aos espíritas refletirem sobre o crescimento da desigualdade no Brasil e no mundo e continuar trabalhando para que a situação possa melhorar, os ânimos sejam amainados e as oportunidades aumentem para todos os indivíduos.

A construção de um clima de paz e de solidariedade é fundamental para que as pessoas possam debelar os conflitos e as guerras que tantos males causam e causaram para a sociedade mundial, a desigualdade crescente e a pobreza generalizada colocam as pessoas em confrontos umas com as outras, aumentando a violência e criando um clima de agressividade e incertezas, com isso, os indivíduos se sentem em permanente instabilidade, vendo nos outros sempre inimigos ou adversários, como percebemos no mundo atual, degradando os laços sociais e os vínculos espirituais entre irmãos.

A construção de uma sociedade melhor depende dos avanços que, como espíritos, alcançamos em várias encarnações sucessivas, nestas experiências passamos por dificuldades e por inúmeras experiências, crescemos e passamos a compreender um pouco do mundo, as desigualdades das riquezas existem por conta da diversidade de aptidões dos seres humanos, que são construídas pelo conjunto das conquistas oriundas das variadas encarnações. O que não se deve aceitar é que esta desigualdade seja tão abissal quanto a que estamos vendo no momento, onde uma pequena parcela goza dos prazeres do sistema, usufruindo de seus produtos, mercadorias e serviços altamente eficientes e tecnológicos, enquanto outros vivem na miséria e na indignidade, servindo apenas como anteparo para os luxos e prazeres dos primeiros, alguns podem chamar tudo isto de meritocracia, nós deveríamos ver mais como uma plutocracia, uma grande injustiça e um dia, quando chegarmos no plano espiritual, seremos duramente cobrados por isso.