O futuro está onde as pessoas mais estão se divertindo, diz Steven Johnson.

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Pensador norte-americano estará no Brasil para apresentação no Fronteiras do Pensamento

DANIELA ARCANJO, FOLHA DE SÃO PAULO, 04/09/2022

SÃO PAULO

Conversar com o pensador norte-americano Steven Johnson é poder falar sobre quase qualquer assunto —de epidemia de cólera no século 19 a bitcoin, passando por tentativas de contato extraterrestre.

Para ele, quem quiser saber para onde o futuro caminha, deve olhar com o que as pessoas estão se divertindo.
“Uma das coisas que faz algo ser divertido e prazeroso é a novidade”, afirma. “Não tem nenhum propósito, mas é interessante. E para continuar surpreendendo as pessoas você tem que continuar desenvolvendo coisas novas, desafiar expectativas. E isso leva a outras ideias que são mais sérias, úteis ou práticas.”

Na sua última publicação, o escritor resolveu fazer uma incursão nos avanços científicos que permitiram elevar a expectativa de vida das pessoas. “Longevidade”, lançado no Brasil pela editora Zahar em 2021, foi motivado pela pandemia e pelos ataques à ciência durante a crise sanitária.

“Qualquer criança em idade escolar nos Estados Unidos pelo menos ouviu falar sobre o pouso na Lua em 1969. Mas quantos deles sabem sobre a erradicação da varíola, que estava acontecendo na mesma época?”, questiona Johnson.

O pesquisador é um dos convidados deste ano do ciclo de palestras Fronteiras do Pensamento. Além de uma palestra online no dia 23 de setembro, ele se apresentará presencialmente em São Paulo no dia 12 de setembro e em Porto Alegre, em 14 de setembro.

Você fundou uma das primeiras revistas online, a Feed Magazine, em 1995. A internet era melhor naquela época? Não, não era. Em 1995 realmente não era porque, em primeiro lugar, poucas pessoas estavam online. Ainda tinha muito o que fazer para simplesmente explicar o que era a web. E as ferramentas eram muito limitadas. Era muito baseado em texto, nós praticamente só tínhamos o hipertexto. Queríamos fazer comunidades, interagir com os leitores, e era muito difícil fazer isso naquela época. Eu diria que a era de ouro foi um pouco mais tarde. Nos primórdios dos blogs, no final dos anos 1990, início dos anos 2000. O período pós bolha da internet foi muito produtivo, muitas ideias novas surgiram.

E agora, o que acha da internet? É um mix de coisas. Eu continuo sendo um grande fã do Twitter, por exemplo. Eu sigo músicos, arquitetos, escritores, políticos, tecnólogos e vejo todos os dias o que eles estão pensando, compartilhando e comentando. É uma fonte incrível de inspiração e surpresa. Eu simplesmente não percebo muitas dessas questões problemáticas com as redes sociais —que são legítimas. Da maneira que eu uso, não me afeta. Então eu ainda vejo o lado positivo disso tudo.

O grande problema é que, no começo, a internet não tinha um padrão aberto para registrar identidade e relacionamentos. A web foi projetada para registrar formalmente as relações entre documentos, por meio de hiperlinks, e isso foi incrivelmente poderoso. Mas não havia uma maneira de criar identidade. Como esse recurso não se construiu em padrões abertos, foi definido por empresas privadas, como Facebook, LinkedIn e Twitter. A definição de todos esses relacionamentos estava subitamente nas mãos de uma empresa, sendo conduzida por um modelo de publicidade e por investidores. Foi aí que nos metemos em alguns problemas.

Você escreveu um artigo em 2018 sobre a bolha do bitcoin. Na época, a moeda estava em torno de US$ 12 mil. O preço já quintuplicou desde então, e agora vemos um novo colapso. O que isso diz sobre criptomoedas? Acho que quase todo mundo já desistiu da ideia de que essas coisas vão funcionar como moedas. Estamos enlouquecendo aqui nos Estados Unidos com uma inflação de 8%. É muito difícil fazer isso funcionar. Além disso, os custos de transação são enormes. Quando o bitcoin surgiu estavam todos falando: “nós precisamos de uma nova moeda descentralizada”. Agora dizem que não é para isso que serve. Acho um pouco suspeito.

Sua gama de interesses vai da epidemia de cólera na Inglaterra do século 19 até tentativas de contato extraterrestre. O que liga todos esses assuntos? Sim, a variedade de coisas sobre as quais escrevi é realmente grande. Essa é uma das coisas que eu amo, mergulhar nesses campos malucos, conversar com especialistas, aprender e ler. Eu sou muito interessado em novas ideias, em como elas vêm ao mundo. Quais tecnologias e avanços científicos permitiram essa ideia transformadora de que a cólera se transmite pela água e não pelo ar, que Jon Snow teve em 1854? Por que em Londres e não na Índia, em 1800, ou em Nova York, em 1870? A mesma coisa com o bitcoin. Sempre que eu vejo surgir uma nova maneira de pensar, começo a prestar atenção.

Já podemos dizer que a pandemia deixou um legado tecnológico? Acho que há dois bastante significativos a longo prazo. Um deles é a vacina. Os cientistas as desenvolveram em um prazo curto, o mapeamento foi incrivelmente rápido. Foi um marco na história da medicina e da ciência. Falaremos sobre isso daqui a cem anos como um avanço fundamental.

A outra questão está no nosso estilo de vida. Sempre disseram que a internet ia permitir que a gente vivesse em qualquer lugar, sem precisar se aglomerar em uma cidade como Nova York ou São Paulo, e isso nunca aconteceu. Então a pandemia nos obrigou a ficar em casa e a tecnologia finalmente avançou ao ponto de uma reunião por Zoom ser muito boa. Acho que todos nós aprendemos que não precisamos viajar 45 minutos todos os dias para o escritório. E isso terá um impacto duradouro.

Na pandemia também vimos líderes negando a crise sanitária e sociedades profundamente divididas. Esse foi um dos motivos pelos quais eu escrevi “Longevidade”. Acho que uma das razões pelas quais temos esse tipo de elemento anticiência em nossa sociedade é porque não celebramos as conquistas da saúde pública e da medicina.

Temos um milhão de memoriais para heróis militares. Qualquer criança em idade escolar nos Estados Unidos pelo menos ouviu falar sobre o pouso na Lua em 1969. Mas quantos deles sabem sobre a erradicação da varíola, que estava acontecendo na mesma época? Foi um exemplo incrível de colaboração internacional e tem um impacto muito maior em nossas vidas.

As pessoas morriam de varíola o tempo todo, é provavelmente o maior assassino da nossa história. E estamos muito mais focados nos astronautas na Lua. Se seus heróis são astronautas e não médicos e autoridades de saúde pública, você não está pré-condicionado a apreciar essas figuras e instituições quando vem uma pandemia.

Para onde temos que olhar para ver o futuro? Eu escrevi há alguns anos o livro “O poder inovador da diversão: como o prazer e o entretenimento mudaram o mundo” [Editora Zahar]. Ele é só sobre brincadeiras e coisas que as pessoas fazem por diversão. Nossos ancestrais, por exemplo, criando instrumentos musicais primitivos antes de inventar a escrita. Ou a relação entre inteligência artificial e jogos, por exemplo. Muito da inteligência artificial surgiu do treinamento de um algoritmo para jogar um game.

Uma das coisas que faz algo ser divertido e prazeroso é a novidade. Você fica surpreso, como se estivesse vendo uma boneca mecânica pela primeira vez. Não tem nenhum propósito, mas é interessante. E para continuar surpreendendo as pessoas você tem que continuar desenvolvendo coisas novas, desafiar expectativas. E isso leva a outras ideias que são mais sérias, úteis ou práticas. Você encontrará o futuro onde quer que as pessoas mais estejam se divertindo.

Onde as pessoas mais estão se divertindo hoje? Provavelmente o melhor exemplo atual são as ferramentas de imagem que estão saindo da inteligência artificial. As pessoas estão simplesmente criando essas fotos malucas com software, e ninguém está usando oficialmente ainda. Só a energia que está sendo gasta para explorar essas ferramentas já é um sinal de que esse será um espaço muito interessante no futuro.

STEVEN JOHNSON, 54
Autor de 13 livros sobre ciência e inovação, Johnson é apresentador da séria Extra Life, da rede de televisão PBS, e do podcast American Innovations. O escritor tem pós-graduação em literatura inglesa pela Universidade Columbia e é professor da Universidade de Nova York

Sobre cigarras e formigas: os ciclos de commodities, por Ana Paulo Vescovi

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Abundância de recursos naturais é vantagem comparativa, mas pode ser desafio ao desenvolvimento

Ana Paulo Vescovi, Economista-chefe do Santander Brasil

Folha de São Paulo, 04/09/2022

Desde o segundo semestre de 2020, durante a pandemia, iniciou-se um novo ciclo de alta nos preços internacionais de alimentos, metais e energia, tal como nos de petróleo. Tais bens são conhecidos como commodities, pois estão na base das cadeias produtivas mundiais. Os períodos de alta de preços tendem, supostamente, a beneficiar o Brasil, por ser produtor e exportador destes bens. Porém, esta não é uma vantagem que se reverta em benefícios automáticos para a população. É preciso criar as condições capazes de converter ciclos de commodities em novas bases de crescimento sustentado no país.

O atual ciclo de commodities tem componentes inusitados.

No Brasil, pela primeira vez desde a introdução do Real, a alta de commodities esteve conjugada à desvalorização da nossa moeda frente ao dólar, algo contraintuitivo. Usualmente, o aumento no preço das exportações e as perspectivas positivas que se abrem para o país contribuem para ampliar os saldos na balança comercial e a entrada de divisas e, assim, valorizar a moeda local.

Ainda mais recentemente, após o início da guerra entre Rússia e Ucrânia, o reforço na valorização das commodities também esteve associado a perdas no comércio internacional brasileiro, pois os preços das principais importações brasileiras (fertilizantes, combustíveis, produtos industriais) subiram mais do que os preços dos bens que exportamos. Assim, contraditoriamente, também está associado ao aumento dos juros e do custo de financiamento da economia, não obstante ajudar temporariamente na melhoria do quadro das contas públicas.

Outra observação: desde que temos estatísticas, o Brasil tem aumentado a sua dependência em relação a commodities. Em 2021, estes produtos estiveram entre os dez principais itens na nossa pauta exportadora, respondendo por 52% do total das exportações. Em 1997, estes mesmos produtos respondiam por apenas um quarto da pauta. Ademais, não exportávamos petróleo e este agora responde por 11% das exportações. Isto não é um problema em si, mas apenas nos remete a pontos de atenção sobre o crescimento de longo prazo do país.

A evidência mundial sugere que a abundância de recursos naturais pode ser um desafio para o desenvolvimento. Isso porque ou são finitos ou porque encontram-se em setores com produtividade por trabalhador mais baixa.

Há países que tiveram a capacidade de, ao longo dos anos, reduzir a dependência destes bens e promover processos relativamente rápidos de aumento da renda média, diversificando suas economias para setores de mais alta produtividade, como indústria ou serviços. Outros mantiveram ou ampliaram esta dependência ao longo do tempo e não conseguiram reverter tais benefícios em aumento da renda média da população.

A dependência de commodities está associada, além de baixos níveis de produtividade do trabalho, ao crescimento lento e à alta frequência de choques negativos de produtividade. O problema central é a elevada oscilação de preços internacionais que leva, via de regra, a oscilações cambiais e macroeconômicas mais severas nestes países. A alternância de momentos com elevada entrada de recursos externos, e consequente apreciação das moedas locais, pode expulsar outros setores produtores de bens comercializáveis, com menor remuneração relativa, mas com trabalho mais qualificado e maior produtividade.

Analogamente, em momentos de escassez de recursos (na fase de baixa do ciclo), amplifica o endividamento público, eleva o custo do capital e contrai a atividade econômica, dificultando a expansão das atividades dos demais setores.

Construir a capacidade de suavizar os ciclos torna-se tão fundamental quanto permitir usos destes recursos para melhorar a governança pública, fomentar o aumento da escolarização, da inovação e da produtividade geral da economia. O problema é quando o dinheiro fácil dos períodos de expansão leva ao aumento do rent-seeking (pressão de grupos de interesse) e da corrupção, além do desestímulo à educação e à inovação, casos bastante conhecidos na literatura econômica.

Por exemplo, o ciclo de commodities anterior mais recente trouxe benefícios iniciais para o Brasil, com sinais de enriquecimento (o PIB per capta cresceu em média 3% ao ano. entre 2005 e 2014, com redução da pobreza), mas também o conduziu à pior crise econômica da sua história ao final, com perda significativa de renda.

Foi um ciclo duradouro, com o índice que mede preços internacionais saindo de valores próximos a 180 pontos em 2003 e voltando a este mesmo patamar em 2015. Isto depois de ter alcançado mais de 300 pontos entre 2007 e 2014. Ou seja, os preços praticamente dobraram no período, ainda que entremeado pela crise financeira internacional de 2008/2009. A volta do ciclo foi muito repentina, entre 2014 e 2015.

Como na Fábula de Esopo, a forma como um país se defende das armadilhas dos ciclos de commodities é poupando nas épocas de prosperidade para compensar as épocas restritivas. Isto é determinante para transformar a abundância de recursos naturais em desenvolvimento. Além de aprender a elucidar os ciclos, suavizar seus efeitos, e assim permitir maior estabilidade e previsibilidade, é igualmente importante atenuar a dependência das commodities e desenvolver instituições capazes de consolidar um ambiente de negócios transparente, descomplicado, promotor de ganhos persistentes de produtividade e competitividade das empresas.

Na atual conjuntura global, o Brasil encontra-se muito bem posicionado, pois possui uma matriz energética diversificada e limpa, importantes ativos ambientais com capacidade de capturar carbono e produzir alimentos, além de reservas minerais e metálicas. Cabe a nós, brasileiros, transformar esse legado natural em mais preservação, educação, tecnologia, conhecimento, equidade, coesão e estabilidade.

As cotas raciais e o Brasil: dez anos depois, por Silvio Almeida.

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Uma das mais bem-sucedidas políticas públicas da história do país e que mudou o Brasil

Silvio Almeida, Advogado, professor visitante da Universidade de Columbia, em Nova York, e presidente do Instituto Luiz Gama.

Folha de São Paulo, 02/09/2022.

No último dia 29 de agosto completaram-se dez anos da promulgação da lei 12.711/2012, a chamada “lei das cotas”, que institui a reserva de vagas para estudantes pobres, negros e indígenas em instituições federais de educação
superior e de ensino técnico de nível médio.

A lei de cotas raciais fez bem mais do que abrir as portas das universidades públicas para pessoas pobres, negras e indígenas. As batalhas por sua implementação revelaram, ao mesmo tempo, o poder transformador das políticas públicas, mas também o quanto este país é atravessado pelo racismo e pelo ódio de classes.

Para quem acompanha o cotidiano nas universidades, o impacto das cotas raciais foi nítido. E não me refiro apenas a mudanças quantitativas, mas também às transformações qualitativas deflagradas na educação superior do Brasil.

Uma das dimensões de reprodução do racismo se dá na cultura, o que significa que a discriminação contra pessoas negras e indígenas manifesta-se no rebaixamento ou no apagamento cultural dessas populações. A educação, portanto, ocupa um lugar central na continuidade dos processos discriminatórios, com destaque especial para o ensino superior, cuja função é oferecer à sociedade parâmetros do conhecimento científico e formar técnicos, professores e pesquisadores.

Isso faz da universidade um lugar de legitimação de certos grupos sociais cujos membros, ao passarem pelo ensino superior e por certas instituições de prestígio, são “autorizados” a participar de espaços de poder e decisão. Não seria exagero dizer que a universidade brasileira sempre foi um sistema de validação racial e de classe.

Se as cotas não eliminaram essa lógica, certamente conseguiram subvertê-la. Ficou mais difícil com as cotas considerar natural a ideia de que ser médico é “ser branco”. Ficou mais difícil considerar natural que a filha da empregada seja herdeira da mesma profissão da mãe, já que se abriu a possibilidade desta mesma filha ser médica, advogada ou engenheira.

Por certo que o deslocamento do imaginário social provocado pelas cotas raciais gerou reações que, como dito antes, mostraram a pior face do Brasil. Tornou-se evidente que parte da sociedade se recusa a aceitar que pobres, negros e indígenas possam fazer mais do que servir e limpar.

Dez anos depois, ao contrário do que diziam alguns, a política de cotas não destruiu a universidade e nem “humilhou os negros cotistas” (este argumento é o mais interessante, pois é uma mistura passivo-agressiva de racismo e condescendência). O que vem destruindo a universidade é outra coisa.

No caso, as políticas neoliberais de cortes orçamentário na educação e em ciência e tecnologia. Vale ressaltar que a demolição da universidade brasileira tem sido arquitetada por pessoas brancas que, em sua grande maioria, estudaram em universidades públicas ou que tiveram bolsa paga pelo governo para estudar no exterior.

A verdade é que a política de cotas raciais é uma das mais bem-sucedidas da história do Brasil. Dadas as condições específicas da formação social brasileira, as cotas tiveram um impacto estrutural expressivo, pois atacou o racismo, que é um dos pilares do atraso social e econômico brasileiro.

Para os negacionistas que acham que não existem dados que possam comprovar a importância e o sucesso da política de cotas raciais, deixo como indicação o relatório de pesquisa sobre a implementação da política de cotas raciais nas Universidades Federais de autoria da Defensoria Pública da União e da ABPN (Associação Brasileira de Pesquisadores Negros).

O relatório, lançado no aniversário da política de cotas raciais, revela a extrema relevância das cotas raciais para o aperfeiçoamento da educação brasileira. Com informações colhidas das 69 universidades federais existentes no Brasil, o relatório mostra os avanços e os problemas que precisam ser corrigidos, dentro os quais os relativos ao controle e prevenção de fraudes; à fiscalização e monitoramento; às políticas de permanência dos estudantes; e à ampliação das cotas para os programas de pós-graduação.

Dez anos deveriam ter nos ensinado que as políticas de ação afirmativa não se referem apenas aos grupos discriminados. As cotas raciais referem-se a algo que muito aparece em discursos, mas que muito poucos querem verdadeiramente para o Brasil: democracia.

Elas estão à espreita, por Juliano Spyer.

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Mulheres evangélicas que rejeitam Lula e Bolsonaro esperam um aceno da senadora Simone Tebet

Juliano Spyer, Antropólogo, pesquisador do Cecons/UFRJ, autor de Povo de Deus (Geração 2020) e criador do Observatório Evangélico.

Folha de São Paulo, 01;09/2022

Mais de 30 milhões de evangélicos no Brasil são mulheres. E, para muitas delas, Lula e Bolsonaro disputam o posto do candidato “menos pior”. Por isso, elas estão à espreita por alternativas.

A senadora Simone Tebet pode ser esta alternativa? Sim, pode. Há um caminho narrativo para ela se aproximar das eleitoras evangélicas.

Elas rejeitam Bolsonaro porque ele é o homem agressivo que só é tolerado por ser casado com uma mulher evangélica. Elas rejeitam Lula porque ele é visto hoje como inimigo da família tradicional.

A senadora de Mato Grosso do Sul foi a surpresa positiva para os eleitores indecisos monitorados pelo Instituto Datafolha durante o debate da Band. Qual é, então, a possibilidade que a senadora tem de dialogar com mulheres conservadoras insatisfeitas com a postura irascível do presidente?

Tebet fraturou a imagem de Bolsonaro como defensor da família quando o denunciou por espalhar desinformação sobre a pandemia e responsabilizou o governo por tentar ganhar dinheiro ilicitamente com a compra de vacinas. Mas esse encanto se desfez para muitas evangélicas quando a senadora se apresentou como feminista.

Há um fosso de desentendimento separando mulheres, especialmente as de classe média e alta, e as evangélicas pobres. E o termo “feminismo” é onde esse curto-circuito conceitual acontece.

Feministas das camadas médias e altas percebem as evangélicas como mulheres submissas promotoras do patriarcado.

Para mulheres com mais recursos, a resposta para situações de abuso masculino deve ser a ruptura do relacionamento, mas as igrejas incentivam as fiéis a “perseverar na fé” para preservar o casamento.

É um assunto polêmico. Essa orientação das igrejas mantém a vítima exposta à violência física ou psicológica. Ao mesmo tempo —e esse é o X do problema—, o ambiente das igrejas também fortalece a posição da mulher na família e na sociedade.

A mulher pobre evangélica ganha poder quando o companheiro sai do bar e deixa de gastar dinheiro com bebida, festas e relacionamentos paralelos, e passa a habitar o espaço vigiado das igrejas. A família economiza dinheiro, que é investido na casa, em educação e em atividades de lazer.

Quando a senadora Simone Tebet se apresentou como feminista, ela se colocou na mesma posição que outros candidatos de esquerda ocupam: a de quem é contrário aos valores familiares por defender o divórcio e a legalização do aborto.

O que uma mulher que pretende combater a polarização e unir o país pode fazer para evitar esse campo minado?

Participei recentemente de uma pesquisa privada para examinar de quais conquistas o brasileiro popular se orgulha.

A resposta dos homens foi em geral desinteressada, mas as mulheres ecoaram a percepção de que elas se orgulham delas mesmas e de outras mulheres de suas famílias.

Em um mundo de tantas instabilidades e perigos, mulheres de baixa renda correm atrás, cuidam de seus familiares, se sacrificam, resistem, estudam, empreendem, e percebem que melhoram de vida por causa desse esforço.

“Guerreira” é um termo percebido positivamente em todos os segmentos da sociedade. Vale para evangélicas e para as que não são evangélicas. É um sinônimo de “feminista” que não evoca o desentendimento entre mulheres que vivem em mundos socioeconômicos tão diferentes.

É ainda uma imagem que conversa e evoca o respeito de muitos homens das camadas populares, que se sentem mais
devedores de suas mães presentes do que de seus pais ausentes.

Quando aconteceu a chacina do Carandiru em 1992, a fronteira do presídio ficou marcada pelos cães policiais de um lado e por mães, filhas, irmãs e companheiras dos presos do outro. Essa cena, que pode ser revista pela internet, sintetiza a imagem ao mesmo tempo forte e familiar da “mulher guerreira” no mundo popular. E foi também ela, a guerreira, que cativou a imaginação da audiência do debate neste último domingo.

Novos confrontos

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O mundo contemporâneo está vivendo momentos de confrontos de novas hegemonias geopolíticas, novos atores estão surgindo e os antigos estão perdendo espaço no cenário internacional, com isso, percebemos um verdadeiro xadrez estratégico, exigindo novas posturas políticas e comportamentos econômicos, buscando novos caminhos, novas oportunidades e instrumentos alternativos de sobrevivência, garantindo autonomia e soberania.

Neste ambiente, percebemos que nesta sociedade centrada no conhecimento, na tecnologia e nas informações, as nações que não conseguirem compreender os rumos da contemporaneidade, tendem a perder espaços relevantes para outros países, gerando conflitos internos e inúmeros desequilíbrios, motivando desajustes produtivos, degradando a economia, desemprego crescente, aumento da exclusão social, da desesperança e dos desequilíbrios emocionais.

A economia internacional vive momentos de incertezas crescentes, conflitos militares que dispendem bilhões de dólares, com desajustes nos preços, onde a inflação corrói a renda dos trabalhadores, reduzindo o poder de compra da população, gerando uma insatisfação nos cidadãos e preocupações emocionais, escasseando as esperanças e aumentando as preocupações materiais.

No âmbito das nações, percebemos o aumento das hostilidades e das rivalidades, gerando preocupações de conflitos degradantes com potencial de guerras nucleares, cujos impactos são imprecisos, indeterminados e preocupantes, pois podem levar a sociedade a uma destruição generalizada. Neste cenário, saímos de uma pandemia que ceifou milhões de indivíduos em todas as regiões do globo e estamos caminhando para um momento de degradação militar, buscando a satisfação de seus interesses imediatos, mesquinhos e individualistas, sem se preocuparem com o futuro da humanidade.

Vivemos momentos de provocações crescentes entre os maiores atores econômicos, Estados Unidos e China, motivados por seus interesses geopolíticos, geoestratégicos, seus ganhos econômicos e financeiros e a busca crescente pela hegemonia global, impactando a comunidade internacional, angariando parcerias estratégicas, alimentando desequilíbrios culturais e interesses xenofóbicos que incentivam as violências, ódios e ressentimentos extremados.

Neste cenário, percebemos que os grandes confrontos internacionais do século XXI tendem a ser travados no Pacífico, que se transformou no centro da economia internacional, responsável pelos novos espaços de acumulação na contemporaneidade, região que ganhou relevância nas últimas décadas, com forte crescimento econômico, imensos investimentos na formação de capital humano, melhoria da qualidade de vida da sua população, com isso, o oriente se transformou no grande responsável pelas novidades na sociedade mundial, incluindo milhões de indivíduos no mercado de consumo e reduzindo a pobreza e a indignidade humanas, gerando novos espaços de esperanças.

Os modelos econômicos adotados nesta região devem ser vistos com cautela e parcimônia, algumas medidas devem ser estimuladas e implementadas na sociedade brasileira, tais como os fortes investimentos em educação, os elevados dispêndios em ciência e tecnologia, as parcerias geoestratégicas entre os setores governamentais e dos setores produtivos, garantindo recursos abundantes e taxas de juros reduzidas, proteção centrada por metas rigorosas e factíveis, além da busca de novos espaços no comércio internacional, aumentando a produtividade e elevando a participação das organizações nacionais e garantindo a acumulação de recursos em moedas conversíveis.

Neste momento de intensos confrontos militares precisamos construir agendas mais pragmáticas, deixando de lado políticas centradas em ideologias ultrapassadas, construindo consensos políticos e aprendendo com as nações desenvolvidas que, hipocritamente, clamam por mais competição econômica e redução do intervencionismo estatal na economia, mas ao mesmo tempo, adotam políticas protecionistas e intervencionistas, injetando trilhões de dólares nas suas estruturas produtivas, aumentando os subsídios governamentais para proteger suas corporações e usam seu poder militar para garantir seus interesses imediatos. Como diz o conhecido ditado popular: “…faça o que eu falo mas, não o que eu faço.”

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 31/08/2022.

Dos escombros neoliberais, nasce a ultradireita, por Ana C. Evangelista.

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Na terra arrasada pós-2008, emergiu classe média ultraconservadora – insuflada para se contrapor à solidariedade social e à igualdade. Diferentes estudiosos já demonstram como o vigor da “nova direita” emerge das ruínas do mercado sem limites

Por Ana Carolina Evangelista, Revista Piauí – Disponível Outras Mídias – 29/08/2022

Em 2018 já nos perguntávamos como as forças de extrema direita estavam chegando ao poder pelas vias eleitorais. O que acontecia naquele momento e o que segue acontecendo, não apenas no Brasil, para que isso ocorra? A mera viabilidade eleitoral do então candidato Jair Bolsonaro era algo inserido numa lógica muito mais estruturante e sistêmica do que apenas uma leitura tradicional da nossa realidade pudesse explicar.

Em 2018 já nos perguntávamos como as forças de extrema direita estavam chegando ao poder pelas vias eleitorais. O que acontecia naquele momento e o que segue acontecendo, não apenas no Brasil, para que isso ocorra? A mera viabilidade eleitoral do então candidato Jair Bolsonaro era algo inserido numa lógica muito mais estruturante e sistêmica do que apenas uma leitura tradicional da nossa realidade pudesse explicar.

Se autores como Pierre Rosanvallon, na França, ou André Singer, aqui no Brasil, falam em “desdemocratização” para tratar do avanço do populismo de direita combinado com autoritarismo, Brown se refere ao que chama de “política antidemocrática”, um tipo de política que emerge das “ruínas do neoliberalismo”, para usar a feliz expressão convertida num dos seus principais livros.

O ponto central do seu raciocínio é o de que o triunfo exacerbado do neoliberalismo resultou na deformação da própria utopia neoliberal. No momento em que ele triunfa e produz seus maiores efeitos, ele dá errado. Dos escombros – das ruínas –, portanto, dessa sociedade que o projeto neoliberal não conseguiu desmantelar por completo surgem as atuais deformações contra o próprio projeto, e que estão na base de governos antidemocráticos e de uma política antidemocrática de forma mais ampla.

Como lembra Brown, o neoliberalismo buscava habilitar, ao mesmo tempo, o mercado e a moral para governar e disciplinar indivíduos, maximizando a liberdade. Nas suas palavras, “indivíduos e famílias seriam pacificados politicamente pelo mercado e pela moral, e subentendidos por um Estado autônomo e com autoridade, mas despolitizado”. Vivemos há décadas sob essa lógica em muitos países.

No Brasil, o debate se concentrou em grande parte sobre as medidas econômicas resumidas no chamado Consenso de Washington, que incluíam o receituário de recomendações aos países da América Latina: desregulamentações, reformas fiscais restritivas, abertura comercial e redução do Estado. Mas vão além disso e dizem respeito também a princípios, práticas, políticas e formas de governar – era uma ordem, repita-se, de natureza financeira e também moral. Não era, ou é, apenas uma política, mas uma ética, nos lembra Brown. Passando por várias dimensões da vida, não apenas a econômica.

Como definiu um dos expoentes do neoliberalismo, o economista e filósofo austríaco Friedrich Hayek, a partir da lógica de mercado convém moldar o Estado, a moral e a lei. Onde havia solidariedade social e igualdade, famílias passam a ser responsáveis pela educação moral e social dos indivíduos. Nesse contexto, a moralidade tradicional tem um lugar central. Mercados e moral estão enraizados numa ontologia comum – um depende do outro.

Estamos falando de um capitalismo exacerbado, ou desenfreado, desregulado, com liberdade e autonomia total dos mercados – para muitos, essa autonomia em tal nível foi a responsável pela crise financeira de 2008. Tudo isso conjugado com a promoção de valores familiares, em especial valores cristãos, ocidentais e brancos. Do auge da Era Reagan-Thatcher, nos anos 1980, até o fim do século XX e início do século XXI, viveu-se uma onda devastadora de favorecimento do capital, desregulamentação do capital financeiro, repressão do trabalho, demonização do estado de bem-estar social, ataque às igualdades e maximização das liberdades individuais.

Esse projeto – econômico, social e político – não conseguiu, nos termos da análise de Brown, desmantelar por completo o que pretendia. No lugar do “sonho neoliberal”, portanto, sobram escombros e ruínas. Surgem daí as atuais deformações que estão na base de uma espécie de sustentação ampla de governos e práticas antidemocráticas. De onde veio isso? Surgiu de repente? Para onde estávamos olhando antes de 2018?

Observando a realidade norte-americana, a autora vai dizer que, por dentro de uma democracia liberal capitalista, emerge algo que deveria lhe parecer oposto: nacionalismo, conservadorismo cristão, racismo e masculinismo branco. No caso brasileiro, muitos desses elementos são estruturantes da constituição de nossa democracia inacabada de longa data.

A nova direita se assentaria aí, na reação às ruínas que todo esse projeto gera, e segue contra ele mesmo. As respostas, portanto, viriam em forma de restrição do alcance do poder político democrático, expansão do alcance da moralidade tradicional, um programa político-moral que visa proteger as hierarquias tradicionais e o mercado,
negando a própria ideia do social e, por fim, doses importantes de niilismo e ressentimento.

Como medidas e políticas defendidas pelo neoliberalismo não entregaram o que prometeram, restava encontrar culpados. Nas palavras de Brown: “Isso significava gritar contra o Estado Islâmico, contra os imigrantes ilegais, contra os mitos acerca das ações afirmativas e, acima de tudo, culpar o governo e o estado social pela catástrofe econômica, sorrateiramente transferindo a culpa de Wall Street para Washington, porque o governo limpava a lambança resgatando bancos, enquanto deixava as pessoas comuns na mão.”

Na terra arrasada pós-2008 vimos emergir uma massa de descontentes, fundamentalmente de classe média, branca e cristã. Um vasto grupo antes em ascensão perde renda, aposentadorias, propriedade privada e emprego diante de uma economia alicerçada no capitalismo financeiro, rentista, mas em ruínas. O castelo de cartas desmoronava, enquanto essa mesma massa de descontentes era bombardeada por mensagens, comentários e análises de direita – nas tevês e nas redes sociais.

Brown sintetiza o problema recorrendo ao binômio “o bispo e o banqueiro”: de um lado, o “bispo” (valores familiares e morais); de outro, o “banqueiro” (mercado, autonomia). Nem um nem outro davam conta de apaziguar tamanho descontentamento e precarização das condições materiais. Restava, insista-se, culpar migrantes, grupos com pouca representação econômica, social e política ou beneficiários de políticas de inclusão. A reação ao neoliberalismo ganhou contorno “rebelde, populista e repulsivo”, segundo suas palavras. Emergiu o novo populismo de extrema direita. Ressentido, rancoroso, raivoso e vingativo.

Uma das características desse populismo de direita, ou dessa política antidemocrática, é a política permanente de vingança: atacar aqueles acusados de destronar as estruturas que prevaleciam – as feministas, os multiculturalistas, os globalistas e os ambientalistas. Qualquer semelhança com o governo de Jair Bolsonaro não será mera coincidência. Outra característica é um populismo de resgate do passado, um passado idílico para alguns, onde existiam ordem, controle, protagonismo. Ou, nas palavras de Brown, “um passado mítico de famílias felizes, íntegras e heterossexuais, quando mulheres e minorias raciais sabiam de seus lugares, quando vizinhanças eram ordeiras, seguras e homogêneas, e a heroína era problema dos negros, o terrorismo não estava em solo pátrio e quando a cristandade e branquitude hegemônicas constituíam a identidade, o poder e o orgulho manifestos da nação e do Ocidente”.

Líderes populistas de direita, a partir dos anos 2010, se tornariam os defensores do que sobrou dessas bases e prometeriam restaurá-las. Ou o que dizer de slogans e ideias-forças típicas desses líderes, como “Make America Great Again” (EUA), “França para os Franceses” (França), “Take Back Control” (Brexit) e “Nossa cultura, nosso lar, nossa Alemanha” (Alemanha). Como bem sintetiza Marina Lacerda, cientista política brasileira e estudiosa do trabalho de Brown, “se os homens brancos não podem ser donos da democracia, não haverá democracia. Se os homens brancos não podem governar o planeta, não haverá planeta”. Síntese que facilmente encontra eco na realidade brasileira.

O que explicaria a adesão das camadas populares a esse projeto? Como Brown sustenta, e Marina sintetiza, para aqueles que se sentem “deixados para trás”, os valores tradicionais forneceriam proteção contra os deslocamentos e perdas que décadas de neoliberalismo geraram para as classes trabalhadoras e médias. O que a socióloga Christina Vital chama de “retórica da perda” e a cientista política Flávia Biroli de “moralização das inseguranças”. Para Brown, por exemplo, os evangélicos se identificaram profundamente com Donald Trump devido à experiência compartilhada de serem desprezados pelas elites culturais e atacados por forças mundanas, particularmente aquelas vindas da academia. É uma associação direta entre evangelismo e ressentimento, entre o evangelismo e o anti-intelectualismo, no caso norte-americano.

A promessa de recuperar um mundo que não existe mais – mas que sempre existiu para uma parcela da população – cria uma base extraordinária para o autoritarismo: um mundo estável, seguro, homogêneo, organizado por valores cristãos e patriarcais. Como Trump, Bolsonaro aproveitou muito bem esses anseios em meio a ruínas. Trump não foi reeleito, mas o trumpismo não foi derrotado após a eleição de Joe Biden. E no Brasil, como será?

Gasto público, tetos e pisos, por Marcos Mendes.

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Quem manda na política está mais interessado em pisos do que em teto de gastos

Marcos Mendes, Pesquisador associado do Insper, é autor de ‘Por que É Difícil Fazer Reformas Econômicas no Brasil?’

Folha de São Paulo, 27/08/2022.

Há um debate sobre o que fazer com o surrado teto de gastos no próximo governo. O Ministério da Economia fala em uma regra mais flexível que a atual, que permite aumentos reais de gastos sempre que a dívida pública estiver baixa. Há quem fale em uma suspensão temporária, para dar tempo de desenhar uma nova regra.

É uma válida tentativa de evitar o pior, que seria a pura e simples revogação, com o retorno ao regime fiscal anterior ao teto, de crescimento real do gasto de 6% ao ano. O problema, contudo, é mais profundo. Nenhuma regra, por mais engenhosa que seja, resistirá aos incentivos políticos criados nos últimos anos.

Gastos públicos decorrem de decisões políticas. Regras fiscais, como o teto, só funcionam quando uma parte majoritária das forças políticas reconhece os benefícios do equilíbrio fiscal para a sociedade e decide limitar as habituais pressões sobre o Orçamento.

Logo após o impeachment de Dilma, em meio a uma das maiores recessões da história, acompanhada de descontrole fiscal, houve a formação dessa maioria, frente ao temor da continuação da espiral recessiva, o que permitiu a aprovação do teto.

A maioria favorável ao equilíbrio fiscal precisaria ter sido mantida por tempo suficiente para que se aprovassem reformas fiscais. A redução da rigidez e da inércia do crescimento dos gastos viabilizaria o cumprimento do teto. Não foi o que ocorreu. A maioria dissolveu-se.

Criou-se nos últimos anos um modelo em que o Legislativo ganhou poder para gastar mais sem arcar com as consequências dos seus atos, como a inflação e os juros altos, cujo desgaste vai para a conta do Executivo. Poder sem responsabilidade não leva a bons resultados.

A musculatura do Legislativo não é exibida apenas nas anabolizadas emendas obrigatórias e de relator ou nos bilionários financiamentos partidário e de campanhas. Está, também, na facilidade com que rejeita medidas provisórias, derruba vetos, aprova decretos legislativos anulando decisões administrativas do Executivo.

Aparece, ainda, na sem-cerimônia com que seus dirigentes atropelam o regimento interno do Senado e da Câmara, votando qualquer coisa por celular, dispensando a análise das comissões, mudando regras no momento das votações.

Fixam a agenda de votações sem negociar com o Executivo. Aprovam novos gastos obrigatórios e só depois discutem se há espaço no Orçamento. Ampliam seus poderes sobre a gestão do Orçamento a cada Lei de Diretrizes Orçamentárias.

O processo foi catalisado, nos últimos meses, pelo esforço de reeleição do presidente da República, que passou a ser sócio e estimular o vale tudo no Legislativo. Aprova-se, a toque de caixa, dinheiro para programas de alto impacto eleitoral e a distribuição de dinheiro para quem grita mais alto.

Decisões recentes já deram uma casquinha do Orçamento para: agentes comunitários de saúde, enfermeiros, caminhoneiros, taxistas, portadores de deficiência, usineiros, produtores culturais, hotéis, igrejas, universidades privadas, portos, empresas de transporte coletivo e de carga, produtores de gasodutos, donos de pequenas centrais hidrelétricas, grandes e pequenas empresas devedoras do fisco, militares, microempreendedores, pequenas empresas, empresas de comunicação, construção civil, call centers. Na indústria ganharam os setores calçadista, de têxteis, confecções e vestuário, couros, máquinas e equipamentos, tecnologia de informação e comunicação, circuitos integrados e semicondutores.

Nada indica que a lista pare por aí. Há, por exemplo, 88 projetos em tramitação propondo a fixação ou aumento de pisos salariais de mais de 30 profissões, com impacto sobre as despesas dos três níveis de governo. Tem de tudo: conselheiros tutelares, guardas municipais, contadores públicos, médicos. Se foi dado para enfermeiros, professores e agentes de saúde, por que não aos demais?

Com uma economia política tão deteriorada, o máximo que um teto de gastos pode almejar é segurar um pouco os exageros no curto prazo, sendo inevitavelmente furado de tempos em tempos. Não importa quão engenhoso e flexível seja seu desenho.

Colapsismo chega às análises sobre a economia da China, por Tatiana Prazeres.

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Não é a primeira vez que se decreta o colapso de Pequim nem será a última

Tatiana Prazeres, Executiva na área de relações internacionais e comércio exterior, trabalhou na China entre 2019 e 2021.

Folha de São Paulo, 27/08/2022.

Duas patologias correlatas costumam afetar análises sobre a China: o triunfalismo e o colapsismo. O primeiro é diagnosticado entre os que veem como inexorável e inabalável a ascensão do Império do Meio, destinado a reocupar o centro do mundo.

Os desafios atuais da economia chinesa, no entanto, favorecem o segundo viés analítico – o colapsismo. Para começar, o setor imobiliário, que responde por cerca de 25% do PIB do país, enfrenta problemas graves. As vendas caíram mais de 30% no primeiro semestre, mas as construtoras dependem de novos empreendimentos para concluir os que estão em curso. Diante do temor de que obras sejam paralisadas, comprador aderiram a “greves de pagamento”. E, sem receber as prestações, as construtoras não concluem as obras.

Profecia que se autorrealiza, num setor altamente alavancado e endividado. Analistas lembram, não sem razão, do risco de que a crise imobiliária se espalhe para o setor financeiro e contagie o conjunto da economia.

Além disso, há custos crescentes na manutenção da política de Covid zero no país. Em 2020, a China foi a primeira a entrar e a primeira a sair da fase inicial da pandemia. A economia se recuperou em V. Dois anos depois, as autoridades seguem procurando uma porta de saída para a estratégia que, no início, efetivamente funcionou. Lockdowns em Shenzen e Xangai, neste ano, custaram caro para a atividade econômica.

Para piorar, secas sem precedentes estão, hoje, provocando racionamentos de energia. Ainda, o setor de tecnologia sente os efeitos de regulações restritivas recentes. Para completar, aumentam as tensões geopolíticas.

Apesar da meta de crescimento anunciada de 5,5% para 2022, o PIB chinês ficou praticamente estagnado no segundo trimestre. O FMI estima que a expansão será de 3,3%, o que, excluído 2020, seria a menor em mais de quatro décadas.

Nesse cenário, não surpreende que o colapsismo esteja em alta. De todos os cantos, brotam análises que pintam um quadro de derrocada da economia chinesa. E que profetizam que desta vez é para valer. A bolha que nunca estoura —título de um livro sobre a China do economista-chefe da Bloomberg— agora estouraria.

Ocorre que tanto o triunfalismo quanto o colapsismo sofrem de viés de confirmação. Adeptos de ambas as práticas apenas valorizam o que reforça suas teses. Costumam analisar a realidade à luz do que gostariam que acontecesse.

Para os colapsistas, a atual fotografia econômica da China corrobora a visão apocalíptica.

Apesar da gravidade dos problemas, há exagero entre aqueles que enxergam tão somente fragilidades e ignoram tanto a resiliência da economia chinesa quanto o fato de que as autoridades detêm mais ferramentas e menos restrições para corrigir rumos econômicos do que em outras partes. Não é garantido que irão acertar —mas seguramente têm mais instrumentos para isso.

Em 2016, a conhecida Foreign Affairs trouxe um artigo intitulado “O fim da ascensão da China”. Em 2021, a mesma revista trouxe outro artigo exatamente com o mesmo título. No Twitter, um observador perguntou, ironicamente, se a Foreign Affairs estava sob algum tipo de obrigação contratual de publicar periodicamente um texto antecipando a derrocada chinesa.

Um segundo logo postou a capa de outra renomada publicação, a Foreign Policy, cujo título vaticinava, em 1995, “O colapso iminente da China”. O PIB per capita chinês passou de US$ 1.520 para US$ 11,2 mil desde então.

Ambas as patologias analíticas são oportunistas, teimosas e danosas. Longe dos excessos dos extremos, a China pode, sim, estar embarcando numa trajetória de crescimento mais lento —o que não significa que sua economia esteja prestes a esfarelar. Não é a primeira vez que se decreta o colapso chinês. Não será a última.

Byung-Chul Han: Infocracia e a caverna digital.

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Mundo online forja novo totalitarismo, aponta o filósofo em recente livro. Esfera pública é pervertida: emerge comunicação sem comunidade. Verdade vira borrão e, através de algoritmos e autoexploração, desejos coletivos são reduzidos ao eu

Por Fernando D’Addario, no Pagina 12 | Tradução: Roney Rodrigues

Outras Palavras, 30/05/2022

Byung-Chul Han é um operador saudável do quadro social e comunicação que expõe seu trabalho: seus livros são breves, rápidos, transparentes. Cada um deles propõe apenas um punhado de conceitos, facilmente reduzidos a uma frase-slogan que flui através das redes sociais e funciona como um “coringa” para reforçar opiniões de diversas índoles. Sua grande contribuição ao pensamento nas últimas décadas certamente foi sua análise do indivíduo autoexplorado, o novo sujeito histórico do capitalismo. Mas, além dessa ideia-força, o principal mérito do filósofo coreano é ter captado a “atmosfera” dessa época para, dessa forma, traduzi-la em textos nos quais um cidadão comum com certa sensibilidade – política, cultural, trabalhista – se sente refletido.

Em seu último livro, Infocracia [2022], ainda sem tradução no Brasil, Han explora como o “regime de informação” substituiu o “regime disciplinar”. Da exploração de corpos e energias – tão bem analisadas por Michel Foucault em sua época — passamos à exploração de dados. Hoje o signo dos detentores do poder não está ligado à posse dos meios de produção, mas ao acesso à informação, que é utilizada para a vigilância psicopolítica e a previsão do comportamento individual.

Em sua exposição genealógica, Han descreve o declínio desse modelo de sociedade dissecado pelo autor de Vigiar e Punir, e encontra pontes com outros autores do século XX como Hannah Arendt, de quem resgata certas abordagens do totalitarismo. Han diz que hoje estamos submetidos a um novo tipo de totalitarismo. O vetor não é mais o relato ideológico, mas a operação algorítmica que a sustenta.

O filósofo circunda os temas que já havia exposto em outras obras (a compulsão à performance que descreveu em A sociedade do cansaço; o surgimento de um habitante voluntário do panóptico digital, encarnado em A sociedade da transparência; o comodismo frente ao imperativo do like como analgésico do tempo presente, abordado em A sociedade paliativa), mas centra-se na mudança estrutural da esfera pública, atravessada pela indignação digital, que fragiliza o que outrora entendíamos como democracia.

Han argumenta que nesta sociedade marcada pelo dataísmo, o que está ocorrendo é uma “crise da verdade”. Ele escreve: “Esse novo niilismo não significa que a mentira se faça passar como verdade ou que a verdade seja difamada como mentira. Ao contrário, mina a distinção entre verdade e mentira”. Donald Trump, um político que opera como se ele próprio fosse um algoritmo e só se orienta pelas reações do público expressas nas redes sociais, não é, nesse sentido, o mentiroso clássico que deturpa deliberadamente as coisas. “Ao contrário, [ele] é indiferente à verdade dos fatos”, diz o filósofo. Essa indiferenciação, continua Han, representa um risco maior para a verdade do que aquele instaurado pelo mentiroso.

O pensador coreano diferencia os tempos atuais daqueles não muito distantes quando dominava a televisão. Ele define a TV como um “reino das aparências”, mas não como uma “fábrica de fake news”. Destaca que a telecracia “degradava as campanhas eleitorais a ponto de transformá-las em guerras de encenações midiática. O discurso foi substituído por show para o público”. Na infocracia, por outro lado, as disputas políticas não degeneram em espetáculo, mas em “guerra de informação”.

Porque fake news também é, antes de tudo, informação. E sabe-se que “a informação se espalha mais do que a verdade”. Por isso, conclui com o pessimismo que lhe é próprio: “A tentativa de combater a infodemia com a verdade está, portanto, fadada ao fracasso. Ela é resistente à verdade”.

Define a situação atual com uma frase-slogan que o autor de Não-coisas tanto gosta: “A verdade se desintegra em poeira informativa transportada pelo vento digital”.

Mas como essa vítima é varrida pelo vento digital? Como se comporta? “O sujeito do regime de informação não é dócil nem obediente. Pelo contrário, acredita-se livre, autêntico e criativo. Ele se produz e realiza a si mesmo”. Esse sujeito – que no sistema atual também se realiza como objeto – é simultaneamente vítima e vitimizador. Em ambos os casos a arma utilizada é o smartphone.

Por meio dessa ferramenta, a mídia digital pôs fim à era do homem-massa. “O habitante do mundo digitalizado não é mais aquele ‘ninguém’. Mas é alguém com um perfil, enquanto que na era das massas só os criminosos tinham perfil. O regime de informação se apodera dos indivíduos elaborando perfis comportamentais”.

O grande feito da infocracia é ter induzido em seus consumidores/produtores uma falsa percepção de liberdade. O paradoxo é que “as pessoas estão presas à informação. Elas mesmo se colocam grilhões aos comunicar e produzir informações. A prisão digital é transparente”. É precisamente esse sentimento de liberdade que garante a dominação.

Por fim, atualiza o mito platônico: “Hoje vivemos aprisionados em uma caverna digital mesmo acreditando que estamos livres”.

É uma revolução nos comportamentos que exclui qualquer possibilidade de revolução política. Diz Han: “Na prisão digital como uma zona de bem-estar inteligente não há resistência ao regime prevalecente. O like exclui qualquer revolução”>

Em tempos de microtargeting eleitoral, porém, ocorre um fenômeno paradoxal: a tribalização da rede. Interesses segmentados que se expressam por meio de discursos previamente elaborados e que aos poucos vão corroendo o que Jürgen Habermas definiu teoricamente como “ação comunicativa”. “A comunicação digital como comunicação sem comunidade destrói a política baseada na escuta”, escreve Han, enfatizando que no antigo processo discursivo os argumentos poderiam ser “melhorados”, ao passo que agora, guiados por operações algorítmicas, dificilmente são “otimizados” em função do resultado que se almeja.

É a direita que a mais capitaliza esse fenômeno de tribalização da rede, assegura o filósofo, porque nessa franja a demanda por “identidade do mundo vital” é maior. Em uma sociedade desintegrada em “irreconciliáveis identidades sem alteridade”, a representação, que por definição gera uma distância, é substituída pela participação direta. “A democracia digital em tempo real é uma democracia presencial”, que ignora sua esfera natural de representação: o espaço público. Isso leva a uma “ditadura tribalista de opinião e identidade”.

O sujeito autoexplorado da sociedade do cansaço, o habitante voluntário da sociedade transparente, o indivíduo que se entrega à sociedade paliativa, também se submete, conclui Han, à fórmula do regime de informação: “comunicamos até morrer”.

Desafios futuros

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Estamos caminhando para momentos de grandes decisões e desafios que tendem a definir a sociedade nos próximos anos, neste momento de incertezas e de instabilidades crescentes, precisamos ter seriedade para a tomada de decisões estratégicas que se aproximam, pavimentando caminhos mais suaves numa sociedade centrada em turbulências crescentes.

A sociedade brasileira é descrita internacionalmente como um dos maiores produtores de alimentos do mundo, somos campeões em variados produtos que contribuem para alimentar parte considerável da comunidade global e percebemos, com espanto e preocupação, que voltamos para o mapa da fome, onde mais de 125 milhões de brasileiros apresentam insegurança alimentar, gerando preocupações políticas e desequilíbrios econômicos e sociais.

A sociedade brasileira precisa encarar de frente o crescimento da desigualdade econômica e da exclusão social que crescem de forma acelerada, essa desigualdade cresceu no período pós-pandemia e exige do Estado políticas públicas efetivas e imediatas, evitando a naturalização desta situação de degradação que presenciamos cotidianamente e nos transformam em indivíduos frios, distantes e indiferentes diante das dores dos outros.

A sociedade brasileira precisa construir instrumentos de preservação do meio ambiente, sua degradação está presente no cotidiano de todos os indivíduos, as chuvas estão se escasseando, as tempestades estão mais intensas, as enchentes estão mais violentas, as geleiras estão secando e as queimadas estão em ascensão, gerando preocupações com as gerações futuras, preocupações crescentes com os setores produtivos e custos de insumos mais elevados que impactam sobre todos os grupos da sociedade e afetando mais fortemente os mais vulneráveis e fragilizados.

A sociedade brasileira precisa reestruturar o Estado Nacional, retomando seu papel proeminente de planejador e fomentador dos setores produtivos, estimulando os investimentos de longo prazo, fomentando a geração de mão de obra capacitada para superar os grandes desafios que vislumbramos num mundo centrado nas incertezas e nas turbulências. Neste momento, precisamos construir ou reconstruir laços sólidos entre Estado e Mercado, investindo em ciência e tecnologia, criando vantagens competitivas e abandonando pensamentos simplificados que contribuem para aprofundar a pobreza e a degradação social.

A sociedade brasileira precisa combater arduamente os desvios de recursos que atravancam o crescimento econômico e o tão sonhado desenvolvimento social, para isso, faz-se necessário que os agentes governamentais, e toda a coletividade, assumam o papel de fiscalizar, regulamentar e reconstruir os instrumentos institucionais de combate a corrupção que perpassa a sociedade, deixando de lado políticas proselitistas, protecionismo de grupos políticos e setores econômicos que se escondem sob uma legislação frouxa e garante a impunidade dos setores mais abastados da sociedade. Políticas efetivas de combate a corrupção contribuem para a retirada das máscaras que escondem interesses imediatos, de indivíduos e de corporações que contribuem para que vivamos numa sociedade que caminha rapidamente para a degradação e convulsões sociais, econômicas e políticas.

A sociedade brasileira precisa acordar para os desafios educacionais do século XXI, numa sociedade descrita como a do conhecimento, estamos distantes dos padrões mínimos exigidos para a manutenção de uma estrutura produtiva capaz de garantir autonomia e soberania nacional. Neste ambiente de atraso visível precisamos retomar o planejamento educacional, priorizar o ensino de qualidade, garantir fontes de financiamentos e aumentar os investimentos em pesquisa, ciência e tecnologia, deixando de lado os cortes obscuros nos orçamentos da educação que criam instabilidades, incertezas e degradam o futuro da nação e perpetuam nossas indignidades.

São inúmeros os desafios da sociedade brasileira, neste espaço elenquei apenas alguns, encará-los de frente podem nos trazer esperança e dignidade ou continuaremos a ser vistos como um pária na sociedade internacional.

Ary Ramos da Silva Júnior, bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 24/08/2022.