O declínio do Ocidente Por Paulo Nogueira Batista Jr

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Por PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.*

A Terra é Redonda – 08/08/2022

O Ocidente não quer a emergência dos outros povos, mas esta virá de qualquer maneira, quer se queira quer não
Proponho, querido e paciente leitor, que conversemos hoje sobre um tema vasto e complexo que adquiriu urgência nos anos recentes, em especial em 2022. Refiro-me, como indica o título deste artigo, ao declínio do Ocidente. Trata-se de uma questão intrincada, que mobiliza afetos, preconceitos, interesses. E é por isso mesmo que ela se mostra fascinante.

O leitor, como eu, certamente gosta de desafios e não quer se restringir a assuntos batidos, onde reina certo consenso. Vamos em frente então.

Primeira pergunta: é fato ou mito essa decadência ocidental? Note-se que ela já foi proclamada muitas vezes. O assunto não deixa de ser batido, portanto. A própria expressão “declínio do Ocidente” foi tema e título de um livro de Oswald Spengler, publicado há pouco mais de cem anos, em 1918.

O século XX não confirmou a previsão de Spengler. O Ocidente se deu até ao luxo de promover duas guerras civis, de escala mundial ou quase, conhecidas europocentricamente como Primeira e Segunda Guerras Mundiais. Foram guerras sem precedentes, sangrentas e custosas. E nem por isso o Ocidente perdeu a hegemonia planetária. Sobrava poder. A verdade é que a resiliência ocidental foi maior do que imaginavam detratores e adversários.

As formas de dominação se modificaram, mas o século XX terminou sem que o domínio fosse de fato superado. O eixo do poder passou de um lado para o outro do Atlântico Norte, mas se manteve em mãos ocidentais. Até aumentou na reta final do século, com a surpreendente desintegração do bloco soviético e até mesmo da própria União Soviética.

Foram muitos os livros e ensaios publicados na esteira de Spengler ao longo do século passado. A frustração dessas previsões de decadência levou os ideólogos do Ocidente a se referir depreciativamente a uma suposta escola “declinista”, mais motivada por ideologias ou desejos do que por avaliações objetivas. E havia, claro, um elemento fortíssimo de desejo nessas previsões.

Afinal, leitor, a hegemonia de europeus e seus descendentes norte-americanos vinha sendo duradoura e nada benevolente, para dizer o mínimo. Suscitou assim antipatia profunda e generalizada nos povos colonizados ou dominados, com ecos nos segmentos humanistas das próprias sociedades mais desenvolvidas. Humano, humano demais que os tropeços do Ocidente sejam recebidos com satisfação urbi et orbi.

Nada é para sempre. E o domínio do Ocidente sobre o resto do mundo já leva mais de duzentos anos. Começou, como se sabe, com a revolução industrial iniciada na Inglaterra no final do século XVIII. Consolidou-se no século XIX e persistiu, como mencionei, ao longo do século XX. Teve seu Indian summer depois do colapso soviético.

Agora parece claro, entretanto, que o século XXI não será mais um século de domínio inconteste do Ocidente. Ao contrário, os sinais de declínio estão por toda parte. Em termos demográficos, econômicos, culturais, políticos. Os “declinistas” terão enfim razão? Há muitas indicações de que agora sim.

Cuidado, entretanto. De um modo geral, o declínio ocidental é relativo, não absoluto. Em algumas áreas, o declínio pode, sim, ser absoluto, por exemplo na cultural, onde o retrocesso parece acentuado. Mas o que ocorre de uma maneira geral é perda de peso relativo vis-à-vis do resto do mundo, em especial da Ásia emergente, a China à frente. O declínio é mais acentuado para a Europa, mas se sente também nos Estados Unidos.

A perda relativa não deixa de ser sentida como real, dolorosamente real. Afinal, o ser humano é tão deficiente, constituído de tão pobre e imperfeita maneira que chega a ver na ascensão do outro uma ameaça, um prejuízo para si.

A mera ascensão pacífica já desencadeia os piores sentimentos e receios. No caso dos europeus e norte-americanos esse lamentável traço humano se vê agravado pelo hábito arraigado de dois séculos de predomínio global.

Os brancos dos dois lados do Atlântico Norte não se acostumam, simplesmente não se acostumam a ver povos antes dominados – asiáticos, latino-americanos, africanos – querendo emergir, ser ouvidos e participar das decisões internacionais. Ainda que essas pretensões dos emergentes sejam modestas, cautelosas, até tímidas às vezes.

Habituados a ditar, ensinar, pregar, os brancos não conseguem dialogar e negociar com o que para eles é uma massa ignara e até repugnante.

Mas a emergência dos outros povos vem de qualquer maneira, quer se queira quer não. Vai acontecendo em termos populacionais, econômicos e políticos. Aos ocidentais resta conformar-se ou espernear. Até agora preferiram espernear. Mais do que espernear, infelizmente. Reagem com violência e provocações à inevitável formação de um mundo multipolar. Em última análise, são essas reações que explicam a guerra na Ucrânia e as tensões crescentes com a China. A mais recente provocação foi a visita de Nancy Pelosi a Taiwan.

A que dará lugar o fim da hegemonia do Ocidente? A julgar pelas tendências recentes, o que virá não é a substituição dos Estados Unidos pela China, ou do Atlântico Norte pela Ásia. A China dificilmente terá no mundo a hegemonia que a Europa e os Estados Unidos já tiveram um dia. Por motivos históricos e intrigas ocidentais, os chineses não comandam a confiança da maioria dos seus vizinhos. Japão, Índia, Vietnã, por exemplo, têm diferenças importantes com a China e não aceitam a sua hegemonia. Os chineses dificilmente conseguirão estabelecer uma zona de influência sólida, mesmo no Leste da Ásia, o que dizer em outras regiões. Uma observação semelhante pode se fazer sobre a Rússia e a Índia, que têm de qualquer maneira peso bem inferior ao da China.

O cenário que vai se configurando desde o início deste século é de um mundo multipolar, fragmentado, sem governança e regras aceitas globalmente. As entidades globais existentes, ONU, FMI, Banco Mundial, OMC etc., continuarão a ter sua importância, mas com influência declinante, tanto mais que os ocidentais se recusam a reformá-las para refletir plenamente a realidade do século XXI. No lugar de ou em substituição parcial a essas instituições multilaterais de alcance mundial ou quase mundial, surgiram e surgirão instituições novas, criadas por países emergentes em busca de mais espaço no plano internacional.

Essa multipolarização do mundo é interessante para os países em desenvolvimento, pois abre oportunidades e pode facilitar a consolidação da sua autonomia nacional. Por outro lado, a fragmentação do mundo multipolar também é muito perigosa, como estamos vendo. Com esses perigos seremos todos obrigados a lidar, sem nostalgias inúteis por situações de concentração de poder que não mais voltarão.

E o Brasil nisso tudo? Bem. Superadas nossas desventuras recentes, temos muito a fazer, por nós e por outros países. Ao nosso imenso Brasil cabe, acredito, um papel especial: trazer ao mundo uma palavra de solidariedade, cooperação, paz e amor.

Mas isso já é assunto para outras e mais ousadas divagações especulativas.

*Paulo Nogueira Batista Jr. é titular da cátedra Celso Furtado do Colégio de Altos Estudos da UFRJ. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai. Autor, entre outros livros, de O Brasil não cabe no quintal de ninguém (LeYa).
Versão ampliada de artigo publicado na revista Carta capital, em 5 de agosto de 2022.

Cotas podem ajudar a resgatar o mérito, enquanto excluem os medíocres, por M. França

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Ações afirmativas são apenas uma forma emergencial de tentar diminuir a perda de talentos

Michael França, Ciclista, doutor em teoria econômica pela Universidade de São Paulo; foi pesquisador visitante na Universidade Columbia e é pesquisador do Insper.

Folha de São Paulo, 09/08/2022

A história da humanidade é marcada pelo domínio de alguns grupos sobre os demais, e tal fato assumiu diferentes configurações ao longo do tempo. Em um passado não muito distante, a aristocracia representava um tipo de organização sociopolítica em que a origem familiar ditava o modo de vida das pessoas. Uma pequena parcela da população herdava automaticamente um conjunto de privilégios simplesmente pelo fato de ter nascido em determinada família.

Depois de algumas revoluções, em vários cantos do mundo, os nobres foram retirados de suas cadeiras cativas. Instalou-se gradativamente o ideal de que a ascensão social deveria se dar por meio de esforço e talento. Essa concepção permitiu ampliar as oportunidades de progresso para um conjunto maior da população, e diversos avanços socioeconômicos foram obtidos. Porém, ao mesmo tempo, milhares ficaram para trás.

Os bem-sucedidos de uma geração começaram a transmitir significativas vantagens para seus descendentes. A origem familiar passou, novamente, a ter um amplo papel na determinação dos resultados alcançados pelos indivíduos. Mas, diferentemente do passado, em que era comum pessoas despreparadas assumirem cargos relevantes devido apenas ao privilégio hereditário, atualmente as famílias com melhores condições financeiras investem pesadamente na formação de seus filhos.

Isso não quer dizer que todos se tornarão pessoas brilhantes ou, ao menos, competentes. O talento não surge espontaneamente, mas costuma ser reflexo de uma combinação bem orquestrada entre os esforços individuais e os investimentos corretos realizados pela família e sociedade.

Nesse âmbito, sabe-se que a falta de empenho não tem classe social. Entretanto, mesmo nos casos dos filhos da elite que não se esforçam, os altos investimento realizados por seus pais ajudarão no desenvolvimento de um currículo com credenciais para o mercado de trabalho. Além disso, em certas situações, a rede de contatos e o patrimônio herdado ou construído por seus pais tendem a permitir que aqueles filhos medianos mantenham o status familiar.

Esse cenário contribui para alimentar a profunda crise de legitimidade em relação ao mérito. As posições de maior prestígio social são marcadas pela alta dominância daqueles que nasceram em famílias ricas. Grande parte da disputa por esses espaços acaba se limitando aos filhos da elite, enquanto ao resto da população cabe participar de uma competição muito desigual com aqueles que herdaram consideráveis vantagens.

Nesse contexto, as ações afirmativas, sendo as cotas uma delas, podem ser pensadas como uma forma de procurar colocar para competir indivíduos com trajetórias de vida parecidas e, assim, contribuir para que os “vencedores” tenham maior legitimidade em suas conquistas. Dependendo de como esse tipo de intervenção é desenhada, também representa um meio de selecionar os melhores entre aqueles que tiveram investimentos semelhantes e, assim, diminuir a enorme perda de talentos em classes sociais desfavorecidas.

As ações afirmativas tendem a ampliar as chances de as minorias atingirem determinado objetivo. Isso pode se refletir em uma mudança nas aspirações sociais daqueles que foram historicamente excluídos e, consequentemente, fazer com que um conjunto maior dos desfavorecidos se empenhe ainda mais.

No caso dos favorecidos, aumenta-se a pressão por maior esforço, visto que agora os medíocres podem ficar de fora. As cotas nas universidades são um exemplo disso. Caso um filho da elite não tenha sido bem-sucedido no vestibular competindo com aqueles que tiveram um conjunto de investimento semelhante, talvez ele não tenha se esforçado o suficiente ou, simplesmente, não seja talentoso.

A formação de capital humano para a inovação no Brasil, por Flávio Bartman

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Orientada a fornecer diplomas, universidade precisa se integrar à economia

Flavio Bartmann, Engenheiro mecânico (ITA) e doutor pela Universidade de Princeton, é professor na Universidade Columbia e na NYU Stern School of Business

Folha de São Paulo, 09/08/2022

Uma posição popular nos meios acadêmicos é a de que uma educação superior de altíssima qualidade seria uma condição “sine qua non” para o desenvolvimento; sem um ensino universitário da mais alta qualidade, voltado para ciência e inovação, o país continuaria na sua atual situação. O exemplo seria o papel importante que as grandes universidades nos Estados Unidos e na Europa têm na inovação.

Essa é uma leitura errada da evidência histórica. Os Estados Unidos já eram, em 1900, a maior potência industrial, enquanto o papel principal de Harvard, Princeton e Yale era dar um verniz cultural para os filhos da classe privilegiada. Quase todos os avanços científicos e tecnológicos importantes da época, relatividade e mecânica quântica e o desenvolvimento do motor a jato, por exemplo, foram realizados na Europa. As universidades americanas só se tornaram as melhores do mundo depois da guerra, após se beneficiarem enormemente dos grandes projetos tecnológicos realizados a partir de 1940, do Projeto Manhattan, da corrida espacial, da internet e outros, e do grande influxo de cientistas e intelectuais vindos da Europa.

Um processo semelhante ocorre na China, que se tornou uma superpotência econômica, mas que segue enviando centenas de milhares de estudantes aos EUA, à Europa e à Austrália, reconhecendo que suas universidades ainda não estão, em geral, no mesmo nível.

Esses exemplos não são, é claro, evidência de que as universidades devam simplesmente reagir às demandas do sistema produtivo. Como centros de investigação e pesquisa, as universidades, energizadas por aquelas demandas, irão adiante, abrirão novos caminhos. O sistema produtivo nunca demandou o laser, a energia nuclear ou os relógios atômicos que permitiram o desenvolvimento do GPS.

O que é necessário para inovação, portanto, é um processo de realimentação intenso, entre a economia e o governo, por um lado, e a universidade por outro, nas duas direções. Exemplos disso estão por toda a parte; um, particularmente importante, tem a ver com o desenvolvimento dos computadores digitais. A ideia foi uma consequência do trabalho de Alan Turing em lógica na década de 1930; o Eniac, o primeiro computador digital programável, foi usado para o cálculo das trajetórias de cargas de artilharia. Outras aplicações da computação digital precipitaram avanços tecnológicos importantes, como o transistor e os circuitos impressos, que permitiram uma grande melhoria na performance dos computadores, abrindo muitas oportunidades para aplicações comerciais.

Foi exatamente para facilitar esse processo que Vannevar Bush, no seu extraordinário relatório “Science, the Endless Frontier”, escrito a pedido de Franklin Roosevelt em 1944-45, propôs uma estrutura de pesquisa e desenvolvimento, ancorada nas universidades e nos laboratórios nacionais, com o objetivo de preservar a superioridade científica e tecnológica dos EUA, assegurando a sua hegemonia geopolítica. A implementação dessa proposta como uma política nacional levou à criação da National Science Foundation, em 1949, de 18 laboratórios nacionais e de um rico sistema universitário integrado à dinâmica socioeconômica norte-americana.

Essa integração da universidade no processo econômico não ocorreu no Brasil, onde a universidade ainda está culturalmente orientada para oferecer diplomas, credenciais, não para oferecer uma formação que ajude a apontar soluções para os complexos problemas da sociedade contemporânea.

O caminho para um Brasil mais próspero, justo, democrático e ambientalmente saudável requer um investimento acelerado em infraestrutura e, simultaneamente, a expansão e valorização de um ensino e pesquisa de alta qualidade nas nossas universidades. Precisamos retomar o crescimento econômico, com uma série de projetos e empreendimentos, envolvendo governos e a iniciativa privada, projetos que iriam se beneficiar muito da participação de uma universidade moderna.

Qual legado escravocrata cabe aos brancos?

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‘O Pacto da Branquitude’ explica como a escravidão é associada às vantagens da população branca

ANELISE GONÇALVES – FOLHA DE SÃO PAULO, 06/08/2022

A história da sociedade brasileira é inseparável da escravidão. Muito se fala sobre as consequências sofridas pela população negra, mas qual legado cabe aos brancos? Isto é o que Cida Bento busca responder em seu livro “O Pacto da Branquitude”.

Doutora em psicologia pela USP (Universidade de São Paulo) e colunista da Folha, a autora faz um apanhado do conhecimento adquirido ao longo de suas pesquisas no mestrado e no doutorado, de suas experiências profissionais na área de recursos humanos e de suas experiências pessoais.

Ela ressalta, nos dez capítulos, algo nítido que parece ser esquecido pelo Brasil: a escravidão e o racismo beneficiaram e continuam beneficiando pessoas brancas nas mais distintas esferas sociais.

Para construir seu argumento, Cida mobiliza em primeiro lugar a história. A autora afirma que antes do estabelecimento das rotas de comércio de escravos no contexto da colonização europeia, tanto a África quanto a Ásia eram regiões relativamente ricas e produtivas —diferentemente da Europa.

A chegada dos europeus e a dinâmica comercial estabelecida teve um impacto negativo nesses continentes, não só pela extração de recursos, mas também pela destruição das estruturas econômicas e sociais que existiam.

Com o trabalho duro sendo transferido para as colônias, países europeus experimentavam um período de desenvolvimento econômico. Isso beneficiava não somente as famílias ricas, que participavam diretamente da extração de riquezas, mas também as classes mais pobres (e brancas).

Segundo Cida, a noção de branquitude nasceu justamente nesse processo de colonização europeu. Conceitualmente, diz respeito à ideia de que a raça branca seria o padrão, e tudo o que foge dela seria o diferente, o “outro” do eu branco supostamente universal.

O pacto da branquitude, por sua vez, consiste nos acordos feitos para manter pessoas brancas em situação de privilégio e, ao mesmo tempo, higienizadas de todo o processo histórico e violento que o construiu.
Essa higienização se daria por justificar como uma questão de mérito os privilégios que pessoas brancas têm hoje nos âmbitos econômico, político e social. E não como fruto de centenas de anos de exploração de negros escravizados. Um exemplo é que a maioria de cargos de liderança são ocupados por pessoas brancas.

No caso do Brasil, país que sustenta o vergonhoso título de ser o que mais tempo permitiu a escravidão, as consequências desse processo se mesclam a praticamente todas as clivagens sociais, sejam elas de gênero ou classe.

Um exemplo dessa herança maldita é o trabalho doméstico, um resquício da dinâmica colonial que ainda funciona como sustento fundamental sobretudo para mulheres negras e pobres. O racismo se manifesta não apenas na cor e na renda, mas também nas práticas que envolvem a relação trabalhadora-empregador, ainda permeadas por práticas de submissão, desprezo e mesmo assédio.

Segundo um levantamento do Made/USP (Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades, da Universidade de São Paulo), os 705 mil homens brancos que fazem parte do 1% mais ricos do país têm renda maior que a de todas as 33 milhões de mulheres negras do Brasil.

Em março deste ano, a Folha mostrou que mudanças trabalhistas e culturais estão colocando em xeque a existência de cômodos específicos para empregados domésticos. No entanto, a autora afirma que a classe média e alta desaprova a formalização desse tipo de serviço e que ainda há muito a ser feito.

O livro trata sobre como os brancos pobres foram beneficiados pela escravidão no passado e nos dias atuais. Por mais que não participassem diretamente da extração das riquezas das colônias, eram beneficiados pelo desenvolvimento econômico que vinha delas. Além disso, o trabalho pesado era transferido para as colônias.

Os brancos pobres hoje seriam beneficiados pela narrativa da branquitude, que os favorece por serem mais propícios a serem escolhidos em entrevistas de emprego, por exemplo, por sua aparência.

Já a população negra não tem como ignorar a violência que permeia esse pacto. Cida relata no livro como sofreu, assim como seu pai, sua mãe e os sete irmãos, inúmeros episódios de racismo em seu cotidiano, seja na escola e no trabalho.

Ela conta que, quando trabalhava como recrutadora, selecionou uma vez duas mulheres negras para uma vaga de secretária. O cliente que oferecia a vaga respondeu com uma bronca.

Esses casos vão além da discriminação direta, e assumem também a forma do desconforto branco com a presença de negros com status hierárquico semelhante no ambiente corporativo. Aqui, a branquitude se revela para além do preconceito: ela é também uma forma de assegurar a soberania de um grupo, o branco. Eis o pacto.

Essa ideia é levada ao extremo —mas não ao absurdo, tendo em vista sua materialidade cotidiana— no longa “Medida Provisória”, primeiro filme dirigido por Lázaro Ramos. Na obra, o desconforto com a presença de negros é tão grande que o governo cria o projeto “Resgate-se Já”, em que paga esta parte da população para voltar para a África.

Ao mesclar as experiências pessoais com a argumentação histórica, Cida tira o racismo do campo teórico ou pessoal e trata dele como processo —em outras palavras, engrenagem estrutural que organiza a sociedade e molda individualidades.

“Pacto da Branquitude” é incisivo. Parte de uma premissa que parece ser esquecida, devolvendo a cor aos brancos e apontando as vantagens e desvantagens de cada parcela da população.

O livro ousa ao mostrar uma face brasileira que não queremos e não gostamos de ver, mas que é essencial caso queiramos avançar como sociedade.

O PACTO DA BRANQUITUDE
Autor Cida Bento; Editora Companhia das Letras; Preço R$ 39,90

Dificuldades fiscais

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Vivemos momentos de grandes desafios para a sociedade brasileira, recuperação lenta na economia e no sistema produtivo, instabilidades políticas e discussões eleitorais desnecessárias, além de grandes inquietações sociais, com crescente número de pessoas vivendo nas ruas, com violência crescente e sem esperanças.

Neste cenário, os analistas se mostram preocupados com as questões fiscais do Estado, as alterações intempestivas do arcabouço fiscal, gastos preocupantes, investimentos sem planejamento e orçamentos secretos e sem transparência.

Além deste cenário, destacamos os custos elevados dos preços, a inflação corrói o poder de compra da população, contribuindo para a concentração da renda em prol dos donos do capital em detrimento dos trabalhadores, neste ambiente, muitos se assustam com as dificuldades e as limitações do crescimento econômico, comemorando espasmos de melhoras num ambiente de incertezas e instabilidades.

No front externo, a possível recessão nos Estados Unidos tende a gerar preocupações para a economia brasileira, levando as autoridades monetárias norte-americanas a um incremento nas taxas de juros, atraindo recursos externos e desvalorizando o câmbio e gerando pressões crescentes nos preços que, posteriormente, pode culminar em mais juros internos, crédito mais caro, menos recursos disponíveis e uma lenta recuperação da estrutura econômica e produtiva, com graves impactos sociais.

Depois da guerra entre a Ucrânia e a Rússia e da visão belicista dos “líderes” ocidentais, os preços dos alimentos, dos combustíveis e da energia explodiram no mercado internacional, gerando desequilíbrios estruturais que impactam fortemente sobre para todas as nações. Neste cenário, os grandes prejudicados são os grupos mais fragilizados, com retração da renda, diminuição do consumo e aumento do desemprego.

Neste ambiente, os governos buscam novas formas de reduzir os impactos negativos para suas comunidades, buscando formas de diminuir os preços dos alimentos e dos combustíveis, usando a criatividade e a ousadia como forma de políticas públicas, reduzindo impostos e aumentando os subsídios, na maioria das vezes são medidas temporárias, mas geram desequilíbrios fiscais.

Neste momento de grandes desafios, como o que estamos vivendo, as sociedades precisam reconstruir os instrumentos fiscais e monetários para reduzir as desigualdades construídas desde os primórdios desta nação. Estas medidas não podem ser vistas como punitivas com relação a grupos específicos da sociedade, muito pelo contrário, devem ser vistas como instrumentos de redução dos desequilíbrios econômicos e das desigualdades sociais que perpassam a sociedade e tendem a levar o país a conflitos fratricidas que se mostram mais claramente nas violências contemporâneas, como as chacinas, os discursos de ódios, os arbítrios, as milícias e o crescimento de grupos armados, que nascem e se desenvolvem a partir da omissão e da incompetência do Estado.

As políticas fiscais devem ser vistas como um instrumento de racionalização das estruturas sociais e econômicas, tributando progressivamente os agentes econômicos e utilizando os recursos para estimular a melhora econômica, fomentando os investimentos produtivos, aperfeiçoando e diversificando a sociedade, garantindo empregos de qualidade, capacitando e qualificando a mão de obra, consolidando melhorias sociais substanciais para a comunidade, fortalecendo o mercado interno e fomentando o desenvolvimento econômico.

O desenvolvimento econômico prescinde de um mercado interno sólido e consistente, salários dignos, oportunidade para todos os setores, emprego qualificado e a busca crescente da tão sonhada cidadania. A caminhada é árdua e atribulada, mas passa pela redução dos spreads bancários, redução do custo do dinheiro, taxação pesada dos ganhos financeiros, controle do câmbio, renda universal e consolidação da agricultura familiar. Ao postergarmos estas medidas, os fantasmas do subdesenvolvimento e da desigualdade estarão sempre nos acompanhando na nossa caminhada pelo desenvolvimento.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Comportamental, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 03/08/2022.

Falhamos como país, porque suportamos o insuportável, por Naná De Luca

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Tudo de mais brilhante no legado das gerações anteriores à minha parece estar se desmanchando no ar

NANÁ DE LUCA – FOLHA DE SÃO PAULO, 02/08/2022

SÃO PAULO

Ando ponderando se o poeta Arthur Rimbaud estava correto quando escreveu que o insuportável é saber que nada, de fato, é insuportável. Será mesmo? O quão insuportável o insuportável precisa ser para que, enfim, o impulso de seguir em frente não se justifique mais?

No Brasil de sempre, mas em especial neste dos últimos anos, a realidade impõe o impossível como regra. É o céu de São Paulo escurecido às 15h pelo fogo na Amazônia, o que parece ter sido há uma vida, mas são três anos. É Genivaldo asfixiado, porque dirigia sem capacete. É o refrão paralisante: “E daí? Quão insuportável o insuportável deve ser e para quantos? Para quem? Em quantos lugares e horários diferentes?

Essas perguntas fixaram-se em mim, em definitivo, no dia 21 de setembro de 2019. Era um domingo e eu era o plantonista das 7h da manhã. Ágatha Felix, 8, foi baleada nas costas, na Penha, zona Norte do Rio, e morreu na madrugada de sábado. Nunca esqueci aquela manhã, muito menos esqueci Ágatha. Nunca esqueci seu avô em prantos, a fantasia de Mulher Maravilha, a versão da Polícia Militar incompatível com o que diziam as testemunhas.

Tudo era insuportável. Mas suportei, porque suportamos. Como neste país se suporta, por hábito histórico-macabro, a morte de crianças com balas nas costas ou na cabeça.

Como se suporta as mortes de 678.578 mil pessoas em uma pandemia, quando era claro o caminho para que este número fosse tão menor e, o cemitério, tão mais vazio. Como se suporta que 33 milhões dos nossos passem fome todos os dias. Como se suporta o assassinato de Bruno Pereira e Dom Phillips e todas as omissões institucionais. Como se suporta um governo que trabalha ativamente para destruir tudo de melhor que construímos nas últimas três décadas, pautados no espírito, ou ao menos na intenção, de sermos hoje melhores do que nosso passado permitiu. Este esforço de fundar, enfim, um Brasil que, se não um lugar fantástico, ao menos garanta dignidade a todos. O mínimo.

Tudo de mais brilhante no legado das gerações anteriores à minha, sinto, parece estar se desmanchando no ar, escorrendo entre os dedos. Falhamos —nossos avós, nossos pais, mães e nós mesmos. Porque suportamos esta sub-realidade, que para ficar ruim deve melhorar muito.

Aceitamos que generais de terno e gravata brinquem de governar nossa democracia. Nós os tememos, como nossa história bem dita que devemos temer. Mas basta. Chega um tempo, neste segundo semestre de 2022, quando não podemos mais aceitar viver com um longo passado pela frente. Não deixemos para nossos filhos e netos a responsabilidade de acertar as contas com o Brasil. Nem de suportar o insuportável.

‘Nova classe C’ perdeu terreno e ficou para trás, diz Marcelo Neri

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Segundo o diretor da FGV Social, os fatores de ascensão desse público nos anos 2000 foram revertidos

Thiago Bethônico – Folha de São Paulo, 02/08/2022

Um dos principais especialistas no fenômeno que ficou conhecido como ascensão da classe C, o economista Marcelo Neri diz que a classe média de hoje tem um novo perfil em relação aos governos petistas: ela é mais sofrida.

Segundo o diretor da FGV Social, o quadro socioeconômico que alavancou esse público nos anos 2000 era composto por três fatores principais: avanço da economia; crescimento da renda acima do PIB (Produto Interno Bruto) e redução contínua da desigualdade.

No entanto, todos esses efeitos duraram até 2014 e foram revertidos. “A desigualdade aumentou, o crescimento caiu e invertemos essa equação”, diz Neri, em entrevista à Folha.

Na visão dele, o conceito de classe média atualmente está mais próximo da classe média tradicional, que ascendeu no início da década de 1970. Nesse período, que ficou conhecido como milagre econômico, o Brasil teve altas taxas de crescimento, mas com uma escalada da desigualdade.

“Talvez tenhamos perdido aquele elemento de nova classe média, dos primeiros [a acessar certos itens de consumo]. Eu diria que hoje é uma tendência mais de conservadorismo, uma apologia da época do milagre econômico”, afirma.

Para Neri, outras mudanças de perfil também são perceptíveis. A carteira de trabalho, que ele considera o grande símbolo da classe média dos governos Lula, já não se encaixa mais no contexto de hoje.

“Acho que esse é um tempo que já foi. Estamos mais época de empreendedorismo, uberização, não é mais a carteira assinada.”

Existe hoje uma nova classe média no Brasil, um novo perfil? Temos falado muito de polarização, muitas vezes no sentido político, mas polarização é o oposto de classe média. Quer dizer, os extremos estão crescendo em detrimento do meio, que é por definição onde está a classe média, seja a nova classe média —mais ligada a uma classe C— ou uma classe média tradicional.

Mas, obviamente, existe esse grupo. Houve um episódio em 2020, auge do auxílio emergencial, em que vimos pessoas das classes A e B caindo, por conta do isolamento social, e pessoas das classes D e E subindo. Mas foi algo que durou pouco.

Talvez vivamos um processo parecido com essa concessão do auxílio de R$ 600, mas nada que seja muito permanente. Essa é a preocupação.

O que surpreendeu daquele movimento da nova classe média [dos governos petistas] é que persistiu durante um tempo. Sempre teve muita instabilidade, mas durou do fim da recessão de 2003 até 2014. Foi um processo de crescimento contínuo e baseado em três partes.

Uma parte é o próprio crescimento da economia, crescimento do PIB, na época do boom de commodities. Outro foi um crescimento da renda das pessoas acima do crescimento do PIB. Além disso, uma redução contínua da desigualdade.

Mas todos os efeitos duraram até 2014 e foram revertidos. A desigualdade aumentou, o crescimento caiu e invertemos essa equação. A renda das pessoas passou a crescer menos que o PIB. Então, existe essa classe média mas, nos últimos anos, ela é sofrida.

O que muda no perfil de consumo dessa classe média mais sofrida? Existem dois tipos de classe média. Uma é a classe média americana, o padrão europeu, que figura no imaginário das pessoas mundo afora. Aquela que tinha dois carros, dois cachorros e dois filhos. Mas esse é um padrão de países ricos.

Há também a chamada classe C, que é mais associada à nova classe média, que é uma classe média brasileira e num certo sentido global, porque a distribuição de renda brasileira —a partir da qual nós calculamos a classe média— é surpreendentemente próxima da média global.

Agora, de 2015 em diante, o Brasil teve um desempenho bem pior. Certamente não se comportou como um país emergente, então perdemos terreno.

Houve esse achatamento, em função da grande recessão. O aumento da desigualdade na renda do trabalho foi contínuo por 17 trimestres consecutivos —um recorde de permanência.

Hoje em dia, quando se fala em classe média, talvez estejamos falando mais de uma classe média tradicional e menos dessa classe C.

A classe C hoje é mais enxuta do que era nos anos 2000 e 2010? Sim. Isso é um ponto importante. Não é que desfizemos totalmente os ganhos que existiram. Basicamente vivemos uma década perdida. Se olharmos, por exemplo, a desigualdade de renda do trabalho —que é motor importante de mudanças, por ser mais estrutural— nós estamos na mesma média de renda que tínhamos em 2012.

Tem se falado agora em redução de desemprego, aumento de carteiras assinadas —que antigamente era o símbolo dessa nova classe média. Isso de fato está acontecendo e são notícias boas.

Mas, quando olhamos a média de renda per capita do trabalho, que é uma espécie de resumo da ópera trabalhista, nós não só estamos num nível tão ruim quanto 2012, como não estamos tendo um bom desempenho nos últimos trimestres.
O efeito da inflação tem sido mais forte. As pessoas têm perdido rendimento, tem havido uma certa precarização ao mesmo tempo em que há esse ganho de ocupação.

O senhor falou sobre uma classe B que caiu para classe C durante a pandemia. Até onde isso é relevante na comparação com aquela nova classe média dos anos 2000? Aquilo foi um processo contínuo. [Naquele período] A classe média tradicional, passando pela B e chegando na A, vinha crescendo. Talvez tenha sido a que, percentualmente, cresceu mais.

Apesar da desigualdade ter diminuído, foi um período de tendências contínuas, mudanças sobre mudanças. Foi um ciclo virtuoso.

No processo de queda da classe B, temos segmentos mais ligados ao setor externo, como ramo de commodities. Por exemplo, nós fizemos estudo sobre alta renda, e se destacou o município de Nova Lima —na periferia de Belo Horizonte— que é a capital da mineração. Onde há a maior concentração entre os municípios dessa classe alta.

Então é importante distinguir. Essa classe alta perdeu, muito por causa do isolamento social. Também não teve auxílio emergencial, que ajudou as classes mais baixas.
Esse episódio acho que é interessante de recuperar, pois podemos estar vivendo algo semelhante hoje, com esse auxílio de R$ 600.

Olhando as estimativas de pobreza, logo no começo da pandemia havia 64,5 milhões de pobres. No auge do auxílio caiu para 42 milhões. Esses 23 milhões de pessoas subiram. No entanto, seis meses depois, em janeiro de 2021, voltamos a ter 67 milhões de pobres. Foi uma bate-volta.

No fundo, a classe C cresceu por duas forças na pandemia. De um lado, a perda do topo, porque a classe alta também perdeu. E por um impulso na base, em função do auxílio emergencial.

O senhor diria que a parcela de pessoas que caíram da classe B para a classe C é hoje maior do que durante os governos do PT? Foi algo muito concentrado. Isso também depende do lugar. O crescimento da nova classe média foi muito forte no Nordeste, onde havia uma velha pobreza que virou nova classe média em alguma medida.

Pernambucano foi onde a pobreza mais aumentou nos últimos dois anos. Cresceu 8,14 pontos percentuais. Se olharmos no governo Lula, foram 17 pontos percentuais de queda de pobreza. De pessoas que subiram. Se considerarmos 2014, em vez de 2010, a queda foi de 25 pontos percentuais.

Nos oito anos de governo Fernando Henrique Cardoso, a pobreza caiu 8 pontos percentuais —que é mais ou menos o que perdemos agora na pandemia.

O que fez toda a diferença foi o fato de ser um período longo, de crescimento sobre crescimento. Os três fatores macro por trás disso são: crescimento do PIB, crescimento da renda acima do PIB e, no topo disso, uma redução de desigualdade contínua, que durou 13, 14 anos seguidos. Vinha antes do governo Lula e continuou até 2014.

Em geral, na maioria dos países emergentes, o crescimento era positivo, mas a desigualdade subia. No caso brasileiro a desigualdade caiu, como caiu na América Latina. Só que a renda média das pessoas aqui no Brasil subiu acima do PIB. Isso levou a um crescimento do potencial de consumo.

A carteira de trabalho era o grande símbolo dessa nova classe média, e acho que esse é um tempo que já foi. Estamos mais numa época de empreendedorismo, uberização, não é mais a carteira assinada.

Outro ponto importante da nova classe média é a existência dos primeiros da família que conseguiram acessar certos itens de consumo —como colocar o filho numa escola privada ou contratar um plano de saúde privado.

Hoje, mesmo que haja uma volta do crescimento, não teremos os primeiros [consumidores]. Os primeiros não esquecem. Tem um efeito mais marcante na trajetória, que depois fica refém desses picos de consumo do passado.

Quem come carne uma vez por semana hoje vai estar mais satisfeito se não comia carne antes, do que se ele comia carne três vezes por semana.

Existe hoje uma parcela da classe C que não viveu uma escassez. O que isso muda? Não ter vivido [a escassez], como é o caso das novas gerações, ou já ter experimentado no passado, faz com que a pessoa se ressinta mais. Os sociólogos falam que um pico prévio de consumo é um motivo de infelicidade presente. Assim como o efeito da “grama do vizinho ser mais verde”.

Talvez o maior concorrente do Bolsonaro hoje, para fazer o Auxílio Brasil de R$ 600, seja o próprio Bolsonaro em 2020, quando ele deu o Auxílio Emergencial. Fica prisioneiro dessa situação.

No auge do programa havia 67 milhões de beneficiários. Um terço da população recebia. Na passagem, algumas pessoas perderam.

O senhor falou de alguns símbolos da classe média daquele período, como a carteira assinada. Qual é o símbolo da atual classe média? Talvez tenhamos perdido aquele elemento de nova classe média, dos primeiros [a acessar certos itens de consumo]. Eu diria que hoje é uma tendência mais de conservadorismo, uma apologia da época do Milagre Econômico.

A nova classe média surgiu nesse período de boom de commodities, com redução de desigualdade, crescimento de emprego formal etc. A classe média tradicional, que são as classes A e B, em boa medida surgiu na época do Milagre, quando [a economia] crescia, mas com aumento da desigualdade.

Talvez o nosso conceito de classe média hoje seja mais de uma classe média tradicional, dessa que ascendeu lá atrás, e menos de uma classe média pioneira, que consumiu pela primeira vez certos bens e serviços.

E muitos desses bens e serviços são importantes. Um plano de previdência, um plano de saúde, escola privada para os filhos… São elementos que permitem a ascensão social. Não era uma busca do consumo, mas uma obtenção de capacidade de geração de renda.

Marcelo Neri, 59
Economista, Marcelo Neri é diretor do FGV Social e fundador do Centro de Políticas Sociais da FGV. Foi ministro-chefe da SAE (Secretaria de Assuntos Estratégicos), da Presidência da República, e presidente do Ipea. É doutor em economia pela Universidade de Princeton (EUA), mestre e bacharel em economia pela PUC-Rio (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro). Também é professor no doutorado, no mestrado e na graduação da EPGE (Escola Brasileira de Economia e Finanças), da FGV, no Rio de Janeiro.

Dowbor: A tirania do mérito e como superá-la

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A ideia de que todo esforço será recompensado esconde a filosofia neoliberal de guerra de todos contra todos. Justifica a captura das riquezas pelo 0,01% e impõe o fardo da culpa aos mais pobres. Enfrentá-la exigirá combates políticos e éticos

OUTRASPALAVRAS – Ladislau Dowbor – 29/07/2022

“O ideal meritocrático não é remédio para desigualdades;
ele é justificativa para desigualdade.” – Sandel, p.181

A desigualdade tem de estar no centro das nossas preocupações. Para muita gente, basta se preocupar com o seu próprio bem-estar, e da sua família. É o nível em que a insegurança joga um papel determinante na indiferença relativamente ao que acontece com os outros. No caso dos empresários, predomina a busca do lucro apenas, sem pensar nos impactos sociais e ambientais. É uma visão de curto prazo. Como escreveu Peter Drucker, “não haverá empresa saudável numa sociedade doente”. Quanto aos muito ricos, com fortunas acima de 30 milhões de dólares, ganhar mais já não é questão de bem-estar seu ou da empresa, pois têm muito mais do que jamais poderão gastar, e sim de sentimento de dominância: basta ver o comportamento surrealista, de mandar um carro para o cosmos, de subir no espaço com o seu próprio foguete, de batalhar o seu ranking na Fortune ou na Forbes. Considerando os dramas que se acumulam no planeta, econômicos, sociais e ambientais, bem conhecidos no andar de cima dos afortunados, isso já é área do patológico. É a tirania do ego, e burrice social.

Estamos num mundo em que nem os pobres merecem a sua pobreza, nem os ricos a sua riqueza. Os pobres, evidentemente, porque não foram eles que montaram esse sistema em que os direitos sobre o excedente que a sociedade produz sai da mão deles e vai para os mais ricos. O botijão de gás que a família mais pobre paga pelo absurdo preço de 130 reais gera lucro adicional para acionistas em qualquer parte do mundo, sem precisarem produzir mais. Cobrar taxas de juros mais elevadas – até o botijão já é vendido a prazo – ou ainda, e particularmente, extrair mais dividendos das empresas, asseguram enriquecimento com o esforço dos outros. Na era do dinheiro virtual, o enriquecimento dos improdutivos é generalizado.

Sandel insiste no crescente papel das finanças: “A financeirização da economia pode ser mais destrutiva para a dignidade do trabalho e mais desmoralizante. Isso porque oferece talvez o mais elucidativo exemplo, em uma economia moderna, da distância entre o que o mercado recompensa e o que realmente contribui para o bem comum…Isso não seria problema se toda atividade financeira fosse produtiva, se aumentasse a capacidade da economia de produzir bens e serviços de valor. Mas esse não é o caso…Cada vez mais envolve engenharia financeira complexa que resulta em grandes lucros para pessoas envolvidas, mas que não fazem qualquer coisa para tornar a economia mais produtiva.”(306) Equivale a ganhar dinheiro com dinheiro.

O argumento moral tem muito peso. Porque há um imenso esforço da mídia comercial, seja tradicional ou utilizando as mídias sociais, de apresentar o enriquecimento como legítimo, portanto merecido, ainda que não corresponda à contribuição produtiva. O merecimento tornou-se uma questão central: sou rico porque batalhei, por que você não se esforça mais? A grande justificativa moderna do sistema grotesco em que vivemos é que quem é rico é porque se esforçou, e, portanto, quem é pobre é porque não soube batalhar. A grande vitória da comunicação dos mais ricos não é só de aparecer como merecedores da sua fortuna, mas de acusar os pobres de serem incapazes de seguir o seu exemplo. Ao orgulho da riqueza, acrescentam o desprezo da pobreza. Mas de que os donos de grandes fortunas têm de se orgulhar? Mereceram?

Michael Sandel traz no centro do seu livro este tema: a tirania do mérito. Não está sozinho nesta indignação. Gar Alperovitz e Lew Daly traçaram os mecanismos no Unjust Deserts: how the rich are taking our common inheritance; Emmanuel Saenz e Gabriel Zucman apresentam os mecanismos mais escandalosos no The Triumph of Unjustice: how the rich dodge taxes and how to make them pay; Marjorie Kelly e Ted Howard mostram como os dividendos se tornaram um dreno sobre a economia, Joseph Stiglitz protesta contra o rentismo irresponsável e improdutivo, Thomas Piketty assentou as bases teóricos do novo sistema de exploração, Michael Hudson detalha o FIRE (Finance, Insurance, Real Estate), Mariana Mazzucato detalha a fratura entre gerar valor econômico e dele se apropriar, no seu The Value of Everything: making and taking in the global economy. A indignação cresce, e podemos aqui alongar muito a lista, com Rana Foroohar e tantos outros. Está se gerando um novo consenso nas teorias econômicas, e a indignação cresce.

A força de Sandel está no desmonte dos argumentos com os quais os mais ricos se protegem. O importante para os afortunados é defender o seu merecimento, que traz implicitamente a ideia de que os que não sobem na vida não devem culpar o dreno de riqueza no topo, mas a sua própria incapacidade de imitá-los. Ou seja, os pobres são pobres por sua culpa. Sandel insiste muito no sentimento de humilhação que se gera na base da sociedade. Explorados de maneira ostensivamente injusta pelos aristocratas, pelos senhores da terra em diversos sistemas, os servos eram obrigados a se submeter, mas tinham a compreensão da injustiça que sofriam. Atualmente, não só são reduzidos à pobreza e privados de oportunidades, mas têm de arcar com a narrativa que isso resulta de sua própria incapacidade, ou falta de vontade de trabalhar. Sempre há alguns exemplos de pobres que subiram na vida. Sandel restabelece o bom senso: “Ser bom em ganhar dinheiro não mede nem nosso mérito nem o valor de nossa contribuição.” (201)

“A tirania do mérito é resultado não só da retórica da ascensão. Ela consiste em um conjunto de comportamentos e circunstâncias que, agrupadas, tornaram a meritocracia tóxica. Sob condições de desigualdade desenfreada e mobilidade barrada, reiterar a mensagem de que nós somos responsáveis por nosso destino e merecemos o que recebemos corrói a solidariedade e desmoraliza pessoas deixadas para trás pela globalização… Quando o 1% mais rico recebe mais do que toda a metade inferior da população, quando a receita média fica estagnada por quarenta anos, a ideia de que esforço e trabalho árduo o levará longe começa a parecer vazia.”(105) Mais do que desespero por pobreza “é um descontentamento mais desmoralizante, porque sugere que, no caso das pessoas deixadas para atrás, o fracasso é culpa delas.”(106) “Se, numa sociedade feudal, você nascesse em condição de servidão, sua vida seria dura, mas não se sentiria oprimido ou oprimida pelo pensamento de que a responsabilidade por estar nessa posição de subordinação é sua.” (173) Os ricos não só causam e aprofundam a pobreza, como ensinam os pobres a lamentar as causas.

A inclusão produtiva desempenha aqui um papel fundamental. Não se trata apenas de permitir a ascensão por diploma universitário, e sequer apenas de assegurar igualdade de oportunidades à partida. Trata-se de mais igualdade como resultado final. Muito mais do que assegurar acesso ao consumo, é preciso assegurar a inclusão produtiva, dimensão essencial do sentimento de pertencimento e de dignidade que resulta do fato de contribuir para a sociedade. O trabalho “é uma atividade de integração social, uma arena de reconhecimento, uma forma de honrar nossa obrigação de contribuir para o bem comum.”(299) Neste sentido o governo “tem obrigação de organizar instituições econômicas e sociais para que pessoas possam contribuir com a sociedade de forma que respeite sua liberdade e a dignidade do seu trabalho.”(298)[i]

Sandel insiste muito na ilusão de que o acesso à educação superior resolve a questão da mobilidade social. “Quando as elites meritocráticas colocam sucesso e fracasso tão próximos da habilidade de uma pessoa em conquistar um diploma universitário, de forma implícita, culpam quem não tem diploma por estar em condições difíceis na economia global.”(132) É igualmente forte o argumento de que diplomas podem assegurar capacidades técnicas sem a capacidade moral correspondente: é preciso distinguir o que Aristóteles chamou de sabedoria prática e virtude cívica. “John F. Kennedy montou uma equipe com credenciais brilhantes que, com todo seu brilhantismo tecnocrático, levou os Estados Unidos para a insensatez da guerra do Vietnã.” (133)

Por outro lado, tanta pressão por “sucesso”, inclusive com envolvimento dos pais, da sociedade em geral, leva à impressionante elevação de suicídios entre jovens: “Um em cada cinco estudantes universitários relataram pensamentos suicidas no ano anterior, e um em cada quatro foi diagnosticado com algum transtorno de saúde mental ou foi tratado. O índice de suicídios entre pessoas jovens (20 a 24 anos) aumentou de 36% de 2000 a 2017 – hoje em dia, morrem mais em decorrência de suicídio do que homicídio.”(251) Esses são números referentes aos Estados Unidos, mas há estatísticas convergentes em númerosos países, como a Coréia do sul. Estamos todos correndo para onde?

As implicações políticas são fortes também para quem não tem acesso ao diploma, ao criar uma profunda divisão social. A redução das políticas de inclusão à estreita escada do diploma “distanciou pessoas da classe trabalhadora de partidos dominantes, sobretudo os de centro-esquerda, e polarizou a política ao longo da linha educacional. Uma das mais profundas divisões na política hoje é entre pessoas com e pessoas sem diploma universitário.” (145) Sandel liga essas divisões ao sucesso da política do ódio em numerosos países, em particular com a eleição de Trump nos
Estados Unidos, mas se referindo a numerosos outros países, inclusive à eleição de Bolsonaro.

No conjunto, ao desmontar a farsa do mérito, Sandel nos traz uma visão de reorientação política mais ampla, centrada nos valores, nos resultados efetivos para a sociedade. As soluções não podem se limitar à dimensão econômica. O congelamento da maioria da população na pobreza e na imobilidde social leva por sua vez aos desastres políticos, com tantos oportunistas que se elegem com o discurso do ódio, alimentados pela frustração na base da sociedade. As mudanças que buscamos no sentido do aprofundamento da democracia, da expansão das dimensões colaborativas, da generalização de políticas inclusivas, do deslocamento da filosofia absurda da guerra de todos contra todos – tudo isso envolve mudanças civilizatórias mais amplas. É uma mudança cultural, no sentido mais profundo. Não se trata de sonhos: experiências dessas diversas dimensões já demonstraram os seus resultados em numerosos países. São soluções práticas que necessitam batalhar mais espaço político, buscando mudanças sistêmicas.