Homeschooling: Que Deus tenha misericórdia de nós!, por Juliano Spyer

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Promovido pela elite evangélica e abraçado por políticos e empresários, o ensino domiciliar estimulará evangélicos pobres a ter medo das escolas

Juliano Spyer, Antropólogo, pesquisador do Cecons/UFRJ, autor de Povo de Deus (Geração 2020) e criador do Observatório Evangélico.

Folha de São Paulo, 26/05/2022

A defesa do homeschooling revela como o campo evangélico é plural e disputado. Este é um de projeto elitista, associado a interesses econômicos e políticos, que promove, irresponsavelmente, a ideia de que evangélicos pobres e com baixa escolaridade devem ter medo das escolas. Justo eles que, como outros pais e mães trabalhadores, precisam de mais tempo de escola para seus filhos, e não menos.

Para escrever este texto, consultei evangélicos de origem popular e de diversas denominações e posicionamentos no campo político.

Para o pastor, historiador e teólogo André Neto, a bandeira do ensino domiciliar explicita a influência das ações missionárias estadunidenses no Brasil. Evangélicos brasileiros tentam imitar o que ocorre entre conservadores dos EUA, sem analisar contextos sociais e tradições de ensino. Para este grupo, diz André, “se lá existe a prática de educar os filhos em casa, aqui também é possível.”

André avalia que o homeschooling imporá a quem aderir a ele “uma formação sem bases científicas, preconceituosa, assaltada pelos interesses de pastores e pastoras que, muito provavelmente, vão prover material didático próprio para estas famílias e assim abrir um novo filão no mercado gospel”.

O escritor e membro da Assembleia de Deus Gutierres Siqueira também considera o interesse pelo ensino domiciliar como resultado da combinação entre elitismo cristão e oportunismo empresarial. Ele conta que organizações educacionais conservadoras como o Instituto Presbiteriano Mackenzie estariam prontos para capitalizar com o ensino domiciliar usando soluções de ensino a distância.

Para Gutierres, a pauta atende a demandas de evangélicos ricos. “Eu, que passei 12 anos em uma Assembleia de Deus de periferia, no Grajaú, zona sul de São Paulo, nunca vi essa discussão dentro da igreja, em nenhum ambiente, nem mesmo em conversa de roda”, conclui conta.

O pastor Wilian Gomes resume o sentimento associado à promoção do ensino domiciliar com um desabafo dizendo: “Que Deus tenha misericórdia de nós!” Para esse pastor de uma igreja da Assembleia de Deus na periferia de Brasília, evangélicos pobres percebem que políticos estão distorcendo o debate sobre moralidade para promover o homeschooling.

“Tudo está muito politizado, cada um defendendo seus interesses. Tirar criança da escola é um absurdo… O que a maioria dos evangélicos quer é que a criança fique o dia todo na escola, para que a gente possa trabalhar sabendo que os filhos estão protegidos e sendo preparados para melhorar de vida,” ele argumenta.

A teóloga pentecostal Regina Fernandes lembra que já existem escolas confessionais, administradas por igrejas evangélicas, e que algumas delas adotam o método de “educação por princípios”, importado dos Estados Unidos, para ensinar disciplinas junto com conteúdo bíblico.

Por que, então, a necessidade dessa alternativa fora da escola? Para a teóloga, o homeschooling é promovido a partir de uma atmosfera de medo. “Dentro de casa entende-se que o filho estará em um ambiente são, ‘protegido’, onde, além de não se envolver em pautas sociais, não aparecem temas como homoafetividade e discussões sobre gênero e sexo.”

O ambiente de campanha eleitoral também influencia a promoção do ensino domiciliar. Líderes evangélicos aliados ao governo, como a ex-ministra Damares Alves, usam politicamente o sentimento de perseguição, difundido especialmente entre pentecostais, para alimentar a polarização entre esquerda e direita. A ideia, que ecoa argumentos do filósofo bolsonarista Olavo de Carvalho, descreve a escola como um “antro de perversões esquerdistas”.

Para André Neto é decepcionante como apenas esse argumento sobre escolas justifique a implantação de uma solução educativa sem consultar educadores. A desqualificação das instituições de ensino acontece mesmo que a consequência disso seja alienar jovens do convívio social escolar e —fora o caso das famílias ricas— reduzir a qualidade de desempenho acadêmico de estudantes pobres.

O pastor batista Josenildo Miranda observa de perto os efeitos dessa proposta entre evangélicos que vivem no interior da Bahia, onde ele atua. “Meus Deus, quando uma pessoa aqui do interior do Nordeste, independentemente da formação que ela tenha, poderá atuar também como professor quando economicamente ela não terá tempo para fazer isso?”

Josenildo classifica a proposta como sendo “irresponsável”. “A única coisa que nos dá um certo alento”, ele acrescenta, “é perceber que muitas pessoas no nosso meio têm um anseio grande de conhecimento. Além desses fanáticos, muitos evangélicos amam o conhecimento e consideram a escola um privilégio, e fazem esforços para que seus filhos não apenas estudem, mas continuem estudando depois do fim do ensino médio.”

Mundo Líquido

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O mundo vive momentos de grandes transformações, os paradigmas que sustentaram a sociedade em décadas anteriores estão em crise, alterando as estruturas que sempre foram vistas como fundamentais para a organização da comunidade, levando as famílias a modificações constantes, os relacionamentos foram chacoalhados, o mundo do trabalho sofre agitações constantes, as religiões também passam por agitações e os mercados passam a dominar as sociedades, impondo valores, sentimentos e ganhos imediatos. Com essas transformações estruturais em curso na sociedade, percebemos preocupações crescentes, novas ansiedades e o incremento dos ressentimentos, criando inseguranças, medos e agressividades que nos parecem cada vez mais evidentes.

O sociólogo polonês Zygmunt Baumann, famoso intelectual da sociedade contemporânea, cunhou a expressão mundo líquido, para definir uma sociedade que se compraz com a superficialidade, no mundo atual tudo é líquido. Os amores e os sentimentos na contemporaneidade escorrem pelas mãos, os modelos mais intensos de relacionamentos foram deixados para trás, o medo dominou as relações cotidianas, não queremos nos frustrar com os relacionamentos mais intensos e verdadeiros, pois eles podem nos causar dores íntimas, frustrações sinceras, decepções violentas, além de criar mágoas e constrangimentos.

Nesta sociedade do século XXI vivemos o drama do individualismo, depois da hegemonia do pensamento liberal em que o indivíduo é visto como se sobrepondo ao coletivo, percebemos que este indivíduo cunhado pelas teorias liberais se encontra em crise profunda, esta crise se manifesta numa intensa solidão e desesperança. Estamos mergulhados num mundo em que não mais confiamos no futuro, as bases da democracia estão solapadas, os modelos de liberdade clássica estão ameaçados e o ser humano amedrontado e infeliz, a crise da modernidade é, antes de mais nada, a crise dos indivíduos.

A lógica econômica se sobrepõe a todas as outras lógicas da sociedade contemporânea, acreditamos que pensamos e agimos como o homem econômico, julgamos nossas ações como racionais, nosso trabalho se dá envolto em contas e cálculos intensos de ganhos e perdas, no campo religioso buscamos maximizar nossas oferendas e trocas com o divino. Nossos relacionamentos são colocados na ponta do lápis e maximizamos nossos prazeres e buscamos reduzir, e até acabar, com nossas dores e as frustrações, somos seres quase racionais que nos julgamos reflexivos e racionais, mero autoengano.

As grandes mudanças contemporâneas estão criando novos modelos de organização de famílias, os modelos tradicionais estão sendo substituídos por novos paradigmas, o modelo clássico baseado em um casamento tradicional está sendo substituído em ritmo acelerado por vários modelos diferentes. Vivemos numa sociedade marcada por várias formas de amores e de relacionamentos, tudo isto gera, na coletividade, novos medos, fomentando instabilidades e incertezas crescentes que abrem espaços para patologias sociais que se manifestam com o incremento do xenofobismo, da intolerância e dos sectarismos, que alimentam as violências que degradam a sociedade.

A pandemia nos trouxe novas oportunidades para reconstruirmos os laços sociais que foram fragilizados e degradados anteriormente, além de contribuirmos para a reconstrução de novos valores morais calcados na ética da solidariedade, colocando os seres humanos no centro da civilização, deixando de lados os interesses imediatistas e valorizando os avanços científicos e tecnológicos como instrumento de melhoramento da qualidade de vida dos indivíduos, evitando as contradições que crescem de forma acelerada no mundo contemporâneo, combatendo formas degradantes de acumulação, valorizando o meio ambiente, garantindo emprego e remuneração decentes, com isso, reduzimos os espaços de degradação da dignidade dos seres humanos e contribuímos para a reconstrução da esperança e da solidariedade.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração. Especialista em Sociologia do Trabalho e Exclusão Social (Unyleya), Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 25/05/2022.

The Economist: A Índia pode ser um motor econômico para o mundo?

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Dado o seu tamanho e potencial, parece razoável questionar se a Índia poderia ser o próximo motor econômico do mundo

The Economist, O Estado de S. Paulo – 22/05/2022

O mundo precisa de mais esperança econômica. A guerra na Ucrânia provocou um golpe severo nas perspectivas de crescimento econômico global. Os lockdowns e a desaceleração da atividade imobiliária enfraqueceram a China, o antigo motor de crescimento da pujança do mundo.

Dado o seu tamanho e potencial, parece razoável questionar se a Índia poderia ser o próximo motor econômico do mundo. Em abril, o Fundo Monetário Internacional (FMI) calculou que o PIB indiano poderia crescer mais de 8% este ano – sem dúvida o ritmo mais veloz entre os países grandes. Uma expansão tão rápida, se sustentada, teria um impacto profundo no mundo. Mas, em grande parte por conta da mudança na estrutura da economia global, as coisas não são tão simples para a Índia herdar a posição da China.

Nos anos 2000, a China era responsável por quase um terço do crescimento global – mais do que os Estados Unidos e a União Europeia juntos –, adicionando nova capacidade produtiva, a cada ano, equivalente à produção atual da Áustria. Na década de 2010, a contribuição do país quase dobrou, de modo que cada ano de crescimento valia como mais uma Suíça.

Da virada do milênio às vésperas da pandemia, a China se tornou o maior consumidor da maioria das principais commodities (matérias-primas cotadas em dólar) do mundo e sua participação nas exportações globais de mercadorias aumentou de 4% para 13%.

A Índia poderia repetir tamanhas façanhas? Trata-se da sexta maior economia do mundo – como a China era em 2000. E sua produção hoje está em grande medida onde estava a da China duas décadas atrás. Pequim continuou a lidar com uma taxa média de crescimento anual de cerca de 9%. A Índia cresceu pouco menos de 7% ao ano durante o mesmo período.

No entanto, o país poderia ter tido um desempenho melhor, não fosse por erros de política – como a decisão chocante do primeiro-ministro Narendra Modi de tirar de circulação algumas notas em 2016 – e vulnerabilidades macroeconômicas, entre elas um setor financeiro sobrecarregado.

O governo talvez tenha aprendido com os erros políticos, e tanto os formuladores de políticas quanto os bancos vêm trabalhando para solucionar o segundo ponto. Antes da guerra na Ucrânia, o FMI calculava que a Índia poderia crescer 9% este ano. Alguns otimistas defendem que, nas circunstâncias certas, a Índia poderia administrar essas taxas de forma contínua.

Um olhar mais atento, entretanto, sugere que a Índia não é um substituto da China. Um problema é que a economia mundial é muito maior do que costumava ser, tanto que um crescimento como este do PIB da Índia aumenta menos o crescimento global. Um crescimento anual de 9% mantido melhoraria bastante a vida dos indianos e alteraria de forma significativa o equilíbrio do poder econômico e político no mundo. Mas isso não significaria que a economia mundial giraria em torno da Índia como aconteceu com a China nas últimas duas décadas. A contribuição da Índia para o crescimento global continuaria menor do que a dos Estados Unidos e a da Europa juntas, por exemplo.

Cenário hostil

Talvez mais relevante, as condições econômicas globais podem ser consideravelmente mais hostis do que aquelas que permitiram a ascensão da China. De 1995 a 2008, o peso do comércio mundial subiu de 17% do PIB global para 25%. A porcentagem das exportações de mercadorias presentes nas cadeias globais de valor subiu de cerca de 44% das exportações mundiais para 52%. A China estava na vanguarda de ambas as tendências. Foi o país mais dominante no comércio desde a Grã-Bretanha Imperial, de acordo com uma análise de “hiperglobalização” publicada em 2013 por Arvind Subramanian, da Universidade Brown, e Martin Kessler, economista da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

A Índia, por outro lado, é peixe pequeno no setor. Às vésperas da pandemia, representava menos de 2% das exportações globais de mercadorias. O país espera aumentar essa porcentagem investindo em infraestrutura, oferecendo subsídios públicos aos fabricantes e negociando acordos comerciais com entusiasmo fora do comum. Mas os tempos mudaram. O comércio mundial caiu como parte do PIB global desde o início dos anos 2010. O nacionalismo econômico poderia impedir uma recuperação. Contudo, a Índia talvez espere aumentar suas exportações conquistando participação no mercado de outras economias – inclusive na China. Mas as empresas e os governos que antes estavam dispostos a depender fortemente de Pequim em nome da eficiência se tornaram mais cautelosos. A relutância deles em se tornarem dependentes demais de qualquer fonte de suprimentos poderia atrapalhar as ambições da Índia.

Potência em serviços

Dominar as cadeias de suprimentos globais talvez não seja o único caminho para a influência econômica. A Índia é um avançado exportador de tecnologia e de serviços para as empresas; embora seu PIB seja apenas um sexto do da China, suas exportações de serviços ficam apenas um pouco atrás das de Pequim.

Pesquisa publicada em 2020 por Richard Baldwin, do Instituto Superior, em Genebra, e Rikard Forslid, da Universidade de Estocolmo, defende que a mudança tecnológica está ampliando a gama de serviços exportáveis e oferecendo mais oportunidades para trabalhadores de países pobres competirem com trabalhadores de serviços no mundo rico. Mas, embora a tecnologia e os serviços para empresas possam continuar a prosperar na Índia, a expansão deles talvez seja limitada por um sistema educacional inadequado, que se sai bem no número de matriculados, entretanto não nos resultados de aprendizagem, e pela natureza protecionista dos setores de serviços do mundo rico, que talvez esteja mais protegida contra a concorrência estrangeira do que os trabalhadores industriais contra as importações chinesas.

Rumo à 3ª economia

Mesmo que a Índia dê conta de uma taxa de crescimento mais próxima de 6% do que de 9%, o resultado não seria nada desprezível. Isso tornaria a Índia a terceira maior economia do mundo em meados da década de 2030. Nessa altura, ela contribuiria mais para o PIB global a cada ano do que Reino Unido, Alemanha e Japão juntos.

A demanda indiana por recursos, então, impulsionaria os preços das commodities; seus mercados de capitais encantariam investidores estrangeiros. Uma população grande que fala inglês e um sistema político democrático, se a Índia puder mantê-lo, talvez permitam que as exportações de tecnologia e de cultura indianas exerçam mais influência global do que a China conseguiu em níveis de renda semelhantes.

Mas, até lá, o mundo já terá reconhecido, caso não o tenha feito ainda, que a ascensão da China foi um acontecimento único. O crescimento indiano mudará o mundo. Mas não se deve esperar, nem temer, uma reprise da experiência chinesa. / TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA

Homeschooling: ainda dá tempo, por Renata Cafardo.

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Há mais de 40 milhões precisando de políticas educacionais que garantam que eles aprendam

Renata Cafardo – Estado de São Paulo, 22/05/2022

Depois de dois anos de pandemia, em que as crianças passaram meses sendo obrigadas a estudar em casa, a política educacional prioritária para o governo federal e para o Congresso Nacional é o homeschooling. Seria inacreditável se não estivéssemos neste Brasil quase distópico de 2022.

O País vê as consequências desastrosas de ter sido um dos que mais deixaram escolas fechadas, com aumento de crianças não alfabetizadas, retrocesso de aprendizagem em todas as idades e impactos socioemocionais sem medida.

Famílias percebem, de forma inédita, a importância do professor, da socialização, da escola em sua forma completa para o desenvolvimento de seus filhos. E o quanto é difícil fazer isso em casa. Uma pesquisa divulgada na revista científica European Child & Adolescent Psychiatry com 6 mil pais durante a pandemia mostrou aumento de estresse, preocupações, problemas sociais e conflitos domésticos durante o período em que as crianças estudavam em casa.

Mas muitos deputados acham que a educação pode ser barganhada com dinheiro de emenda. Arthur Lira (Progressistas-AL) decidiu que era assunto urgente, colocou em votação semana passada e 264 aprovaram o projeto que autoriza homeschooling, como queria Jair Bolsonaro. O discurso é o de que os pais podem escolher tirar os filhos de escolas com suposta “doutrinação de esquerda”.

Permitir o homeschooling não é apenas deixar um grupinho de doidos fazer o que quiser, como podem pensar alguns deputados. É abrir espaço para pais mandarem filhos trabalhar ou pedir dinheiro nos faróis, com a justificativa de que estudam em casa. É ainda incentivar a formação de uma sociedade menos desenvolvida, voltada para o próprio umbigo, religião ou crença.

O convívio com outras crianças e adultos permite ter contato com muitas visões de mundo, lidar com conflitos, ser tolerante. Características cruciais também no mercado de trabalho hoje. A escola ainda os protege de violência doméstica e abusos.

O projeto prevê fiscalização nas casas que optem por educação domiciliar e provas para os alunos. Estados e municípios, que não têm dinheiro nem estrutura para garantir educação de qualidade para quem está dentro da escola, agora vão ter que fazer isso com os que estão fora dela.

Há mais de 40 milhões de estudantes no Brasil precisando de políticas educacionais que garantam que eles aprendam.

O projeto agora vai ao Senado. Ainda há tempo para fazer o Congresso entender que crianças e adolescentes têm direitos. E que educação não é opção.

É REPÓRTER ESPECIAL DO ESTADÃO E FUNDADORA DA ASSOCIAÇÃO DE JORNALISTAS DE EDUCAÇÃO (JEDUCA)

Educação vai muito além da conexão, por Marcos Ferrari.

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Políticas públicas descoordenadas geram desperdício de energia e recursos públicos sem resultados condizentes

Marcos Ferrari, Presidente executivo da Conexis Brasil Digital, entidade que representa as operadoras de telecom

Folha de São Paulo, 20/05/2022

Desde que o “boom” da internet chegou ao Brasil, vemos uma série de iniciativas governamentais (nos âmbitos federal, estadual e municipal) com o objetivo de levar conexão às escolas. Porém, precisamos dar os passos seguintes e sair da armadilha das soluções de curto prazo.

Sem avaliação de eficiência, eficácia e efetividade das iniciativas do passado, repetimos e empilhamos políticas públicas descoordenadas e “desconectadas”, sem correções e ajustes em direção a metas mais elevadas de médio e longo prazo que dotem os alunos de habilidades portadoras de futuro.

Fica claro que, mais uma vez, o Brasil está cometendo o mesmo erro da década passada de encarar a conexão nas escolas como um fim em si mesmo, e não como um meio para uma política orientada e estruturada de conexão educacional.

Sem dúvida, a internet é o meio mais curto de acesso ao estoque de conhecimento, mas precisa estar aliada a uma estratégia nacional de educação para o desenvolvimento, a exemplo do movimento dos países asiáticos nos anos 1980.

Políticas públicas descoordenadas geram desperdício de energia e recursos públicos sem resultados estruturantes condizentes com o potencial de aprendizado e desenvolvimento cognitivo disponibilizado pelo acesso à internet. Que resultados na formação de alunos foram alcançados com o Projeto Banda Larga nas Escolas e o Prouca (Programa um computador por aluno)? Em que medida as novas iniciativas de conexão nas escolas dialogam ou aprimoram esses programas?

As diretrizes curriculares serão adaptadas a novas formas de aprendizado proporcionadas pelo acesso à internet de alta performance? Os nossos professores estão ou serão capacitados? De quais habilidades se pretende dotar os alunos e a quais objetivos de desenvolvimento econômico e social estarão ligadas? O impacto do 5G na natureza das habilidades cognitivas serão consideradas?

Estas e outras perguntas precisam ter respostas claras para que tenhamos ações estruturantes com efeitos educacionais duradouros e encadeados na formação de um círculo virtuoso.

Pesquisa da TekSystems, “State of digital transformation 2022” revela os cinco grupos de habilidades mais críticas do futuro: cibersegurança, análise de dados, computação na nuvem, análise de negócios e inteligência artificial.

Segundo o relatório “Future of Jobs Survey 2020” do Fórum Econômico Mundial, as profissões que mais crescem no mundo têm uma ou mais dessas habilidades: analista e cientista de dados, especialista em inteligência artificial e machine learning, especialista em big data, especialista em marketing e estratégia digital, especialista em internet das coisas, especialista em automatização de processos, analista de segurança de informação, para citar algumas.

Sem agregar esse cenário, a conexão nas escolas por si só perde o real poder transformador da internet na educação.

A potência da política educacional fica fragilizada. E o nosso quadro não é nada animador.

Levantamento da União Internacional de Telecomunicações mostra que apenas 20% da população brasileira possuem habilidades básicas em tecnologia da informação e comunicação. Essas habilidades são pré-requisitos mínimos para se ter condições para entrar nesse novo cenário. São ações de enviar emails com anexo, copiar e mover arquivo e pastas, transferir documentos do smartphone para o computador entre outras. Apenas 3% possuem habilidades mais avançadas.

Pesquisa do IBGE mostra que o percentual de crianças no Brasil que sequer sabem ler e escrever vem crescendo muito nos últimos anos. Saltou de 25,1%, em 2019, para 40,8%, em 2021.

Assim, é necessário urgentemente corrigir a rota da política de educação conectada no Brasil ou então ficaremos mais uma vez correndo atrás de um futuro inalcançável com elevados custos para as gerações futuras.

Desafios globais trazem riscos e oportunidades para o Brasil, por Armínio Fraga.

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País pode se qualificar para ser relevante na reconstrução de uma governança global ora em frangalhos

Armínio Fraga, Sócio-fundador da Gávea Investimentos, presidente dos conselhos do IEPS e do IMDS e ex-presidente do Banco Central.

Folha de São Paulo, 22/05/2022

O mundo vive um inferno astral de ameaças de curto e longo prazo. Em brilhante palestra recente, Tharman Shanmugaratnam, ministro sênior de Singapura, listou cinco riscos que, para ele, configuram uma “longa tempestade perfeita” para o planeta. Neste artigo, discutirei as implicações desse quadro para o Brasil, procurando também
identificar as oportunidades disponíveis.

O pano de fundo é conhecido. Ao acordar do sonho do mundo pacífico e integrado do fim da história de Fukuyama, nos deparamos com crescentes tensões, que se manifestam em múltiplas esferas. A mais chocante de todas e primeiro tema da lista de Tharman é a tragédia ucraniana, que configura o rompimento de uma governança global que garantia a soberania e a integridade territorial de todas as nações.

A esse retorno da Guerra Fria original, de natureza ideológica (modificada) e militar, se soma a Guerra Fria.2 entre os Estados Unidos e a China, também ideológica, mas muito mais complexa em suas frentes de disputa.

O embate entre os dois gigantes caracteriza um período de ausência de uma liderança global hegemônica que, como bem diagnosticou Charles P. Kindleberger, tende a ser muito instável. Do ponto de vista econômico, as duas guerras frias forçosamente demandam um importante repensar de alianças e relações de produção e comércio globais.

Para o Brasil, será necessário retornar à política externa tradicional do Itamaraty, voltada para a busca do interesse nacional através de boas relações viabilizadas pelo nosso histórico apego a princípios universais e pela nossa natural vocação multilateral. Nos cabe primeiramente e o quanto antes uma defesa inequívoca da integridade de todas as nações. Temos também que zelar pela manutenção de relações mutuamente benéficas com a maior parte dos países.

Em seu segundo grande tema, o autor discute o perigo de uma prolongada estagnação. O epicentro do problema encontra-se nos Estados Unidos, onde uma economia superaquecida por políticas expansionistas vem sendo atingida pelos choques de oferta da pandemia e das guerras frias. Para o Brasil, o risco maior advém da real possibilidade de o banco central americano ter de elevar os juros bem além do que os mercados já antecipam. Nos faria lembrar da frase “quando o Norte espirra, o Sul pega pneumonia”.

Um cenário alternativo, também nada reconfortante, seria uma queda ainda maior das Bolsas, acompanhada de um novo colapso nos preços dos imóveis, hoje acima em termos reais dos níveis da bolha que estourou em 2008.

Do lado de cá, o quadro é ainda mais complicado do que nos Estados Unidos, pois mesmo em recessão a inflação atingiu dois dígitos. Não é difícil imaginar uma tempestade perfeita para o Brasil, onde desafios externos e internos se reforçam. O próximo presidente terá que conduzir a política econômica com coragem e competência, de preferência com o apoio qualitativo das respostas aos demais desafios, que discuto a seguir.

A ameaça existencial da mudança climática é o terceiro tema do discurso. Aqui o Brasil terá a oportunidade de promover uma guinada verdadeiramente alquímica: trocar uma posição de pária ambiental, decorrente de posturas que aumentaram o desmatamento e o crime organizado, por uma guinada que nos poria em uma posição de liderança global no tema, com consequências extremamente positivas fora e dentro do país.

A criação de um mercado de carbono, como vem sendo discutido no Congresso e prometido pelo Executivo, seria um passo essencial nessa direção. É fundamental que o mercado seja desenhado de forma a permitir a plena inserção do país no mercado global de carbono, alternativa não disponível no momento. Vejo amplo potencial para investimentos no setor, em ambiente de concorrência e plenamente alinhados com o interesse público (estou investindo nessa área).

O elevado risco de novas pandemias vem a seguir. A ciência recomenda todo cuidado com o tema. Aqui também vejo amplo espaço para um cavalo de pau. Será necessário reforçar sob todos os ângulos o SUS, que, com seus 4% do PIB de recursos, precisa urgentemente subir na escala de prioridades dos orçamentos de todas as esferas de governo.

Cabe também incluir nas prioridades da nação mais apoio à pesquisa. Fontes de recursos para tais esforços não faltam, como tenho argumentado aqui. Falta sim transparência orçamentária e vontade política.

Em último lugar na lista, mas não menos importante, são as desigualdades de crescimento e bem-estar dentro dos países e entre eles, os mais ricos em vantagem em ambos os casos. Essa situação vem se agravando com as “tempestades perfeitas” e representa um terreno fértil para populismos e autoritarismos. O Brasil tem muito a fazer nessa área.

Com sucesso nessas frentes, o Brasil se qualificaria para ser relevante na reconstrução de uma governança global ora em frangalhos. As vantagens seriam imensas, pois ajudaria a si próprio em tudo mais. No entanto, sem sucesso, os prejuízos para a população seriam enormes. Um futuro melhor só virá se e quando a nossa democracia não mais estiver ameaçada e um tanto disfuncional.

A história do Estado de bem-estar, por Samuel Pessoa.

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Privilegiar os idosos sobre as crianças ajuda a explicar a redução do crescimento do Brasil

Samuel Pessoa, Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e da Julius Baer Family Office (JBFO). É doutor em economia pela USP.

Folha de São Paulo, 22/05/2022

Peter Lindert é pesquisador do departamento de economia da Universidade da Califórnia em Davis. É um acadêmico que se casou com um tema. Dedica-se a desvendar os segredos da evolução do Estado de Bem-estar social mundo afora.

Acaba de publicar “Making Social Spending Work”, continuação do “Growing Public”, de 2004. O livro de 2021 investiga a evolução do Estado de bem-estar social até hoje para um conjunto de sociedades bem maior do que o volume de 2004.

O livro divide-se em três partes. Na primeira, investiga as causas do crescimento e descreve o longo processo de aumento da carga tributária e de construção dos seguros públicos básicos, desde os programas privados na Inglaterra medieval de combate à pobreza.

Elabora os motivos de os gostos com educação terem ocorrido relativamente tarde no século 19 e mostra como o poder político da população com mais idade, “the grey power”, elevou em muito o gasto público com benefícios com aposentadorias.

Na segunda parte, o livro trata das consequências da construção do Estado de bem-estar. Documenta que a grande elevação da carga tributária não gerou perda de eficiência econômica e que houve grandes ganhos na melhora da qualidade de vida, na expectativa de vida e na produtividade, esta última fruto da expansão da escolaridade.

Na terceira parte, trata das tensões atuais do Estado de bem-estar. Em particular dos desafios de a sociedade aceitar a incorporação no Estado de bem-estar dos imigrantes e da necessidade de ajustar os sistemas previdenciários a uma sociedade que envelhece.

Das três principais áreas de atuação do Estado —saúde, educação e previdência—, transparece que saúde é aquela em que há maiores concordâncias. Há ganhos de escala, e a oferta por meio de um grande sistema público parece ser a maneira mais eficiente. Nesse sentido, os EUA constituem um caso excepcional e curioso.

As outras duas áreas, educação e previdência, apresentam o que me pareceu ser o grande tema do livro. Apesar de Lindert não tratar explicitamente do tema, fica muito claro que há uma complexa economia política e um surpreendente conflito distributivo. Não se trata do clássico conflito capital e trabalho. Mas sim do conflito geracional: os jovens contra os velhos.

Nesse sentido, para nós, brasileiros, o ponto alto do livro é a tabela 7.1 e a figura 7.3 do sétimo capítulo, que apresenta o gasto com aposentadorias e com educação como proporção do PIB. Para eliminar diferenças devidas à demografia, Lindert considera o benefício previdenciário médio como proporção da renda de cada trabalhador ativo, e o gasto público com cada aluno também como proporção da renda de cada trabalhador ativo.

Há países que gastam relativamente muito com a terceira idade, outros com a educação das crianças, e outros, na média. Para a amostra de 106 países em 2010 que Lindert considera, somente 5 países gastam mais com aposentadoria do que o Brasil: Sérvia, Turquia, Tunísia, Mongólia e Kuait.

Ou seja, o Brasil fez uma clara opção por sustentar a qualidade de vida dos idosos. Tem impactos positivos sobre o bem-estar, mas não tem impactos positivos sobre o crescimento de longo prazo. Esse padrão de privilegiar os idosos sobre as crianças é recorrente na América Latina. Esse fato ajuda a explicar a redução de crescimento do Brasil nos últimos 40 anos, como documentei na coluna da semana passada.

Há três lições que seguem da experiência internacional.

Primeira, não se deve vincular previdência ao contrato de trabalho. Deve haver um sistema único e universal para todos os trabalhadores, independentemente da natureza do contrato de trabalho.

Segundo, a experiência dos sistemas previdenciários em que as pessoas poupam em contas individuais, como o modelo chileno, não tem sido positiva.

Terceiro, um modelo de repartição, em que a contribuição dos ativos financia o benefício dos inativos, demanda seguidas reformas para garantir a sustentabilidade. O benefício tem que crescer abaixo do crescimento da produtividade do trabalho, e a idade mínima para requerer o benefício tem que crescer com a elevação da expectativa de vida.

O professor Bresser-Pereira gentilmente enviou-me email comentando a coluna da semana passada que pode ser lido no Blog do Ibre. Registro meu agradecimento ao professor.

Confronto e erosão como método, por Oscar Vilhena Vieira.

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Essa concepção tribal de política foi descaradamente plagiada pelo bolsonarismo

Oscar Vilhena Vieira, Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.

Folha de São Paulo, 21/05/2022

Bolsonaro pratica uma concepção primitiva de política, baseada no confronto, na intimidação dos adversários e no arbítrio, em detrimento de uma política fundada na competição eleitoral, no debate público e na legalidade.

Essa concepção tribal de política, defendida por Carl Schmitt, que marcou a ascensão de regimes totalitários nos anos 1930, repaginada pela extrema direita norte-americana nas últimas décadas —com sua idolatria fálica às armas,

à supremacia racial e a ideias liberticidas—, foi descaradamente plagiada pelo bolsonarismo.

Para os praticantes dessa concepção pervertida de política, a democracia constitucional —que pacifica e institucionaliza a competição política e impõe limites jurídicos àqueles que exercem poder— aparece como um entrave inaceitável ao poder soberano devendo, portanto, ser suprimido. A verdadeira soberania, de acordo com Schmitt, não pode ser confinada pela Constituição, pelo império do direito. Ela somente se expressa no contexto do estado de exceção.

Afirmar que se trata de um modelo primitivo de política, não significa, portanto, dizer que é uma concepção destituída de método. No caso brasileiro, o constitucionalismo democrático vem sendo atacado de duas formas: o intenso confronto político deliberado e a erosão difusa da ordem jurídica e da integridade das instituições.

Politicamente, o bolsonarismo conduz um interminável confronto com as instituições e os valores da democracia liberal. Promove uma guerra cultural permanente pelas redes sociais e, ao mesmo tempo, ataca as instituições de controle e aplicação da lei, com o objetivo de minar a credibilidade e a capacidade delas de exercerem a função de freios contrapesos ao poder presidencial.

O ataque às urnas eletrônicas, ao Supremo e aos ministros que têm conduzido o processo eleitoral é parte essencial dessa estratégia de fragilização institucional. Como demonstra relatório da organização Democracia em Xeque, publicado esta semana, após Bolsonaro propor ação de abuso de autoridade contra Alexandre de Moraes, o ministro vem sendo alvo de uma gigantesca onda de ataques nas redes sociais, voltada a intimidar e restringir sua credibilidade.

Dentro dessa mesma estratégia, o bolsonarismo fomenta a animosidade das Forças Armadas contra o Supremo e o TSE.

No plano jurídico, por sua vez, o governo tem empregado as prerrogativas presidenciais, como decretos, nomeações, restrições orçamentárias, estabelecimento de sigilo e ordens para institucionais, para subverter a ordem constitucional. Essa estratégia parece ser uma consequência da incapacidade do governo de promover mudanças mais amplas com apoio de ambas casas do Congresso Nacional.

Esse ataque infralegal fica muito evidente no campo do meio ambiente, dos direitos indígenas, do combate ao trabalho escravo, da reforma agrária, da Polícia Federal e, especialmente, na área das armas de fogo, prejudicando não apenas a política de segurança pública, como fortalecendo milícias e grupos radicalizados que ameaçam a democracia.

Trata-se, assim, de um perigoso avanço em direção ao estado de exceção, como decorrência da associação entre confronto político sistemático e erosão jurídica como método de subversão da ordem constitucional, que precisa ser imediatamente contido, sob o risco de comprometer definitivamente o edifício democrático brasileiro. Esse é o desafio colocado às elites políticas, econômicas e sociais brasileiras neste momento.

Precisamos aprender com os erros nas políticas públicas, por Marcos Mendes.

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Não é natural que políticas fracassadas não sejam revogadas

Marcos Mendes, Pesquisador associado do Insper, é autor de ‘Por que É Difícil Fazer Reformas Econômicas no Brasil?’

Folha de São Paulo, 21/05/2022.

Em teoria, políticas públicas devem tentar solucionar problemas que as relações contratuais e comerciais privadas não conseguem resolver. Por exemplo, empresas e famílias não têm incentivos para controlar toda a poluição que geram, pois isso lhes impõe custo. Daí a necessidade de políticas públicas ambientais.

Da mesma forma, não há meios privados eficientes de organizar a defesa nacional ou de vender um seguro contra risco de pandemia. Há, também, limitações aos esforços privados para reduzir pobreza e desigualdade.

Políticas públicas são desenhadas para preencher essas lacunas e melhorar o bem-estar de toda população.

Na prática, muitas políticas fracassam. É natural que isso ocorra. Afinal, todo empreendimento, público ou privado, envolve risco. Políticas inovadoras podem não sair como o planejado.

O que não é natural é que políticas fracassadas não sejam revogadas. Que não se aprenda com os erros e que políticas que deram errado no passado voltem a ser implementadas, fracassando novamente. Ou que, sabendo-se dos riscos de fracasso, sejam lançados programas a toque de caixa, sem avaliação prévia.

Infelizmente, muitas políticas públicas criadas no Brasil nas últimas décadas têm essas características nocivas. Para fazer um registro histórico de algum desses erros, organizei o livro “Para não esquecer: políticas públicas que empobrecem o Brasil”.

São tratados temas como o incentivo dado pelo Governo Federal para que estados e municípios se endividassem em excesso, o alto custo e baixa eficácia do programa Microempreendedor Individual (MEI), os privilégios previdenciários dos militares, as distorções do crédito subsidiado a grandes empresas, o nó criado pela intervenção no setor elétrico, a baixa eficácia da política educacional, a sobrevivência de empresas estatais que nada acrescentam, a proteção comercial excessiva.

São várias as causas de políticas públicas equivocadas, persistentes e empobrecedoras. O viés de curto prazo dos políticos, que querem deixar uma marca política em quatro anos de mandato, gera programas desenhados às pressas e despreocupação com os custos de longo prazo.

Muitas vezes as políticas são respostas a crises. Há demandas por soluções rápidas e simples para problemas complexos. Soluções emergenciais costumam ser caras e inconsistentes, agravando o problema no longo prazo. Por isso, devem ser temporárias. Mas muitas vezes se perpetuam. Desonerações tributárias criadas na crise de 2009, por exemplo, não foram revogadas até hoje.

O Congresso está prestes a revogar um aumento de preço da energia elétrica previsto em contrato. fragilizando a segurança jurídica e desestimulando incentivos a futuros investimentos no setor: preços contidos a força no curto prazo levam a preços ainda maiores no futuro.

Um sistema político fragmentado, como o brasileiro, acaba abrindo muito espaço para a influência de grupos de pressão, sem que haja filtros para barrar oportunismo. Não é à toa que se esteja tentando, no Congresso, aprovar a construção de gasodutos inúteis e a criação de adicional de tempo de serviço para a elite da magistratura.

Há, ainda, o fenômeno de se tentar corrigir um problema criando uma segunda distorção. Por exemplo, regras tributárias complexas estimulam a criação de regimes especiais simplificados, que acabam tornando a legislação ainda mais complexa.

Remar contra essa corrente e estabelecer políticas públicas bem fundamentadas não é trivial.

Cada um dos 25 capítulos do livro mostra um caso específico, diagnosticando erros e os relacionando às causas acima descritas. Nossa esperança é de que as evidências mostradas no livro diminuam as chances de que erros sejam repetidos.

Somos 33 autores, entre acadêmicos, técnicos de governo e profissionais da área privada. Todos com muitos anos de experiência e pesquisa sobre os temas tratados. O Insper e a Fundação Brava viabilizaram a realização do projeto, oferecendo gratuitamente o livro, que estará disponível nos aplicativos usuais de leitura a partir do dia 30 de maio.

Empreendedorismo feminino é por sobrevivência, diz autora

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Empresária Ana Fontes lança guia para mulheres conhecerem os desafios da área

Ana Paula Branco – Folha de São Paulo – 21/05/2022

Há 12 anos à frente da Rede Mulher Empreendedora, espaço que reúne mais de 750 mil mulheres, a publicitária Ana Fontes, 55, lança “Negócios: um Assunto de Mulheres”, o seu primeiro livro.

A publicação foca as mulheres que pretendem empreender ou já dão os seus primeiros passos no mercado e conta com depoimentos de empresárias sobre os desafios de estabelecer o próprio negócio no Brasil.

Logo de cara, Ana deixa claro que o perfil da empreendedora é bem diferente do empreendedor. Eles, diz, têm uma boa ideia de negócio e vão atrás. Já elas buscam sobrevivência.

“Aquelas que vêm do universo corporativo para o ambiente empreendedor, não vêm por vontade própria, vêm porque ele ainda é, mesmo em 2022, um ambiente extremamente hostil para as mulheres”, afirma.

Como nasceu o livro “Negócios: um Assunto de Mulheres”? Todo o mundo me falava “você tem tanto conhecimento, tanta informação, você precisava colocar isso para que mais pessoas tivessem acesso. E aí a pandemia não tem nada de positivo, mas algumas coisas a gente acabou conseguindo fazer em decorrência da pandemia, e eu resolvi realmente
dar atenção para isso e fazer esse livro.

Na minha ideia eu queria que ele fosse um guia para que as mulheres entendessem, se identificassem e vissem exatamente quais são as questões, os desafios e as coisas bacanas de empreender. Que ele servisse também para pessoas que estudam o empreendedorismo feminismo e que fosse um livro que representasse as mulheres, porque ele não é sobre a minha história. O livro é sobre a história de milhões de mulheres do Brasil que estão empreendendo e tentando fazer do negócio delas, um negócio que dê certo e tenha sucesso.

Queria também que a organização de textos fosse feita por uma mulher e tivesse uma mulher representativa, que fosse inspiracional, que é a Luiza [Trajano, presidente do conselho de administração do Magazine Luiza]. E a editora também. Ficou bacana, porque é tudo feito por elas.

Sobre o empreendedorismo feminino, ele é sempre ligado ao maternal? É para a mulher que “precisou se virar” para cuidar do filho ou de um familiar doente ou isso é uma visão antiga? Os gatilhos para as mulheres empreenderem são diferentes daqueles dos homens. Normalmente, as mulheres empreendem por questão de sobrevivência e para continuarem profissionalmente ativas. Aquelas que vêm do universo corporativo para o ambiente empreendedor, não vêm por vontade própria, vêm porque o universo corporativo ainda é, mesmo em 2022, um ambiente extremamente hostil para as mulheres.

Eu digo que elas são empurradas para o empreendedorismo exatamente porque elas não têm acolhimento dentro ambiente corporativo, especialmente para aquelas mulheres que são mães de filhos pequenos. Para boa parte delas, a maternidade é o principal gatilho. Tanto que brincamos muito na Rede: nasce uma criança, ao mesmo tempo nasce uma mãe e, ao mesmo tempo, nasce uma empreendedora.

A maior fatia começa a empreender entre 30 e 40 anos. O momento em que a gente pensa em ter filho é exatamente o momento em que a gente acha que o ambiente, especialmente o corporativo, não nos acolhe.

Cerca de 40% empreendem porque sustentam a família com o dinheiro que vem do negócio. Outra parte é para complementar a renda para botar comida dentro de casa.

Independentemente de vir do corporativo ou estar em uma situação vulnerabilidade, o empreendedorismo para as mulheres hoje não é uma escolha.

A grande maioria não vem empreender porque teve uma ideia bacana de negócio e vai testar essa ideia para ver se dá certo e vai buscar uma oportunidade de negócio, que é o imaginário do mundo dos empreendedores. É obvio que o número de mulheres nesta condição vem crescendo um pouquinho mais, mas não é a realidade da maioria das mulheres.

E essa característica é geral ou brasileira? Isso é geral. Se comparar com países com o mesmo perfil do Brasil, como a Índia e a África do Sul, a situação é parecida.

Quando você vai para países que são mais desenvolvidos, que têm mais programas de apoio entre as mulheres, elas têm uma condição melhor, têm políticas públicas de apoio, essa é a diferença. Não significa que a situação é 100% maravilhosa.

Aqui no Brasil nós temos pouquíssimas, praticamente nenhuma política pública para ajudar essas mulheres. Como acesso a capital, recursos financeiros, linhas de crédito específicas. Não existem dentro das políticas públicas governamentais que incentivem negócios ou alguma inovação lideradas por mulheres.

Qual o impacto da economia do cuidado no empreendedorismo feminino? Você vê essa forma de trabalho como um problema? Estudos mundiais mostram que 80% da economia do cuidado do planeta é feito por mulheres. Ou seja, cuidar de filhos, casa, companheiros, idosos, doentes, questões relacionadas ao cuidado ainda são majoritariamente feitas por mulheres.

O problema dessa economia do cuidado não é ela existir, é ela ser feita exclusivamente por mulheres, ou seja, não tem uma divisão de tarefas entre homens e mulheres. É ela não ser reconhecida socialmente, porque as pessoas não valorizam esse trabalho. E a terceira questão é que não tem valor financeiro.

Veja que na Argentina, no ano passado, criaram uma lei que, na aposentadoria, eles valorizam o trabalho das mães. O cuidar dos filhos dá um adicional na aposentadoria.

E como empreender sendo mãe? É fundamental uma rede de apoio, por isso é importante que as mulheres estejam juntas, façam parte de grupos, façam conexão entre elas.

Hoje, há rede de negócios criados por mulheres para ajudar mulheres, de cuidado familiar.

A dedicação no negócio é diferente. As mulheres se dedicam duas horas a menos no negócio. Além da questão de sobrevivência, as mulheres buscam flexibilidade. Essa palavrinha para os homens não aparece.

As mulheres pensam em negócios muito mais relacionados ao momento em que estão vivendo combinado com as habilidades delas.

Os homens buscam muito mais as oportunidades que têm e não necessariamente relacionadas com aquilo que eles gostam, que eles sabem fazer.

Em relação a classes sociais, há muita diferença dentro do empreendedorismo feminino? Não. No geral, quase 70% das mulheres empreendem no que a gente chama área de conforto da mulher: são moda, beleza, alimentação fora de casa, estética, serviços. São os territórios onde, normalmente, as mulheres dominam.

O que é diferente para as que estão em situação melhor das que estão em vulnerabilidade social é que elas estudam um pouco o mercado, tentam entender em que caminho podem seguir, que tipo ela pode abrir.

Aquela que está em vulnerabilidade social vai abrir com o que tem na mão. Como é diferente a condição dela na sociedade como um todo. Quanto mais marcadores sociais, mais difícil, mais desafiadora é a situação dela.

O livro traz todo um capítulo para questão de empreender com o marido como sócio e como equilibrar essa relação.

Quais as dificuldades? A mulher trata o negócio como se fosse um filho e inclusive como família o ambiente de negócios.

O que não tem nenhum problema, desde que tenha clareza de quando precisa desapegar, de quando precisa ser insistente e não persistente.

Nós temos um jeito de fazer a gestão do negócio que é mais colaborativo, mais humano, e isso é uma coisa boa.

A brincadeira que faço com elas é: não contrate alguém que você vai ter medo de demitir. Esse é o ponto.

O negócio não pode ser uma extensão da família.

Como identificar qual será o diferencial do negócio? Elas normalmente já chegam com uma ideia de negócio, o importante é elas entenderem se tem alguém para comprar.

Empreender é muito solitário, para mulher é mais solitário ainda. Estar junto e se identificar com outras mulheres é absolutamente fundamental.

Não existe um território específico de empreender. Não precisa se fechar no território só de coisas relacionadas ao universo feminino. Podemos, sim, criar soluções dentro de qualquer território, desde que a gente tenha uma ideia boa, que a gente execute melhor ainda e que tenham clientes para comprar.

No geral, tanto para mulher quanto para homem, de três a cinco anos é a média para que os negócios levam para dar certo.