Como Olavo de Carvalho se tornou o pai espiritual da direita brasileira, por Camila Rocha.

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Denunciando ‘hegemonia esquerdista’, escritor abriu espaço para conservadores e apostou em revolução cultural de Bolsonaro

Camila Rocha, Doutora em ciência política pela USP, é autora de “Menos Marx, Mais Mises: o Liberalismo e a Nova Direita no Brasil” e coautora de “The Bolsonaro Paradox: the Public Sphere and Right Wing Counterpublicity in Contemporary Brazil”

Folha de São Paulo, 05/02/2022

[RESUMO] Nome de inegável importância no debate público brasileiro recente, Olavo de Carvalho fez uso de uma estratégia retórica de choque nas redes sociais, com argumentação sem fundamento e palavrões, para atrair segmentos da direita órfãos de líderes no país, forjando uma militância que ganhou expressão com a vitória de Bolsonaro.

A importância de Olavo de Carvalho como intelectual público na história brasileira recente é inegável. Sua morte rapidamente desencadeou a produção de uma grande quantidade de colunas e artigos dedicados a remontar sua trajetória e discutir seu legado político na imprensa nacional e internacional —além, claro, de uma torrente de manifestações nas redes sociais de luto e admiração, por um lado, e celebração irônica, por outro.

A maior parte do que foi escrito nos meios tradicionais se concentrou em enfatizar o caráter folclórico do personagem, ressaltando sua defesa de teorias conspiratórias e afirmações esdrúxulas. Carvalho inspirou até mesmo a criação de um museu virtual que organiza por categoria suas intervenções, ricamente ilustradas com postagens em redes sociais e vídeos de sua autoria.

Uma delas, em que diz que a Pepsi usa células de embriões humanos em suas bebidas, chegou a ser alvo de verificação da Agência Lupa.

Isso prova que sua estratégia retórica para atrair a atenção da mídia mainstream e divulgar as causas que defendia continua rendendo frutos mesmo após sua morte. O caso da Pepsi é exemplar nesse sentido. Afinal, após o choque inicial, descobriu-se que a PepsiCo tinha um convênio com uma empresa de biotecnologia que havia sido alvo de questionamento de militantes antiaborto por, supostamente, utilizar culturas de células de fetos abortados. Ponto para os conservadores.

O uso dessa estratégia estava intimamente conectado com o principal objetivo de Olavo de Carvalho no debate público: combater uma “hegemonia cultural esquerdista” que teria passado a vigorar no país desde a redemocratização. Em outras palavras, combater o pacto democrático de 1988.

Esse pacto remete a um arranjo político inédito forjado após a promulgação da nova Constituição. Sustentado ao mesmo tempo pela Constituição de 1988 e pelo presidencialismo de coalizão —modelo de governo composto por grandes coalizões parlamentares—, o arranjo se baseia no entendimento implícito de que a implementação dos direitos sociais anunciados na Carta deveria ocorrer de forma lenta, gradual e segura.

Foi assim que, a despeito da morosidade do Estado em incorporar as demandas democráticas da sociedade, o debate público no Brasil, ainda que continuasse a ser dominado por elites, passou a conviver com a participação de grupos historicamente oprimidos.

Apesar de contarem com poucos recursos de ordem material e organizacional em comparação com as elites, esses grupos conseguiram incidir na criação de uma nova institucionalidade. Isso ocorreu tanto durante a Constituinte quanto posteriormente, por meio de um processo de institucionalização no âmbito da própria sociedade civil e no Estado com a criação de políticas públicas específicas e novos órgãos sob os governos eleitos democraticamente que se sucederam até o impeachment de Dilma Rousseff.

Contudo, apesar dos avanços inegáveis produzidos pela maior porosidade do Estado —e da própria sociedade civil—, o processo de incorporação de novas vozes e avanços sociais foi acidentado e permeado por ambiguidades, contradições e recuos.

Durante o auge do lulismo, vozes críticas ao governo se tornaram escassas no debate público. À esquerda, vários movimentos sociais pareciam ter se institucionalizado e se esvaziado. À direita, havia um sentimento de orfandade de determinados segmentos, tendo em vista a atuação da oposição ao governo —e Olavo logo se tornou seu principal porta-voz.

Ainda na metade da década de 1990, muito antes da chegada do PT ao poder, ele defendia a necessidade de combater a “hegemonia cultural esquerdista”. Afinal, segundo seu entendimento, a esquerda já dominava jornais, revistas, ONGs, editoras de livros e cursos de ciências humanas nas principais universidades brasileiras, notadamente na USP.

Essa ideia aparecia de diversas formas em alguns de seus livros publicados por editoras de menor expressão, como “A Nova Era e a Revolução Cultural: Fritjof Capra e Antonio Gramsci” (1994), “O Jardim das Aflições” (1995) e dois volumes do livro “O Imbecil Coletivo” (1996 e 1998, respectivamente).

De acordo o próprio autor, a publicação dessas obras —em especial de “O Imbecil Coletivo”, em que tecia críticas contundentes aos intelectuais e acadêmicos de esquerda brasileiros— abriu um espaço para liberais e conservadores que havia sido negado desde os anos 1980.

Sua intenção, na época, era se lançar crítico cultural. Seus livros, no entanto, ainda circulavam em meios restritos.

Em razão disso, buscou apoio junto a pessoas que frequentavam os circuitos formados por organizações que atuavam em defesa do livre mercado —ele alegou, inclusive, que foi apresentado à obra do economista Ludwig von Mises por Donald Stewart Jr., empresário fundador do Instituto Liberal do Rio de Janeiro.

Porém, após ter frequentado um primeiro curso sobre pensamento social e político que fora organizado pelo instituto para o público geral, Carvalho não causou boa impressão devido à agressividade que dispensava aos seus oponentes ideológicos e não conseguiu o patrocínio desejado.

Tentou ainda obter financiamento junto à fabricante de cigarros Souza Cruz, à organização católica tradicionalista Opus Dei e à articuladora norte-americana Atlas Network, no que tampouco obteve sucesso. Resolveu, então, se autopromover.

Para tanto, passou a contar inicialmente com recursos próprios, obtidos por meio da venda de livros, de seu trabalho na imprensa e da oferta de cursos privados de filosofia.

Foi assim que Olavo de Carvalho —que, em 1998, se declarou a favor do livre mercado na economia, tradicionalista e conservador no que tange à defesa da religião, anarquista em relação à moral e à educação, nacionalista e contra o “governo mundial” no que diz respeito à política internacional e realista no campo da filosofia— passou a concentrar esforços em divulgar suas ideias na internet e, progressivamente, deixou de lado a ideia de se firmar como crítico cultural no circuito mainstream.

Questões políticas conjunturais e discussões de ordem moral e filosófica assumiram o primeiro plano em suas intervenções, ventiladas por meio de um blog próprio, criado em 1998, e de um site coletivo fundado em 2002, em que eram veiculados textos de vários autores e autoras sobre política, economia e filosofia.

Ao mesmo tempo que Carvalho se tornava mais conhecido entre os frequentadores dos fóruns digitais da época, também influenciou decisivamente a tradução e a circulação de autores pouco conhecidos no Brasil. A editora É Realizações publicou vários livros de autores que Carvalho utilizava como referência em suas obras, como Roger Scruton, Eric Voegelin, Theodore Dalrymple e Christopher Dawson, que hoje figuram em sua lista de mais vendidos.

Já a Vide Editorial, além de publicar obras de Scruton e Voegelin, também começou a lançar títulos relacionados mais explicitamente à crítica do marxismo e do comunismo, como “A Mente Esquerdista – as Causas Psicológicas da Loucura Política”, “O Verdadeiro Che Guevara”, “O Livro Negro do Comunismo” e “Marxismo Desmascarado”, bem como promover livros de autores nacionais pouco conhecidos na época, fomentando, assim, um pequeno circuito editorial alternativo.

Em meio ao auge de popularidade do governo Lula, os espaços criticados por Olavo por sua falta de pluralidade ideológica se ampliaram, passando a abranger o Estado e até a Rede Globo.

Com o tempo, independentemente da qualidade e do rigor de sua prática filosófica, alvo de críticas contundentes mesmo à direita do espectro político, sua audiência também se ampliou. Psicanalistas, médicos, empresários, jornalistas, professores universitários, alunos de graduação e de pós-graduação de universidades públicas e privadas formavam parte significativa de seus alunos, leitores e ouvintes.

Sem dúvida, essas pessoas não padeciam de escassa formação acadêmica e recursos financeiros restritos. Em grande medida, se sentiam pouco representadas ou mesmo desprezadas na esfera pública tradicional e viam em Olavo alguém que dava vazão a seus anseios. Na visão de um de seus alunos, Olavo incentivou as pessoas a serem mais intelectualizadas, e, ao mesmo tempo, a zombar de um verniz de intelectualidade que existe no Brasil.

Contudo, se o “esquerdismo” atribuído às produções da maior emissora de televisão do país é algo passível de questionamento, havia uma arena que, sem sombra de dúvida, era hegemonizada pela esquerda à época: o movimento estudantil.

Na metade dos anos 2000, parte significativa dos frequentadores dos fóruns digitais da nova direita emergente, sobretudo no finado Orkut, era composta de estudantes universitários que não se identificavam com a esquerda. Em vista de suas experiências universitárias, que, na visão deles, eram permeadas por exclusão e silenciamento, passaram a compartilhar as ideias divulgadas por Carvalho.

Como bem lembrou Natália Leon Nunes, estudante de filosofia da USP à época, um grupo de alunos recém-ingressos se dirigiu ao centro acadêmico em 2006 para propor um debate entre Olavo de Carvalho e Marilena Chauí. O evento não ocorreu, porque, segundo ela, “nós da filosofia tratávamos com ironia e desprezo o doido ressentido com a USP que falava um monte de besteira”.

Com o tempo, a ideia de que existia uma “hegemonia esquerdista” ganhou cada vez mais adeptos, sobretudo entre universitários, e a própria forma de combatê-la, a política do choque, passou a se consolidar entre a nova direita emergente.

Isso se traduzia em promover reações de choque intencionalmente para chamar a atenção para pautas e demandas pouco ou nada tematizadas na esfera pública tradicional. Nesse sentido, o uso abundante de palavrões e xingamentos por Olavo era consciente.

Para além de chamar a atenção para temas ligados a discursos conservadores, a política do choque também ajudava a unificar vozes descontentes e forjar um novo espírito militante. Assim, muito antes de podcasts e lives se popularizarem, suas ideias passaram a atingir um espectro muito mais amplo de pessoas por meio de transmissões que realizava no Blog Talk Radio e no YouTube.

A despeito da crescente popularidade de Olavo de Carvalho nesses espaços e nos meios digitais, seus alunos não tiveram sucesso em se organizar formalmente, e a divulgação de suas ideias era intermitente.

Em 2008, foi anunciada na comunidade Olavo de Carvalho, no Orkut, a proposta de elaborar um fórum conservador digital e, em 2010, um Instituto Olavo de Carvalho chegou a ser criado. Durou pouco, contudo, e teve suas atividades encerradas dois anos e sete meses depois. No mesmo ano, a transmissão do podcast de Olavo no site Blog
Talk Radio também chegou ao fim.

Percebendo uma demanda reprimida por livros de direita, Carlos Andreazza, então editor da Record, resolveu lançar em 2013 “Esquerda Caviar: A Hipocrisia dos Artistas e Intelectuais Progressistas no Brasil e no Mundo”, de Rodrigo Constantino, e “O Mínimo que Você Precisa Saber para Não Ser um Idiota”, de Olavo de Carvalho, que logo entraram para a lista dos mais vendidos daquele ano.

Em 2015, em meio ao auge de mobilização popular durante as manifestações pelo impeachment de Dilma Rousseff, o livro de Olavo se tornou um best-seller com mais de 120 mil cópias vendidas.

Desde então, Olavo intensificou as conversas que já vinha mantendo com a família Bolsonaro e, ao sinalizar apoio à candidatura do capitão reformado à Presidência, logo se tornou um de seus principais conselheiros.

Sua intenção era que, uma vez no governo, Bolsonaro apoiasse uma revolução cultural —um novo pacto social e político que suplantasse o de 1988 e endireitasse a nação, na direção de um destino cristão-ocidental próprio. Isso alçou Olavo ao posto de pai espiritual dos direitistas brasileiros, como mostra o fato de os próprios integrantes do infame gabinete do ódio, assim como tantos outros jovens, terem se convertido ao catolicismo por sua influência.

Ao final, Olavo não só foi capaz de chamar a atenção que queria como, finalmente, conseguiu participar de debates que antes lhe eram vetados. Em abril de 2017, o escritor foi convidado a participar, ao lado do vereador petista Eduardo Suplicy, da Brazil Conference, evento organizado pela Universidade Harvard e pelo MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts).

Depois de elogiar a iniciativa das universidades em unir polos que nem sempre dialogam no país, ele disse: “A ideia é muito boa. É necessário, urgente. É apenas uma vergonha para o Brasil que tenha sido o MIT que propôs isso e não uma universidade brasileira. Isso mesmo é um sintoma do estado de coisas”.

Olavo de Carvalho afirmou ainda que aprovava a ideia de renda básica universal, proposta por Suplicy: “Claro, todo o mundo quando nasce tem que ter alguma coisa. Tem que ter, pelo menos, alguém para segurar você, para você não cair no balde. Se você não tiver nem isso, está ferrado”. Nisso, Olavo tinha razão.

Os indiferentes e os invisíveis, por Jânio de Freitas

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Estamos em um país brutalmente violento e estupidamente indiferente à sua realidade

Jânio de Freitas

Folha de São Paulo, 05/02/2022

Se o Brasil não ultrapassou as condições em que a violência ainda pode retroceder ao “normal”, está entrando nessa aberração sem volta.

Não se vislumbra preocupação coletiva com o problema, nem mesmo para conter o empenho criminoso do governo por mais e maior violência. Como se dá com a própria violência, é a continuidade lógica de um percurso imposto. Explicado pela invocação de suas causas gritantes, mas excluído o fator determinante: o passado indiferente e a indiferença do nosso tempo à liberação da violência. O que situa as responsabilidades silenciadas.

As causas socioeconômicas da violência, legado da escravidão, acumularam-se desde a oportunidade perdida de uma abolição com perspectiva social e inteligente. A indiferença dos possuidores pelo país abaixo dos seus interesses caminhou, pelo tempo afora, com a tranquilidade assegurada por polícias e forças militares em eventuais cobranças de alguma justiça.

As favelas deram, a um só tempo, tanto a estética da segregação urbana —a verdadeira arquitetura moderna brasileira— como um atestado sólido da indiferença. O trabalho depreciado, a escassa oferta de emprego e a concessão precária de escolaridade disponibilizaram população crescente para o desemprego adulto e a marginalidade jovem.

A pobreza e a miséria são violências passíveis de incutir a sobrevivência alheia a leis e princípios. Mas o desenvolvimento de tais práticas nunca levou a um esforço verdadeiro para corrigir, em alguma medida, as suas causas também crescentes.

Os possuidores e a política que a eles serve continuaram indiferentes. E sempre piorados: a cultura ocidental desenvolveu desde a Segunda Guerra, sobretudo com cinema e TV, um sistema de alta eficácia na indução de violência à vida cotidiana das próprias classes dominantes. Nesse nível, as barreiras oferecidas pela educação pessoal, pelo estudo, pelo convívio reduziram-se com rapidez drástica. Estão quase desaparecidas. Deram lugar a mais violência e a mais indiferença à realidade.

Não precisamos de estatísticas para saber: estamos em um país brutalmente violento e estupidamente indiferente à sua realidade. Nas classes que definem a estrutura social e influem nos rumos nacionais, claro. Os rumos da violência inspirada pela pobreza exasperante, e armada pela indiferença, não sabemos.

Casos de repercussão como o linchamento do congolês Moise Mugenyi Kabagambe não negam a indiferença, antes a confirmam. Consumados ou quase, assassinatos assim ocorrem no país todo, motivando mínimas notícias ou silêncio —não só por provável insuficiência jornalística, mas pela indiferença generalizada à indiferença mesma.

O clamor eclodiu dias depois do linchamento e da indiferença policial e dos noticiários. Causou-o o lamento comovente da mãe de Moise, Lotsove Lolo Lavy Ivone.

A política nunca se voltou de fato para as deformações que desenvolvem a violência. Nunca houve um esforço verdadeiro da sociedade e de seus instrumentos para suprir a omissão da política e dos recursos oficiais contra a violência e suas fontes reais. O que é uma violência monstruosa. Diferente na forma, e, apesar disso, comparável aos extermínios históricos. Centenas de milhões ou já bilhões vitimados por efeito da indiferença histórica no Brasil.

OUTROS MILHÕES

É um livro pequeno: “Invisíveis”. Uma palavra na capa, etnografia, pode afastar leitores. Seria pena. O livro da jornalista esplêndida, professora universitária e pesquisadora Fernanda da Escossia é “uma versão modificada” —digamos, simplificada ou traduzida— da tese de doutorado em que nos traz um universo inimaginado: o dos milhões de brasileiros que não têm direitos por não terem certidão de nascimento e, portanto, nenhum outro documento.

Quem não tem documento não existe legalmente: “Eu me sinto um nada”, “Sou um zero”, “Eu me sinto um cachorro”, ouviu Fernanda.

São histórias perturbadoras, lindas ou indignantes, que Fernanda colheu de velhos, mães, filhos ao persistirem na aventura dramática de provar ao Estado que nasceram. Logo, existem. E, com 30 ou com 75 anos, ou sem sequer saber o dia do nascimento, querem o direito de ser vistos no mundo dos vivos —até para o direito de ter uma certidão de óbito, e não a vala comum.

Às vezes comovente, aliviante em outras, é mais um Brasil que “Invisíveis” revela.

Investimentos produtivos

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Os indicadores econômicos brasileiros geram preocupações constantes, muitas instituições financeiras nacionais e internacionais projetam um reduzido crescimento da economia, a recuperação tende a ser demorada, a inflação se mostra resistente, os problemas das cadeias de produção ainda persistem e devem se recuperar apenas no próximo ano, gerando pressões nos preços e podem gerar constrangimentos monetários, elevando as taxas de juros e limitando a recuperação da economia. Diante disso, os desafios econômicos são imensos, a superação deste cenário pode abrir novas oportunidades de recuperação da economia e podem criar sólidos espaços para a construção de um novo modelo de desenvolvimento econômico.

Vivemos um momento de grandes transformações, as incertezas crescem em decorrência dos desequilíbrios gerados pela pandemia. Os impactos das novas tecnologias e da globalização econômica exigem dos agentes econômicos, sociais e políticos a renovação dos consensos anteriores, sob pena de ficarmos para trás neste ambiente altamente competitivo, marcados pelas novas tecnologias e centrados na concorrência entre empresas, trabalhadores e nações.

Neste momento, percebemos que os ventos da Guerra Fria se mostram mais presentes, onde as nações se engalfinham novamente, gerando hostilidades, confrontos econômicos, políticas protecionistas, buscando a hegemonia na estrutura econômica e na política internacional, criando rancores e ressentimentos que podem culminar em conflitos militares, com altos custos materiais, humanitários e financeiros.

Além dos medos gerados pelos possíveis conflitos militares, a economia se recupera de forma desigual, os investimentos produtivos prescindem de confiança, estabilidade política, regras claras e credibilidade. Os riscos inflacionários tendem a elevar as taxas de juros nos Estados Unidos, com impactos sobre a recuperação global e afetando fortemente os países em desenvolvimento, exigindo regras claras e instituições confiáveis e dotadas de credibilidade.

Internamente, o Brasil vive de espasmos de crescimento econômico que aumentam a concentração da renda, degradando as relações de trabalho, incrementando a pobreza e contribuindo para o crescimento da miséria, que se materializa nas condições de vida da comunidade, onde mais de 50% passa por dificuldade de alimentação. Neste momento, faz-se necessário repensar o modelo econômico adotado desde os anos 90, que priorizaram os setores financeiros em detrimento dos investimentos produtivos, gerando uma sociedade mais desigual e uma elite econômica desconectada da realidade da maioria da população.

A pandemia está levando as nações desenvolvidas a repensarem os modelos de desenvolvimento, nada de Estado mínimo que dominou o pensamento econômico até a crise econômica dos Estados Unidos de 2008. Atualmente, ressurge o Estado planejador, estimulando investimentos produtivos e estratégicos, fortalecendo políticas industriais e de inovação, estimulando novas tecnologias e aumentando os investimentos em qualificação do capital humano, se antecipando as exigências das necessidades dos próximos movimentos produtivos.

No caso brasileiro o investimento produtivo é o caminho para a construção de um novo modelo econômico, sem investimentos públicos a recuperação da economia tende a demorar muitos anos, cabe ao Estado monitorar e estimular ativamente a reindustrialização da estrutura produtiva, investindo fortemente em setores de infraestrutura, atraindo com regras claras os investimentos privados, estimulando os setores socialmente responsáveis, incorporando novos modelos sustentáveis, fortalecendo energia limpa e menos poluentes e contribuindo para preservação do meio ambiente.

Como foi dito pelo sociólogo Fernando Henrique Cardoso, o desenvolvimento é o mais político dos temas econômicos, exigindo um amplo consenso entre todos os setores da sociedade, evitando confrontos desnecessários e picuinhas institucionais, fortalecendo as reflexões constantes sobre os desafios da sociedade e fomentando discussões democráticas e desvencilhando pensamentos golpistas e inconsequentes. Os desafios brasileiros são enormes, canalizemos nossas energias para discussões serenas e construtivas.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 02/02/2022.

O risco das commodities, por Clésio Andrade.

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China cria condições para plantar, minerar, produzir e transportar o que quiser

Clésio Andrade, Empresário e ex-presidente da CNT (Confederação Nacional do Transporte), foi vice-governador de Minas Gerais (2003-06) e ex-senador pelo MDB (2011-14)

Folha de São Paulo, 01/02/2022

Cada movimento que a China faz gera uma onda que atinge a economia global. Para o Brasil, qualquer mudança nas importações chinesas pode se tornar um tsunami.

O gigante asiático compra quase todo o minério de ferro que produzimos e é o maior consumidor de commodities agrícolas brasileiras. Se a demanda chinesa cresce, o Brasil vende mais e a nossa economia agradece; mas, quando eles compram menos, logo sentimos os reflexos negativos.

Um exemplo é a queda de mais de 40% nos preços do minério de ferro em 2021. A justificativa imediata é a desaceleração da economia chinesa que, afetada por uma grave crise energética, reduziu a produção de aço. Mas o pano de fundo é complexo e mais perigoso para o Brasil. A China, que já usa sua força para controlar os preços do minério, agora está trabalhando para se tornar menos depende do mercado externo da matéria-prima do aço.

Hoje, os chineses já respondem por mais de 50% do minério de ferro produzido no mundo, mas o consumo deles é tão alto que compram quase 70% da produção mundial. Brasil e Austrália lideram as vendas, mas isso pode mudar. Um sinal é o investimento que a China vem fazendo em suas minas no exterior, especialmente na Guiné, no Peru e na própria Austrália.

Na agricultura, a onda chinesa também inspira atenção. Nos últimos 12 meses, os custos de produção de commodities, como milho, soja e café, entre outras, subiram 52,01%, segundo a FAO, organismo da ONU que monitora a oferta e distribuição de alimentos no mundo. Um dos grandes motivos deste aumento foi a decisão da China de reduzir a oferta de fertilizantes no mercado global, o que elevou os preços desses insumos em mais de 300% nos últimos quatro anos.

O Brasil não produz fertilizantes suficientes para atender a nossa produção, mas este não é o nosso único problema no mercado global de commodities agrícolas.

A meta do governo chinês é tornar o país autossuficiente em produtos agrícolas básicos até 2025 para garantir a segurança alimentar de sua população de 1,4 bilhão de pessoas. Soja, arroz, trigo, carne, frango e ovos são alguns dos produtos que os chineses querem produzir no mesmo volume da demanda interna.

Alguns setores já sentem os efeitos dessa decisão. Nos últimos meses, as exportações de carne suína brasileira para a China caíram cerca de 50%, e os preços baixaram em torno de 17%.

Outra estratégia chinesa é investir em infraestrutura na África e países mais próximos, onde pode produzir ou controlar a produção de alimentos. Não é à toa que eles construíram ou modernizaram 10 mil quilômetros de ferrovias e quase 100 mil quilômetros de rodovias em países africanos nos últimos anos.

A China está criando condições para plantar, minerar e produzir o que quiser e transportar tudo em ferrovias moderníssimas a uma velocidade média de 300 km/h.

Os planos da China desafiam as bases da globalização. De um lado, o país desglobaliza, ao investir em produção própria de commodities agrícolas e minerais; de outro, busca hegemonia ao realizar investimentos maciços em infraestrutura em outros países e continentes com o objetivo de conectar Ásia, Oriente Médio, África e Europa, tendo como principal objetivo fortalecer suas exportações para o mundo.

Esse cenário desafiador está afetando o agronegócio e a economia brasileira de forma inédita.

Precisamos de alternativas para contornar a escassez de fertilizantes e os aumentos de custos —não apenas desses produtos, mas de todos os insumos agrícolas. Por outro lado, precisamos de planejamento e estratégia para enfrentarmos um mercado em constante transformação.

Enfim, como seremos o celeiro do mundo se não investimos em nossa matéria-prima básica, que são os fertilizantes? O Brasil poderia ser autossuficiente, mas não se move nesse sentido. Também precisamos buscar novos mercados para nossas commodities agrícolas e minerais.

O governo brasileiro precisa pensar no futuro. Além de garantir a segurança alimentar de nossa população, não pode negligenciar os problemas que afetam o agronegócio, a grande força que sustenta a economia nacional, produz riquezas, gera empregos e garante o sustento de milhões de famílias.

Para qual escola os estudantes retornarão hoje?, por Alexandre Schneider.

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Milhões de estudantes de ensino básico voltam às aulas hoje no Brasil sob o signo da ansiedade e da esperança de um ano normal pós pandêmico

Alexandre Schneider, Pesquisador do Transformative Learning Technologies Lab da Universidade Columbia em Nova York, pesquisador do Centro de Economia e Política do Setor Público da FGV/SP e ex-secretário municipal de Educação de São Paulo

Folha de São Paulo – 30/01/2022

Desde que a pandemia eclodiu, a discussão pública no Brasil e no exterior gira em torno da comparação entre a aprendizagem dos estudantes privados de frequentar a escola em decorrência da pandemia e daqueles que frequentaram a escola em anos anteriores, medida por testes padronizados. Algo que —erroneamente, a meu ver— denominou-se “perda de aprendizagem”, uma vez que ninguém perde o que não “recebeu”.

Como tem sido usual nos últimos anos, além do diagnóstico comum para realidades educacionais distintas, a receita para enfrentar e vencer os desafios tem sido a mesma: a realização periódica de avaliações, a “desidratação” do currículo com a escolha do mínimo a ser ensinado, e a ampliação da carga horária escolar para que os estudantes sejam submetidos a um volume maior de conteúdos em uma espécie de regime intensivo de ensino e aprendizagem.

Estas são medidas alinhadas ao que o foi a escola antes da pandemia, mas talvez não sejam tão próximas do que será a escola pós-covid e certamente estão distantes do que deve ser: uma instituição que invista na formação de indivíduos capazes de guiar sua aprendizagem de forma mais autônoma, engaje os estudantes e garanta o direito de aprender a todos. Sugiro aqui três medidas simples, que podem eventualmente ser adotadas em conjunto com as anteriormente citadas.

Ouvir os estudantes. Cada um de nós viveu a “sua” pandemia. Que tal usar os primeiros dias para discutir com os estudantes como cada um deles viveu esse período tão desafiador? Uma conversa guiada, com perguntas previamente estruturadas em pequenos grupos, sobre a experiência de aprender em casa, qual o impacto da pandemia em suas vidas, que escola gostariam de encontrar neste ano, são algumas das possibilidades.

Talvez os educadores se surpreendam ao ouvir dos estudantes menos queixas em relação à “perda de aprendizagem” do que ao convívio com os colegas, dentro e fora da escola, ou de atividades que exigiam mais interação do que as aulas expositivas. Uma escuta ativa dos estudantes poderá proporcionar pistas relevantes para melhor organizar a escola para a aprendizagem.

Ouvir os educadores. Desde 2020, os educadores lançaram mão de uma série de estratégias que os aproximaram ainda mais da realidade vivida por seus estudantes e suas famílias, bem como de suas necessidades de formação para lidar com a realidade imposta pela pandemia. A escuta ativa dos educadores pode ser muito eficaz para apoiar a estruturação de redes de proteção social necessárias a combater os fatores extraescolares que impactam na aprendizagem, a organização da escola para que possa atender às necessidades de aprendizagem individuais e, sobretudo, desenhar programas alinhados às demandas de formação de professores decorrentes dos novos desafios impostos.

A terceira medida é a de investir intensivamente na formação dos professores para que sejam capazes de integrar os desafios da aprendizagem com os desafios da formação de indivíduos críticos e adaptáveis a um mundo em transformação.

Tornar a escola mais humana, fortalecer os laços entre educadores, estudantes e suas famílias, integrar a escola aos equipamentos públicos e privados no território não são medidas laterais à missão da escola pública, mas fortalecem as comunidades escolares e as preparam para garantir a melhoria contínua da aprendizagem de seus estudantes.

Crises escancaram desigualdade planejada de São Paulo, afirma Raquel Rolnik

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Para urbanista, sujeitos periféricos podem confrontar ordem excludente da cidade, que privilegia classe média

Eduardo Sombini, Geógrafo e mestre pela Unicamp, é repórter da Ilustríssima

Folha de São Paulo, 29/01/2022

[RESUMO] Em entrevista à Folha, professora da USP argumenta que São Paulo vem sendo planejada por poucos e para poucos, o que produziu um padrão desigual de urbanização. A cidade vive um momento especial em sua história, com a coexistência de crises e a emergência política de sujeitos periféricos que podem protagonizar um novo ciclo de lutas urbano, diz.

São Paulo completou 468 anos na última terça-feira (25) atravessando a provável mais grave crise de moradia da sua história, avalia Raquel Rolnik, 65.

Ocupações nas periferias da região metropolitana e nos bairros centrais da capital se avolumam, e a população em situação de rua aumenta expressivamente, mas o agravamento das condições habitacionais dos mais pobres é só uma fração do “combo de crises” —econômica, de mobilidade urbana, de saúde pública— que a cidade enfrenta, na interpretação da urbanista.

Apesar do cenário que beira a distopia, Rolnik não se mostra desanimada. “Quem vive as crises quer morrer, mas esses momentos são oportunidades de transformação”, diz em entrevista por videochamada à Folha.

Um dos mais importantes nomes do campo progressista dos estudos urbanos no Brasil, Rolnik apoiou a candidatura de Guilherme Boulos (PSOL) na última eleição municipal em São Paulo e aposta no potencial de “sujeitos periféricos” protagonizarem um novo ciclo de lutas urbano, impulsionando agendas ambientais, antirracistas e feministas, por exemplo, e disputando os rumos de um novo modelo de política urbana.

Em “São Paulo: o Planejamento da Desigualdade” —edição atualizada do livro “São Paulo”, da antiga coleção Folha Explica, editada agora pela Fósforo—, a professora da USP revisita a história do planejamento urbano da cidade, destacando as opções políticas tomadas em momentos de crise e responsáveis pela consolidação de um padrão “classemédiocêntrico”, que resguarda os privilégios dos grupos de renda mais elevada e marginaliza a maior parte da população.

Em sua avaliação, as medidas de isolamento social adotadas durante a pandemia são uma expressão nítida desse modelo excludente, já que ficar em casa não foi uma opção para a grande maioria dos paulistanos.
“São Paulo”, da coleção Folha Explica, foi publicado em 2001. Por que atualizar e relançar o livro agora? Esse livro teve algumas edições ao longo da sua história. Na penúltima (“Territórios em Conflito – São Paulo: Espaço, História e Política”, Três Estrelas), o texto saiu com um compilado de colunas publicadas na Folha e alguns artigos acadêmicos.

Quando a Fósforo assumiu parte do catálogo da Três Estrelas, propus retomar o formato do “Folha Explica São Paulo”, aquele livrinho acessível, para quem não é especialista, e achei que era o momento de atualizar o texto —não só trazê-lo para os dias de hoje, mas fazer uma atualização um pouco mais radical de como falar da São Paulo do passado.

Decidi fazer isso pela mesma razão pela qual convidamos o Emicida para escrever o prefácio: este momento pelo qual a cidade está passando é muito especial na história, não apenas porque estamos vivendo um verdadeiro combo de crises, mas também em razão da emergência de novas vozes, que são justamente os sujeitos periféricos, conceito formulado por Tiaraju D’Andrea.

Essa narrativa sobre a cidade vem do movimento cultural das periferias, da luta antirracista, e está colocando sobre a mesa pautas que nunca tiveram muito destaque, mesmo entre os que denunciam a desigualdade.

Conto no livro a história das crises e das opções que foram tomadas naqueles momentos, com a tese de que estamos vivendo mais uma dessas. Que tal, então, começar a pensar em um outro modelo de cidade agora, apostando que, diante da crise, outro modelo de cidade é possível? Quem vive as crises quer morrer, acha que tudo está horrível —e está mesmo—, mas esses momentos são oportunidades de transformação.

No livro, a sra. indica que há uma linha de continuidade entre as várias crises do passado: a desigualdade continuou a ser planejada e a se reproduzir. O novo título do livro, aliás, faz menção a isso. Como a desigualdade vem sendo planejada em São Paulo? Falo de quando se sai da ordem escravocrata para o trabalho livre e se institui uma geografia da cidade em que, sobre as colinas, morava a classe dominante, e, nas várzeas, se instala a classe operária.

A classe operária das várzeas se instala em pensões, cortiços, casas minúsculas de alta densidade entremeadas com a paisagem das fábricas, enquanto há o paradigma dos casarões ajardinados, cujo modelo primeiro são os Campos Elíseos, depois há a migração para Higienópolis, avenida Paulista, Jardins e, em seguida, na direção da marginal Pinheiros e da zona sul.

Essa migração constitui um território burguês, que concentra renda e poder e vai incorporando outros modos de viver da classe dominante —casarões, depois edifícios e, nos anos 1990, as torres corporativas.

Há uma mudança de morfologia e, ao mesmo tempo, uma grande continuidade de um padrão segregacionista, porque o modelo periférico do território popular também se constituiu, com a autoconstrução da casa própria em loteamentos, muitas vezes irregulares e clandestinos, em periferias distantes, conectadas pelo ônibus.

O título, “Planejamento da Desigualdade”, é uma brincadeira para quem diz: “São Paulo é uma porcaria porque não tem planejamento, por isso é esse caos, é essa bagunça”. Não tem nada de caos e de bagunça. Tem planos aprovados e uma legislação urbanística, mas excludente “classemédiocêntrica”, que pensa a cidade a partir das formas de morar e de existir de um pedaço dela e simplesmente ignora o resto —e destina para o resto da cidade, que, aliás, é a maioria dela, as piores localizações.

A legislação urbanística construiu esse padrão absolutamente segregado, cujo objetivo básico é manter a concentração de oportunidades econômicas, sociais e políticas na mão de quem já tem e blindar a entrada de “newcomers”, mas, ao mesmo tempo, garantir que o mundo do trabalho vai continuar lá arrumando, cozinhando, limpando, polindo.

Como a sra. avalia a reprodução desse padrão durante a pandemia? O que aconteceu na pandemia é a expressão mais nítida desse modelo “classemédiocêntrico”, porque, diante do perigo de contágio e de morte, a política pública foi o isolamento social. “Fique em casa, vá para o home office, fique na internet fazendo tudo online e não se desloque” —ou seja, se referindo a uma realidade que deve corresponder a menos de 30% dos moradores da cidade.

Para que esses moradores pudessem ficar isolados em casa, existia um exército de gente trabalhando, levando comida, transportando. Para essas pessoas, não teve política.

A ideia do planejamento da desigualdade vem do fato de a cidade ser pensada e planejada por poucos e para poucos. O mal-estar que a maioria das pessoas da cidade tem é decorrente dessa opção.

Na pandemia, se a gente pensasse nas maiorias, nos trabalhadores de serviços essenciais que precisavam continuar se deslocando, a política deveria ser, por exemplo, tratar o transporte coletivo de uma forma totalmente diferente. No mínimo, distribuir “PFF5” para todo o mundo e, em vezes de cortar, colocar mais ônibus em circulação para ir muito menos gente dentro de cada ônibus e ter distanciamento entre as pessoas.

No começo da pandemia, houve um entusiasmo, principalmente nos setores progressistas, sobre a possibilidade de medidas redistributivas ganharem impulso. Depois de dois anos de Covid-19, porém, parece que predomina a percepção de aumento generalizado da pobreza. A São Paulo do pós-pandemia deve ser mais partida e fragmentada? O pós-pandemia está em disputa. No campo da moradia, que eu acompanho há muitos anos, acho que esta é a maior crise da história da cidade. Estou quase afirmando isso com certeza, embora a crise da moradia do final dos anos 1920 tenha sido bem difícil e acabou gerando o padrão de autoconstrução periférica, com todas as suas mazelas.

Estamos vivendo uma situação absolutamente paradoxal no campo da moradia. A renda caiu, o desemprego e a miséria aumentaram, ao mesmo tempo que a cidade está vivendo um dos maiores booms imobiliários da sua história.

Exatamente no momento em que há menos gente com capacidade de comprar um espaço, o espaço está ficando mais caro que nunca? Isso porque a dinâmica de produção e comercialização do espaço físico da cidade ficou totalmente financeirizada nas últimas décadas. Ou seja, esse crescimento imobiliário não tem nada ver com a renda da população, mas com a quantidade de capital excedente circulando no mercado financeiro que busca o tijolo, o imobiliário, como estratégia de valorização futura.

Esse capital não é só local e nacional, mas global e não tem nenhum tipo de barreira: entra, passeia pelo planeta à vontade e se instala no imobiliário com uma perspectiva de remuneração de longo prazo, porque existe uma enorme concentração de renda a nível global, como mostram os trabalhos de Thomas Piketty e Nouriel Roubini.

O imobiliário é um ativo financeiro. Por isso, estamos vivendo uma crise enorme, porque os pobres dos humanos têm que competir por uma localização com um capital financeiro gigantesco que não tem nenhum compromisso, nem territorial, nem afetivo, nem político, com a cidade.

O Emicida conta no prefácio, a partir da história pessoal dele, o que as pessoas fazem diante da crise: se viram. Tornam-se especialistas em “sevirologia”, expressão do José Soró, liderança de um movimento cultural de Perus.

Estamos vivendo um boom de novas ocupações nas extremas periferias, um boom de novas ocupações em prédios em áreas centrais e, ao mesmo tempo, um boom de pessoas na rua, com uma característica completamente diferente.

Historicamente, o morador de rua era um homem de meia-idade, com algum tipo de dependência química, problema mental etc. Imagina, a gente está vendo na rua famílias inteiras, como há muito tempo não se via.

O cenário de novas ocupações parece o dos anos 1990, o de população de rua eu nunca tinha visto algo como o de hoje. Diante disso, qual é a política habitacional que temos? Nenhuma, nem municipal, nem estadual, nem federal.

Algumas PPPs (parcerias públicas-privadas) aqui e ali. PPP não é política habitacional, é política de mercado financeiro. Ela não está voltada para atender uma demanda de quem mais necessita de moradia, mas para viabilizar um negócio com uma conta que fecha —e, para isso, tem que ter gente para pagar.

As PPPs não atendem quem está hoje na rua, indo abrir novas frentes de ocupação muito precária nas extremas periferias. É outro grupo, com renda estável e um pouco mais alta, com capacidade de pagamento. Isso é superlegal, mas olha em volta, olha quem está precisando de política pública de moradia. Usar a energia e os recursos do Estado para viabilizar moradia para quem não está na rua da amargura neste contexto é um escândalo. Um escândalo!

Vamos olhar o outro lado dessa história. Durante a pandemia, a auto-organização nos bairros populares foi muito intensa e segurou a onda de muita gente em termos de fome, de condições de morar, de redes de solidariedade. Nas favelas e nas ocupações mais estruturadas, morreu muito menos gente porque existia uma rede mínima de proteção, dentro da precariedade. Isso demonstra que é possível dar respostas por meio de uma política de mobilização completamente descentralizada.

Diria que um movimento não tão intenso, mas semelhante a esse foi a crise dos anos 1980, que gerou no começo dos anos 1990 um movimento muito interessante de renovação no campo político. Depois, isso foi totalmente fagocitado pelo sistema, mas sinto que, neste momento, a gente tem essa possibilidade de novo. Vamos ver quais vão ser os novos movimentos políticos que teremos, não só com a eleição deste ano, mas sobretudo a nível local.

Os últimos anos foram brutais para as agendas progressistas, e o campo da política urbana ficou marcado pela desconstituição. A sra. está esperançosa com a possibilidade de renovação política, mesmo com esse histórico recente? No ano passado, nós no Labcidade [Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade da FAU-USP] tivemos uma experiência muito interessante de trabalho conjunto com três mandatas lideradas por mulheres negras, vereadoras na Câmara de São Paulo, que mostram uma mudança muito significativa.

Já vivi alguns ciclos de crise e de luta. Comecei a me envolver com política urbana nos anos 1970, então pude observar quando, pela primeira vez, operários e lideranças sindicais foram eleitos e que tipo de política pública foi sendo construída.

Agora, estamos vivendo mais um momento —no comecinho, pequenininho, não hegemônico. Vai pipocando, em vários lugares do Brasil, uma nova geração de sujeitas periféricas, mulheres, negras, trans, que estão se colocando no espaço público e trazendo novas pautas. Espero que isso cresça e vire um grande movimento de transformação.

Se a gente olhar para os ciclos de lutas urbanos, teve um muito forte nos anos 1980, que deu na Constituinte, na emenda popular da reforma urbana, nas gestões democrático-populares, nas experiências com movimentos de moradia.

Esse ciclo teve, claramente, um descenso.

Em 2005, 2006, novos movimentos começaram a surgir e, em 2013, de alguma forma eles se expressaram. Dois mil e treze foi capturado por outra narrativa, mas a narrativa do direito à cidade estava na rua e esse foi o primeiro encontro desses novos movimentos.

Eles não desapareceram e geraram uma liderança política como Guilherme Boulos, que foi para o segundo turno da eleição municipal de São Paulo contra todas as expectativas. Boulos é exatamente essa nova geração de movimentos que nasceram na era Lula e já começaram questionando as políticas desse período.

Há agendas novas: movimentos ambientalistas, feministas, antirracistas, pela mobilidade. O parque Augusta foi uma vitória de um socioambientalismo urbano autogerido.

Se eles serão capazes de conquistar uma hegemonia e produzir políticas, é cedo para dizer, mas já vivi no outro momento. Quando a gente estava em 1974, 1975, não podia imaginar que ia fazer a Constituinte em 1988. Hoje está parecendo tudo horrível e distópico, mas acho que têm mudanças importantes na cidade.

A sra. citou o parque Augusta. Existem críticas a respeito da reprodução das desigualdades por esse ativismo, ou seja, sobre os jovens de classe média das áreas centrais conseguirem se articular melhor e levar adiante suas pautas enquanto os sujeitos periféricos enfrentam muito mais dificuldades. Como enxerga essa questão? Tenho uma posição diferente. Apoiei e participei da luta do parque Augusta, assim como apoio e participo da luta do parque do Bixiga [proposto no entorno do teatro Oficina, em terrenos do Grupo Silvio Santos]. Acho que tem algumas simplificações na conversa.

A primeira grande simplificação: São Paulo não pode ser entendida por meio do binômio centro/periferia, que não corresponde à territorialidade política da cidade. Esse binômio esconde o território popular que existe no centro.

Aliás, esconder o território popular do centro é ótimo para uma frente de expansão imobiliária que quer eliminá-lo.

O centro é um dos territórios negros e populares de São Paulo, e existe uma luta histórica pela permanência em bairros como Bixiga, Sé, República, Glicério.

Então, é preciso visibilizar e proteger o território popular do centro, porque a política atual é de eliminação —por exemplo, o que está se fazendo na chamada cracolândia é solução final, eliminação física de todos os imóveis e das pessoas.

Dizer que pobre está na periferia e que branco rico está no centro simplifica a história e não permite revelar que esses espaços centrais também são objeto de conflito. Não preciso dizer nada, só convido as pessoas a ir ao parque Augusta passear. Você não encontra só branco de classe média, mas uma mistura social. É um espaço muito apropriado pelas pessoas e muito popular.

Dito isso, você tem razão, no sentido de que a classe média tem uma capacidade de vocalização na política muito maior. Esta é a história da cidade: a história da classe média fazendo política urbana para si mesma.

RAQUEL ROLNIK, 65
Arquiteta e urbanista, doutora pela Universidade de Nova York e professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, onde coordena o Labcidade (Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade). Foi diretora de Planejamento da Prefeitura de São Paulo (1989-1992, gestão Luiza Erundina, PT), secretária nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades (2003-2007, governo Luiz Inácio Lula da Silva, PT) e relatora especial da ONU para o direito à moradia adequada (2008-2014). Autora, entre outros livros, de “Guerra dos Lugares: a Colonização da Terra e da Moradia na Era das Finanças” e “A Cidade e a Lei: Legislação, Politica Urbana e Territórios na Cidade de São Paulo”.

SÃO PAULO: O PLANEJAMENTO DA DESIGUALDADE; Preço R$ 59,90 (120 págs.); R$ 44,90 (ebook); Autor Raquel Rolnik; Editora Fósforo

Livro revê saída caótica dos EUA e prova que Afeganistão é problema complexo

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Casa Branca cometeu equívocos ao identificar inimigos e aliados, diz professor

João Batista Natali – Folha de São Paulo, 28/01/2022

As cenas foram muito fortes e patéticas para fugirem da memória recente. No último dia de agosto do ano passado, em meio à balbúrdia do salve-se quem puder, forças americanas deixaram o aeroporto de Cabul e entregaram o Afeganistão, quase de presente, aos extremistas islâmicos do Talibã.

Se houve fuga, é porque algo no roteiro deu errado. O plano do presidente Joe Biden era o de uma retirada ordeira que terminaria em 11 de setembro. Mas antes disso o governo local e suas forças armadas já haviam entrado em colapso. A corrida aos aviões para não cair em mão dos extremistas lembrou abril de 1975, com a debandada americana no aeroporto de Saigon, um capítulo pouco glorioso da Guerra do Vietnã.

Os fundamentalistas islâmicos encaçapavam mais uma bola no tablado da história, partindo para um previsto cenário de horrores: da fome entre 38 milhões de afegãos aos direitos humanos pisoteados, sobretudo os das mulheres.

O Afeganistão é um problema complexo, e o grande mérito de Reginaldo Nasser, livre-docente de relações internacionais da PUC-SP, está em fornecer um retrato exaustivo, didático e apaixonante ao publicar, no ano passado, “A Luta contra o Terrorismo: os Estados Unidos e os Amigos Talibãs”.

Em fins de 2001 o então presidente George W. Bush comemorava, após apenas dois meses de guerra, a vitória contra “as forças do mal”. Em verdade, no entanto, a aventura duraria mais de duas décadas, com um saldo de 2.488 militares americanos mortos e 20.722 feridos —entre os talibãs seriam de 100 mil e 150 mil, respectivamente.

Caberia perguntar qual o grande engano nessa que foi a mais longa aventura militar americana. De algum modo, os soldados de Bush e Obama e (bem menos) os de Trump e Biden julgavam-se credenciados para se vingar dos 3000 mortos do 11 de Setembro de 2001. Os 17 terroristas que sequestraram três aviões e lançaram dois deles contra o World Trade Center, em Nova York, agiam sob o comando de Osama bin Laden e de seu grupo, a Al Qaeda, hospedados pelo grupo afegão Talibã.

Antes dele, outro grupo de radicais muçulmanos, os mujahedins, transformou num inferno a vida dos 100 mil soldados enviados ao Afeganistão pela União Soviética, no final dos anos 1970.

De certo modo, o comunismo se arraigou muito pouco no solo afegão, da mesma forma com que o modelo de democracia liberal passou a ser mal implantada pelos americanos. O Afeganistão, relata Nasser, é um emaranhado de interesses étnicos e tribais, com grupos que se formam para ser mais ágeis na corrupção ou ainda cultivar e transportar papoula, matéria-prima para o ópio (o país chegou a ter 90% da produção mundial).

Essa burocracia próxima do crime organizado criou um Parlamento eleito para satisfazer a imagem de democracia tão prezada pelos americanos. Mas em verdade ela reunia os “senhores da guerra”, milicianos de pequenos exércitos, com poderes para traficar armas e dar vantagens a seus cúmplices. Na ausência de um Estado de Direito, são esses cidadãos que definem o que é obrigatório e o que é proibido. O Afeganistão é peculiar.

Foi também preciso atribuir uma imagem de competência ao Executivo do presidente Hamid Karzai. Construiu-se com dinheiro americano uma autoestrada entre Cabul e Kandahar, mas a custo inflacionado, porque as usinas de asfalto eram transportadas por avião. Quanto a Karzai, seus dois irmãos não têm do que se queixar. Um deles foi um poderoso traficante de ópio, enquanto o outro devia US$ 11 milhões ao Banco de Cabul quando este entrou em falência.

Reginaldo Nasser insiste nos equívocos cometidos pela Casa Branca na identificação de inimigos e aliados. O Iraque foi invadido porque Bush acreditava — era também a crença do premiê britânico Tony Blair— que o ditador Saddam Hussein estava envolvido com a distribuição de armas de destruição em massa à Al Qaeda. Outro parceiro fora do foco foi o Paquistão, cujos serviços secretos orientavam terroristas afegãos, em meio a uma retórica de Washington sobre a confiabilidade do establishment local.

O fato é que a guerra se intensificava de modo bissexto, e o Congresso americano criticava seus resultados militares pífios, em troca de até US$ 110 bilhões que em certo ano o governo americano chegou a gastar.

Vieram então as negociações do Talibã com Obama e em seguida com Trump. Aproximava-se o desfecho tranquilo, segundo o roteiro rompido apenas pelo espetáculo do desespero entre 29 e 31 de agosto de 2021, no aeroporto de Cabul.

A LUTA CONTRA O TERRORISMO – OS ESTADOS UNIDOS E OS AMIGOS TALIBÃS – Preço R$ 50. Autor Reginaldo Nasser. Editora Contracorrente. Págs. 264

Eleições no Brasil são a segunda chance para as Big Tech, por Patrícia C. Mello

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Espera-se que tenham aqui a mesma preocupação que tiveram na eleição nos EUA

Patrícia Campos Mello, Repórter especial da Folha, foi correspondente nos EUA. É vencedora do prêmio internacional de jornalismo Rei da Espanha.

Folha de São Paulo, 29/01/2022

Até 14 de fevereiro, as plataformas de internet precisam apresentar ao TSE termos de cooperação com detalhes sobre como estão se preparando para a eleição. Considerando que Jair Bolsonaro e seu entorno mantêm a ofensiva para desacreditar o sistema eleitoral, e levando em conta o show de desinformação no pleito de 2018, as empresas deveriam montar operações de guerra para evitar que sejam usadas para manipular a opinião pública.

Espera-se que Twitter, Facebook, YouTube, Google, Instagram, TikTok e WhatsApp tenham com a eleição brasileira o mesmo grau de preocupação que tiveram com a americana.

O Facebook informou que começou a se preparar para a eleição americana de 2020 dois anos antes —e criou regras específicas para aquele pleito e para o alemão. O aplicativo deixou de recomendar a usuários que entrassem em grupos “cívicos”, com alguma conotação política, e restringiu o número de convites que podiam ser enviados por dia.

Facebook e Instagram proibiram anúncios políticos duas semanas antes da eleição —só retomaram em março de 2021.

O Twitter, que já proibira anúncios políticos globalmente em 2019, passou, na campanha americana, a remover tuítes que incitavam a interferir ou contestar o resultado eleitoral. Começou com alertas em tuítes desinformativos de figuras políticas e perfis com mais de 100 mil seguidores e com bloqueios a retuítes e curtidas.

O YouTube –criticado pela lentidão na remoção de vídeos conspiratórios— criou um painel de checagem de informações em resultados de buscas e baniu anúncios políticos (também no Google) por um mês. Mesmo assim, o movimento “Stop the Steal” saiu do controle, culminou na invasão do Capitólio e persiste até hoje.

No Brasil, sabemos muito pouco sobre os planos das plataformas. As empresas têm equipes dedicadas à eleição de 2022? Vão apresentar normas de uso específicas para o pleito? O que vão fazer se um dos candidatos não aceitar o resultado e insuflar apoiadores? Aqui, duas das empresas promovidas por Bolsonaro, Telegram e Gettr, nem sequer cooperam com o TSE.

Não se sabe se Apple e Google terão políticas para aplicativos de candidatos. O aplicativo Bolsonaro TV foi baixado mais de 100 mil vezes na loja do Google, e o do PT, mais de 50 mil.

Segundo Sophie Zhang, ex-funcionária do Facebook que fez denúncias sobre a empresa, a plataforma ignorou tentativas de sabotar eleições em vários países. Ela disse que havia pouca disposição de proteger a democracia em países que não fossem os EUA ou europeus.

A eleição de 2022 é a chance para as Big Tech provarem que aprenderam com eleições passadas e se importam com a democracia no mundo.

Estado: o retorno daquele que nunca saiu de cena, por Gilberto Maringoni.

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Novo livro mostra: após décadas de ataques, se entrevê um despertar do pesadelo neoliberal. Planejamento estatal será crucial no pós-pandemia. Como retomá-lo frente às sabotagens. Por que ele pode ser caminho para a justiça social

Gilberto Maringoni – OUTRAS PALAVRAS – 28/01/2022

O personagem central deste livro foi cuidadosamente caluniado durante as últimas cinco décadas, aos olhos da opinião pública, em variadas campanhas de desinformação ao redor do mundo. Tido como ineficiente, lerdo, atrasado, obsoleto, perdulário, burocratizado, patrimonialista, foco de empreguismo, preguiça, desperdício e corrupção, entre tantos outros atributos negativos, o Estado foi responsabilizado por quase todos os pecados passados, presentes e futuros da sociedade.

Foi chamado de dinossauro por presidentes, governadores/as, deputados/as, prefeitos/as, empresários/as, acadêmicos/as, intelectuais, dirigentes sindicais, jornalistas, artistas e incontáveis mais, numa corrente ecumênica de detratores. No Brasil, comerciais de TV e rádio nos anos 1990, associavam suas empresas a paquidermes postados na sala de jantar a atrapalhar a faina diária de pacatas famílias de bem.

Seria necessário realizar o desmonte, a desestatização, a privatização, a capitalização, a parceria público-privada, a concessão em busca de melhores preços e qualidade de serviços e produtos para se abolir tais males.

Urgia abrir a economia, derrubar barreiras, desmontar cartórios, varrer privilégios e acabar com a boa-vida de funcionários folgados e indústrias superadas, em um bota-abaixo furioso. As palavras de ordem imediatas passaram a ser reformas, enxugamentos e ajustes. O conceito schumpeteriano de destruição criativa foi açodadamente aplicado de maneira inusitada, com destruição violenta e criatividade exacerbada para as contas de novos controladores de ativos públicos então leiloados.

Nada se inventava ao Sul do mundo. Bastaria repetir o mantra não há alternativa da sra. Margareth Thatcher, com pitadas de Consenso de Washington, tudo regado à infindável e sempre inconclusa busca de credibilidade internacional, para que novos horizontes se descortinassem.

Em nosso país, a cruzada daqueles tempos foi propagada como um embate moral e mortal entre o moderno e o arcaico. A imagem aludida era de um arcabouço gosmento e pegajoso, do qual só nos livraríamos se rompêssemos com a Era Vargas, raiz de nossos percalços e de um capitalismo de compadres, autoritário e paternalista. Um atentado à livre iniciativa, ao direito de propriedade e outras pragas mais.

A vinculação da ação do Estado com o autoritarismo veio a se somar à torrente de meias-verdades (ou meias-mentiras, como disse Millôr Fernandes) lançadas como areia aos olhos do distinto público. Associar planejamento – ou intervenção – estatal na economia com regimes de força é uma velha muleta do liberalismo econômico, que não tem o mesmo sentido de liberalismo político. Em tais argumentos, o país necessitaria urgentemente de choques de capitalismo para se livrar do entulho estatizante. O discurso reverberado em todas as mídias foi alardeado como unanimidade planetária. Conversa fiada, ou fake news, como se diz em português pós-moderno.

Basta lembrar que uma das mais sangrentas ditaduras do século XX, a do Chile de Pinochet (1973-90), foi o laboratório pioneiro das políticas neoliberais, com sua agressiva dinâmica de desregulamentações e alienações de bens e serviços.

Após um longo período de liberalização acelerada, a economia global sofreu pelo menos duas grandes crises, a do subprime, em 2008-09, e a da pandemia do novo coronavírus, em 2020-21. Embora tenham matrizes distintas, ambas tiveram como consequências gerais queima de capital, destruição de meios de produção e fortes intervenções do

Estado em ações anticíclicas. Se no primeiro caso, a ação do poder público restringiu-se a localizadas injeções de capital em corporações privadas, no segundo, tais iniciativas se dão de formas muito mais abrangentes e profundas, e têm suscitado um amplo debate internacional.

É possível dizer que um tabu histórico está sendo rompido. Rapidamente, cortinas de fumaça se desfazem e se torna perceptível que nenhuma economia funciona sem Estado. E que suas diretrizes devem ser objeto de escrutínio público democrático, e não apenas a partir das vontades de especialistas vinculados ao topo da sociedade.

Este livro é fruto de um esforço plural, produzido por autores oriundos de distintas correntes de pensamento, que têm a saudável pretensão de interferir nessas controvérsias. A obra cobre alguns aspectos dos dilemas do desenvolvimento em meio a pesadas turbulências, em especial aqueles voltados para áreas políticas, econômicas e sociais. Está longe de ser totalizante e muitos temas ficaram de fora, até mesmo pela impossibilidade de se examinar de uma única vez a caleidoscópica gama de carências sociais que nos rodeia.

O anti-intelectual, por Angela Alonso.

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Olavo de Carvalho não produziu conhecimento e fugiu do escrutínio acadêmico ao se auto intitular filósofo

Angela Alonso, Professora de sociologia da USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento

Folha de São Paulo, 28/01/2022

Mario Amato ameaçou: 800 mil empresários deixariam o país se Lula ganhasse a eleição. Lula ganhou, Amato (o ex-presidente da FIESP que achou a ministra Dorothea Werneck “inteligente, apesar de ser mulher”) ficou. Quem partiu, em 2005, foi outro antipetista, Olavo de Carvalho, que há tempos esmurrava “esquerdismos” intelectual, político, moral, aglutinados como “marxismo cultural”.

Fixou-se na pátria do liberalismo e lá viveu confortável, entre rifles e uísques. Não por agasalho do livre mercado. Lastreou-se em prata brasileira, oriunda dos pagadores das “aulas” do “professor”.

Foi, assim, como “professor” e “intelectual” que o presidente, filhos e partidários se referiram ao morto nesta semana, em posts reverentes. E até com luto oficial, negado aos outros milhares de mortos pela epidemia que Carvalho minimizou.

Que o bolsonarismo o defina como “filósofo”, “professor”, “intelectual” é uma coisa, que a imprensa reproduza os termos sem aspas, é bem outra. Rigorosamente, Carvalho nunca foi nada disso.

Na acepção contemporânea, filósofo ou professor remetem ao ensino formal. É quem tem diploma na área, conferido por instituição reconhecida. Carvalho nunca concluiu curso em universidade. Trata-se de um formalismo, pois há tanto gente diplomada ignorante, como gênios sem canudo. Contudo, é, ao menos em parte, prevenção contra charlatanismo.

Garante que seu portador sofreu o escrutínio de pares, do qual Carvalho escapou.

Pode-se dizer que era filósofo autodidata. Mas, segundo quem? Autoproclamar-se é insuficiente. É preciso o reconhecimento por uma comunidade produtora de conhecimento. Carvalho nunca compôs corpus de universidade, onde se garante o princípio basilar do conhecimento: a intersubjetividade. Na rotina universitária não há trabalho, em nenhum estágio da carreira, que não passe pela avaliação interpares.

Não basta enunciar uma tese, é preciso discuti-la com quem estuda mesmo assunto, submeter-se às ponderações acerca da estrutura da argumentação, dos procedimentos, da demonstração. Passar de palpite a conhecimento exige aguentar estes açoites. Carvalho nunca se submeteu a eles.

Tampouco foi intelectual para além do sentido rebaixado do termo, de difusor de ideias. Nunca produziu obra aglutinando conhecimento original. Escreveu basicamente na imprensa —inclusive no Globo e nesta Folha— pílulas de polêmica e idiossincrasia, destilando o ressentimento com a esquerda que nutrem ex-esquerdistas desiludidos. Nisso padeceu de falta de originalidade.

A comunidade acadêmica jamais o reconheceu porque nunca produziu conhecimento, produziu opinião. Nisso foi mestre, reconhecido por outra comunidade, a que professa seus valores.

Seus escritos compõem um lamento azedo e malcriado contra o que via como decadência civilizacional e corrupção moral, resultantes da democratização social, cultural, étnica, política acelerada por governos de esquerda. Textos cujo cerne é o antimodernismo e a defesa das hierarquias tradicionais. Por aí se entende seu fascínio sobre os bolsonaristas.

Carvalho achou neles um séquito. Aliás, seu treino no esoterismo tradicionalista explica a capacidade de ascender a guru de um culto. O portador execrava o epíteto, mas lhe assenta bem. A vida intelectual exige o antidogmatismo, a dúvida acerca das próprias crenças. Já a religião pede a fé. Por isso, seus cultuadores não desaparecerão com ele. Seguirão tão anti-intelectuais quanto seu guia.