Precarização do trabalho

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Muitos teóricos da economia do século XIX acreditavam que o incremento da tecnologia na sociedade levaria os indivíduos a terem mais tempo para o lazer, para as atividades culturais e artísticas e para a ociosidade. Infelizmente as previsões não se efetivaram, vivemos marcados por tecnologias crescentes, máquinas e equipamentos variados, comemoramos alto crescimento da produtividade e as cargas de trabalhos crescem de forma acelerada, levando o mundo do trabalho a novas transformações que geram mais desemprego, subemprego, desalentos e, mesmo os trabalhadores empregados, percebemos que as patologias laborais crescem, gerando depressões, ansiedades e desesperanças generalizadas.

Neste ambiente percebemos que as mudanças no mundo do trabalho é um dos grandes desafios da sociedade contemporânea, de um lado, percebemos que a quantidade de riqueza cresce de forma acelerada e, ao mesmo tempo, percebemos que a pobreza cresce mais ainda, gerando conflitos, guerras, misérias e instabilidades crescentes.

A pandemia, que crassa a sociedade global, desnudou as desigualdades crescentes da sociedade mundial, levando as maiores personalidades do mundo dos negócios e dos setores financeiros, a destacarem a necessidade de estimular os governos e os gestores públicos e privados a adotarem políticas para reduzir esta mazela que desagrega as relações sociais e deixando marcas agressivas nos países e criando sequelas para todas as regiões.

A tecnologia está impactando sobre todo o processo produtivo, muitos teóricos enxergam o desenvolvimento tecnológico como instrumento de desestruturação do trabalho e outros acreditam que a solução é o investimento maciço na educação. Na verdade, precisamos requintar a discussão, estimulando o desenvolvimento das políticas públicas, fomentando os setores geradores de empregos dignos para toda a comunidade, investimento maciço na educação, em centros de pesquisas e fomento do conhecimento, ao mesmo tempo, construindo uma estratégia de consolidação de setores industriais fortes e pujantes. Sem setores produtivos fortes, consolidados, maduros e competitivos para a geração de empregos de qualidade, perceberemos profissionais qualificados sem emprego, sendo sujeitados a trabalhos precários e mal remunerados, algo que percebemos na sociedade brasileira.

A sociedade precisa combinar estratégias de consolidação educacional e fortalecimento industrial e dos setores produtivos, impulsionando empregos qualificados e novas oportunidades para aumentar a produtividade e enriquecimento da coletividade. Neste ambiente percebemos a importância do estímulo do empreendedorismo e da inovação, ao mesmo tempo, é fundamental a construção de novos ambientes mais afeito a desburocratização, reduzindo os excessivos subsídios de setores mais consolidados e investimentos em educação de qualidade, que forma m mão de obra para compreender os inúmeros desafios que crassa a sociedade brasileira.

Atualmente, estamos percebendo a saída de pessoas altamente qualificadas, profissionais com doutorado e pós-doutorado que estão optando por sair do país. Sem um projeto nacional consistente, com a demonização crescente das universidades públicas que são os grandes geradores de conhecimento científico nacional, além da degradação das agências de fomento e a redução de investimentos em ciência e tecnologia, muitos pesquisadores aceitam convites de centros de pesquisas e universidades estrangeiras, abandonando o sonho de construirmos uma sociedade desenvolvida.

Estamos num momento crucial para a construção de um rumo consistente para a sociedade brasileira, a pandemia está trazendo novos desafios para a população, os investimentos em educação são dispendiosos, imprescindíveis e seus retornos são inquestionáveis no longo prazo. Neste ambiente, sem investimento e com baixa confiança viveremos saudando um falso crescimento econômico com geração limitada de emprego precário, assistindo a saída de grandes conglomerados e uma verdadeira degradação do trabalho, num ambiente caracterizado por baixo salário, sem perspectivas de desenvolvimento econômico, sem dignidade e assolado por promessas nunca realizadas.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 16/06/2021.

Inger Enkvist: “A nova pedagogia é um erro. Parece que não se vai à escola para estudar”

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Pedagoga sueca, com mais de quatro décadas de experiência na educação, critica método que dá mais iniciativa aos alunos na sala de aula e defende um ensino mais tradicional

Cristina Galindo – El País, 25/07/2018.

O silêncio reina na rua de pedras onde mora Inger Enkvist, em Lund, uma das cidades mais antigas da Suécia, com uma das universidades mais importantes deste país nórdico. Ninguém diria que a poucos minutos a pé fica o centro urbano. Esta calma chega ao interior de seu apartamento, uma sobreloja com grandes janelas e um jardim traseiro comunitário. Seu escritório, luminoso e cheio de livros, é um reflexo de sua ideia de como é preciso se entregar a qualquer tarefa intelectual: com ordem, concentração, seguindo regras…, lendo.

Enquanto a maioria dos pedagogos questiona a utilidade de decorar informações na era do Google e prega o fim das carteiras enfileiradas e das disciplinas estanques, com mais liberdade para os alunos, Enkvist (Värmland, Suécia, 1947) defende a necessidade de voltar a uma escola mais tradicional, onde se destaquem a disciplina, o esforço e a autoridade do professor. Seu ponto de vista contraria os postulados dessa nova pedagogia, mas também se distancia daqueles que acreditam que a escola é uma fábrica de alunos em série e que deve centrar seus esforços em competir com outros colégios para subir nos rankings mundiais.

Começou sua carreira educativa como professora do ensino secundário, e agora é catedrática emérita de espanhol na Universidade de Lund. Centrou sua pesquisa na obra de Mario Vargas Llosa e Juan Goytisolo, e escreveu ensaios sobre José Ortega y Gasset, Miguel de Unamuno e María Zambrano. Publicou vários livros sobre pedagogia – como Repensar a Educação (Bunker Editorial, 2006, digital) – e centenas de artigos, além de ter assessorado o Governo sueco no assunto. Sentada na sala de sua casa, Enkvist conversa em espanhol sobre como acredita que as escolas deveriam ser, enquanto bebe um suco de frutas vermelhas servido num jarrinho de barro comprado em Segóvia. Falando com ela, não é nada difícil imaginá-la no seu colégio, ainda menina, tirando ótimas notas.

Pergunta. Como recorda sua escola?

Resposta. Era pública e tradicional. Não tenho más recordações. Talvez houvesse algumas aulas chatas, mas às vezes a vida é assim. Os alunos chegavam na hora e não havia conflitos com os professores. A Suécia me deu uma educação gratuita e de qualidade.

P. Os tempos mudaram. Continua valendo a disciplina daquela época?
R. A relação entre pais e filhos se baseia mais do que nunca nas emoções. Temos uma vida mais fácil, e queremos que nossos filhos também a tenham. Mas a escola deve estar consciente de que sua tarefa principal continua sendo formar os jovens intelectualmente. A escola não pode ser uma creche, nem o professor um psicólogo ou um assistente social.

P. Qual deve ser a finalidade do ensino infantil?
R. Deve ser muitas coisas, mas sua tarefa principal é dar uma base intelectual. Dar conhecimentos aos jovens, prepará-los para o mercado de trabalho, transmitir-lhes uma cultura e proporcionar-lhes uma ideia da ordem social, porque a escola é a primeira instituição com a qual as crianças se deparam, e é importante que vejam que há algumas regras, que o professor é a autoridade e que é preciso respeitar tanto ele como os colegas.

P. Mas a tecnologia torna mais difícil controlar crianças hiperestimuladas.
R. Sempre houve dificuldades na aprendizagem. Há 50 anos, era o fato de precisar andar uma hora para chegar ao colégio, ou oferecer refeições nutritivas. Hoje se trata da enorme quantidade de estímulos. O novo desafio é controlar o acesso ao celular. e ao computador para que se concentrem. As escolas que proíbem o celular fazem bem.

Em casa, os pais devem vigiar o tempo de uso da tecnologia. Proibir é muito difícil, porque se criam conflitos, mas um pai moderno deve saber dizer “não”. Deve resistir.

P. Há pedagogos que afirmam que a escola tradicional é chata e educa crianças submissas, e que é preciso aprender a aprender.
R. A escola é um lugar para aprender a pensar sobre a base dos dados. Isso de insistir em aprender a aprender sem falar antes de aprendizagem é uma falsidade, porque não podemos pensar sem pensar em algo. Sem dados não há com o que começar a pensar.

P. A escola não deveria ser um lugar onde se divertir?
R. A satisfação na escola deve estar vinculada ao conteúdo: entrar numa aula e que lhe contem algo que você não sabia. Mas é preciso saber que, para entender algo novo, é necessário fazer um esforço. Além disso, é fundamental que o professor nos ensine a ler e também como nos comportar. É impossível aprender bem sem que haja ordem na sala de aula. Essa é a base principal: comportamento, leitura e avaliação pelo conhecimento.

P. O que opina da tendência de pôr almofadas na sala de aula para que os alunos se deitem?
R. Isso é enganar os jovens. Para aprender a escrever, uma criança precisa sentar-se bem, olhar para frente, ter lápis e papel, concentrar-se… Aprender pode ser um prazer, mas, insisto, exige um esforço e um trabalho. É preciso dizer isso às crianças. Se não, estamos enganando-as. Tocar violino, por exemplo, não é fácil. Exige muita prática.

Os estudos do psicólogo sueco Anders Ericsson mostraram que é necessário um esforço prolongado para melhorar em algo. Para ser bom em algo você tem que se dedicar 10.000 horas. E precisa fazê-lo de forma consciente e trabalhar com um professor. Sua pesquisa avaliza a ideia tradicional de uma escola baseada no esforço do aluno, sob a orientação de um professor.

P. Há quem diga que não é preciso decorar porque tudo está no Google.
R. Essa é outra falsidade. O Google é uma ferramenta genial. É de grande ajuda para os adultos, porque sabemos o que procuramos. Mas, para quem não sabe nada, o Google não serve de nada. Há intelectuais que andam por aí dizendo que estudar geografia não foi útil. Acredito que se esqueceram de como e quanto aprenderam na escola. Afirmar essas coisas é uma falta de honradez com os jovens. E menosprezar a importância em si da vida intelectual do aluno.

P. Em que consiste a nova pedagogia que você critica?
R. A nova pedagogia é um pensamento que se vê por toda parte no Ocidente. A Suécia a adotou nos anos sessenta. Consiste, por exemplo, na pouca gradação das notas, por isso muitos pensam que não há razão para estudar muito se isso não for se refletir no histórico escolar. Dá-se muita importância à iniciativa do aluno, trabalha-se em equipe e, ao mesmo tempo em que as provas desaparecem, aparecem os projetos e o uso das novas tecnologias. Em geral, parece que se vai à escola para fazer atividades, não para trabalhar e estudar. Dá-se mais ênfase ao social que ao intelectual. Acho que é um erro. Por um lado, os alunos com mais capacidade não desenvolvem todo o seu potencial e, por outro, os que têm uma menor curiosidade natural por aprender não avançam. Além disso, muitos gostos são adquiridos, como a história, a leitura e a música clássica. No começo podem parecer chatos, mas, se alguém insistir para que tenhamos um primeiro contato, é possível que acabemos gostando. Atualmente, muitos jovens escolhem sem terem conhecido e, claro, escolhem o fácil.

P. A Espanha é um dos países da OCDE que dedica mais horas à lição de casa. Isso tem alguma utilidade?
R. Quando a jornada é muito longa, como na Espanha, não faz sentido. Se um aluno está cansado, a lição de casa não melhora o seu rendimento. É preciso buscar um número ideal de aulas pela manhã, quando a criança está mais acordada, dar-lhe um tempo de descanso e, à tarde, talvez uma tarefa de revisão do que fez durante aquele dia. Um bom exemplo é a Finlândia, onde os alunos entram às oito da manhã e saem às duas da tarde, incluindo o almoço; exceto às quintas-feiras, quando saem às quatro da tarde.

P. Quando criança, você era um grande leitora. Como despertar esse prazer se uma criança não está interessada?
R. Era uma leitora compulsiva. Ninguém teve de insistir para que eu pegasse um livro. Mas há crianças que precisam disso. Talvez no começo seja necessário forçá-las um pouco, encorajá-las para que se tornem leitoras de lazer. Como se faz isso da escola? Comprar bons livros para a biblioteca e recomendar um a cada sexta-feira. Um aluno pode contar o que leu naquela semana. Fazer pequenas competições para ver quem leu mais. Medir como o seu vocabulário aumenta. E explicar que a leitura lhes permitirá, quando adultos, um melhor desenvolvimento. Se os alunos começam a ler, quase todos descobrirão que é um prazer. Mas eles precisam de horas. Calcula-se que na maioria dos países se dedicam 400 horas à aprendizagem da leitura na escola primária. Para ser um bom leitor, são necessárias 4.000 horas. É impossível ter tanto tempo na aula. Eles têm de fazer isso em casa. O que os pais podem e devem fazer é ler com os filhos: apoiar a leitura e servir de modelo.

P. Mas as humanidades estão perdendo peso.
R. Dizem que o amanhã será dominado pela tecnologia e pelas ciências naturais, e que o que é histórico não é importante. Além disso, as provas do PISA (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes), um conjunto de exames organizados pela OCDE para avaliar as competências de alunos de 15 anos em ciências, matemática e leitura] não levam em conta as humanidades porque é difícil comparar esses conhecimentos entre países, então a vontade de competição os leva a dar mais ênfase às matérias que fazem parte do PISA e negligenciar as outras. Tanto a escola quanto a família devem dar mais ênfase às humanidades.

P. A visão do PISA é a de uma escola que deveria funcionar como uma empresa?
R. A OCDE é uma organização econômica e analisa a educação a partir dessa perspectiva. O que o PISA não revela é se existe uma boa atmosfera na sala de aula, se bons princípios de trabalho são inculcados, se as ciências humanas, as ciências sociais, as matérias estéticas como arte e música, que são essenciais, são bem ensinadas. O PISA é uma prova muito específica que analisa algumas coisas. As escolas e os países deveriam defender que eles ofereçam muito mais do que isso.

P. Em seus livros, você aponta a Finlândia como um dos grandes modelos.
R. A educação na Finlândia foi tradicional, embora há dois anos o Governo tenha lançado um programa mais parecido com o da Suécia, porque meu país tem um desempenho escolar inferior, mas tem um comportamento econômico superior e criou empresas de tecnologia como Spotify e Skype. O Governo finlandês parece pensar que com um pouco de desordem suas escolas serão mais criativas. Não acredito nisso.

P. A Finlândia era tradicional? Não há exames no ensino obrigatório nem os havia antes dessa reforma que você menciona.
R. É preciso repensar a fobia aos exames. O exame ajuda a se concentrar em um objetivo. Que em tal dia você tem de saber esses conhecimentos. Um bom professor ensina coisas aos alunos, revisa com eles e faz algumas provas. E constroem outros ensinamentos sobre o que já foi aprendido, então esses conhecimentos voltam a aparecer mais tarde.

Não faz um exame sobre algo sem importância. Com a prova final acontece a mesma coisa. É um objetivo claro. Ajuda a ter uma visão global.

P. Na Finlândia não se compara tanto as escolas, o que é comum na Espanha. É assim?
R. Na Finlândia continuam com a tradição de confiar nos professores. Quando existe um controle estatal do desempenho e se fazem comparações entre as escolas, o ambiente se deteriora. Para os professores, gera estresse e rancor em relação a quem te controla.

P. Como deve ser um bom professor?
R. Responsável e bem formado. Deve acreditar no poder do conhecimento. Não se é bom professor apenas pelo que se sabe sobre a matéria, nem só porque sabe conquistar os alunos. É preciso combinar ambos os elementos: atrair os alunos para a matéria para ensiná-la adequadamente. É preciso recrutar professores excelentes em que alunos, pais e autoridades possam confiar. E a menos que haja uma situação grave, devemos deixá-los trabalhar.

P. Como foi sua experiência na sala de aula?
R. O aluno tem de respeitar as instruções do professor, fazer as lições de casa e, por exemplo, não mentir. Antes, mentir era muito grave. Agora parece que não acontece nada. Vi jovens que inventam motivos para justificar por que não fizeram um trabalho, que escrevem de forma pouco legível para gerar dúvidas ou discutem o tempo todo com os professores. Sei o quão desagradável é que um aluno tente mentir para você. Vi isso no ensino médio e na universidade. Quando um professor sente que não é respeitado, que tentam enganá-lo, todas as relações de ensino se rompem.

P. O que fazer com as crianças que incomodam e não deixam os outros trabalharem?
R. Isso é um tabu. É considerado pouco democrático. Diz-se que devemos dar uma oportunidade a todos. Mas o que acontece quando uma criança problemática não deixa os outros trabalharem, quando se fala com ela e com os pais, mas não se corrige? É preciso colocá-lo em um grupo separado para ver se percebe e muda.

P. E as crianças que se esforçam, mas não atingem o nível?
R. Elas podem ter aulas de reforço. E podemos oferecer itinerários diferentes, como no caso de Cingapura.

P. E repetir de ano?
R. Fazer repetir uma criança às vezes serve e às vezes não, porque cada um é diferente. Gosto do sistema de Cingapura, onde o lema é que cada criança pode atingir seu nível ótimo. Existem diferentes maneiras de conseguir isso: uma maneira, digamos, normal e outra, expressa. A segunda inclui mais conteúdos em menos tempo. Há quem diga que é menos democrático, mas creio que, pelo contrário, é mais democrático porque convém à criança, à família e ao Estado. E há menos evasão escolar, um problema muito mais grave.

P. Não está aprendendo também por imitação? Ou seja, os alunos adiantados podem puxar aqueles que ficam para trás?
R. Funciona quando o grupo tem um bom nível e um bom professor. E se aqueles que têm de se integrar são poucos e querem fazê-lo. Se não, o que geralmente acontece é que aqueles que não querem trabalhar arrastam os outros.

P. O bilinguismo que combina inglês e espanhol prolifera nas escolas espanholas. Você matricularia seus filhos em uma dessas escolas?
R. Primeiramente, eu analisaria outras opções. Aprender inglês é bom, mas é preciso perguntar o que deixamos de aprender de outras matérias. Tenho dúvidas. Acredito que se pode aprender bem inglês com algumas horas de aula sem sacrificar outros conhecimentos, como por exemplo, as ciências. Na Suécia, as aulas de inglês só começam aos 9 ou 10 anos.

Eleitor decepcionado com Bolsonaro desconfia da oposição, diz pesquisadora

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Para Esther Solano Gallego, avanço da vacinação e recuperação da economia podem levar desiludidos a se reaproximar do presidente

Ricardo Balthazar – Folha de São Paulo, 14/06/2021

A má avaliação do desempenho do governo no enfrentamento da Covid-19 afastou muitos eleitores de Jair Bolsonaro, mas eles ainda veem a oposição com desconfiança e poderão se reaproximar do presidente se houver avanço na vacinação e a recuperação da economia se revelar consistente.

A opinião é da cientista social Esther Solano Gallego, professora da Universidade Federal de São Paulo que estuda o bolsonarismo desde 2017, quando começou a entrevistar grupos de eleitores em parceria com a cientista política Camila Rocha, do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento).

Para Solano, muitos eleitores que se desiludiram com Bolsonaro e reprovam suas ações são conservadores que prezam valores tradicionais e são refratários aos argumentos dos seus opositores, o que tende a dificultar a construção de discursos que convençam essas pessoas nas eleições de 2022.

Segundo o Datafolha, o recrudescimento da pandemia fez a taxa de reprovação ao governo Bolsonaro alcançar 45% em maio, quando foi concluída a pesquisa nacional mais recente do instituto. A taxa de aprovação ao seu desempenho caiu para 24%, a pior marca desde o início do seu mandato.

O Datafolha calcula que o grupo formado pelos eleitores bolsonaristas mais fiéis correspondia a 9% da população em maio. Outros 27% disseram que votaram no presidente nas eleições de 2018, mas expressavam desconfianças e se apresentavam como mais moderados e críticos à sua atuação.

A aposta de Solano é que a preocupação com o futuro da economia e o desemprego será o fator mais importante para a definição do voto nas próximas eleições presidenciais, se a vacinação da maioria da população for concluída até o fim deste ano, como se prevê, e não houver nova onda de contágio.

De que forma a pandemia influiu na avaliação dos eleitores de Bolsonaro sobre sua atuação no governo? Os mais fiéis acham que ele quer cuidar dos brasileiros, mas veem o Congresso, a imprensa e o Supremo Tribunal Federal como obstáculos que o impedem de trabalhar. Não acreditam no que a oposição fala na CPI e dizem que Bolsonaro só não comprou vacinas antes porque é cuidadoso.

Os mais moderados, que votaram em Bolsonaro e se tornaram críticos com a pandemia, acham que ele foi irresponsável e desumano, especialmente ao debochar dos mortos e da dor das famílias. Não chegam a defender punições para suas ações, mas consideram importante que as coisas sejam esclarecidas.

Por que os eleitores mais fiéis ao presidente rejeitam a ideia de que ele seja responsável pelos erros do governo e pelas mortes ocorridas? Essas pessoas têm uma adesão mais afetiva e emocional do que ideológica ao projeto de Bolsonaro. É uma adesão muito forte, de caráter quase existencial, porque elas sentem-se representadas pela personalidade dele, pela ideia de que os outros são inimigos, os que pensam diferente.

Os eleitores mais moderados que votaram em Bolsonaro foram movidos por frustrações, por um sentimento de abandono e desencantamento com tudo. Agora estão decepcionados, inclusive por causa da sua falta de empatia com as pessoas na pandemia. Os mais radicais não conseguem entender isso.

O avanço da vacinação e a recuperação econômica nos próximos meses podem fazer os eleitores mais críticos mudarem de ideia de novo? É provável que o país esteja diferente daqui a um ano, mas ainda não dá para prever como isso afetará o comportamento do eleitorado. Embora a pandemia tenha influído bastante até aqui, há outros fatores que levaram ao desencantamento desses eleitores e a um certo cansaço com Bolsonaro.

Essas pessoas acreditam que ele tem contribuído para uma instabilidade permanente ao agir de forma autoritária e intolerante. Há também muito descontentamento com sua aliança com o centrão no Congresso. Esses eleitores acham que ele se curvou à velha política e se decepcionaram com isso.

Nas classes A e B, há desilusão com a falta de margem de manobra do ministro Paulo Guedes na condução da economia.
Nas classes C e D, há muita preocupação com o desemprego e um processo de empobrecimento que se aprofundou no último ano. Talvez essas pessoas fiquem mais otimistas com a recuperação da economia.

Que discurso seria capaz de seduzir esses eleitores decepcionados com Bolsonaro? Os mais moderados não confiam nas alternativas oferecidas até aqui no cenário político-eleitoral, não se sentem acolhidos por essas opções. Alguns até acham que Lula possa levar o país de volta a uma estabilidade, com seu temperamento conciliador e inclinado à negociação, mas muitos o rejeitam.

O antipetismo e a preocupação com a corrupção levaram muitos desses eleitores a votar em Bolsonaro e eles continuam sem querer ouvir falar do PT, apesar da decepção com o presidente. Nenhum dos outros presidenciáveis que se apresentaram parece despertar muita confiança no eleitorado hoje.

A grande maioria está confusa, dominada por um sentimento de orfandade política. Essa porção do eleitorado é formada majoritariamente por mulheres, jovens e pessoas que empobreceram na pandemia. Elas estão esperando um discurso que não será fácil para a esquerda entregar.

Como assim? Para as mulheres, por exemplo, a proteção das famílias e dos valores tradicionais se tornou especialmente importante agora, com a pandemia. E muita gente no campo democrático tem dificuldade em construir um discurso que acolha esses valores mais conservadores, sem a radicalidade bolsonarista.

Terão que falar sobre segurança pública também, mesmo que se afastem da brutalidade do discurso de Bolsonaro nessa área. Há muita insegurança na sociedade, nos bairros ricos e nas áreas periféricas onde a violência é cotidiana.

Será preciso encontrar novas maneiras de dialogar com essas pessoas.

Em nossas entrevistas, esse assunto é objeto de muitas críticas à esquerda. Há grandes especialistas no tema no campo progressista, mas as soluções que oferecem são complexas, de longo prazo. Bolsonaro pode ser demagógico e populista, mas fala no assunto de um jeito que as pessoas entendem.

Bolsonaro ainda poderá reconquistar os eleitores que se afastaram dele? Alguns parecem ter desembarcado totalmente.

Dizem que se arrependeram e não querem votar nunca mais em Bolsonaro. Estão muito rancorosos. Mas outros têm dúvidas, não chegaram ao ponto de uma ruptura completa. Podem votar nele novamente se houver mudanças nos próximos meses.

É como se continuassem unidos por um fio que ainda pode ser puxado se as circunstâncias forem diferentes. Vai depender muito de como a pandemia e a economia evoluirão, do comportamento do próprio Bolsonaro e das opções políticas que seus opositores forem capazes de oferecer.

Parte da classe média espera um discurso que ofereça um Estado pró-mercado, que crie estímulos para microempresários e empreendedores, mas também entregue serviços públicos essenciais, como saúde, educação e transporte. Pode ser difícil para a esquerda conjugar esses diferentes aspectos.

O auxílio emergencial pago pelo governo ajudou Bolsonaro a sustentar sua popularidade no ano passado. As pessoas que passaram a apoiá-lo por causa disso se afastarão com a redução do programa agora? Não sei. O auxílio é muito bem avaliado, até pelos mais críticos do bolsonarismo. Há uma conexão forte com essa base mais empobrecida do eleitorado. A gestão da pandemia é o elemento fundamental agora, mas provavelmente daqui a alguns meses a questão econômica será mais preponderante.

Por que a adesão desses segmentos do eleitorado a valores tradicionais é um problema para a oposição? Esse eleitor é bastante conservador. Ele valoriza a ordem e crê num passado romântico, em que as coisas teriam sido melhores. A penetração maior de valores progressistas, com a luta feminista, dos LGBT e do movimento antirracista, provocou uma reação conservadora no mundo todo. Isso continuará.

Há também o legado principal da Lava Jato, que é a rejeição aos partidos políticos como instrumentos da democracia, especialmente no campo mais conservador. A direita bolsonarista, que é autoritária, cresceu com isso. Será preciso estruturar uma direita civilizada, democrática, para deter esse processo.

A anulação das condenações de Lula na Justiça teve algum efeito nesses segmentos do eleitorado? Para os mais radicais, isso é evidentemente resultado de um complô do STF com a oposição para acabar com Bolsonaro. Acham que Lula deveria estar preso e não querem mais conversa. Entre os mais moderados, há quem aponte excessos na Lava Jato, mas a maioria acredita que Lula é corrupto.

Lula dialoga bem com valores conservadores, como a ideia da ordem e uma certa religiosidade popular. Mas ficou marcado pela associação com a corrupção. Muitos de seus eleitores votaram em Bolsonaro movidos por um sentimento profundo de traição, que não vai desaparecer de um dia para outro.

As suspeitas sobre os filhos de Bolsonaro e suas ações para protegê-los não têm o mesmo efeito? O bolsonarista desencantado carrega nas costas várias decepções, que vão se acumulando. Está decepcionado com Bolsonaro agora, mas também continua decepcionado com o PT, com os partidos em geral, com o sistema político. No final das contas, é um sentimento muito antissistema.

Não se trata de uma desilusão pontual com um partido ou um indivíduo específico, mas com o sistema como um todo. Então não vai ser fácil para os políticos convencerem esse eleitor a se encantar novamente com a política. Será necessário um trabalho mais complexo do que em outras eleições.

Há uma decepção mais profunda com a democracia e os resultados alcançados pelos governos que vieram depois da ditadura militar? Muita gente, nos extratos mais populares, expressa esse desencantamento com razões de ordem material. Por muito tempo pensaram, especialmente durante os governos petistas, que conseguiriam alcançar um patamar mais elevado de consumo e renda, e de cidadania, mas sentem que bateram num teto.

Quando perguntamos aos nossos entrevistados se acham que existe democracia plena no Brasil, todo mundo responde que não. Acham que o país está afundando na corrupção, que o sistema político é sujo e corrompido, e não se pode mais confiar nele. A questão para a oposição é como reconstruir essa confiança.

RAIO-X

Esther Solano Gallego, 38
Doutora em ciências sociais pela Universidade Complutense de Madri, na Espanha, vive no Brasil há 11 anos e é professora do curso de relações internacionais da Universidade Federal de São Paulo, em Osasco. Suas pesquisas sobre o eleitorado brasileiro são financiadas pela Fundação Friedrich Ebert e pela Fundação Tide Setúbal. Organizou a coletânea de artigos “Brasil em Colapso” (Editora Unifesp, 2019)

‘Mundo nos vê com assombro por manter Bolsonaro’, diz autor de livro sobre história do impeachment

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Em ‘Como Remover um Presidente’, o jurista Rafael Mafei narra a história desse dispositivo jurídico desde seu surgimento na Inglaterra medieval até o Brasil contemporâneo

Rafael Mafei

André Cáceres, O Estado de São Paulo – 12/06/2021

Quando, em 1376, o representante da Câmara dos Comuns Peter de la Mare questionou a atuação do barão de Latimer na condução das finanças da Inglaterra durante a Guerra dos Cem Anos, ele não sabia, mas estava abrindo caminho para uma história que continua tendo desdobramentos até hoje em todo o mundo democrático: a história do impeachment. É essa trajetória que o livro Como Remover um Presidente, do jurista Rafael Mafei, narra em detalhes, passando pelo seu nascimento no direito britânico, sua modernização na Constituição dos Estados Unidos e sua aplicação no Brasil.

Embora o primeiro processo bem-sucedido de impeachment do País tenha sido instaurado apenas em 1992, contra Fernando Collor de Mello, a relação brasileira com esse dispositivo jurídico é longa e conturbada. A noção de crime de responsabilidade, herdada do Brasil imperial, motivou a criação de uma lei que permitia a impugnação do presidente e que foi pivô de uma crise política já durante o primeiro mandato da República, levando à renúncia do marechal Deodoro da Fonseca.

Nosso segundo presidente, Floriano Peixoto, também viria a sofrer uma tentativa de impeachment, mas seria absolvido. Diferente dos processos de “impedimento” que afastaram os presidentes interinos Café Filho e Carlos Luz com um intervalo de 11 dias sem acusação, defesa ou um rito digno de um julgamento, durante a crise golpista de 1955 que antecedeu a posse de Juscelino Kubitschek.

Mafei passeia por esses e outros saborosos capítulos da história brasileira não com a linguagem seca do mundo jurídico, mas como em um livro de história narrado por um jurista. No entanto, o que torna Como Remover um Presidente urgente são casos mais recentes, envolvendo Fernando Collor e Dilma Rousseff. Além disso, o epílogo da obra é dedicado a analisar, do ponto de vista jurídico, a atuação de Jair Bolsonaro na Presidência da República, esmiuçando os diversos crimes de responsabilidade cometidos em sua administração e que, não fosse pelos elementos políticos que compõem o impeachment, poderiam embasar seu afastamento.

Leia trechos da entrevista concedida por Rafael Mafei ao Estadão via chamada de vídeo:

O componente ‘político’ do processo de impeachment vem se sobressaindo ao ‘jurídico’ na América Latina?

Há casos de impeachment que andaram muito bem e casos que extrapolaram o que era esperado do ponto de vista da capacidade do elemento jurídico de disciplinar o ímpeto político. O jurídico é o trilho e o político é o carvão que você joga na fornalha da locomotiva. Muitas vezes a quantidade de carvão fez com que o trilho descarrilasse. O que a gente conseguiu fazer muito bem no Brasil é ter uma disciplina processual do impeachment relativamente clara.

Pode parecer pouco, mas é um ganho, porque alguns casos em outros países da América Latina foram exemplares de abuso tipicamente processual. O impeachment do presidente do Equador, do Abdalá Bucaram, ou do Lugo no Paraguai, ou no Brasil os “impedimentos” do Café Filho e do Carlos Luz. A dúvida não era sobre a caracterização ou não de um crime de responsabilidade, o que havia ali era a premência, necessidade ou ambição de remover um presidente do cargo. No Brasil, desde a Constituição de 1988, o aspecto procedimental do impeachment foi muito bem delineado, a única confusão que a gente não conseguiu resolver é a história de haver duas penas ou uma única pena, de modo a saber se o presidente, mesmo que tenha renunciado, possa ser condenado, como o Collor foi, ou mesmo que seja condenado, possa não perder os direitos políticos, como aconteceu com a Dilma. O que a gente ainda não conseguiu fazer bem no Brasil é definir a substância dos crimes de responsabilidade. Talvez porque o julgamento caiba a autoridades políticas, isso sempre ficou no ar e levou muitas pessoas a sustentarem uma visão equivocada, de que esse elemento político do impeachment significa que o Congresso pode dizer que é crime qualquer coisa que eles bem quiserem.

Já tivemos mais de 300 pedidos de impeachment protocolados desde 1988 no Brasil. Do ponto de vista puramente jurídico, seria possível ter afastado outros presidentes brasileiros?

É difícil dar uma resposta categórica, porque seria preciso que denúncias que foram feitas tivessem recebido uma investigação, um aprofundamento que ajudasse a gente a caracterizar melhor os delitos. Seguramente, se o elemento político não estivesse tão a favor de alguns presidentes do passado, eles poderiam ser investigados por denúncias que tinham, sim, gravidade suficiente para levar a um afastamento do cargo. Fernando Henrique Cardoso teve um pedido de impeachment por uma denúncia grave, que foi a compra de votos pela reeleição. O Lula, o caso do mensalão foi seguramente um caso sério e se conseguisse provar responsabilidade do presidente por aquele ato através de uma investigação, isso poderia ter levado a um desfecho de um impeachment. Acontece que tanto Fernando Henrique quanto Lula tinham escudos legislativos muito sólidos na Câmara dos Deputados. Você tinha germes, sementinhas de acusações que poderiam levar a casos com magnitude para um impeachment, mas nunca vamos saber qual teria sido o desfecho porque elas não tiveram condições políticas de ser aprofundadas a ponto de saber se um crime de responsabilidade estaria caracterizado.

A atual onda de impeachments na América Latina é um indício de que essas jovens democracias estão se fortalecendo ou de que estão se fragilizando?

O impeachment por si só não é sinal nem de força nem de fraqueza de uma democracia. Porque quando é caso de ele ser posto em prática, ele precisa ser posto. Isso não é nada que orgulhe um país, porque é sinal de uma crise política grave. A gente encarou nossos impeachments com o clima de uma micareta cívica, mas o impeachment tem um aspecto traumático. Ele não é um sinal de estabilidade política, de um país em que a rotina do trabalho dos políticos está consumida pela implementação de políticas públicas, reformas ou debates legislativos que fazem o país avançar, ela está consumida por um conflito político que levou à destituição da maior autoridade política do país. Mas quando ele tem que ser aplicado, não aplicá-lo tem um custo muito alto. Por outro lado, quando não é a hipótese de ele ser aplicado – isso pode significar que o presidente não cometeu nenhum ato ilícito e está meramente sendo removido do cargo ou que cometeu um ato ilícito, mas esse ato pode ser enfrentado por maneiras menos drásticas —, ele também não deve ser acionado. A América Latina, embora tenha ao longo do século 20 registro de muita instabilidade política, tem padrões de instabilidade diferentes de tempos em tempos. O padrão na década de 1960 e 70 era golpe militar; dos anos 90 até agora passa pelo impeachment.

Quais são as principais diferenças entre os processos de impeachment de Collor e Dilma?

O processo do Collor foi muito mais sumário, rápido e conduzido em meio a uma incerteza procedimental. Embora a Lei do Impeachment fosse antiga, ela nunca tinha sido posta em prática. Muito do aprendizado sobre o rito do impeachment aconteceu com o caminhão em movimento. O episódio da indefinição do Senado sobre o momento do afastamento do Collor é muito ilustrativo. A coisa mais elementar do processo, que era quando o presidente sai e o vice toma posse, ninguém sabia. Tanto que os jornais do dia seguinte à votação deram informações erradas, estamparam na capa que o Collor estava afastado quando juridicamente não estava. Ninguém tinha muita dúvida de que a conduta do Collor implicava crime de responsabilidade, porque o caso do Collor era um caso de abuso de poder e indignidade presidencial quase caricato. No caso da Dilma, o debate não foi processual, houve debate sobre os fundamentos substantivos do impeachment. Houve um descompasso entre as razões que levaram ao impeachment e as razões que levavam o governo dela a ser objeto de tantos protestos. Todas as medições sobre a opinião das pessoas indicam que a Dilma deveria ser afastada por corrupção ou por interferir na Lava Jato, o que nunca esteve entre as acusações que ela sofreu e ironicamente talvez tenha sido uma das razões pelas quais ela politicamente acabou abatida, porque interferir na Lava Jato era tudo que a ala do PMDB que a abandonou queria que ela fizesse. Isso é uma particularidade digna de nota. A outra é uma dúvida jurídica que foi mal explorada, se o fato de ela ter violado a Lei de Responsabilidade Fiscal necessariamente implica que essa violação constitua crime de responsabilidade. Você só recorre ao impeachment quando a conduta que você quer impedir que o presidente continue praticando não possa ser freada de nenhuma maneira. No caso do Collor, como eu vou impedir que ele se reúna na surdina com gente que pratica tráfico de influência no seu governo? As condutas da Dilma que foram apontadas como ilegais pelo TCU se valiam de atos institucionais claros e observáveis à luz do dia no orçamento, nos decretos.

Havia maneiras alternativas, mudando a forma de consideração das pedaladas na contabilidade pública, para que elas não servissem mais para maquiar o orçamento, ou então ajuizando ações que impedissem os efeitos de decretos que podem ser considerados ilegais. Esse debate sobre o crime de responsabilidade como sendo uma conduta que não pode ser eficazmente respondida de outra maneira merecia ter sido feito com mais alento.

O epílogo do seu livro deixa evidentes transgressões e crimes de responsabilidade cometidos pelo atual governo. Como você vê um impeachment hoje?

Não existe um debate jurídico sério sobre o presidente ter ou não praticado crimes de responsabilidade, especificamente no contexto da pandemia. A lei 1079/50 diz que é crime de responsabilidade atentar contra a saúde pública dos brasileiros. Eu não consigo imaginar uma maneira como um presidente da República possa mais explicitamente atentar contra a saúde pública dos brasileiros do que fazer o que o Bolsonaro fez no contexto da pandemia. Qualquer presidente sabe que o espirro de um presidente é notícia na primeira página dos jornais. Todo presidente sabe que palavra, imagem, comportamento de presidente é poder por ele ser o presidente. Quando a Lei do Impeachment diz que o presidente precisa se comportar de acordo com a dignidade, a honra e o decoro do cargo, é principalmente esse freio, essa liturgia que um deputado não precisa ter no mesmo nível que um presidente tem. Que presidente usa sua visibilidade para desacreditar máscara e para, o tempo todo, minar a possibilidade de cooperação federativa ao embarcar numa guerra contra os governadores por pura estratégia política? No fundo, Bolsonaro sabia que os ônus principais da pandemia, que eram mortes, seriam possíveis de ser empurrados para prefeitos e governadores, porque quando a pessoa morre sem leito, ela vai morrer na porta de um hospital estadual ou municipal.

O ônus de fechar o comércio cabe aos prefeitos e governadores, porque é uma medida que em muitos casos vai ter variações locais, mas que foi transformado pelo Bolsonaro em um atentado político contra a liberdade das pessoas, de modo que o custo de tomar essa medida como um gestor público passou a ser muito alto. Tudo isso faz parte de uma estratégia política para tentar minimizar o impacto da pandemia na economia, que é a única coisa que normalmente seria atribuível à responsabilidade do presidente. A verdade é que o mundo hoje olha para a gente com assombro por mantermos o Bolsonaro presidente. O comportamento do Bolsonaro do ponto de vista jurídico caracteriza muito facilmente crime de responsabilidade, principalmente na sua gestão da pandemia. O elemento que falta é o político, porque esse é um jogo que o Bolsonaro sabe jogar muito bem e porque um impeachment precisa que todas as pessoas que não pertencem àquela base mais rígida do presidente se convençam não só que o impeachment é cabível, mas também que é a melhor alternativa estratégica à disposição. E esse consenso não existe. O que a gente vai saber é se essa estratégia não dá de barato que as eleições do ano que vem vão ser limpas, regulares e jogadas na bola, quando está a cada dia mais claro que o Bolsonaro não só não tem muito apreço pela condução de uma eleição em que ele se anteveja como perdedor, como também está reunindo condições materiais de jogar sujo na eleição se essa estratégia for boa para ele.

Desemprego

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A economia mundial vem passando por momentos de grandes transformações, a instabilidade e as incertezas crescem de forma aceleradas, a pandemia está criando novos desafios, muitos setores estão desestruturados, as cadeias de produção entraram em crise, o desemprego afetou parte significativa da população mundial, exigindo políticas efetivas de geração de emprego, salário e renda, além da reestruturação das políticas existentes para reativar os sistemas econômicos e produtivos. Vivemos num momento de repensarmos a sociedade global, desde a crise de 2008, da ascensão da China, destacamos a pandemia como potencial transformadora da coletividade mundial, exigindo novas lideranças, novas agendas e novas prioridades.

A situação da sociedade é de apreensão, a fome cresce de forma acelerada, o desemprego cresce, o subemprego e o desalento apresentam sinais de incremento, os sinais negativos da pandemia não arrefecem, gerando medos e instabilidades sociais, mostrando as desigualdades escondidas na sociedade, mostrando a falência da sociedade, falta liderança política, gestão coordenada entre os setores federativos e capacidade de gestão, deixando de difundir opiniões generalizadas e estímulo da ciência, comportamentos centrados no pensamento científico, na pesquisa e na reflexão da ciência.

Nos países desenvolvidos os governos estão injetando recursos monetários na economia, estes governos estão atuando no campo fiscal, aumentando os gastos e direcionando recursos para a geração de emprego, como forma de alavancar a economia, estimulando investimentos produtivos, ativando os recursos para a infraestrutura, adotando o receituário keynesiano.

Neste ambiente, as sociedades estão recorrendo a estímulos nos grupos mais fragilizados, canalizando recursos para alavancar os gastos das famílias e, com isso, estimulando a produção, com geração de emprego e da renda. Vivemos num momento de grande desenvolvimento tecnológico, neste ambiente de transformações aceleradas e estruturais, os trabalhadores estão percebendo a substituição de seus empregos, por máquinas e equipamentos, neste momento, faz-se necessário, a construção de um novo pacto social, evitando o crescimento da exclusão social e garantindo recursos mínimos e dignos para a sobrevivência das classes sociais, sem estes novos consensos, a ruptura deste modelo de organização social tendem a acontecer muito rapidamente e os custos sociais, econômicos e políticos impactará para toda a coletividade.

A recuperação econômica é fundamental para diminuir as tensões sociais na sociedade brasileira, neste momento, percebemos sinais, embora incipiente, de melhoria econômica. A recuperação está sendo estimulada com o aumento das commodities que passam a estimular a entrada de moedas estrangeiras, com isso, melhora as pressões cambiais e diminuem a possibilidade de incremento nos preços. Mesmo sabendo que o momento é salutar, precisamos entender que os ventos externos positivos não tendem a estimular o crescimento da economia nacional por muito tempo, precisamos adotar uma política mais assertiva e responsável na condução da economia brasileira, deixando de lado o arrocho excessivo das contas públicas e atuando mais efetivamente nos investimentos públicos, sem os gastos públicos e investimentos consistentes em educação, pesquisa e saúde, a recuperação tende a demorar e os indicadores sociais tendem a piorar e as condições tendem a gerar desequilíbrios crescentes.

O desemprego é uma das maiores indignidades da sociedade mundial, a tecnologia deve ser vista como um instrumento para melhorar o trabalho e a produtividade, além de integração social e emocional. Nos moldes que estamos percebendo, a tecnologia está sendo vista como uma forma de apartheid social e econômica, gerando pequenos bolsões de ricos e endinheirados e uma massa enorme de indigentes e miseráveis, onde o empreendedorismo e a meritocracia aumentam a distância entre as pessoas, criando pequenas castas de privilegiados e um contingente de excluídos e depauperados.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 09/06/2021.

A euforia no mercado, por Affonso Celso Pastore.

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Talvez investidores estejam aproveitando para realizar ganhos temporários

O Estado de S. Paulo 06/06/2021

Míopes são os indivíduos que enxergam mal à distância, e um investidor seria míope caso tivesse uma taxa de desconto muito alta, levando-o a ignorar os riscos de longo prazo e sendo seduzido pelos ganhos presentes. Embora há muito eu tenha me desiludido com a hipótese de mercados eficientes, nunca cheguei ao extremo de supor que a maioria dos investidores ignora os riscos. Por isso não me atrevo a propor que o atual rally nos preços de ativos seja fruto da miopia.

Minha hipótese é que no exercício competente de seu trabalho, os investidores estejam apenas aproveitando a oportunidade de realizar ganhos temporários, proporcionados pela surpresa de um crescimento econômico mais forte combinado com a “ajuda” da inflação, que em vez de ser o “bandido” está fazendo o papel do “mocinho”, encobrindo temporariamente a realidade da nossa situação fiscal.

Começo pela surpresa no crescimento, mas não sem antes afirmar que mesmo reconhecendo a boa notícia e a resiliência de nossa economia é difícil, diante de perto de 15 milhões de desempregados e de um contingente elevado de brasileiros que sobrevive à custa de uma ajuda emergencial, ver nela só sinais positivos. Ela é a consequência de uma bonança externa semelhante à que favoreceu Lula em 2010, embora em escala bem menor. Consiste na combinação do forte crescimento das exportações mundiais com um novo ciclo de elevação dos preços internacionais de commodities.

Embora este não seja um super ciclo semelhante ao de 2002/11, no qual em 10 anos o CRB foi multiplicado por três, e durante o qual (à exceção de 2008/09) o crescimento do PIB chinês se manteve em dois dígitos, por um bom tempo ainda ajudará as exportações brasileiras. Quando o crescimento da China retornar ao seu potencial, estimado em 5,5% ao ano, o ciclo terminará, mas isto não ocorrerá em 2021.

Entretanto, esta é apenas parte da explicação. O afrouxamento das regras de distanciamento social durante a segunda onda de contágio, levou aqueles que não têm condições de trabalhar em um home office a ir para as ruas, enfrentar transporte coletivo e locais de aglomerações. Se de um lado esse afrouxamento, que é claramente estimulado pelo governo, pode ajudar marginalmente a economia, na falta de vacinação rápida e eficiente provoca aumento do contágio e das mortes.

Quanto à inflação, atualmente a sua principal causa está nos efeitos da depreciação cambial já ocorrida sobre os preços agrícolas e os bens industriais, além do aumento dos preços do petróleo e tarifas de energia.

Se o Brasil não tivesse um risco fiscal superior ao da grande maioria dos países emergentes e da totalidade dos maduros, o enorme estímulo monetário imposto pelo FED teria valorizado o real em intensidade semelhante à dos demais países, permitindo a manutenção das taxas de juros mais baixas por mais tempo. O risco fiscal é uma causa peculiar ao Brasil, que explica por que o real está mais depreciado e mais volátil do que a grande maioria das demais moedas que, seguindo o enfraquecimento do dólar, já estão mais valorizadas do que em janeiro de 2020.

Antes da negociação do orçamento, que permitiu gastar R$ 110 bilhões acima do teto, acreditava-se que o “furo” poderia ser maior, e naquele período o real flutuava em torno de R$5,60/US$. Quando o Centrão e o governo chegaram a um acordo os prêmios de risco começaram a cair, e o real foi gradualmente se aproximando de R$ 5,20/US$.

Finalmente, quando ficaram claros os benefícios da inflação sobre o déficit primário e sobre a relação dívida/PIB o câmbio furou a barreira dos R$ 5,10/US$.

Devido ao aumento da arrecadação, fruto do maior crescimento e de mais inflação, o déficit primário será menor, e pelo efeito diferenciado do câmbio sobre o deflator do PIB, um crescimento de 5% em 2022 se transforma em um crescimento de 15% do PIB nominal, derrubando a relação dívida/PIB ao final de 2022 abaixo do valor atingido em 2021, sem que o governo tenha movido uma palha.

No curto prazo, graças a uma inflação mais alta caiu a percepção de risco fiscal, mas a médio e longo prazos nada se alterou, e a realidade voltará a se impor.

EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA A.C. PASTORE & ASSOCIADOS. ESCREVE QUINZENALMENTE

As empresas sob cerco, por Celso Ming.

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O Estado de S. Paulo – 04/06/2021

Ainda há quem pense que a agenda ESG (em inglês, Environmental, Social and Governance), cada vez mais cobrada de empresas, bancos e instituições para que, em seus negócios, sejam levadas em conta exigências socioambientais, seja onda passageira, coisa de fundamentalistas ou, ainda, de concorrentes incompetentes que pretendem tomar mercado no mole.

A questão deixou de ser puramente doutrinária. Empresas que não mudarem suas práticas perderão dinheiro – e muito – ou correm grandes riscos.

Ainda há quem pense que a agenda ESG (em inglês, Environmental, Social and Governance), cada vez mais cobrada de empresas, bancos e instituições para que, em seus negócios, sejam levadas em conta exigências socioambientais, seja onda passageira, coisa de fundamentalistas ou, ainda, de concorrentes incompetentes que pretendem tomar mercado no mole.

A questão deixou de ser puramente doutrinária. Empresas que não mudarem suas práticas perderão dinheiro – e muito – ou correm grandes riscos.

No início da semana, o jornal Financial Times publicou ampla matéria em que denuncia a gigante Nestlé (faturamento de US$ 93,3 bilhões em 2020) de manter no mercado nada menos que 63% de seus produtos com componentes prejudiciais à saúde humana. A revelação baseou-se em levantamentos internos feitos pela própria Nestlé. Também nesta semana, no que está sendo considerado caso sem precedente, a petroleira Exxon Mobil (faturamento de US$ 178 bilhões em 2020) teve de aceitar em seu conselho de administração dois ativistas do meio ambiente.

São pressões crescentes às empresas que governos vêm trabalhando para vê-las cumpridas.

Na última quinta-feira, o presidente do Banco da Inglaterra (BoE, pela sigla em inglês), Andrew Bailey, deixou de lado os temas puramente monetários para cobrar união de reguladores e formuladores de políticas destinadas a enfrentar ameaças de crises financeiras produzidas por desarranjos climáticos. No mesmo dia, o ex-presidente do Banco Central do Brasil Armínio Fraga advertiu que o derretimento do gelo, que agora pode estar provocando cheia recorde do Rio Negro, pode sepultar debaixo d’água as indústrias da Zona Franca de Manaus.

A BlackRock, que detém carteira de mais de US$ 8 trilhões em ativos, vem pressionando as empresas emissoras desses títulos a assumir o compromisso de reduzir a zero suas emissões até 2050 e a promover a diversidade nos seus conselhos de administração e colegiados.

Como comentado por esta Coluna, há duas semanas, o ex-vice-presidente dos Estados Unidos Al Gore avisou que montadoras, petroleiras, companhias de energia elétrica que operam com combustíveis fósseis poderão ser obrigadas a riscar dos seus balanços cerca de US$ 22 trilhões em ativos que deixarão de ter valor com o cumprimento das metas de descarbonização.

Por toda parte, governos de países industrializados vêm impondo prazos para o fim da venda de veículos movidos a combustíveis fósseis. Reino Unido, Bélgica e Irlanda fixaram essa proibição para 2030. A China pretende ter, até 2035, metade dos carros novos movidos a energia limpa. Alemanha e França definiram 2040 como prazo final. E o presidente Biden, dos Estados Unidos, avisou que planeja substituir os veículos federais em serviço por carros elétricos.

Com base nessas decisões ou, simplesmente, por encararem novas condições de mercado, as montadoras apressam o desenvolvimento de veículos elétricos e híbridos. A Volvo e a Volkswagen pretendem ter apenas elétricos em seus portfólios a partir de 2030. A General Motors deixará de vender carros a gasolina ou diesel a partir de 2035. A Mercedes-Benz pretende ser 100% elétrica em 2039.

Enfim, os tempos estão mudando. Quem ficar para trás pode se dar mal.

O dólar não para de cair em reais. Nesta sexta-feira, fechou a R$ 5,0356, queda de 3,6% em apenas três dias úteis de junho e de 7,3% em 30 dias.

Alguns analistas entendem que essa valorização do real é consequência da alta dos juros, que teria levado os investidores a trazer mais moeda estrangeira para o Brasil de modo a aproveitar o melhor retorno nas aplicações financeiras. Isso pode estar ocorrendo em certa medida. No entanto, o fator principal são os bons resultados da balança comercial.

The Economist: Bolsonaro não é única razão de o Brasil estar no buraco

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O sistema político que o ajudou a conquistar o cargo precisa de uma reforma profunda; próximo governo deve combater a corrupção sem preconceitos

The Economist, O Estado de S.Paulo – 04 de junho de 2021

Os hospitais estão lotados, as favelas ecoam tiros e um recorde de 14,7% dos trabalhadores estão desempregados.

Inacreditavelmente, a economia do Brasil está menor agora do que era em 2011 – e serão necessários muitos trimestres fortes como o relatado em 1.º de junho para reparar sua reputação. O número de mortos no Brasil pela covid-19 é um dos piores do mundo. Mas o presidente Jair Bolsonaro faz piada dizendo que as vacinas podem transformar as pessoas em jacarés.

O declínio do Brasil foi chocantemente rápido. Após a ditadura militar de 1964-85, o país conseguiu uma nova Constituição que devolvia o Exército aos quartéis, uma nova moeda que acabou com a hiperinflação e programas sociais que, com um boom de commodities, começaram a reduzir a pobreza e a desigualdade. Uma década atrás, o País estava cheio de dinheiro do petróleo e tinha sido escolhido para sediar a Copa do Mundo de 2014 e a Olimpíada de 2016. Parecia destinado a florescer.

Mas o Brasil não aproveitou a oportunidade. Como argumenta nossa reportagem especial desta semana, governos consecutivos cometeram três erros. Primeiro, eles cederam à visão de curto prazo e adiaram as reformas econômicas liberais. A culpa por isso pertence principalmente ao Partido dos Trabalhadores (PT) que ocupou a Presidência entre 2003-16. Ele alcançou um crescimento de 4% ao ano, mas não investiu para aumentar a produtividade. Quando os preços das commodities caíram, o Brasil enfrentou uma das piores recessões de sua história. Os governos de Michel Temer e Bolsonaro fizeram algum progresso nas reformas, mas pararam muito aquém do que é necessário.

Em segundo lugar, em seus esforços para se protegerem das consequências da Lava Jato, os políticos têm resistido às reformas que impediriam a corrupção. Os promotores e juízes por trás da Lava Jato são parcialmente culpados. Depois que alguns demonstraram ter uma agenda política, os inquéritos dos quais eram responsáveis ficaram estagnados no Congresso e nos tribunais.

Por último, o sistema político do Brasil é um fardo. Distritos estaduais e 30 partidos no Congresso tornam as eleições caras. Mais ainda do que em outros países, os políticos no Brasil tendem a apoiar projetos extravagantes para ganhar votos, em vez de reformas valiosas de longo prazo. Uma vez no cargo, eles seguem as regras erradas que os elegeram. Eles desfrutam de privilégios legais que os tornam difíceis de serem processados e de uma grande quantidade de dinheiro para ajudá-los a manter o poder. Como resultado, os brasileiros os desprezam. Em 2018, apenas 3% disseram confiar “muito” no Congresso.

A desilusão abriu o caminho para Bolsonaro. Ex-capitão do Exército com uma queda pela ditadura, ele convenceu os eleitores a verem seu jeito politicamente incorreto como um sinal de autenticidade. Ele prometeu eliminar políticos corruptos, reprimir o crime e turbinar a economia. E tem fracassado em todas as três tarefas.

Depois de aprovar a reforma da previdência em 2019, ele abandonou a agenda de seu ministro da Economia liberal, temendo que ela lhe custasse votos. A reforma tributária e do setor público e as privatizações estagnaram. O auxílio emergencial ajudou a evitar a pobreza no início da pandemia, mas foi reduzido no final de 2020 em razão do aumento da dívida. A taxa de desmatamento na Amazônia aumentou mais de 40% desde que Bolsonaro assumiu o cargo. Ele levou uma motosserra para o Ministério do Meio Ambiente, cortando seu orçamento e forçando a saída de funcionários.

Seu ministro do Meio Ambiente está sob investigação por tráfico de madeira.

Em relação à covid-19, Bolsonaro apoiou manifestações contra os bloqueios totais e curas de charlatões. Ele enviou aviões carregados de hidroxicloroquina para povos indígenas. Por seis meses ele ignorou ofertas de vacinas. Um estudo descobriu que o atraso pode ter custado 95 mil vidas.

Em vez de lidar com a corrupção, ele protegeu seus aliados. Em abril de 2020, demitiu o chefe da Polícia Federal, que investiga os filhos dele por corrupção. Seu ministro da Justiça pediu demissão, acusando-o de obstrução da justiça. Dias antes, Bolsonaro havia ameaçado a independência do Supremo Tribunal Federal (STF). Em fevereiro, seu procurador-geral acabou com a força-tarefa da Lava Jato.

A democracia brasileira está mais frágil do que em qualquer momento desde o fim da ditadura. Em março, Bolsonaro demitiu o ministro da Defesa, que se recusou a enviar o Exército às ruas para forçar a reabertura de empresas. Se ele perder a reeleição em 2022, alguns acham que ele pode não aceitar o resultado. Ele lançou dúvidas em relação ao voto eletrônico, aprovou decretos para “armar a população” e se gabou de que “só Deus” o tirará da cadeira presidencial.

Impeachment
Na verdade, o Congresso brasileiro poderia fazer o trabalho sem a intervenção divina. Sua conduta provavelmente se qualifica como passível de impeachment, incluindo “crimes de responsabilidade”, como encorajar as pessoas a desafiar os bloqueios totais, ignorar ofertas de vacinas e demitir funcionários para proteger seus filhos. O Congresso recebeu 118 petições de impeachment. Dezenas de milhares de pessoas foram às ruas em 29 de maio para exigir sua expulsão do cargo.

Por enquanto, ele tem apoio suficiente no Congresso para impedir o impeachment. Além disso, o vice-presidente, que assumiria, é um general também nostálgico do regime militar. A última vez que o Congresso votou pelo impeachment de um presidente no Brasil – Dilma Rousseff em 2016 por esconder o tamanho do déficit orçamentário – isso dividiu o País. Bolsonaro se apresentaria como um mártir. Muitos de seus apoiadores estão armados.

No longo prazo, além de substituir Bolsonaro, o Brasil deve lidar com o cinismo e o desespero que o elegeu, enfrentando o baixo crescimento crônico e a desigualdade. Isso exigirá uma reforma dramática. No entanto, a própria resiliência que protegeu as instituições brasileiras das predações de um populista também as torna resistentes a mudanças benéficas.

As ações necessárias são difíceis. Acima de tudo, o governo precisa servir ao público e não a si mesmo. Isso significa reduzir os privilégios dos trabalhadores do setor público, que consomem uma parcela insustentável dos gastos do governo. Os políticos também não devem poupar a si mesmos. Os titulares de cargos devem ter menos proteções legais. Eles deveriam reorganizar os sistemas eleitoral e partidário para deixar sangue novo entrar no Congresso.

O próximo governo deve combater a corrupção sem preconceitos, conter gastos desnecessários e aumentar a competitividade. A aplicação de medidas severas na Amazônia deve ser acompanhada de alternativas econômicas ao desmatamento. Caso contrário, mais cedo ou mais tarde, novos Bolsonaros surgirão.
Há um longo caminho pela frente.

A não ser que o impeachment de Bolsonaro ocorra, o destino do Brasil provavelmente será decidido pelos eleitores no ano que vem. Seus rivais deveriam oferecer soluções em vez de espalhar nostalgia. Seu sucessor herdará um País deteriorado e dividido. Infelizmente, a podridão vai muito além de um homem só.

TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA

The Economist: O capitão e o seu país

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O Brasil está retrocedendo. Jair Bolsonaro e a covid-19 são os mais recentes de uma década de desastres

The Economist, O Estado de S. Paulo – 05 de junho de 2021

Num determinado dia de abril, quando os hospitais brasileiros estavam sem oxigênio e 3 mil pessoas morriam diariamente em decorrência da covid-19, o chefe de gabinete de Jair Bolsonaro, Luiz Eduardo Ramos, 64 anos, foi vacinado. Era a sua vez e ele tomou a vacina em segredo. Seu chefe era contra a vacina. Indagado por que o Brasil estava bloqueando a aprovação da vacina da Pfizer, o presidente fez uma piada dizendo que vacinas transformavam as pessoas em jacarés.

O fato de Ramos, general quatro estrelas e o comandante das tropas de manutenção de paz no Haiti, ter se vacinado furtivamente revela o quão profundo o Brasil desabou sob a condução de Bolsonaro, cuja carreira como capitão do Exército se destacou apenas quando foi preso por insubordinação.

Antes da pandemia, o Brasil já estava doente há uma década, econômica e politicamente. Com Bolsonaro como seu médico, agora está em coma. Mais de 87 mil brasileiros morreram por causa da covid-19 em abril, o maior número mensal de mortos registrado no mundo inteiro na época. As vacinas são tão escassas que pessoas com menos de 60 anos

de idade não serão vacinadas antes de setembro. E 14,4% dos trabalhadores estão desempregados, um recorde.

Mas em 1º de maio, os bolsonaristas, com camisetas estampando a bandeira brasileira, foram às ruas.

Sem se abalar com a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investiga a condução da covid-19. pelo presidente, eles aplaudiram sua recusa em usar máscara, seu apoio à hidroxicloroquina e o seu desejo de enviar o Exército para as ruas e obstruir as ordens para as pessoas permanecerem em casa. Seus admiradores em São Paulo pediam “intervenção militar”. Uma mulher disse a um visitante que o Brasil jamais teve uma guerra civil. “Está na hora”, afirmou ela.

Mude o português pelo inglês e o verde e amarelo pelo vermelho, branco e azul, e a manifestação poderia ser nos Estados Unidos no ano passado. Bolsonaro tomou emprestado as táticas de Donald Trump para vencer a eleição em 2018: populismo, nacionalismo, chauvinismo e fake news. O Brasil estava traumatizado com a corrupção, recessão, a piora dos serviços públicos e o crime violento. Os brasileiros estavam fartos de políticos incapazes de resolver esses problemas. Bolsonaro canalizou essa frustração.

E se apresentou como um outsider, embora tenha passado 27 anos como deputado, gerando notícia apenas quando dizia algo ofensivo contra as mulheres, os povos indígenas e os gays. Admirador da ditadura militar que vigorou no Brasil de 1964 a 1985, ele sempre posou com seus polegares e indicadores apontados como se estivesse atirando com uma arma.

Investido no cargo, seu alvo direto foram as instituições democráticas do País.
Bons tempos, maus tempos. Há dez anos, a eleição de Bolsonaro seria algo impensável. Após a ditadura, o Brasil se reformou. A Constituição assinada em 1988 criou instituições independentes. Uma nova moeda em 1994 freou a inflação. Um boom de commodities em 2000 gerou empregos. Com dinheiro no bolso, os brasileiros viram sua vida melhorar.

Sob a Presidência de Luiz Inácio Lula da Silva, o Brasil se uniu à Rússia, Índia e China, formando o bloco dos BRICs, economias emergentes com rápido crescimento. Liderou conversas sobre o clima e hospedou a Copa do Mundo de Futebol em 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016.

Mas então o boom das commodities acabou. Protestos em 2013 contra o aumento das tarifas se transformaram em manifestações visando a derrubar o governo do Partido dos Trabalhadores, de esquerda. Uma investigação anticorrupção iniciada em 2014, conhecida como Lava Jato, revelou que dezenas de empresas pagaram propinas para políticos em troca de contratos firmados com a Petrobrás. A economia entrou em colapso depois dos gastos irresponsáveis feitos pela sucessora de Lula, Dilma Rousseff.

Manifestações maiores e mais enfurecidas levaram ao impeachment de Dilma Rousseff. Seu substituto, Michel Temer, foi acusado de atos de suborno e escapou por pouco de um impeachment em 2017.

A eleição de Bolsonaro foi após esses traumas. Ele contava com pouco financiamento para pagar tempo de propaganda na TV e rádio, mas sua candidatura alavancou quando foi esfaqueado durante um evento de campanha. Lançando-se como o salvador do Brasil, ele conquistou 55% dos votos. Seu apoio maior foi no Sul e Sudeste, as regiões mais ricas e mais brancas do País, e entre os conservadores, como fazendeiros e evangélicos. Milhões de eleitores o apoiaram por raiva do PT. Bolsonaro parecia, para muitos, o menor dos males.

Para muitos especialistas, as instituições brasileiras resistiriam aos seus instintos autoritários. Até agora parecem certos. Embora Bolsonaro afirme que seria fácil dar um golpe, não foi adiante. Mas, num sentido mais amplo, os especialistas erraram. Seus primeiros 29 meses no cargo mostraram que as instituições do País não são tão fortes como se imaginava e se debilitaram com suas investidas. Cláudio Couto, cientista político da Fundação Getúlio Vargas, compara as instituições aos breques de um carro indo colina abaixo. “Se pressionados com muita força, eles podem falhar”, disse ele.

É o caso do Judiciário. A Lava Jato parecia o triunfo da década. Os brasileiros esperavam que reformas anticorrupção produziriam legisladores mais honestos que atuariam em favor do povo e não em proveito próprio. Mas alguns procuradores e juízes da Lava Jato tinham uma agenda política. Isso abriu o caminho para Bolsonaro, diante de acusações contra seus filhos, para pôr fim à investigação, o que ajudou não apenas políticos corruptos, mas também grupos do crime organizado.

A economia necessita muito de reformas para frear o crescimento dos gastos públicos, impulsionar a competitividade e corrigir as desigualdades. Quando candidato, Bolsonaro expressou sua crença na economia liberal. Recrutou Paulo Guedes, defensor do livre mercado, formado na Universidade de Chicago, para ser seu ministro da Economia.

Mas em seguida ele se recusou a apoiar mudanças que lhe custariam votos. Depois de uma reforma do sistema de previdência social em 2019, a agenda de reformas de Guedes paralisou. Seis dos dez membros da sua “equipe do sonho” deixaram o cargo ou foram demitidos.

A pandemia eliminou todos os ganhos em termos de empregos criados desde a recessão de 2014-2016, com milhões de pessoas caindo de novo na pobreza.

Nenhum dos quatro ministros da Educação nomeados por Bolsonaro criou um sistema de ensino à distância funcional. Um desses ministros durou apenas cinco dias no posto, quando se descobriu que no seu currículo constavam dados falsos de formação na Argentina e na Alemanha. Cerca de 35 milhões de crianças estão fora da escola há 15 meses, um entrave para a mobilidade social nos próximos anos.

Em termos políticos, “a promessa de renovação foi uma grande mentira”, disse Couto. Em 2018 os eleitores expulsaram grande parte da classe política tradicional. Pela primeira vez, o Congresso tinha mais parlamentares novos do que reeleitos. Um pequeno grupo comprometido com a responsabilidade fiscal e outras reformas era a esperança do futuro.

Mas muitos políticos continuam famintos por privilégios.

Depois de denunciar o sistema, Bolsonaro também se juntou a ele para se salvar de mais de cem pedidos de impeachment.

Ele provocou mais danos à floresta amazônica, que agora no Brasil emite mais carbono do que armazena por causa da mudança climática e do desmatamento. O presidente não acredita em mudança climática e tem simpatia pelos que desmatam: madeireiras, empresas de mineração e fazendeiros. Cortou o orçamento do ministério do Meio Ambiente e

forçou a saída de funcionários competentes. Reduzir o desmatamento exige políticas mais concretas e investimento em alternativas econômicas. Nada disso parece provável.

No início, a covid-19 ajudou Bolsonaro. Grandes gastos em empresas e auxílio aos pobres desviaram a atenção do seu fracasso em aprovar as reformas fiscais.

Seu índice de popularidade chegou ao nível mais alto desde que assumiu a Presidência. Em julho passado ele contraiu a covid-19 e se recuperou rapidamente, como havia prometido. Parecia ocorrer o mesmo com a economia, abrindo caminho para sua reeleição em 2022.

Mas então, no início de 2021, o Brasil foi atingido por uma segunda onda com uma variante mais infecciosa do vírus originada na cidade de Manaus. Enquanto a mídia social estava repleta de imagens do vizinho Chile e as filas de vacinação, os coveiros no Brasil estavam atarefados. Bolsonaro continuou a atacar os lockdowns e as vacinas. Numa mudança de gabinete, demitiu o ministro da Defesa, que teria se recusado a lhe prestar lealdade.

Os comandantes das três Forças Armadas renunciaram em protesto, alimentando rumores de um golpe. Que não se verificou. Mas este relatório especial afirma que o Brasil enfrenta sua pior crise desde o retorno à democracia em 1985. Seus desafios são gigantescos: estagnação econômica, polarização política, ruína ambiental, retrocesso social e o pesadelo da covid-19. E tem de aguentar um presidente que vem corroendo o próprio governo. Sua camarilha substituiu os funcionários de carreira. Seus decretos desgastaram os pesos e contrapesos em todos os lugares.

Observe o Diário Oficial da União, onde todas as mudanças legais são publicadas, disse Lilia Schwarcz, historiadora. “Há um golpe todos os dias”.

TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO.

Bolsonaro e a anarquia militar

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A desgraça deste país é uma obra coletiva

Cristina Serra Folha de São Paulo, 05/06/2021

A indulgência do comandante do Exército, Paulo Sérgio Nogueira, ao ato de flagrante indisciplina do general Eduardo Pazuello, terá consequências de alto risco para a conjuntura política brasileira. Mas não se pode dar a essa decisão a responsabilidade pela instalação da anarquia entre os fardados. Ela fomenta a anarquia, é certo. Mas o caldo da insubordinação começou a ferver faz tempo.

O marco mais explícito da permissividade nos quartéis deve-se a outro comandante da força, o general Villas Bôas, e seu post ameaçando o STF na véspera da votação do habeas corpus de Lula, em 2018. Na campanha daquele ano, militares da ativa engajaram-se com desenvoltura em exércitos digitais, públicos ou não, a favor de Bolsonaro. Como se sabe, em instituição hierarquizada o exemplo vem de cima.

Também deu mau exemplo o então ministro da Defesa, Fernando Azevedo, quando acompanhou Bolsonaro em sobrevoo de apoio à manifestação contra o Congresso e o STF, que pedia “intervenção militar”. Ao ser defenestrado, em março, afirmou ter preservado as Forças Armadas como “instituições de Estado”. Cinismo ou ingenuidade?

É claro que há nuances e divergências de pensamento entre os militares. Mas essas diferenças não abalam, por ora, o projeto que os trouxe de volta ao poder. Este é um governo colonizado por e para militares, com seus salários, cargos, mordomias, privilégios e outras benesses.

As Forças Armadas carregam a mancha de 21 anos de ditadura, tortura e morte de opositores. Com Bolsonaro, reforçam sua tradição golpista, associam-se ao morticínio de brasileiros na pandemia, afundam-se no pântano da história. Mas não estão sozinhas. Bolsonaro fermenta o caos com a complacência de parcelas da sociedade civil, como o capital financeiro, oligarcas do agronegócio, setores do Legislativo e do Judiciário, mídia, igrejas. A desgraça deste país é uma obra coletiva.