Minha única expectativa para 2022 é sair do lugar, por Lúcia Guimarães.

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Depois de dois anos de isolamento, que o ano novo chegue com movimentos, mas sem amnésia

Lúcia Guimarães É jornalista e vive em Nova York desde 1985. Foi correspondente da TV Globo, da TV Cultura e do canal GNT, além de colunista dos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo.

Folha de São Paulo – 30/12/2021

Quem já não sonhou que está correndo, fugindo de uma ameaça, mas não consegue sair do lugar? É um sonho comum e é compreensível, antes de qualquer interpretação freudiana. O estágio de sono que nos permite sonhar é acompanhado de atonia, a paralisia de braços e pernas, daí a sensação de imobilidade que inunda o sonho.

Já o pesadelo que vivo acordada há dois anos é fruto de imobilidade imposta, nos Estados Unidos e no Brasil.

A disparada de casos de Covid-19 com a variante ômicron foi provocada pela desigualdade vacinal que permitiu ao vírus desenvolver novas cepas em populações não imunizadas nos países mais pobres —uma tragédia anunciada por epidemiologistas. Aqui, o público que escolheu recusar a vacina continua incapaz de aprender com as cenas de horror nas UTIs, morrendo duas vezes mais do que as pessoas triplamente vacinadas.

Dois anos de ataques à democracia, aumento de violência racial e religiosa nos EUA nada ensinaram aos brasileiros que votaram num Trump mais depravado e pavimentaram o terreno para a morte de 620 mil pessoas. E não importa os números deixarem claro que a grande maioria quer ver o monstro do Planalto pelas costas: 47% do empresariado brasileiro prefere mais morte, fome, desemprego, genocídio indígena e massacres em favelas —qualquer coisa para não eleger seu espantalho de estimação.

O comentariado pusilânime da imprensa política nada aprendeu com seu papel, em 2018, de conferir legitimidade à candidatura de um jagunço do baixo clero que planejou plantar bombas em quartéis antes de ser defenestrado com um tapinha na mão pelo Exército. Não se envergonha de ter manufaturado um ministro competente na figura de um fantasista medíocre, pinçado do merecido desdém que despertava entre pares economistas.

Os mesmos absolutistas que selecionam o reizinho da vez fazem marketing eleitoral escancarado para um santarrão de pau oco que não sai de um dígito nas pesquisas, nunca geriu sequer uma barraca na feira livre e abusou do Judiciário para interferir na eleição de 2018.

Não aprendem nada.

Viver nesse Brasil é correr o tempo todo sem sair do lugar. Somos reféns da soberba de uma elite niilista que detesta o país e promove uma permanente queima do estoque —das florestas, dos corpos jovens perfurados por balas, dos cérebros que fugiram para o exterior.

Depois de dois anos de isolamento e sucessivos planos cancelados de reencontrar a família, minha única expectativa para 2022 é sair do lugar. Para isso é preciso remover os obstáculos de toda ordem e, acima de tudo, derrotar nas urnas o autor de crimes contra a humanidade.

Mas é importante também clamar por Justiça para os cúmplices nesta matança intencional de brasileiros (consultem a lista do Renan Calheiros); resistir aos sociopatas que acham que nos infectar numa pandemia é exercer liberdade individual; e não compactuar com a degradação da minha profissão, cujo dever é defender a democracia, não inventar candidatos sob medida para manter o Brasil atolado no que pior se tem produzido na vida pública.

Sair do lugar não é seguir em frente com amnésia. Nenhum dos sonsos nos três Poderes, os que acharam normal o avanço do Partido Militar sobre a nossa democracia, os falsos arrependidos que voltam a pedir para comprar fiado no nosso balcão, nenhum deles merece perdão da dívida que contraiu com o Brasil.

A reforma empresarial da educação: nova direita, velhas ideias., por Marisa de Oliveira.

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Comentário sobre o livro de Luiz Carlos de Freitas

O livro A reforma empresarial da educação: nova direita, velhas ideias, do professor da Faculdade de Educação da Unicamp Luiz Carlos de Freitas, foi lançado em 2018, pouco depois da homologação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) brasileira para os ensinos Infantil e Fundamental. Antes da eleição presidencial de 2018, assim, não aborda os desatinos que nos assombram desde então.

No entanto, sob o circo armado pelo ministério da Educação do governo Bolsonaro em torno de suas pautas esdrúxulas, vigoram as linhas gerais da concepção de educação que vinha ganhando espaço no MEC e na sociedade há décadas e se impôs com mais força após o golpe de 2016. É dessa concepção, que mira a instauração de um clima de autoritarismo social, prevalência de ideias individualistas e implantação de uma dinâmica econômica ultraliberal, que trata a obra.

Freitas apresenta o conjunto de ideias e políticas que configuram a “reforma empresarial da educação”, expressão cunhada por estudiosos estadunidenses críticos ao processo de padronização da educação que nos Estados Unidos encontra-se em estágio avançado, a ponto de já estar sendo questionado e revisto.

Já nas primeiras páginas, o autor ergue a sua bandeira – a da defesa de uma educação pública de gestão pública – e reitera que o projeto de país e de vida por construir, no qual a educação pública e de gestão pública se inscreve como meio e fim, opõe-se radicalmente ao atual, que visa à formação de indivíduos aptos para o trabalho na indústria 4.0 e resignados – empregados ou não – a uma vida precária em todos os seus níveis.

Além de tomar partido, o autor despoja da pretensa capa de “apolítico” o partido que se opõe à escola pública de gestão pública. Para tanto, descreve e analisa com rigor os elementos que constituem o quadro de implantação da reforma e alguns de seus resultados, sobretudo nos Estados Unidos e no Chile, mas também no Brasil.

A referida reforma insere-se em um contexto mais amplo, em que ocorre uma paulatina conversão de todos os direitos sociais em serviços. Teóricos do liberalismo mais radical como James Buchanan, Chicago boy sustentado pelos irmãos Koch que colaborou na redação da Constituição da ditadura chilena, seriam os articuladores políticos desse assalto aos direitos sociais em escala global.

Essa proposta se assenta, grosso modo, nas premissas de que somos todos irremediavelmente individualistas, de que o Estado é um mau gestor (mas bom financiador) e de que os “vencedores”, ao serem obrigados a pagar tributos e acatar regulações que protegem os subalternos, são penalizados por seus méritos.

Desses pressupostos desdobra-se todo um programa de mudança nos termos das relações entre empresariado, governo e classe trabalhadora, em alguma medida beneficiado pela crise econômica do fim dos anos 1970 e a ascensão de figuras como Ronald Reagan e Margareth Thatcher ao poder. Na América Latina, houve alguma resistência ao modelo, decorrente sobretudo das condições de vida brutais que este impunha em um cenário de desigualdades profundas. No Brasil, porém, o ultimato foi dado em 2016, com o golpe que destituiu Dilma Rousseff – e a coalização que o autor chama de “capitalista desenvolvimentista” – da presidência. Retorna ao poder a coalizão de centro-direita (PSDB e PFL/DEM), e aumenta a velocidade de um processo que já vinha se desenvolvendo desde a década de 1990.

A frente política nesse programa econômico e ideológico é de grande importância, na medida em que imprime a desregulamentação do trabalho na lei e colabora para a reprodução da ideia de que estamos todos contra todos, dentro e fora da escola.

Nesse cenário de completa desregulamentação e reiteração de que as desigualdades socioeconômicas são irreversíveis e até aceitáveis, a escola é meio e fim: meio de difusão do ideal concorrencial e um negócio lucrativo em si mesmo, desde que gerida como empresa.

Base curricular, avaliação, responsabilização: gestão privada e financiamento público
O autor enfoca o papel das bases curriculares e das avaliações em larga escala, associadas ao princípio de accountability, ou “responsabilização”, no processo de incorporação das escolas, sobretudo públicas, ao jogo do mercado. O pressuposto é sempre o de que o que está fora do mercado tende ao abandono e à “ineficácia”, sem ressalvas sobre as condições em que essas instituições operam. De acordo com esse modelo, existe um conjunto de conteúdos, habilidades e competências, definido nas bases nacionais comuns curriculares, que o estudante precisa dominar, independentemente das especificidades de seu contexto.

O cumprimento dessa norma é verificado por meio de avaliações igualmente padronizadas, cuja função é tachar escolas e estudantes como “eficientes” e “ineficientes”. As escolas “eficientes” fazem sucesso na mídia e junto aos pais; já as “ineficientes” passam por reestruturações que envolvem de fechamento a imposição de uma gestão privada, via terceirização ou privatização propriamente dita. Quanto aos estudantes das escolas “reformadas”, aqueles considerados inadequados são levados a abandonar os estudos, enquanto os que se adaptam têm ganhos acadêmicos pouco significativos – o professor cita pesquisas baseadas em metadados que revelam resultados acadêmicos discutíveis (mesmo sob a perspectiva empobrecedora da escola neoliberal) e tentativas de justificá-los sem pôr em risco a credibilidade da reforma junto à opinião pública.

Contorcionismos no processo educacional que passam a focalizar o sucesso dos alunos nas avaliações a despeito de todas as outras dimensões da experiência escolar não afetam apenas os estudantes. Sob a gestão privada, professoras e professores vivem sob a pressão de metas que não dialogam com a realidade. O “aprimoramento” do docente segundo os termos da reforma passa a ser condição de empregabilidade, o que abre campo fértil ao mercado de cursos, formações, consultorias e outros empreendimentos que prometem preencher lacunas que a própria reforma cria, em um processo incessante de distorções e correções igualmente distorcionantes.

O autor salienta que o discurso da escola pública “eficiente”, da educação “de qualidade” sem mais considerações sobre o que significa “eficiência” e “qualidade”, seduz um espectro mais amplo que o da direita, espraiando-se para a centro-esquerda. Os testes padronizados e seus resultados tendem a ser tratados como informação inconteste sobre a eficácia do processo educacional como um todo. Como se o conteúdo destes e a interpretação dos dados que geram fossem imunes à ideologia, como o seriam as palavras “liberdade”, “responsabilização” e “inovação”, além das já citadas “eficiência” e “qualidade”, e também “educação”.

Em suma, trata-se de um livro comprometido com a educação emancipadora, que só é possível, como demonstra o autor, se for pública de gestão pública. Oferece uma análise de práticas e discursos difusos que têm tomado conta do debate, e um posicionamento assertivo contra a ofensiva neoliberal sobre a educação e as demais dimensões da vida.

Em passagem em que trata do inevitável choque entre o currículo nacional e a unidade escolar, o professor Freitas afirma: “Há vida inteligente no interior das escolas, suficiente para submeter à crítica as ideias que rondam a reforma empresarial da educação.” O quadro apresentado nesse livro revela que os que estão nas escolas, e não só estes, precisam contar com essa vida inteligente, precisam ser essa vida inteligente.

*Marisa de Oliveira é professora de língua portuguesa.

Referência

Luiz Carlos de Freitas. A reforma empresarial da educação: nova direita, velhas ideias. São Paulo, Expressão Popular, 2018, 160 págs.

EUA: a admirável “greve geral não declarada”, por Sonali Kolhatkar.

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Frente a baixos salários e empregos de merda, multiplicam-se as autodemissões, às vezes performáticas; e espalham-se as greves, algumas com grandes vitórias. Há algo surpreendente no coração do capitalismo – mas a velha mídia não quer ver

Por Sonali Kolhatkar, no Alencontre | Tradução: Vitor Costa
OUTRAS PALAVRAS – 25/12/2001

Em 14 de setembro de 2021, uma jovem da Louisiana chamada Beth McGrath postou no Facebook um vídeo em que trabalhava no Walmart. Sua linguagem corporal mostra uma forte tensão quando ela cria coragem para anunciar, pelo microfone, sua demissão aos compradores da loja. “Todo mundo aqui está com excesso de trabalho e é mal pago”, ela começa, e continua questionando alguns gerentes por seus comportamentos impróprios e desrespeitosos. “Espero que vocês não falem com suas famílias da mesma forma que falam conosco”, disse ela antes de terminar com um “foda-se este trabalho!”.

Talvez Beth McGrath tenha se inspirado em Shana Ragland, de Lubbock, cidade do Texas, que quase um ano atrás apresentou uma demissão pública semelhante em um vídeo de TikTok que ela postou da loja Walmart onde trabalhava. As queixas de Shana Ragland eram semelhantes às de Beth McGrath, pois ela acusava os gerentes de insultar constantemente as trabalhadoras. “Espero que você não fale com suas namoradas do jeito que fala comigo”, disse ela pelo microfone da loja, antes de concluir com um “fodam-se os responsáveis, foda-se essa empresa”.

As demissões dessas duas jovens viralizaram e resumem bem um ano de grande instabilidade na força de trabalho estadunidense, que os economistas batizaram de “A Grande Demissão”. As mulheres, em particular, são vistas como as pioneiras dessa tendência.

A grande demissão
A gravidade da situação foi confirmada pelo último relatório do Bureau of Labor Statistics (BLS de 12 de outubro de 2021), que indica que uma porcentagem recorde de 2,9% da força de trabalho deixou seus empregos em agosto de 2021, o equivalente a 4,3 milhões de demissões.

Se essa alta taxa de demissões ocorresse em um momento em que os empregos são abundantes, isso poderia ser visto como um sinal de uma economia próspera, onde os trabalhadores poderiam escolher seus empregos. Mas o mesmo relatório do BLS mostrou que as vagas também diminuíram, sugerindo que algo mais está acontecendo. Uma nova pesquisa da Harris (também de 12 de outubro) com pessoas que estão empregadas, descobriu que mais da metade dos trabalhadores deseja se demitir. Muitos deles citam a falta de atenção e cuidados por parte do empregador e a falta de flexibilidade no planejamento dos horários de trabalho para justificar o desejo de deixar o emprego. Em outras palavras, milhões de trabalhadores na América simplesmente estão de saco cheio.

A turbulência no mercado de trabalho é tão grave que Jack Kelly, um colaborador sênior da Forbes.com, uma mídia favorável às empresas, definiu a tendência como uma “espécie de revolução e levante de trabalhadores contra maus chefes e corporações que se recusam a remunerar adequadamente e que exploram seu pessoal” (publicada em 8 de outubro de 2021). No que pode ser uma referência a vídeos virais como os de Beth McGrath e Shana Ragland – e a tendência crescente de postagens com a hashtag #QuitMyJob – Jack Kelly continua: “Os que se demitiram estão fazendo uma declaração poderosa, positiva e assertiva, dizendo que eles não aguentarão mais esses comportamentos abusivos”.

Ainda assim, alguns consultores sugerem combater a raiva dos trabalhadores por meio de “exercícios de vínculo”, como “compartilhamento de reconhecimento” e jogos. Outros sugerem aumentar a confiança entre trabalhadores e chefes – ou “exercer uma curiosidade empática” com os funcionários. Mas essas abordagens mais superficiais ignoram totalmente o problema principal.

Essas demissões devem ser vistas em conjunto com outra poderosa corrente que muitos economistas ignoram: o desejo crescente dos trabalhadores sindicalizados de entrar em greve.

As grandes greves
Em 13 de outubro de 2021, as equipes de filmagem da indústria cinematográfica anunciaram que poderiam parar em breve porque 60 mil membros da Aliança Internacional de Teatro e Funcionários de Palco (IATSE) haviam convocado uma greve nacional. (No lançamento do movimento, no domingo, 17 de outubro, foi obtido um acordo para melhorar a condição das equipes de filmagem; o espectro de uma paralisação pesou na decisão).

Cerca de 10 mil trabalhadores da John Deere (máquinas agrícolas), representados pelo United Auto Workers (UAW), também estão se preparando para entrar em greve após rejeitarem uma nova tentativa de acordo. A rede de clínicas Kaiser Permanente deve enfrentar uma greve de pelo menos 24 mil de suas enfermeiras e outros profissionais de saúde nos estados do oeste devido à piora dos salários e das condições de trabalho. E cerca de 1.400 trabalhadores da Kellogg em Nebraska, Michigan, Pensilvânia e Tennessee já estão em greve por causa de salários e benefícios (como plano de saúde e aposentadoria) insuficientes.

As greves anunciadas são tantas – e acontecem tão rápido – que o ex-secretário do Trabalho dos EUA (1992-1997, na gestão Bill Clinton) Robert Reich chamou a situação de “greve geral não-oficial” (The Guardian, 13 de outubro de 2021).

Ainda assim, a representação sindical permanece extremamente baixa nos EUA, resultado de décadas de esforços combinados das empresas para minar o poder de negociação dos trabalhadores e trabalhadoras. Hoje, apenas 12% dos trabalhadores e trabalhadoras são sindicalizados.

O número de greves e de trabalhadores e trabalhadoras em greve poderia ser muito maior se mais deles fossem sindicalizados. Trabalhadoras não sindicalizadas como Beth McGrath e Shana Ragland, contratadas por empresas historicamente antissindicais como o Walmart, poderiam ter conseguido organizar seus colegas de trabalho em vez de recorrer a demissões individuais divulgadas nas redes. Embora as mensagens de demissão nas redes sociais tenham um grande impacto nas discussões sobre o descontentamento dos trabalhadores e trabalhadoras, elas têm pouco impacto direto nas vidas dos colegas que permaneceram em seus empregos.

Um exemplo de como a organização sindical faz uma diferença concreta nas condições de trabalho é o acordo ratificado recentemente por 7 mil trabalhadores e trabalhadoras das farmácias Rite Aid e CVS (Consumer Value Store) em Los Angeles. A seção local da United Food and Commercial Workers negociou um aumento salarial de quase 10% para os trabalhadores e trabalhadoras, assim como benefícios sociais e padrões de segurança aprimorados.

E quando as empresas não atendem às demandas trabalhistas, os funcionários têm mais poder quando atuam como um coletivo unido numa negociação solidária do que como indivíduos. Vejamos o caso dos trabalhadores da Nabisco que entraram em greve em cinco estados neste verão. A Mondelez International, empresa controladora da Nabisco, registrou lucros recordes durante a pandemia graças ao aumento nas vendas de seus salgadinhos e biscoitos. A empresa ficou tão rica que pagou ao seu CEO uma remuneração anual de US$ 16,8 milhões e gastou US$ 1,5 bilhão na recompra de ações no início deste ano. Durante esse tempo, o salário médio de um trabalhador era de US$ 31.000 por ano, uma quantia muito baixa. Muitos dos empregos da Nabisco foram transferidos para o México, onde a empresa pôde reduzir ainda mais os “custos” com mão de obra.

Após semanas de piquete (iniciado em 10 de agosto de 2021), trabalhadores e trabalhadoras em greve da Nabisco, representados pelo Sindicato Internacional dos Trabalhadores de Panificação, Confeitaria, Tabaco e Moinhos de Grãos, voltaram ao trabalho (em 18 de setembro de 2021) após terem obtido aumentos retroativos de 2,25%, bônus de US$ 5 mil e um aumento nas contribuições do empregador para seus planos de aposentadoria. A empresa, cujo faturamento cresceu 12% no início do ano, pôde arcar com essas medidas e muitas outras ainda.

Essas demissões em massa, assim como essas greves de trabalhadores, revelam um profundo descontentamento em relação ao trabalho nos EUA, processo que já remonta a décadas. As empresas exerceram forte controle sobre a política, gastando parte de seu dinheiro para fazer lobby junto ao governo a fim de garantir lucros ainda maiores à custa dos direitos dos trabalhadores. Ao mesmo tempo, o poder dos sindicatos caiu – uma tendência diretamente ligada ao aumento das desigualdades econômicas (desigualdades que refletem o fortalecimento das formas de exploração).
Empresas e legislação

Mas agora, na medida em que os trabalhadores fortalecem sua posição, as empresas estão preocupadas.

Na esteira dessas greves e demissões, parlamentares estão tentando ativamente fortalecer as leis trabalhistas federais existentes. Mas grupos empresariais estão pressionando os democratas para enfraquecer as medidas pró-trabalho incluídas na lei Build Back Better (BBB), que está atualmente sendo debatida no Congresso.

Atualmente, os empregadores podem violar as leis trabalhistas sem grandes consequências, já que o National Labor Relations Board (NLRB) não tem o poder de impor multas aos infratores. Mas os democratas querem dar ao NLRB o poder de impor multas de US$ 50 mil a US$ 100 mil a empresas que violem as leis trabalhistas federais. O projeto Build Back Better também inclui o aumento de multas para empregadores que violarem os padrões do Occupational Safety and Health Administration (OSHA), órgão do governo federal cuja missão é prevenir acidentes, doenças e mortes no local de trabalho.

A Coalizão por um Local de Trabalho Democrático, um grupo de lobby empresarial que quer tudo, menos democracia no local de trabalho, está muito preocupada com as mudanças propostas. Ela enviou uma carta aos parlamentares sobre esse tema. Resta saber se os lobistas corporativos terão sucesso, dessa vez, em manter as leis trabalhistas bem fracas. Mas como os trabalhadores continuam a pedir demissão e as greves entre os trabalhadores sindicalizados se multiplicam, os empregadores estão ignorando os sinais de raiva e frustração generalizadas por sua conta e risco.

Perspectivas econômicas

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Mais um ano está chegando ao final. Depois de imensos desafios e oportunidades gerados pelo incremento da pandemia, os números assustadores de mortes em decorrência da covid-19, o crescimento da inflação e os desajustes das cadeias produtivas nacionais e internacionais, a economia brasileira sente os sinais claros do baixo crescimento econômico, dos reduzidos investimentos produtivos, da queda da renda, do incremento da pobreza, de indicadores sociais sofríveis e dos conflitos políticos que se aceleram continuamente, as perspectivas econômicas para o comportamento da estrutura produtiva são pouco agradáveis.
Os indicadores de emprego são assustadores, temos na atualidade quase cinquenta milhões de trabalhadores em situação de degradação laboral, neste ambiente, percebemos desempregados, subempregados, desalentados e um grande contingente de trabalhadores na informalidade. Neste ambiente, a massa de renda se reduz, o consumo está em queda, os investimentos produtivos não se recuperam, postergando a recuperação da economia e piorando, os já degradados, indicadores sociais.

O crescimento dos preços diminui o poder de compra da população, reduz a renda agregada, contraindo os salários, levando o governo ao aumento nas taxas de juros, piorando as expectativas econômicas e seus impactos são imediatos. Os investimentos produtivos se reduzem, a economia se retrai e se aproxima da recessão, postergando o incremento da esperança e degradando as condições sociais e as instabilidades políticas. No momento que escrevo, a perspectiva do chamado mercado é de um crescimento de 0,5% do produto interno bruto, se estes valores se efetivarem a renda per capita se reduz mais uma vez, tornando a população cada vez mais pobre e os indicadores econômicos mais tenebrosos.

No cenário fiscal as condições são preocupantes, impactando sobre os investidores externos que fogem da economia brasileira, atraindo apenas os investimentos de riscos, que buscam altas rentabilidades, taxas de juros atraentes e ganhos elevados, com isso, o país entra na rota dos grandes especuladores internacionais, garantindo retornos altos e, em contrapartida, percebemos a destruição dos setores produtivos nacionais. O resultado evidente deste cenário, é o incremento da desindustrialização da economia brasileira, um setor que já representou quase 30% do produto interno bruto e, na atualidade, apresenta apenas 10%, gerando empregos de baixo valor agregado, salários baixos, reduzindo consumo e queda brutal na renda dos trabalhadores.

Os desafios econômicos são elevados e exigem consensos políticos fundamentais, os grupos econômicos, financeiros e políticos mais relevantes precisam construir novas perspectivas para o futuro imediato. A construção, ou reconstrução, exige visão estratégica, planejamento econômico, mão de obra capacitada, investimentos em ciência e tecnologia, estratégias geopolíticas consistentes, deixando de lado interesses imediatos e ganhos corporativos, unindo forças entre todos os atores da comunidade. Sem esta unidade, sem a integração entre Estado e Mercado, o país se aproximará, novamente, de uma nova década perdida, com altos custos sociais que perduram durante muitas décadas e se aprofundou nos últimos quarentas anos, quando os países desenvolvidos inauguraram a chamada terceira e, posterior, revolução industrial e no Brasil, ainda nos perdemos em algum momento da segunda revolução industrial, levando o país a um retrocesso enorme, com perda de relevância na economia internacional, atrasos institucionais e dificuldades de competir no, cada vez mais, competitivo mercado global.

O próximo ano nos trará desafios conhecidos por todos os estudiosos da sociedade brasileira. Os desafios brasileiros não são novos, são conhecidos por todos os cidadãos, os desafios são econômicos, são políticos e são sociais cuja superação exige, antes de mais nada, união, solidariedade, liderança, autonomia e esperança. Conceitos fundamentais que não conseguimos construir neste ano que estamos deixando para trás.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Administrador, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 29/12/2021.

Onde está o mérito? por Michael França.

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Resultados obtidos por uma pessoa estão correlacionados com o local de nascimento

Michael França Ciclista, doutor em teoria econômica pela Universidade de São Paulo; foi pesquisador visitante na Universidade Columbia e é pesquisador do Insper.

Folha de São Paulo, 28/12/2021

Existe uma intensificação em torno do debate relacionado à meritocracia. No contexto americano, isso não se limita a um grupo ideológico. A discussão atravessa todo o espectro político. Sai da esquerda até chegar à direita.

Se por um lado premiar as pessoas pelo talento, esforço e desempenho tem seus aspectos positivos, por outro um sistema que não procure lidar com as diferenças nas trajetórias individuais na obtenção de resultados pode discriminar sistematicamente os menos favorecidos.

O dinheiro e as conexões facilitam o progresso daqueles que nasceram com melhores condições financeiras e os impulsionam na escalada da hierarquia social. Estudos têm demonstrado que os resultados alcançados por uma pessoa estão altamente correlacionados com o local do seu nascimento.

Indivíduos com piores origens socioeconômicas têm cada vez mais dificuldade para competir com aqueles oriundos da elite. Enquanto as famílias de alta renda costumam deixar consideráveis legados para as futuras gerações e investem pesadamente na formação de seus filhos, as mais desfavorecidas não têm a mesma disponibilidade de recursos e podem apresentar baixo interesse nesse tipo de investimento.

Educação pública de qualidade é uma saída. Porém, existem limites para o que ela pode fazer. Os progressos educacionais têm vários impactos positivos, como por exemplo, permitir maior acesso a bons empregos e melhorar a produtividade.

Entretanto, a riqueza herdada dos pais pode ter mais impacto na acumulação de capital e manutenção do poder intergeracional do que os ganhos gerados no mercado de trabalho. A contínua passagem de vantagens para os descendentes acaba deixando pouco espaço no topo para aqueles que não nasceram com boas condições financeiras.

Na sociedade brasileira, a transmissão do status socioeconômico da família ocorre de maneira quase automática. No entanto, a construção de uma economia mais competitiva e de uma sociedade mais próspera requer que haja maior mobilidade social.

As pessoas deveriam prosperar de acordo com seus esforços e não amplamente amparadas pela influência familiar. Apesar de revolucionária, essa ideia é difícil de ser colocada em prática em lugares com grandes desigualdades sociais.

Na teoria, muitos gostariam de ter um país mais justo e sem pobreza. Na prática, o brasileiro “cordial” tende achar que o grupo favorecido é sempre o outro. Apesar do desafio, é necessário avançar em reformas estruturais no funcionamento do Estado e encarar de frente a batalha para diminuir os privilégios herdados.

Em um país conservador, sempre há muitas resistências às mudanças. Contudo, a consciência social a respeito das desigualdades de oportunidades tem aumentado. Os avanços na educação foram abaixo do ideal nas últimas décadas, mas permitiram a ascensão de vozes antes excluídas.

Velhas narrativas estão sendo contestadas. Novas surgiram. O futuro tende a ser caracterizado por muita agitação social. Deste modo, continuar com a reprodução do status quo poderá não ser mais facilmente tolerado. Assim, espero.

Esse texto foi uma síntese de algumas discussões que procurei realizar nesse primeiro ano como colunista. Agradeço às leitoras e aos leitores que me acompanharam até aqui. Todas as críticas, sugestões e apoios estão sendo fundamentais para o desenvolvimento do trabalho.

O fracasso do mundo pós-soviético

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Lógica neocolonial ganhou desenvoltura inédita

Breno Altman, Jornalista e fundador do site Opera Mundi

Folha de São Paulo, 26/12/2021

No dia 26 de dezembro de 1991 deixava de existir a União das Repúblicas Socialistas (URSS). O capitalismo fora vitorioso, ao menos provisoriamente, na batalha iniciada em 1917, quando os bolcheviques chegaram ao poder a bordo de uma revolução que mudaria o mundo.

O colapso soviético, nos últimos 30 anos, foi decisivo para a consolidação da fase neoliberal do sistema capitalista. O desaparecimento do campo político, econômico e militar que media forças com o bloco liderado pelos Estados Unidos provocaria realinhamentos profundos na geopolítica mundial e na vida interna das sociedades.

A restauração da economia de mercado, nos primeiros momentos, afetou prioritariamente os povos do leste europeu, desmontando mecanismos de proteção social. Os novos Estados oligárquicos-burgueses foram tragados pela concentração de renda e riqueza, acompanhada pela precarização de direitos e o empobrecimento das classes trabalhadoras. Ainda que setores médios emergentes tenham se beneficiado de maior abertura econômica, essas nações voltaram a ser abocanhadas pelas principais potências imperialistas, sequiosas por ampliar mercados, exportar plantas industriais e ter acesso à mão de obra mais barata.

A implosão da experiência socialista, carcomida por erros e contradições, inibiu a resistência contra o ressurgimento capitalista. Tornou-se avassaladora a hegemonia das ideias liberais, com promessas de democracia e prosperidade. Sequer a reconstrução da Rússia, sob o nacionalismo de Vladimir Putin, alterou esse cenário, com evidentes sinais de degeneração, como os emitidos pela ascensão do neofascismo na Polônia, Hungria e Ucrânia.

Mas os reflexos do desaparecimento da URSS se estenderiam também ao Ocidente. Sem a ameaça de um sistema que, no pós-guerra, forçou o capitalismo à concessão de amplos benefícios aos trabalhadores dos países centrais, governos conservadores se viram de mãos livres para começar o desmonte dessas conquistas. A social-democracia europeia aceleraria sua adesão ao neoliberalismo, desprovida da condição de muro reformista para contenção do avanço soviético.

A esmagadora maioria dos partidos comunistas ou revolucionários foi demolida, desorganizando o movimento operário e sindical, já acossado por mudanças tecnológicas. Boa parte dessas organizações e lideranças capitulou à ideia de que a história chegara ao fim, com a perenidade do capitalismo, restringindo seu próprio papel à contenção de danos mais dolorosos.

A onda de retrocesso atingiria com maior impacto as nações periféricas, condenadas a uma divisão internacional do trabalho na qual deveriam aceitar sua função de provedora agroextrativista. Sem a URSS, a lógica neocolonial adquiriu inédita desenvoltura.

Excluída a China da contabilidade, o mundo tem assistido à decadência de alguns dos principais índices sociais, inclusive nas nações desenvolvidas, como os Estados Unidos. Também se eleva o número de guerras e conflitos armados, além da degradação ambiental.

O capitalismo, sem freios, empurra a humanidade para a barbárie. Oxalá sua crise estrutural abra nova janela histórica para que seja enterrado um sistema no qual a riqueza de 1% representa o patíbulo para todos os demais.

Globalizantes e Globalizados

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A globalização da economia transformou a sociedade internacional nos últimos quarenta anos, criando novas estruturas produtivas, novos modelos de convivência social, novos desafios para o mundo do trabalho, novas oportunidades e grandes instabilidades, que geram ansiedades, medos e incertezas cada vez maiores. Neste ambiente de crescimento da concorrência entre os atores econômicos, motivados pela globalização, os indivíduos precisam reinventar sua sobrevivência, sob pena de serem descartados e desumanizados, gerando inquietações sociais e políticas.

A globalização estimulou o consumismo, a busca crescente pelos valores monetários e imediatistas, contribuindo para uma crescente competição entre os atores sociais, uns ganham com este ambiente, angariando maiores lucros e ascensão social e econômica e, em contrapartida, muitos grupos são relegados ao esquecimento, perdem espaços no mercado de trabalho, são descartáveis e percebemos o aumento dos desequilíbrios emocionais, os transtornos, as depressões, as ansiedades e as desagregações.

Nesta nova sociedade, percebemos o incremento da tecnologia, o conhecimento ganha espaço e as inovações crescem de forma acelerada, motivando fortunas e riquezas, ações crescem e criam novos milionários, gerando novos atores no cenário internacional. Empresas gigantes perdem espaço na nova economia, atores marginais crescem, ganham robustez e se transformam em grandes conglomerados, novos modelos de negócio suplantam modelos tradicionais que exigem reestruturações, novas tecnologias e novas formas de compreensão do mundo dos negócios. Neste momento, percebemos que a globalização em curso na sociedade internacional está criando atores, os Globalizantes e os Globalizados. Os primeiros são descritos como os atores mais consistentes, mais inovadores, investiram e investem rapidamente em novas tecnologias, desenvolvem novos modelos de negócios, criam ambientes de empreendedorismo e inovação e atuam diretamente na construção de uma nova sociedade, centradas no conhecimento, na ciência e na pesquisa. Do outro lado, percebemos que os globalizados estão perdendo espaço na sociedade, investem pouco em inovação, reduzem os investimentos na educação, em ciência e tecnologia e colhem o ostracismo, a estagnação e a perpetuação das desigualdades sociais.

Os Globalizantes constroem espaços de consenso na coletividade e, com isso, ganham espaço na sociedade e perceberam a importância da industrialização como forma de angariar espaços no comércio internacional, garantindo o crescimento na escada tecnológica, se especializando em produtos de alto valor agregado e garantindo melhoras na qualidade de vida da população. Os Globalizados, a grande maioria das nações, se perdem em conflitos desnecessários, naturalizando a autodestruição, estimulando confrontos internos e, constantemente, se colocando como vítimas de um ambiente hostil, não conseguindo planejar e construir ações no longo prazo e se comprazem com a degradação do cotidiano, convivendo com a pobreza moral e a animosidade das relações sociais.

A globalização inaugurou um novo modelo de sociedade, trazendo ganhos e perdas para todas as nações, os setores que conseguiram crescer e ganhar espaço nesta nova sociedade foram os capazes de pensar na comunidade e nos interesses de todos os grupos sociais, criando novos vínculos políticos, reconstruindo a solidariedade em contrapartida a uma sociedade centrada no imediatismo e na alienação. Os ganhadores da globalização foram aqueles que investiram nos seres humanos, elegendo o capital humano como prioritário, garantindo novas oportunidades para todos os cidadãos, diminuindo os privilégios de poucos grupos sociais que vivem alardeando a meritocracia, mas cotidianamente, se esquecem que seus privilégios garantem a perpetuação de sua pseudo meritocracia.

O ambiente globalizado exige profissionalismo dos atores econômicos, as nações precisam construir diferenciais para se inserirem neste ambiente de concorrência crescente, seguindo os exemplos dos países que conseguiram alavancar seu desenvolvimento econômico, sem medidas concretas vamos continuar chafurdando na fome, na indignidade e no recuo civilizacional.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Administrador, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 22/12/2021.

O socialismo do século 21, por Elias Jabbour.

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Experiência chinesa exibe novas e superiores formas de planificação econômica

Elias Jabbour, Professor da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FCE-Uerj), é autor, ao lado de Alberto Gabriele, de “China – O Socialismo do Século XXI” (ed. Boitempo, 2021)

Folha de São Paulo, 20/12/2021

Alguns dados espantam. Neste exato momento cerca de 2 milhões de engenheiros e economistas estão trabalhando freneticamente em algum órgão público chinês com a missão que vai além de elaborar e executar projetos. Sobre seus ombros repousam as tarefas de assegurar autossuficiência tecnológica ao país e, de forma simultânea, garantir que 13 milhões de empregos urbanos sejam criados todos os anos. Além de uma clara combinação entre ciência e arte, trata-se de um interessante retrato de uma engenharia social de novo tipo.

Essa engenharia social pode ser observada como uma nova classe de formações econômico-sociais que emerge na China com o advento das reformas econômicas de 1978, momento aquele em que as reformas rurais levaram o socialismo chinês a se reinventar através de instituições de mercado. Desde então, mercado e plano na China são parte de uma totalidade, não opostos que se repelem. Nossas pesquisas apontam que a dinâmica deste “socialismo de mercado” é baseada em ondas de inovações institucionais que levaram, por exemplo, à formação de um poderoso núcleo produtivo e financeiro de caráter público (96 grandes conglomerados empresariais estatais sob coordenação da Sasac—sigla em inglês para Comissão de Supervisão e Administração de Ativos Estatais do Conselho de Estado— e cerca de 30 bancos de desenvolvimento). Um pujante setor privado não passa de ancilar e receptor dos efeitos de encadeamento gerados pelo core estatal da economia.

Duas questões ao debate: existe na história algum país que sob os cuidados de seu Estado nacional está o papel de coordenar a execução de milhares de projetos simultaneamente, desde uma ponte até grandes plataformas do nível de um computador quântico? Seria alguma heresia afirmar que nenhuma democracia ocidental que tenha a economia baseada na propriedade privada seja capaz de realizar algo próximo ao que os chineses estão realizando? Às duas questões a resposta é não. O poder político do Partido Comunista e a hegemonia da propriedade pública sobre a grande produção são a explicação mais plausível à capacidade do Estado chinês de entregar o que promete. Inclui-se neste pacote histórico o enfrentamento às grandes contradições surgidas como resultado de seu processo de desenvolvimento.

Não interessa a ninguém esconder os problemas sociais e ambientais chineses, diga-se de passagem. Afinal, não seria o processo de desenvolvimento algo caracterizado por saltos, de um ponto de desequilíbrio a outro?

Nesse sentido, o que seria o “socialismo do século 21”? O conceito se manifesta do movimento real. Ou seja, a forma histórica que emerge da experiência chinesa é um mix entre uma democracia não liberal e o surgimento de novas e superiores formas de planificação econômica. À disposição dos citados 2 milhões de profissionais estão inovações tecnológicas disruptivas como o 5G, o big data, a inteligência artificial.

Nunca, em nenhum momento da história humana, as condições à construção consciente do futuro estiveram presentes em um mesmo lugar.

O fim da pobreza extrema, a melhoria constante das condições de vida de seu povo e ambiciosos planos em matéria de redução de emissões de carbono expressam uma forma histórica caraterizada pela transformação da razão em instrumento de governo. Eis a forma histórica sintetizada na experiência chinesa: o socialismo do século 21, expressão embrionária de um projeto emancipatório e civilizacional, em sua forma histórica mais completa. Uma sociedade amplamente guiada pela ciência.

Nesse aspecto, o socialismo enquanto “razão no comando” é interessante contraponto ao irracionalismo por trás da ascensão da extrema direita justamente no coração da civilização ocidental, supostamente “superior”.

A China de 2021 em quatro ideias, por Tatiana Prazeres.

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Ano marca mudanças de trajetória com impacto no futuro do país asiático

Tatiana Prazeres Senior fellow na Universidade de Negócios Internacionais e Economia, em Pequim, foi secretária de comércio exterior e conselheira sênior na direção-geral da OMC.

Folha de São Paulo, 17/12/2021

Rédeas curtas para o setor privado, regulação de algoritmos e proibição de criptomoedas. A crise energética e a pressão sobre metas climáticas. A crise imobiliária. A flexibilização da política do filho único. A diplomacia das vacinas contra a Covid e o anúncio de fornecimento de 1 bilhão de doses para a África. Uma estação espacial em construção. Um pouso em Marte. A preocupação com tecnologia e autossuficiência. O centenário do Partido Comunista Chinês.

O ano de 2021 foi intenso para a China. No entanto, mais do que fazer uma retrospectiva, vale refletir sobre o que realmente importa. A tarefa é arriscada no calor dos acontecimentos, mas aqui vão quatro possíveis pontos de inflexão. Os fatos estão associados a 2021, mas marcam mudanças de trajetória com impacto na China dos próximos anos.

1) 2021 foi o ano em que tensões geopolíticas mudaram de vez os cálculos de Pequim sobre sua atuação externa. Com a União Europeia, um acordo de investimentos assinado e celebrado em dezembro de 2020 foi colocado na geladeira. Em relação aos EUA, evaporaram quaisquer ilusões de que com Joe Biden o relacionamento bilateral melhoraria. Com a Austrália, submarinos nucleares entraram em cena. Em relação ao Japão e à Índia, aumentou a desconfiança mútua.

A China prepara-se para um cenário internacional mais resistente à sua ascensão —sabe que, mais do que antes, preocupações geopolíticas sobrepõem-se a interesses econômicos em algumas capitais. Ao mesmo tempo, reforça seus vínculos com a Rússia e com o mundo em desenvolvimento, que, em grande medida, quer distância da rivalidade geopolítica dos grandes.

2) 2021 foi o ano em que Taiwan voltou ao centro das atenções internacionais —e o assunto não vai desaparecer. A possibilidade de um confronto passou a ser discutida possibilidade de um confronto passou a ser discutida em diferentes locais. ainda que com boa dose de exagero, alimentando perigosamente uma profecia que pode se realizar.

Neste ano, Biden flertou com a mudança da postura dos EUA sobre Taipé, algo que vale há quatro décadas. Como nunca antes, Pequim deixou claro que o objetivo de rejuvenescimento nacional, meta para o centenário da República Popular da China em 2049, inclui a reunificação do país.

3) 2021 foi o ano em que a China dobrou a aposta na política de tolerância zero em relação à Covid-19. Pequim apertou os parafusos do controle, com resultados impressionantes no combate à pandemia.

A história ainda está sendo escrita, mas o saldo hoje é altamente positivo para as autoridades chinesas, a despeito dos problemas do início, reconhecidos à boca pequena entre locais, e dos sacrifícios individuais onde surgem surtos esporádicos.

O combate à Covid possivelmente será visto como um marco no aumento da confiança dos chineses em seu modelo político, com impactos significativos sobre a legitimidade do regime —e isso é altamente subestimado fora da China.

4) 2021 foi o ano em que Pequim corrigiu rumos na economia, podando o que via como excessos. De olho em ganhos a longo prazo, a China pareceu disposta a grandes sacrifícios imediatos. Empresas do país perderam mais de US$ 1 trilhão em valor de mercado neste ano, afetadas por um festival regulatório surpreendente.

Muitas dessas medidas têm como pano de fundo a ideia de prosperidade comum —forte candidata a expressão do ano na China. O interesse em fortalecer a classe média e reduzir desigualdades não é novidade. Mas poucos antecipavam tantas mudanças, tão significativas e em tantos setores ao mesmo tempo.

Quando historiadores olharem para a China de 2021, saltará aos olhos o fato de que, no debate entre fazer o bolo crescer e reparti-lo melhor, Pequim neste ano fez sua escolha.

Menos moral e mais políticas públicas, por Marta Machado

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O pânico moral em torno da educação sexual e do aborto serve de cortina de fumaça para aprofundamento da desigualdade e da pobreza feminin

Marta Machado, Professora da Escola de Direito da FGV-SP e pesquisadora do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento)

Folha de São Paulo – 16/12/2021

Excelente reportagem de Fernanda Mena e Mathilde Missioneiro desta semana expôs a situação dramática de meninas que se casam e engravidam precocemente. O Brasil é o quinto país do mundo no ranking de casamentos precoces e tem o segundo maior índice de gravidez na adolescência —acima da média da América Latina e do Caribe e atrás apenas da África Subsaariana.

Altas taxas de fecundidade entre meninas e adolescentes estão relacionadas a situações de vulnerabilidade, violência sexual, falta de informação, acesso restrito a educação sexual, métodos anticoncepcionais e serviços de saúde reprodutiva. Ocorrem principalmente entre meninas negras, indígenas, de baixa renda e residentes em áreas rurais.

Além de riscos para a saúde e graves efeitos psicológicos, a maternidade precoce agrava o ciclo de vulnerabilidades e determina diversos desfechos na trajetória de vida das adolescentes: abandono ou menor rendimento escolar, dificuldade de inserção no mercado de trabalho, maior risco de violência e aumento da pobreza.

Tal negação de direitos e perspectivas de vida para meninas e adolescentes está diretamente relacionada à falta de políticas públicas de educação e saúde, cenário agravado no governo Bolsonaro.

Sob o manto da defesa da família tradicional, o governo promove o fim de campanhas educativas, a exclusão da educação sexual dos currículos escolares, a interrupção da distribuição de anticoncepcionais e a imposição de entraves a programas de saúde reprodutiva. Em meio ao aumento dos casos de violência sexual na pandemia, portarias do Ministério da Saúde burocratizaram ainda mais o acesso ao serviço de aborto legal, de oferta já minguante nos hospitais públicos.

Ao destrinchar a aliança entre conservadorismo e neoliberalismo, Wendy Brown (2019) chama a atenção para o papel estratégico do mercado e da moral diante da retirada do Estado. A defesa da família tradicional anda de mãos dadas com a privatização e o desinvestimento em políticas de saúde, seguridade social e educação.

Na comemoração do “Dia Nacional da Família”, a secretária nacional de Família expôs publicamente a adesão a tal estratégia: a “cultura da família vai se expandindo”, ao passo que “o Estado protetor desincha e diminui o gasto público”. Afinal, “as políticas públicas familiares custam pouco e podem fazer muito”.

O pânico moral em torno da educação sexual e do aborto serve de cortina de fumaça para a falta de investimento em políticas públicas e para a negligência em relação à infância e adolescência de meninas. Serve ao aprofundamento da desigualdade e da pobreza feminina.