Vilipêndio dos direitos trabalhistas causada pela uberização é culpa dos algoritmos? por Ricardo Antunes

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Entregador arca com custos, mas não define preços e pode ser bloqueado sumariamente; por certo, não é autônomo

Folha de São Paulo, 07/11/2020.

O que explica, em pleno século 21, o (aparente) paradoxo que estamos vivenciando?

De um lado temos explosão dos algoritmos, inteligência artificial, big data, 5G, internet das coisas, indústria 4.0 etc.

De outro, encontramos uma massa crescente de trabalhadores e trabalhadoras (dada a desigual divisão sociossexual do trabalho) laborando 12, 14 ou 16 horas por dia, durante 6 ou 7 dias da semana, sem descanso, sem férias, com salários rebaixados e mesmo degradantes, sem seguridade social e previdenciária.

Para compreender essa realidade, é preciso retornar à década de 1970, quando eclodiu uma crise estrutural que levou à reestruturação global de todo sistema produtivo.

O incremento técno-informacional-digital encontrou, então, um fértil espaço para sua expansão, visto que era necessário incrementar a produtividade. E isso ocorreu enquanto o desemprego se ampliava, gerando uma força sobrante de trabalho disponível para realizar qualquer trabalho, sob quaisquer condições.

Com o aguçamento da crise, a partir de 2008/9, as grandes corporações globais, sob o comando financeiro, intensificaram suas ações para “flexibilizar” o trabalho, eufemismo bacana para corroer, devastar e precarizar ainda mais o enorme contingente ávido por emprego.

E, se esse movimento vem ocorrendo no Norte (Inglaterra e EUA são emblemáticos), sua intensidade é muito mais intensa no Sul, onde a classe trabalhadora vem comendo o pão que o diabo amassou.

Da China à Índia, passando por México, Colômbia e Brasil, os níveis de exploração do trabalho se exacerbam ainda mais. E, assim, o desmonte da legislação protetora do trabalho se tornou um imperativo corporativo (com desculpas pela horrorosa rima).

Foi nesse contexto que as plataformas digitais deslancharam. Lépidas no trato com o mundo digital, dotadas de (insustentável) leveza, desbancaram as corporações tradicionais e hoje se encontram no topo do tabuleiro do capital.

Conseguiram essa proeza combinando alta tecnologia digital e absorção ampliada de força de trabalho sobrante.

Mas era necessário ainda, nessa alquimia empresarial, que o assalariamento assumisse uma aparência inversa, de modo a “evitar” a legislação social do trabalho.

Muitos milhões foram gastos com escritórios de advocacia corporativa, para encontrar a rota do sucesso. Era preciso driblar os direitos do trabalho, a qualquer preço.

E mais: o novo léxico corporativo precisava se revitalizar, para que o cenário se assemelhasse a algo distinto: além de colaborador, parceiro, resiliência, sinergia etc., as plataformas deram novo impulso ao empreendedorismo, personagem que sonha com a autonomia, mas se defronta cotidianamente, como se viu nas reivindicações do breque dos apps, com adoecimentos sem seguro-saúde e sem previdência, baixos salários, ausência de direitos, traços que se acentuaram ainda mais durante a pandemia.

E foi assim que proliferou o que já se convencionou chamar de trabalho uberizado.

Transfigurados e convertidos em “empreendedores”, os entregadores ainda arcam com os custos dos instrumentos de trabalho (carros, motos, bicicletas, mochilas, celulares).

Sua condição “autônoma”, então, é um tanto curiosa: quem define a admissão? Quem determina atividade, preço e tempo das entregas? Quem pressiona, através de incentivos, para a ampliação do tempo de trabalho? Quem pode bloquear e dispensar sumariamente, sem nenhuma explicação? Por certo, não é o “autônomo”.

Assim, essa condição se desvanece, aflorando a subordinação e o assalariamento. E exigir direitos é princípio basilar da dignidade mínima do trabalho.

As plataformas dirão: mas são os entregadores que as procuram. É verdade, mas seria bom acrescentar que essa é a única alternativa hoje contra o desemprego. Aqui reside a base do regozijo das plataformas. Será, então, que a culpa de todo esse vilipêndio é dos algoritmos?

Ricardo Antunes

Professor titular de sociologia do trabalho no IFCH/Unicamp. Foi visiting professor na Universidade Ca’Foscari (Veneza/Itália), visiting scholar na Universidade de Coimbra (Portugal) e visiting research na Universidade de Sussex (Inglaterra). É autor de livros sobre temas como uberização, trabalho digital e indústria 4.0

 

Economia Brasileira: Desemprego, Dívida Pública e Inflação

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A economia brasileira está apresentando indicadores macroeconômicos preocupantes, estamos num momento de grande apreensão, medos e desesperanças. Em plena pandemia, que levou mais de 160 mil óbitos, as perspectivas sociais são assombrosas, a crise sanitária não ceda, os indicadores econômicos estão cada vez mais negativos, a dívida pública cresce acelerada, o desemprego aumenta de forma insustentável e a inflação, que durante décadas foi presente na vida de cada brasileiro, se mostra claras de retorno, piorando os indicadores econômico e gerando incertezas e instabilidades.

Vivemos num momento de pandemia, mais de 160 mil brasileiros foram enterrados, gerando muitas tristezas e revoltas generalizadas. Neste ambiente, estamos buscando novos espaços de esperança, forças internas para superarmos neste momento de dores, cada indivíduo tenta se fortalecer intimamente, se fortalecer para superar uma pandemia que nasce em outras regiões e se dissemina para todos os rincões do mundo, levando destruição, desestruturação e força os indivíduos a enterrar medos e desesperanças, deixando rastros de solidariedade como forma de superar estas máculas mais íntimas e pessoais.

A economia é fortemente atingida em todos os locais, famílias passam por momentos de desestruturações, violências crescem de forma acelerada, negócios são fechados, falências crescem de forma imediata, relacionamentos passam por instabilidades e os indivíduos se entregam a depressões, ansiedades, divórcios e suicídios, alterando os equilíbrios emocionais e psicológicos, deixando um forte vazio espiritual, levando os cidadãos a buscarem novos sentidos e valores para a sobrevivência humana, vivemos um momento de grandes inquietações, onde a solidariedade perde espaços para uma sociedade que se compraz com a concorrência e pela competição, valores de um mercado que se assenta e se concentra na destruição e no egoísmo material.

Neste ambiente, percebemos uma degradação dos indicadores macroeconômicos, o desemprego passou dos 14,4% da população, números assustadores que podem criar, na sociedade nacional, um caldo de violência generalizada, onde os indivíduos perdem as esperanças e podem ser acossados por sentimentos de revolta, ódio e ressentimentos. O desemprego é um dos mais degradantes flagelos da sociedade contemporânea, sem emprego os indivíduos perdem a dignidade, perdem as esperanças com relação ao porvir e, muitos se entregam para a depressão, incrementando os transtornos, os desequilíbrios emocionais e o suicídio, indicadores que crescem de forma acelerada e preocupam as autoridades nacionais e internacionais.

O desemprego vem apresentando indicadores muitos negativos neste ano, a pandemia impactou fortemente para a economia brasileira, levando a números recordes e preocupantes, segundo os dados do Instituto Brasileira de Geografia e Estatístico (IBGE), os números chegaram a mais de 14% dos trabalhadores, o que significa mais de 13,8 milhões de pessoas no desemprego, gerando problemas sociais variados para a sociedade, obrigando o governo a adoção de políticas mais ativas para combater este flagelo. Os indicadores não estão maiores ou mais assustadores, porque o governo adotou uma política de socorro para os grupos mais fragilizados, costurando uma política ativa de intervenção estatal, chamado de auxílio emergencial. Este auxílio emergencial acolheu mais de 60 milhões de brasileiros em situação de vulnerabilidade, algo em torno de 34% para população nacional, esse socorro custou aos cofres públicos mais de 55 bilhões de reais ao mês, um valor que teve um impacto fiscal para o orçamento na casa dos 350 bilhões de reais, que exigiu uma forte política de endividamento público que aumentou a dívida para algo mais de 90% do produto interno bruto (PIB). Estes valores estão gerando graves constrangimentos para a economia brasileira, levando vários grupos a questionar os valores e as perspectivas do perfil do endividamento, os valores e as condições de pagamento, com isso, os credores utilizam vários instrumentos de pressão do governo, tais como os juros pagos para o financiamento da dívida.

Neste ambiente, percebemos a ausência de políticas públicas direcionadas pelo emprego de jovens, cujos números de desemprego são assombrosos, que levam jovens e adolescentes para situação degradação moral, muitos se entregam em negócios escusos, se alistando em exércitos do crime, uns buscam na prostituição, nas entorpecentes, no tráfico, com estes grupos sociais perdidos neste ambiente de degradação, poucos podemos esperar desta sociedade que se degradam a olhos vistos, angustiados pelo cotidiano, nas amarguras da desesperanças e dos suicídios.

Nestas pressões dos credores externos, muitos investidores vendem seus papéis e buscam proteção da moeda norte-americana, levando seus recursos para o mercado dos Estados Unidos, gerando uma saída de dólares que contribuem para a desvalorização da moeda, impactando sobre a economia brasileira, prejudicando os importadores, elevando seus custos de importação e gerando fortes pressões dos preços nacionais, neste movimento, percebemos um incremento da inflação. O aumento dos preços internos prejudica muitos setores do sistema econômico, gerando instabilidades e insegurança dos agentes produtivos, reduzindo os investimentos, diminuindo as matérias-primas e pressionando para os preços dos consumidores nacionais. Outro impacto deste movimento é a busca do mercado externo por inúmeros produtores nacionais, que percebem os preços mais rentáveis no mercado internacional e buscam as vendas externas, melhorando suas receitas em moedas estrangeiras e reduzem as vendas internas, neste movimento os preços internos crescem, os rendimentos aumentam e garantem maiores lucros dos empresários nacionais, mas ao mesmo tempo, gerando perdas consideráveis para os consumidores nacionais.

Percebemos, neste momento, que os indicadores macroeconômicos estão com perspectivas bastantes negativas, desemprego crescente, endividamento interno caminhando para números assustadores, inflação em ascensão, perdas generalizadas de renda, reduzindo salários e investidores em queda, números econômicos sombrios. Neste momento, faz-se necessário, uma atuação mais sóbria e organizada pelos agentes governamentais, onde todos os entes do Estado Nacional precisamos estruturar conjuntamente, cada um dos entes federativos precisamos assumir suas responsabilidades, trabalhando para minorar os desequilíbrios econômicos da sociedade e contribuindo para abrir novas perspectivas para a coletividade. Neste instante, o que conseguimos visualizar é algo completamente diferente da união e da solidariedade, percebemos na sociedade um clima de conflitos constantes, brigas de governadores, discursos degradantes, grosseiros, confrontos políticos, interesses mesquinhos, piadas degradantes, desrespeitos e a ausência de solidariedade para todos os mais de 160 mil de brasileiros que tombaram vitimados pela pandemia que impactam sobre a sociedade nacional.

Para superarmos uma crise desta magnitude, faz-se necessário, a construção de um grande Projeto Nacional, para isso, percebemos a incapacidade dos grupos políticos e dos partidos políticos a organizar e costurar instrumentos políticos, centrado em um grande planejamento para a sociedade nacional, onde devem organizar em todos os agentes sociais, políticos e econômicos, juntando todos os setores da sociedade, as minorias, os sindicatos, as organizações não governamentais, as federações, as confederações, as universidades, os intelectuais, os artistas e todos os agentes que representam a sociedade nacionais. Ao pensarmos em um amplo projeto nacional, percebemos que, no atual governo, nossos governantes estão aquém dos desafios que a sociedade nacional está exigindo, neste ambiente, percebemos que a sociedade está batendo cabeça rapidamente, os gestores estão brigando sobre assuntos secundários e desnecessários, com isso, estamos levando o país a uma degradação econômica, social e política mais acelerada, cujos resultados negativos e degradantes estão aparecendo todos os dias.

Vivemos numa sociedade marcada por desemprego acelerado, com o final do auxílio emergencial que deve encerrar em dezembro, os indicadores do mercado de trabalho tendem a piorar no início do próximo ano, piorando os dados macroeconômicos e as condições de vida de uma parcela da comunidade. Neste ambiente, percebemos que o atual governo não possui nenhum plano econômico viável, muito menos um plano B, com isso, consolidamos uma inação governamental, degradando as condições daqueles que ainda permanecem no mercado de trabalho, defendendo privatizações de todos as empresas da economia, prometendo um futuro melhor sem mesmo saber compreender as condições da conjuntura da economia brasileira, vendendo ilusões, aumentando os lucros de poucos barões financeiros, enganando os incautos e criando perspectivas positivas, sem se atentar das duras realidades dos fatos.

Nos últimos meses, percebemos a inexistência de um projeto econômico para a economia brasileira, percebemos um discurso baseado na austeridade e redução dos gastos públicos, infelizmente muitas pessoas abraçam este discurso sem entender as consequências destas teses, continuando suas falas e seus pensamentos como se fossem verdadeiros papagaios de repetição. A austeridade e a redução dos gastos públicos, defendidas pelos barões econômicos, servem para reduzir os investimentos da população mais carentes, arrochando os recursos públicos em prol dos grandes grupos econômicos e financeiros, estes sim, os grandes detentores dos capitais nacionais, vivemos em uma verdadeira guerra contra os mais pobres, reduzindo as assistências sociais, diminuindo os investimentos em educação e em saúde. Com esta redução, os verdadeiros beneficiados dos desmontes dos setores públicos são os dos grandes grupos econômicos que ganham bilhões com educação e saúde, com a educação os investimentos crescem de forma acelerada, aprisionando o Ministério da Educação com sua omissão e incompetência, perpetuando um ensino de péssima qualidade, formando profissionais sem preparo e sem perspectivas para a compreender as realidades e os desafios da contemporaneidade, neste ambiente rumamos para a total degradação social, econômica e política.

Neste ambiente, marcado pelas brigas políticas desnecessárias e crescentes, onde os governantes gastam energias em confrontos sobre o futuro de uma vacinação que ainda não existe, precisamos concentrar esforços em confrontos mais importantes, como o desemprego que crescem de forma acelerada, onde o fim do auxílio emergencial, marcado para o final do ano, pode aumentar estes números de forma crescentes, deixando grande parte da sociedade sem recursos para a sobrevivência mais dignas. Vivemos um momento de grandes instabilidades e incertezas, neste instante precisamos de gestores, de porte de verdadeiros líderes, capacitados para empreitada, para combater este ambiente marcado pelo vírus, pelas instabilidades e pelas incertezas, precisamos de líderes verdadeiros e pessoas dotados de solidariedades, sensibilidades e capacidades políticas, de gestão da economia, que falem menos e trabalhem de forma mais consistentes, sem estes líderes, estamos condenados a perpetuação de um certo país do futuro.

 

 

Capitalismo e democracia saíram dos trilhos, diz Paul Collier.

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Economista avalia que crise levou à criação de ‘identidades opostas’ sociais e econômicas

Vinícius Torres Freire – FSP, 31/10/2020

O capitalismo é o único sistema conhecido capaz de tirar massas de pessoas da pobreza. A democracia é o único sistema político sustentável e compatível com o capitalismo. Mas ambos saíram dos trilhos nos últimos 30 ou 40 anos, diz Paul Collier, economista do desenvolvimento e professor da escola de governo da Universidade Oxford (Reino Unido).

Em conferência do projeto “Fronteiras do Pensamento”, nesta quarta-feira (28), ele afirmou que uma das manifestações dessa crise é a formação de “identidades opostas”, fissuras (“rifts”) sociais e econômicas.

Por exemplo, opõem-se metrópoles bem-sucedidas e comunidades menores do interior; trabalhadores com alto nível de instrução e valorizados e aqueles menos instruídos e que vivem de trabalho manual. As comunidades abandonadas estão em revolta. Essas divisões, afirma Collier, seriam um motivo importante da vitória do brexit no Reino Unido e de Donald Trump nos Estados Unidos.

Capitalismo e democracia não funcionam no “piloto automático”. Precisam de uma espécie de intervenção sociopolítica que reforce objetivos comuns e o espírito de reciprocidade (“mutuality”). Com o declínio dessas iniciativas e sentimentos, desenvolveu-se uma sociedade da ganância, na qual a ideia de dever e obrigações seria atributo quase apenas do Estado e em que as decisões são tomadas de cima para baixo e de modo centralizado, nas empresas e no governo. Tais problemas teriam dificultado também o combate à epidemia do novo coronavírus.

Há exemplos de que as coisas não precisam ser assim, afirma Collier. Dinamarca e Nova Zelândia são casos de países de alto desenvolvimento econômico e social, com sentido comunitário. A Nova Zelândia teria tido sucesso contra a Covid-19 porque uma líder como a primeira-ministra Jacinda Ardern convenceu os cidadãos de seu país de que o enfrentamento da doença dependia da formação de uma “equipe de 5 milhões de pessoas [a população neo-zelandeza]”, que ela não tinha certeza de saber de tudo a ser feito e que precisava de colaboração.

Jacinda e líderes como ela criam e reforçam o espírito de uma “comunidade conectada”, de sacrifícios bem-distribuídos em nome do bem comum. Além do mais, promovem “comunidades adaptativas”, em que líderes e cidadãos aceitam a incerteza e procuram inovações, um experimentalismo pragmático de olho no futuro, não em um suposto mundo idílico do passado.

Collier recorreu frequentemente a exemplos da biologia da evolução e do mundo animal para mostrar que os seres humanos não são apenas egoístas e gananciosos. Existiria uma propensão à colaboração social que deve ser explorada (“caçar juntos rende mais do que caçar sozinho”). Como se valer dos bons sentimentos?

O economista e professor de políticas públicas sugere que é preciso ter líderes diferentes, em governos e empresas, embora não diga como. O bom líder é um “comunicador-chefe”, não um “comandante-chefe” que, como macho alfa, lidera pela dominância, por se arrogar o conhecimento de tudo e pela punição. O bom líder demonstra ser capaz de sacrifício em prol do bem comum, é modesto (admite falhas e que não sabe tudo), olha para o futuro e é pragmático (não vem com “pacotes de ideologias prontas” e “manuais”).

Assim, consegue merecer confiança dos liderados: favorece a disseminação da ideia de “objetivo comum” e de que todos possam ter a “dignidade” de contribuir para esse objetivo geral. Logo, o bom líder suscita o espírito de colaboração em sua comunidade, na empresa ou na política. A empresa que muda sua “missão” de “ser a melhor empresa do mundo” para “maximizar o valor do acionista”, um objetivo ridículo, tende a falir, diz Collier, citando exemplos (como o da ICI britânica).

  1. Com “diálogo”, uma “troca entre iguais”, com respeito às regras do jogo da conversa (como se respeitam as regras do pingue-pongue), genuíno interesse em entender os motivos das opiniões diferentes, a firme intenção de chegar a um entendimento mútuo. Tal conversa inclui aquela entre líderes e a comunidade. Esse tipo de atitude, dos líderes em particular, desenvolve a capacidade de iniciativa (“agency”);
  2. Com “devolução” do poder de decidir. Trata-se de mais um incentivo ao espírito de iniciativa, de colaborar ativamente para o bem comum. A “devolução” depende da descentralização das decisões (de governos centrais para cidades, de metrópoles para comunidades menores, do líder para outros cidadãos). O experimentalismo é a receita de sociedades autônomas, participativas, capazes de iniciativa e senso de dever: haverá erros, mas haverá também uma solução inovadora em algum lugar.
  3. Com “pilotos”. Isto é, cidades, empresas, líderes ou entidades de governança em geral capazes de, por assim dizer, “dar o exemplo”, sugerir novos caminhos, sejam formas de produzir ou governar. O exemplo que Collier dá desse tipo de líder, seu “herói”, é Lee Kwan-Yew (1923-2015), “pai fundador” e homem forte de Cingapura de 1959 a 1990, anos em que o país saiu da miséria para a riqueza. Um país bem-sucedido na descentralização seria a Escócia.

Enfim, Collier diz que o capitalismo não é individualismo e ganância, mas inovação e dinamismo, que não depende do “líder no topo”, mas de experimentação descentralizada. A democracia não é apenas eleição regular, mas depende de um tipo de inclusão que promova a capacidade de iniciativa e do diálogo para que se chegue ao “objetivo comum”.​

 

Rio está tomando o mesmo caminho de São Paulo’, avalia Bruno Paes Manso, autor de livro sobre milícias

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Jornalista e pesquisador da USP escreveu ‘República das milícias: dos esquadrões da morte à Era Bolsonaro’ a partir de estudo sobre os grupos paramilitares do Rio

Gabriela Goulart – O Globo – 17/10/2020

Jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP, o paulista Bruno Paes Manso viajou várias vezes ao Rio ao longo de um ano em busca de informações para o livro “República das milícias: dos esquadrões da morte à Era Bolsonaro’’ (Editora Todavia), lançado no último dia 7. Até o início da pandemia da Covid-19, ouviu milicianos, policiais, promotores, moradores de comunidades. Como ele diz, queria fazer “um resgate histórico para entender o presente”.

No panorama montado por Manso, o cenário atual é o de um estado dividido em territórios, que exercem sua tirania local e brigam entre si, como na série “Game of Thrones’’. Nesse roteiro da vida real, grupos paramilitares usam o terror para exercer sua autoridade, se associam ao tráfico de drogas para lucrar mais e replicar seus modelos de negócios e fazem alianças políticas para expandir seus domínios. “Como aconteceu com o PCC em São Paulo, o que se vê no Rio é a busca pela hegemonia da governança criminal”, diz o pesquisador, que, junto com Camila Nunes Dias, é autor de “A guerra: a ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil”.

Você acha que a milícia se tornou uma questão endêmica no Rio?

A milícia é o principal problema por sua capacidade de se infiltrar nas instituições, em todas as esferas. O tráfico nunca conseguiu ter isso. Sempre foi associado ao medo das drogas, à guerra permanente, à desordem da violência imprevisível. O político que surge defendendo o traficante é visto como traidor. A milícia se fortalece contrapondo isso, com o marketing de defensora da ordem. Com isso, tem a tolerância de vários grupos em um estado traumatizado pela violência.

Mesmo “rivais”, o tráfico e a milícia se uniram em vários territórios da cidade, sob a égide de narcomilícia. Como você observa essa associação?

É um desdobramento natural do modelo do negócio: extrair o máximo de receita possível. Venda de drogas sempre foi uma atividade muito rentável. Dentro de uma visão pragmática e empresarial, a milícia ia cobrar comissão a partir disso.

Nesta semana, houve uma grande operação para minar o braço financeiro do Comando Vermelho, maior facção do Rio, e outra contra a milícia, com a morte de 12 integrantes. O que esse cenário indica?

Tudo indica que o Rio está tomando o mesmo caminho de São Paulo, onde há apenas o PCC. Seria a busca de uma hegemonia de governança criminal por um grupo da milícia. Uma espécie de paz de cemitério.

Nos últimos anos, números mostram que a milícia mata mais que o tráfico. Você acha que milícia e tráfico também replicam modelos em sua cadeia de violência?

No começo dos anos 2000, casos assustadores de mortes já faziam parte do vocabulário das milícias, com cabeças cortadas e centenas de tiros disparados em uma única vítima. Tanto quanto no tráfico, o terror é usado por esses grupos paramilitares para manter a autoridade nos seus territórios.

Como você enxerga essa divisão de territórios?

No Rio, o papel dos territórios para o negócio do crime, seja ele milícia ou tráfico, é único. Durante a pesquisa e as entrevistas para o livro, a imagem que me passaram é de “Game of Thrones”. São 700 comunidades tiranizadas por “governos” locais autônomos brigando entre si. Isso leva ao grande volume de armamento, que é usado para defender cada território. O que me chamou muito a atenção é a questão: “você prefere tráfico ou milícia?’’ Como se não existisse uma terceira opção, que é a liberdade, a garantia da lei e da cidadania.

O miliciano Ecko é apontado hoje como o cabeça dessa expansão para novos territórios.

Sou cético com o que a polícia vende sobre a cena do Rio. Acho que ele tem um papel relevante, principalmente em Campo Grande e Santa Cruz. Mas ao mesmo tempo que ele é o “Big Boss” da milícia, ele não é pego nunca. Ele está amparado por quem? Essa é a pergunta que tem que ser feita. Se não houvesse conivência e alianças políticas ele teria tanto poder e se manteria tanto tempo impune?

A relação entre milícia e política é indissociável?

É impossível um domínio como o que existe sem conivência dos batalhões, delegacias, integrantes da cúpula, políticos. O presidente Jair Bolsonaro era apologista das milícias na carreira parlamentar. Imagina isso no âmbito de um vereador, que busca votos nos territórios? Políticos e milicianos acabam se associando, e isso é aceito.

 

 

‘EUA e China têm de ser parceiros na rivalidade’, diz Graham Allison

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Sociólogo americano afirma que as duas potências caminham para um confronto inevitável

Entrevista com Graham Allison, cientista político de Harvard e autor do livro ‘A caminho da guerra’

Rodrigo Turrer, SÃO PAULO – Estado de São Paulo – 24/10/2020

Sempre que uma potência hegemônica em determinada época percebe a ascensão de outra potência, pode provocar uma guerra que seria inevitável. Essa dinâmica é chamada de “a armadilha de Tucídides” pelo cientista político americano Graham Allison, e estaria acontecendo neste momento entre China e Estados Unidos.

Allison usa as ideias do historiador grego, que há dois mil anos narrou o conflito entre Atenas e Esparta, para demonstrar como um conflito crescente entre as duas superpotências atuais é inevitável.

Em A Caminho da Guerra, lançado pela editora Intrínseca, o professor de Harvard analisa o impacto do crescimento da potência asiática sobre os EUA e sobre a ordem mundial. Em entrevista ao Estadão, Allison, que foi consultor de Ronald Reagan, Bill Clinton e Barack Obama, diz que os países seguem em rota de colisão.

A era de domínio dos EUA pode estar chegando ao fim?

Para os americanos que cresceram em um mundo em que os EUA eram o número um – e isso seria todo cidadão desde aproximadamente 1870 – a ideia de que a China poderia derrubar os EUA como a maior economia do mundo é impensável. Muitos americanos imaginam que a primazia econômica é um direito inalienável, a ponto de se tornar parte de sua identidade nacional. A menos que os EUA se redefinam para se contentar com algo menos do que ser o “número 1”, os americanos cada vez mais acharão que a ascensão da China é perturbadora e intimidadora. Este não é apenas mais um caso de “competição entre as grandes potências”, mas uma rivalidade clássica da ‘armadilha de Tucídides”, em que cada um vê o outro como uma ameaça à sua identidade.

O sr. acha que os EUA perderam influência? 

Estamos vendo uma mudança tectônica do poder internacional. O PIB nacional cria a subestrutura do poder internacional. A participação dos EUA no PIB global diminuiu de metade em 1950 para um quarto no final da Guerra Fria em 1991; é um sétimo hoje e está em trajetória para ser um décimo em meados do século. Em 1991, a China mal aparecia em qualquer tabela de participação. Desde então, disparou para ultrapassar os EUA em PIB em paridade de poder de compra, ou PIB (PPP), uma medida que a Agência Central de Inteligência (CIA) e o Fundo Monetário Internacional (FMI) consideram como o melhor parâmetro de comparar economias nacionais. O impacto dessa mudança é sentido em todas as dimensões, não apenas entre EUA e China, mas entre cada um deles e seus vizinhos. Quando a China entrou na Organização Mundial do Comércio (OMC) em 2001, o principal parceiro comercial de cada grande nação asiática eram os EUA. Hoje, o parceiro comercial predominante de cada um é quem? China. Dito isso, seria prematuro excluir os EUA. Como o investidor mais bem-sucedido do mundo, Warren Buffet lembra repetidamente aos investidores: ninguém nunca ganhou dinheiro no longo prazo vendendo a descoberto os EUA.

Como evitar a armadilha?

Ao longo dos quatro anos desde que meu livro foi publicado tenho procurado maneiras de dar uma resposta positiva a essa pergunta – na verdade, para escapar da armadilha de Tucídides. Até o momento, identifiquei nove possíveis “vias de escape”. Aquela que estou agora explorando mais ativamente com acadêmicos chineses e americanos combina um antigo conceito chinês de “parceiros na rivalidade”, uma abordagem que o presidente John Kennedy adotou depois de ter sobrevivido à crise dos mísseis cubanos – ele pediu para que EUA e União Soviética coexistam em um “mundo seguro para a diversidade”. Parceiros na rivalidade descreve a relação que o imperador Song da China concordou em estabelecer com Liao, uma dinastia da Manchúria na fronteira norte da China, após concluir que seus exércitos não seriam capazes de derrotá-los. No Tratado de Chanyuan, de 1005, Song e Liao concordaram em competir agressivamente em algumas arenas e, simultaneamente, cooperar em outras. O Tratado exigia que Song prestasse homenagem a Liao, que concordou em investir esses tributos no desenvolvimento econômico, científico e técnico da China. A questão hoje é se os estadistas americanos e chineses poderiam encontrar seu caminho para um análogo do século XXI da invenção de Song, que lhes permitiria competir e cooperar simultaneamente. A possibilidade de que as nações possam competir implacavelmente e cooperar intensamente, ao mesmo tempo, soa para os diplomatas como contradição. No mundo dos negócios, porém, é chamado de vida. Apple e Samsung oferecem um exemplo poderoso. Os dois são rivais implacáveis no mercado global de smartphones. Mas quem é o maior fornecedor de componentes da Apple para smartphones? Samsung.

O sr. acredita que China e EUA entraram numa nova guerra fria?

As relações entre EUA e  China estão destinadas a piorar antes de piorar muito. A razão subjacente é a armadilha de Tucídides. Quando um poder crescente ameaça substituir um poder governante, alarmes soam: perigo extremo à frente. Tucídides explicou essa dinâmica no caso da ascensão de Atenas para rivalizar com Esparta na Grécia antiga. Nos séculos desde então, essa história se repetiu indefinidamente. Os últimos 500 anos viram 16 casos em que uma potência em ascensão ameaçou deslocar um grande poder governante e 12 terminaram em guerra. França contra os Habsburgos, França contra Reino Unido, China e Rússia contra Japão, Reino Unido contra Alemanha. Enquanto os americanos estão começando a descobrir que a China é um rival sério em todas as frentes, a analogia para este embate é cada vez mais a “Guerra Fria”. Mas as diferenças entre as rivalidades EUA e China e EUA e União Soviética são mais significativas do que as semelhanças. Compreender como essas grandes rivalidades são diferentes será fundamental na elaboração de uma estratégia dos EUA para o desafio da China. A possibilidade de uma guerra real entre os EUA e a China, por incrível que pareça, é maior do que a maioria das pessoas avalia.

É irônico as pessoas brancas serem tão sensíveis a falar de raça, diz DiAngelo.

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Robin DiAngelo, autora de livro há 111 semanas na lista dos mais vendidos nos EUA, fala de branquitude, privilégio e negação do racismo sistêmico

Fernanda Mena – Folha de São Paulo, 25/10/2020

O mito da democracia racial é uma ideologia daltônica que funciona para proteger a hierarquia de raça da sociedade brasileira ao simplesmente negar que ela exista.

É assim que a norte-americana Robin DiAngelo, consultora em questões de justiça social e racial e autora de “Não Basta não ser racista: Sejamos Antirracistas” (Faro Editorial), avalia um aspecto central na história das relações raciais no Brasil.

Professora de educação da Universidade de Washington, em Seattle (EUA), Robin cunhou o termo “fragilidade branca”, título original deste best-seller que está há nada menos de 111 semanas na lista de mais vendidos do jornal The New York Times.

A expressão designa a dificuldade de pessoas brancas de conversar sobre racismo e reconhecerem a si próprias como beneficiárias, ainda que involuntariamente, de um sistema que as valoriza em depreciação de outros grupos étnico-raciais.

“A identidade branca tem sido usada para desprezar a análise racial, rotulando tudo como ‘politicamente correto’, e interditando o debate ao acusá-lo de identitário, alegando que é preciso falar de todos, de maneira inclusiva”, explica ela.

“É como dizer Black Lives Matter [vidas negras importam] e alguém retrucar que todas as vidas importam [all lives matter]. É claro que todas as vidas importam, mas, num mundo em que isso não ocorre na prática, precisamos nomear quais vidas, afinal, parecem não importar.”

Robin participa, nesta segunda-feira (26), da abertura do encontro Branquitude: racismo e antirracismo, organizado pelo Instituto Ibirapitanga com a co-curadoria de Lia Vainer Schucman.

Ao longo de três dias e cinco debates transmitidos ao vivo pelo canal do Ibirapitanga no YouTube, o encontro pretende refletir sobre as relações raciais no Brasil e os caminhos para a desconstrução do racismo estrutural.

“A grande ironia é justamente as pessoas brancas serem supersensíveis quando o assunto é raça”, brinca Robin.

Do que falamos quando falamos de privilégio branco?

Privilégio branco é a vantagem automática que as pessoas brancas têm por viverem numa sociedade em que elas são valorizadas e, na maior parte dos casos, controlam e dominam. É como nadar numa correnteza. Há pessoas que estão batendo braços e pernas, mas a correnteza favorece seu deslocamento mesmo sem que elas percebam. E há outras pessoas também batendo braços e pernas, mas a correnteza faz resistência constante a seu movimento.

Só que quando é apontado que as pessoas brancas têm uma vantagem automática imerecida, elas ficam bastante defensivas. Interpretam que essa vantagem é uma acusação de que elas não trabalharam duro o suficiente para estarem onde estão. E eu preciso ser clara: sim, nós trabalhamos duro. Mas o sistema nos recompensa por esse trabalho de maneira diferente. E nós não estamos trabalhando duro contra uma resistência racial. Outro jeito de olhar para o privilégio branco é observar o voto das mulheres.

Como assim?

E eu me refiro ao sufrágio como o momento em que homens nos concederam direitos civis, como apenas eles poderiam fazer. Antes disso, mulheres poderiam ser preconceituosas em relação a homens ou discriminar homens individualmente, mas não podiam, coletivamente, negar para todo e qualquer homem seus direitos civis.

Os homens podiam. Por que? Porque os preconceitos deles eram sustentados por autoridade legal e controle institucional. E essa é a chave para diferenciar o viés racial, que todos temos, de racismo. Racismo é quando preconceito e discriminação são sustentados por poder.

Por que é tão difícil reconhecer privilégios?

Por causa de algumas ideologias. Uma é a meritocracia: somos ensinados que temos o que temos porque trabalhamos pra isso e merecemos.

Ninguém nega que pessoas negras estejam em pior situação a partir de qualquer dado que se observe. E só existem dois jeitos de explicar essa situação. Ou as pessoas negras são inferiores e somos, os brancos, superiores. Ou existe racismo estrutural!

E, se você negar a existência do racismo estrutural, é porque está usando uma chave explicativa racista.

A outra ideologia que incide nessa dificuldade de reconhecer privilégios é o individualismo. Ainda que exista um crescente movimento nacionalista branco, a maior parte das pessoas brancas, no nível consciente, acredita em justiça racial e não quer, intencionalmente, que pessoas negras sofram.

Se a maioria acredita em justiça racial, como existe racismo?

Eu, que sou branca, não nasci conhecendo o racismo, mas eu aprendi o que é racismo e supremacia branca.

Ainda antes de eu nascer, as forças do racismo e da supremacia branca operavam a minha vida: por serem brancos, meus pais podiam viver em qualquer lugar que pudessem pagar e eles dificilmente seriam discriminados em serviços de saúde. Mas quem entrou no quarto da maternidade na noite em que eu nasci para limpar o chão e recolher o lixo foi muito provavelmente uma pessoa negra.

Ou seja, eu nasci e fui criada num ambiente racialmente hierarquizado que me influenciou. Pesquisas mostram que crianças de 3 ou 4 anos entendem que é melhor ser branco. É um processo que se consolida muito cedo.

Como explicar o privilégio branco em relação a pessoas brancas desprivilegiadas?

Pessoas brancas sem dúvida sofrem outras formas de opressão e também enfrentam barreiras, mas o racismo não é uma delas, o que as ajuda. Você pode pensar em qualquer grupo minoritário, como mulheres e pessoas LGBTI, e, dentro deles, as pessoas negras também vão estar nas piores posições.

Eu sei que o classismo é algo poderoso no Brasil e sei que racismo e classismo têm grande intersecção, o que faz com que classe e raça pareçam ser quase a mesma coisa. Mas não é.

Eu cresci em situação de pobreza urbana dos EUA. Minha família ficou sem casa e morávamos no nosso carro. Eu tinha uma sensação muito profunda de vergonha de classe. Mas eu não sou menos racista ou tenho menor privilégio racial porque experimentei o classismo.

Você poderia dar um exemplo dessa relação entre hierarquia social e hierarquia racial?

Vivemos em situação de rua, pasamos fome… E, ao mesmo tempo, eu fui ensinada a não tocar em nada que uma pessoa “colored” [termo pejorativo usado para se referir a uma pessoa negra] havia tocado. Mesmo quando fosse comida e estivéssemos com fome.

A mensagem era clara: estará sujo se uma pessoa negra tiver encostado. Mas a verdade era que, por causa da situação de rua, nós é que éramos sujos. Só que, nesses momentos, eu não sentia tanta vergonha da minha pobreza porque eu me realinhava com a cultura branca de classe média dominante contra um outro racializado.

Qual é, então, a fragilidade branca?

A fragilidade se refere à hipersensibilidade da branquitude quando confrontada com questões de raça, que as faz reagir ficando chateadas, bravas ou defensivas. Mas o impacto dessa fragilidade não tem nada de frágil.

É bastante poderosa porque vem amparada na autoridade legal e no domínio institucional. Funciona como um policiamento racial. Tornamos tão punitivo para pessoas negras nos desafiarem e nomearem essas dinâmicas que, na maior parte das vezes, eles simplesmente decidem não falar.

É mais um jeito de silenciar pessoas negras. A grande ironia é justamente as pessoas brancas serem supersensíveis quando o assunto é raça.

Para quais mudanças o assassinato de George Floyd e os protestos que o seguiram apontam?

Conceitos como o de racismo sistêmico entraram no debate principal. E isso é fundamental. Porque enquanto continuarmos a achar que uma pessoa racista é alguém intencionalmente mau, que quer machucar os outros, não vamos sair deste lugar.

E não existe nada melhor para eximir as pessoas brancas do que permitir que elas se ofendam quando confrontadas com essa acusação, o que protege perfeitamente o sistema do racismo. Eu diria que todo racismo que eu perpetrei na minha vida, e foi bastante, não foi algo consciente e intencional, mas machucou as pessoas do mesmo jeito.

É preciso olhar como isso se manifesta na sua vida, no seu trabalho, nas suas relações. E isso é muito libertador!

E então você pode parar de achar que você está sendo acusado de ser mau. E se liberar para alinhar o que você diz acreditar, que é a justiça racial, com o jeito como você se posiciona e age no mundo. ‘`” por isso que o oposto do racismo não é sua ausência, mas o antirracismo.

ROBIN DIANGELO, 64

Consultora e educadora há mais de 20 anos em questões de justiça social e racial, e professora da Universidade de Washington, em Seattle (EUA). Seu livro, “Não basta não ser racista: sejamos antirracistas” (“White Fragility: Why It’s So Hard For White People To Talk About Racism”), está há 111 semanas na lista de mais vendidos do NYT.

Capitalismo consciente é um gozo para idiotas inventado pela esquerda, por Pondé.

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Levar seu pet à empresa não ‘humaniza’ a produção de riqueza

O capitalismo se caracteriza, entre outras coisas, por ser um sistema em que o capital tende a se reproduzir como entidade autônoma. Nesse processo, ele se torna o único valor absoluto e tudo mais se torna relativo à sua dinâmica. Esse sistema se tornou total: não há vida fora dele, mesmo quando você se ilude pensando que está operando contra ele.

O documentário “Dilema das Redes” é um exemplo desse ciclo: de dentro do próprio algoritmo (da Netflix), os entrevistados criticam a tecnologia de rastros usada pelos algoritmos, tecnologia esta que existe pra servir a você e ao revolucionário da Faria Lima no seu momento iFood. Você não sabe quem é esse revolucionário? Calma.

Antes vamos refletir sobre a ideia do capitalismo consciente, fetiche desse revolucionário. Essa ideia só é possível se a tomarmos como uma franja muito tênue do processo total, mais como um espectro da consciência do que ela própria.

Isto é, a suposta consciência crítica é falsa na medida em que direitos humanos, inclusão de minorias, combate a preconceitos, defesa de causas ambientais só se sustentam se tais processos reproduzirem o próprio capital. E uma vez dentro do ciclo, tudo é relativo ao ganho reprodutivo dele. É neste cenário que surge o revolucionário da Faria Lima.

Esse revolucionário é um idiota ou um cínico. O idiota crê que está “melhorando o capitalismo”, o cínico age de má-fé pura e simples. Este tem mais consciência do processo do que o idiota. Daí que só há consciência dentro desse processo se for cínica. Fazendo uma apropriação selvagem do conceito de razão cínica do filósofo alemão Peter Sloterdijk, podemos dizer que ela, paulatinamente, atinge sua maior idade. Toda razão cínica é, no final do dia, uma forma de mau-caratismo.

O revolucionário da Faria Lima goza com sua condição de defensor de causas na medida em que finge não perceber que será eliminado do sistema de reprodução do capital assim que fizer 40 anos. Pessoas mais jovens do que ele suprirão o exército de revolucionários da Faria Lima que creem, piamente, na ideia de que podendo levar seu pet para a empresa descolada, ele estará “humanizando” a produção de riqueza.

Obcecado com a alimentação, a saúde, a natureza, a população trans, essa moçada acha que encontrará a qualidade de vida prometida pela propaganda de um mundo melhor, mesmo que a cada dia aumente a dose de ansiolítico para aguentar o medo do mundo, do desemprego, do amor, de ter filhos, da pandemia.

O capitalismo é inigualável na produção de riqueza, e isso tem melhorado a condição material de muita gente no mundo, apesar da desigualdade crescente. Vacinas, medicina, celulares, computadores, aviões, direitos humanos, enfim, tudo de bom à nossa volta depende de grana.

Eis o impasse: a riqueza é fruto de um sistema que alimenta a competição, a mentira do marketing, a obsessão pela eficácia, a exaustão, a tirania do consumidor nas redes, a desconfiança como laço afetivo, o esgotamento das relações pessoais.

A ideia de que jovens entrando na política mudará isso é para iniciantes: grande parte deles é mal preparada e busca a política como meio de vida, logo, como mercado. E, esse mercado está crescendo com todo tipo de oportunista ou desinformado.

Imagine você, caro leitor, que muitos desses revolucionários da Faria Lima, que fazem ioga e trabalham em startups, creem na publicidade de bancos e afins. Quando você vê um banco fazendo propaganda “do bem”, saiba que algo está errado se você supõe que ele esteja fazendo uma revolução a partir da fidelização de seus clientes. E se você hoje está em home office, aproveite o que ainda resta de vida privada à sua volta.

Enfim, o capitalismo consciente, maior produto da esquerda fetiche que imanta o mundo a partir da política histérica americana, é um gozo para idiotas ou cínicos. Nosso revolucionário vegano passeia com seu pet e usa a ciclofaixa da Faria Lima para ir trabalhar. Sente-se como um milênio na Dinamarca, quando, na verdade, é um mero produto do capitalismo, como o ketchup orgânico.

Luiz Felipe Pondé

Escritor e ensaísta, autor de “Dez Mandamentos” e “Marketing Existencial”. É doutor em filosofia pela USP.

 

Desemprego, pandemia e desagregação social

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Estamos vivenciando um momento muito específico do sistema econômico e produtivo internacional, marcado por pandemias, medos e desesperanças, que geram desestruturações e conflitos generalizados, levando os indivíduos a momentos de preocupações e desesperos, aumentando os conflitos internos e abrindo espaços para confrontos entre nações, guerras comerciais, ofensas constantes que podem culminar em conflitos armados, destruições materiais, espirituais e degradações morais, neste momento nos perguntamos, para onde caminha a humanidade?

Um dos grandes problemas da sociedade contemporânea é o desemprego que cresce de forma rápida e acelerada, levando as comunidades inteiras a degradações variadas, o desemprego se espalha em todas as nações, desde os países mais ricos e afortunados, até os países menos dotados de recursos monetários e financeiros, espalhando a desestruturação, os saques, os conflitos e as violências crescem de forma aceleradas. Neste ambiente, percebemos a destruição dos espaços sociais de convivência e de respeito entre os povos, antes agrupamentos eram caracterizados como ordeiros e hospitaleiros, estão se transformando em verdadeiros animais dotados de fúrias e de ódios em ascensão.

O sistema econômico capitalismo revolucionou a sociedade mundial ao abrir novas oportunidades de ascensão social, com isso, possibilitou uma grande parte da sociedade europeia ao garantir seu crescimento econômico e melhorias de vida, ascendendo profissionalmente e angariando recursos monetários, gerando novos espaços de investimentos e melhorias sociais, este movimento trouxe legitimidade para a comunidade, construindo laços sociais e novas oportunidades de crescimento e, posteriormente, desenvolvimento econômico.

Os trabalhadores saíram nos meios rurais e buscaram novos espaços de emprego, surgiram as novas estruturas produtivas, baseadas em fábricas e, posteriormente, estruturas industriais, que empregavam levas de trabalhadores, gerando renda e garantindo salários e benefícios sociais, este período a sociedade passava por momentos de grandes transformações, um período extraordinário de ascensão social, impulsionando a ciência, o conhecimento, os cientistas e pesquisadores ganhavam espaços na sociedade e impulsionaram as descobertas científicas, novas máquinas, equipamentos, descobertas de novas áreas e oportunidades crescentes.

Os trabalhadores urbanos cresciam e se estruturaram, garantiam direitos e benefícios variados, famílias eram constituídas, as escolas se consolidavam, a ciência mudava os ambientes de atuação social, levando um papel central para os pesquisadores, os cientistas e homens do conhecimento, que passavam a ser vistos pela coletividade com respeito e admiração, indivíduos centrais para a sociedade da época, com novos paradigmas do mundo de trabalho, da produção, da produtividade, das escalas, das metas, dos lucros, da acumulação e da sobrevivência.

Nesta época, meados do século XIX, um intelectual alemão destacou questões que geravam grandes controvérsias na sociedade europeia, segundo Karl Marx o sistema capitalista era o maior sistema gerador de riquezas da sociedade, nenhum outro modelo econômico e produtivo gerava tanta riquezas e espaços de acumulação na sociedade, mas destacou ainda, que o sistema econômico capitalista tem um defeito central, o capitalismo concentra nas mãos de poucos grupos sociais, gerando confrontos crescentes entre capital e trabalho, um conflito irreconciliável entre estes grupos sociais, seus interesses eram diferentes e antagônico e este conflito era o grande motor da sociedade, neste confronto os grandes ganhadores eram os espoliados, os trabalhadores, os proletários, os mais pobres e explorados. A mais de 150 anos, os escritos deste alemão foram responsáveis por grandes controvérsias na sociedade capitalista, alguns teóricos defendendo seus estudos e suas conclusões, outros grupos rechaçando seus pensamentos, gerando controvérsias constantes e dissensos na sociedade, conflitos e agressões variadas.

No século XXI, as controvérsias continuam atuais, os teóricos atrelados acreditam que vivemos numa sociedade marcada pelo crescimento no desemprego estrutural, que crescem de forma acelerada, gerando um verdadeiro calvário nas classes dos trabalhadores, que percebem o incremento do desemprego, onde levas gigantes de trabalhadores estão perdendo seus empregos, seus salários, suas rendas e sua dignidade, levando novos confrontos, desesperos crescentes e violências generalizadas, desestruturações sociais, egoísmos variados e competitividades crescentes entre todos os grupos sociais , acabando com a solidariedade de classe, as amizades entre os indivíduos e a integração social, estamos rumando para uma forte desagregação das comunidades.

De outro lado, percebemos grupos enormes de pessoas e pesquisadores, atrelados aos ideários das classes dominantes, defendendo o incremento da concorrência, da redução do Estado Nacional, da privatização das empresas estatais e o crescimento de entidades privadas, garantindo novos espaços do mercado, visto como o grande agente construtor do crescimento econômico, gerador de riqueza e garantindo melhorias crescentes das condições sociais e bem-estar social.

Na sociedade brasileira, percebemos esta discussão constante em todos os poros da coletividade, neste momento, percebemos o desemprego crescendo de forma acelerada, mais que o desemprego, percebemos o aumento da desesperança, as pessoas perderam as esperanças de encontrar novos postos de trabalho, os investimentos se reduzem e os investimentos estrangeiros fogem da sociedade brasileira, levando as taxas de câmbio desvalorizações históricos, aumentando o endividamento das empresas nacionais e abrindo espaços para ganhos dos setores exportadores, exportações ganham espaço mas, ao mesmo tempo, esquecemos que nossa indústria morreu, perdeu dinamismo e foi superada pela concorrência internacional, principalmente das nações asiáticas, que ganharam espaços no comércio global e deixando o Brasil como exportador de produtos primários, com isso, estamos nos restringindo apenas a um exportador de produtos primários, tais como soja, laranja, minério de ferro, petróleo, dentre outros. Seu momento de reprimarização das exportações nacionais, somos referências no comércio internacional, exportamos muitos commodities, garantindo grandes recursos de moeda estrangeira, mas os empregos gerados na economia interna são limitados, evidenciando as grandes dificuldades da geração na economia nacional.

Devemos destacar ainda, que a sociedade mundial está passando por um momento de pandemia com impactos generalizados em todas as nações, gerando desemprego em todas as regiões, levando grandes levas de trabalhadores para o subemprego, empresas para a falência, famílias com reduções orçamentários consideráveis, além de desestruturação social, medos elevados e desesperanças crescentes. No caso brasileiro, a pandemia desnuda a péssima degradação social, mostrando as desigualdades nacionais que são estruturais, de um lado, um pequeno grupo de famílias perceberam o alto crescimento de suas fortunas, seus patrimônios cresceram de forma acelerada e, em contrapartida, uma grande parte da sociedade nacional perceberam a redução de seus rendimentos, levando uma parte crescente da sociedade nacional buscar recursos do auxílio emergencial do governo federal, sem estes recursos, grande parte da coletividade estava sem recursos de sobrevivência de forma digna e decente, aumentando o fosso social na sociedade brasileira.

A miséria social brasileira está sendo desnudada por completa, mais de sessenta milhões de brasileiros receberam recursos oriundos do auxílio emergencial, embora percebamos que mais de 10% das pessoas que receberam estes recursos e foram de forma indevida, pessoas que fraudaram ou que burlaram o recebimento, mesmo assim, os números são expressivos e assustadores, vivemos num momento de grande apartheidsocial, exclusão, violência, os impactos desta indigência nacional estão em plena degradação da nossa identidade nacional.

A miséria social vem sendo construída a muitos séculos, explorações crescentes são continuadas, neste momento percebemos que as perspectivas para o Brasil são negativas e preocupantes, de um lado percebemos a saída de investimentos estrangeiros, com isso, percebemos a desvalorização da moeda nacional, com isso, percebemos o aumento dos preços internos, principalmente nos produtos fundamentais, resultado da atuação tímida e limitada do governo nacional nos estoques reguladores que foram vendidos no mercado externo. Sem estoques de regulação, que sempre foram utilizados pelo governo nacional para conter os preços internos, com isso, os preços nacionais crescem e seus impactos na renda dos trabalhadores são imediatos, neste ambiente as perdas foram acentuadas para a classe trabalhadora.

A pandemia está apresentando um novo modelo de trabalho, o trabalho remoto impulsionou muitas empresas e garantiu a continuidade de seus mercados, garantindo novos espaços de produtividade e, ao mesmo tempo, reduziu a interdependência dos trabalhadores, afastando-os dos espaços de conversação, de negociação e trocas de experiências, com isso, os novos modelos de trabalhos estão desmobilizando os trabalhadores e levando os sindicatos, uns poucos que ainda conseguiram sobreviver, perdendo mais espaços de negociação, fragilizando os instrumentos de questionamentos, afastando-os dos agentes de representatividades, fragilizando as pautas dos trabalhadores e garantindo forças mais crescentes nas negociações dos confrontos entre capital e trabalho. Neste ambiente, os sindicatos perderam a centralidade na sociedade contemporânea, as reformas trabalhistas que bradavam que trariam novos empregos e traria novas oportunidades na classe trabalhadora, com isso, percebemos que os trabalhadores mais uma vez foram enganados, explorados e desmobilizados, criando um ambiente, na contemporaneidade, onde os mais fracos são degradados pelos mais fortes.

Pesquisas recentes feitas pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), nos últimos cinco anos mais de 46% dos empregos gerados na economia nacional foram de trabalhos de baixo valor agregado, trabalhadores mal remunerados, sem qualificação ou com baixa capacidade, com isso, uma reflexão sobre os dados destacados na pesquisa nos leva a uma grande preocupação pelos rumos da sociedade nacional, sem empregos qualificados, bem remunerados e sem trabalhadores capacitados, o futuro da sociedade brasileira será assustador e preocupante.

Na sociedade brasileira estamos caminhando num momento de degradação social com data marcada, sem projeto nacional e sem credibilidade internacional, o país está se aproximando do caos. O desemprego cresce todos os dias, o fim do auxílio emergencial terminará em dezembro, deixando uma parcela crescente da sociedade sem proteção, sem emprego e sem perspectivas, estamos rumando para a degradação, com subemprego crescente, desalento em ascensão, dívida pública acelerando, rumando para 100% do produto interno bruto, gerando instabilidade no mercado e gerando constrangimentos no governo e na sociedade.

Neste ambiente, percebemos a grande dificuldade do governo para encontrar um novo rumo para a sociedade brasileira, rumamos para a degradação econômica, a pandemia acelerou a desagregação social e mostrando que a elite nacional fracassou na construção de um país mais viável, mas sustentável e novos espaços de crescimento inclusivo, onde todos os grupos sociais, desde os ricos aos pobres e miseráveis, todos conjugando com os valores da civilização, com emprego e salário dignos e decentes, com novos espaços de desenvolvimento social.

O maior economista brasileiro de todos os tempos, Celso Furtado, nos faz um grande alerta, num momento de suas andanças, escreveu que durante mais de cinquenta anos que estudo da economia brasileira, nunca encontrou um problema eminentemente econômico na sociedade nacional, todos os problemas que temos são, todos são problemas eminentemente políticos, para resolver este problema nacional temos de construir respostas originais no campo da política.

Piketty: hora de fazer os ricos pagarem

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Os trilhões emitidos pelos bancos centrais na pandemia irrigaram as elites e os cassinos financeiros. Este “resgate” produzirá desigualdade obscena. Há alternativa: como no pós-guerra, criar dinheiro para o Comum e taxar pesadamente as fortunas

Por Thomas Piketty, no Le Monde Diplomatique, traduzido pelo OUTRAS MÍDIAS

Como os Estados enfrentarão o acúmulo de dívidas geradas pela crise da Covid-19? Muitos já ouvem a resposta: os bancos centrais assumirão em seus balanços uma parcela crescente das dívidas, e tudo será resolvido. Na verdade, as coisas são mais complexas. O dinheiro faz parte da solução, mas não será suficiente. Mais cedo ou mais tarde, os mais ricos deverão dar sua contribuição.

Recapitulemos. A criação de dinheiro tomou proporções sem precedentes em 2020. O balanço do Federal Reserve saltou de 4,159 trilhões de dólares em 24 de fevereiro para 7,056 trilhões em 28 de setembro, perto de 3 trilhões de dólares de injeção monetária em sete meses, o que jamais foi visto. O balanço do Eurossistema (a rede de bancos centrais dirigida pelo Banco Central Europeu, BCE) passou de 4,692 trilhões de euros em 28 de fevereiro para 6,705 trilhões em 2 de outubro, uma alta de 2 trilhões.

Em relação ao PIB da zona do euro, o balanço do Eurossistema, que já tinha passado de 10% para 40% do PIB entre 2008 e 2018, saltou para perto de 60% entre fevereiro e outubro de 2020

Para que todo este dinheiro? Em tempos normais, os bancos centrais contentam-se em conceder empréstimos de curto prazo a fim de garantir a liquidez do sistema. Como as entradas e saídas de dinheiro nos diferentes bancos privados nunca se equilibram exatamente a cada dia, os bancos centrais emprestam por alguns dias somas que os estabelecimentos reembolsam depois.

Após a crise de 2008, os bancos centrais começaram a emprestar dinheiro com prazos cada vez mais longos (algumas semanas, depois alguns meses, ou mesmo vários anos) a fim de tranquilizar os atores financeiros, paralisados com a ideia de seus parceiros de jogo irem à falência. E havia muito o que fazer, pois, na falta de regulação adequada, o jogo financeiro tornou-se um gigantesco cassino planetário ao longo das últimas décadas.

Todos começaram a emprestar e tomar emprestado numa escala sem precedentes, se bem que o total de ativos e passivos financeiros privados detidos pelos bancos, empresas e famílias ultrapassa hoje 1.000% do PIB nos países ricos (inclusive sem incluir os derivativos), contra 200% nos anos 1970. O patrimônio real (isto é, o valor líquido dos imóveis e das empresas) também aumentou, passando de 300% para 500% do PIB, mas bem menos intensamente, o que ilustra a financeirização da economia. De certa forma, os balanços dos bancos centrais apenas seguiram (com atraso) a explosão dos balanços privados, a fim de preservar sua capacidade de ação diante dos mercados.

O novo ativismo dos bancos centrais permitiu-lhes igualmente recomprar uma parte crescente dos títulos da dívida pública, enquanto reduz as taxas de juros para zero. O BCE já detinha 20% da dívida pública da zona do euro no início de 2020, e poderia possuir perto de 30% daqui até o final do ano. Uma evolução similar ocorre nos Estados Unidos.

Como é pouco provável que o BCE ou o Fed decidam um dia remeter estes títulos aos mercados ou exigir o reembolso deles, poderíamos desde agora decidir não mais contabilizá-los no total das dívidas públicas. Se desejamos inscrever esta garantia no mármore jurídico, o que seria preferível, então isto arriscaria levar um pouco mais de tempo e de debates.

A questão mais importante é a seguinte: devemos continuar neste caminho, e podemos considerar que os bancos centrais detenham no futuro 50% e depois 100% das dívidas públicas, aliviando ainda mais a carga financeira dos Estados? De um ponto de vista técnico, isto não representaria problema algum. A dificuldade é que, resolvendo a questão das dívidas públicas com uma mão, esta política cria outras dificuldades a mais, especialmente em matéria de crescimento das desigualdades de riquezas. Na verdade, a orgia da criação monetária e de compra de títulos financeiros leva ao aumento dos preços das ações e imóveis, o que contribui para enriquecer os mais ricos. Para os pequenos poupadores, as taxas de juros nulas ou negativas não são necessariamente uma boa notícia. Mas, para os que possuem meios de emprestar a baixas taxas e que dispõem de competência financeira, legal e fiscal permitindo encontrar os investimentos corretos, é possível obter excelentes rendimentos. Segundo a revista Challenges, as 500 maiores fortunas francesas passaram de 210 a 730 bilhões de euros entre 2010 e 2020 (de 10% para 30% do PIB). Uma tal evolução é social e politicamente insustentável.

Seria diferente se a criação monetária, no lugar de alimentar a bolha financeira, fosse mobilizada para financiar um verdadeiro impulso social e ecológico, isto é, assumindo uma forte criação de empregos e aumentos salariais nos hospitais, nas escolas, na renovação térmica, nos serviços locais. Isto permitiria aliviar a dívida ao mesmo tempo em que se reduzem as desigualdades, investindo nos setores úteis para o futuro e deslocando a inflação dos preços dos ativos para os salários e para os bens e serviços.

Para tanto, não seria o caso de uma solução milagrosa. Assim que a inflação retornasse novamente a níveis substanciais (de 3% a 4% ao ano), seria necessário atenuar a criação monetária e regressar à arma fiscal. Todas as histórias das dívidas públicas mostram: o dinheiro sozinho não pode oferecer uma solução pacífica para um problema desta magnitude, pois, de um modo ou de outro, envolve consequências distributivas descontroladas. Foi recorrendo a taxas excepcionais sobre os mais ricos que as grandes dívidas públicas do período pós-guerra foram extintas, e que o pacto social e produtivo das décadas seguintes foi reconstruído. Vamos apostar que o mesmo se passará no futuro.

Thomas Piketty é diretor de pesquisas na École des Hautes Études en Sciences Sociales e professor na Paris School of Economics. Autor, entre outros livros, de O capital no século XXI (Intrinseca).

O Estado, a fome e os falsos cristãos, por Dora Incontri

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Hoje pela manhã, vejo uma das muitas más notícias que temos lido nos últimos tempos. Depois de termos saído do mapa da fome, nos governos petistas – e embora eu não seja petista e não faça propaganda partidária, porque sou anarquista, é preciso dizer que esse foi um grande feito de Lula – retrocedemos décadas e estamos de novo com uma população faminta e sem nenhuma garantia social.

Leio a manchete da Gazeta: Um país mais organizado é também um país sem fome. E lembro-me de um item do Livro dos Espíritos, de Kardec:

“930 – Numa sociedade organizada segundo a lei do Cristo ninguém deve morrer de fome.

Com uma organização social previdente e sábia o homem só poderia sofrer necessidades, por sua própria culpa. Mas essas próprias culpas são frequentemente o resultado do meio em que ele vive. Quando o homem praticar a lei de Deus, haverá uma ordem social fundada na justiça e na solidariedade e com isso ele mesmo será melhor.” 

Pois, veja-se a contradição das contradições… estamos num momento em que o Estado laico perde cada vez mais sua laicidade, que no Brasil desde a fundação da República nunca foi lá muito laico, sempre em conluios com a Igreja Católica e, mais recentemente, com as Igrejas protestantes. E, no entanto, isso não significa que o Estado se inspire em princípios éticos que são associados com a mensagem cristã: fraternidade, justiça, solidariedade, igualdade… O cristianismo que se enquista como uma doença nas estruturas do Estado – que deveria ser laico, justamente como uma garantia de liberdade religiosa e de consciência e para que valores de um determinado grupo não se imponham como regras de toda a nação – é um cristianismo moralista, retrógrado, opressor dos corpos e das mentes, aliado ao que há de mais anticientífico e desumanizante… O cristianismo, ao invés, que é a essência da mensagem de Jesus, aquela mesma a que se refere Kardec, se fosse inspiração de nossas instituições e organização social, redundaria numa sociedade mais justa e igualitária.

O cristianismo falsificado é a organização das igrejas em seus moldes hierárquicos, de abuso econômico, de opressão das pessoas, é a casca podre de todas as religiões, que preferem vez por outra demonstrar uma caridade ostentatória, a mudar de fato as estruturas da sociedade, abolindo a possibilidade da miséria, da exploração e da fome. Infelizmente, entre esses últimos, há muitos espíritas também. É a caridade vertical, dando migalhas ao faminto, ao invés de justiça, dignidade e solidariedade horizontal, promovendo a igualdade entre todos os membros de uma sociedade.

Quando vou comer, perco às vezes, a vontade, diante de um prato bem feito, ao me lembrar que milhões de brasileiros e de irmãos meus em humanidade, de outros países e continentes, estão acordando e indo dormir sem terem se alimentado. Eu nunca passei fome nessa vida, mas posso ter empatia com que passa. Posso me sentir visceralmente raivosa e indignada que num país com tanta terra, com tantos recursos, num mundo que joga toneladas de alimentos fora todos os anos, há seres humanos, entre eles, crianças e velhos, que vão para a cama de estômago roncando.

Essa gente que está no poder, no congresso, no executivo, que bate no peito, se dizendo cristã, e fica perseguindo o comportamento sexual do próximo, combatendo todas as formas de progresso científico, político e filosófico, essa gente não dá a mínima para a fome – ao invés, vai retirando a cada dia toda a expectativa de trabalho, educação, saúde, desenvolvimento e… comida, enquanto os bancos, sempre protegidos e bem tratados, faturam trilhões de lucros anuais. É o capitalismo, que de cristão de fato não tem nada. Porque Jesus diria que é mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino dos Céus.

Quando de verdade os princípios essenciais do cristianismo de Jesus – que não por acaso, estão de maneira intrínseca em propostas socialistas, anarquistas, cooperativistas, revolucionárias da sociedade –  fizerem parte das formas estruturais de como nos organizamos, então sim, não haverá mais a aberração de tão poucos lucrarem tanto e a maioria do povo sem nenhuma garantia do básico para sobreviver.