Uma alternativa ao Novo Ensino Médio, por Vilela e Cara.

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Suspenso temporariamente pelo governo Lula, ele reduz disciplinas essenciais à formação, sob a ilusão de ampliar carga horária. Ao invés de forjar seres neoliberais, saída pode estar no ensino técnico integrado à rede de Institutos Federais

Elenira Vilela e Daniel Cara,

OUTRAS PALAVRAS – 04/04/2023

O tema mais importante da educação brasileira nesse início de Governo Lula-Alckmin é o Novo Ensino Médio (NEM). Chegou a ser tema de entrevista do Presidente à PósTV 247, com ele afirmando o compromisso do seu governo em que estudantes e profissionais da educação sejam ouvidos de verdade na reformulação das diretrizes. E na segunda-feira, 3 de abril surgiu a notícia de que a implementação ficará suspensa pelos próximos 90 dias, inclusive no que atinge as alterações do ENEM 2024, vitória de estudantes, pesquisadores e trabalhadoras da educação mobilizadas.

O NEM, também conhecido como Reforma do Ensino Médio, foi aprovado e implantado por Medida Provisória, no contexto do processo de golpe liderado por Michel Temer e, portanto, sem um amplo debate educacional. Diante desse fato e das graves consequências dessa política, desde a transição governamental, é esperado que o Governo Lula-Alckmin abra um amplo debate considerando duas possibilidades: primeiro, a revogação da Reforma do Ensino Médio (apoiada pela esmagadora maioria da comunidade educacional) e, segundo, a revisão do Novo Ensino Médio – perspectiva defendida pelos formuladores da Reforma que são próximos do ministro Camilo Santana e de sua secretária-executiva, Izolda Cela.

Em 2023, após um ano de implementação do Novo Ensino Médio, essa Reforma imposta de cima para baixo, desestruturou a etapa terminativa da Educação Básica, esvaziando o aprendizado dos estudantes e precarizando o trabalho dos professores.

Contudo, diante das críticas, há um esforço dos defensores (e formuladores) da Reforma em defender o indefensável, destacando supostos elementos positivos no NEM. Por exemplo, não há uma única educadora (ou educador) no Brasil que seja contrário a aumentar a jornada escolar. É fato, nosso país é um dos maiores países do mundo, mas tem uma das menores jornadas escolares. No entanto, o Novo Ensino Médio na verdade reduz a jornada, porque estabelece um máximo de 1800 horas para a educação geral, representando uma redução de 25% da carga horária das ciências e conhecimentos escolares dos currículos internacionalmente e tradicionais no Brasil. Além disso, temos como fundamental o questionamento sobre que trabalho é desenvolvido nesse tempo a mais e com que objetivos, quem executa e quem lucra com isso.

A aprovação e implantação do Novo Ensino Médio (NEM) foi um processo que atropelou totalmente um longo debate que estava acontecendo e era coordenado pelo Ministério da Educação (MEC) nas gestões Lula e Dilma, envolvendo trabalhadoras da educação em todo o Brasil.

Chama a atenção como a proposta se materializou no Congresso e o quanto foi e é defendida por personagens estranhos ao chão das escolas públicas brasileiras, como especuladores financeiros, banqueiros e suas associações e fundações que atuam nas políticas educacionais. Na época, a chamada reforma do ensino médio foi louvada pelo então presidente do Banco Central Ilan Goldfajn como uma das medidas de intervenção econômica do governo que geraram otimismo no chamado mercado.[i]

O atual Ministro da Educação Camilo Santana fez duas afirmações em entrevista à revista Veja do dia 27/01/2023[ii] com as quais é preciso dialogar:
“Acho que a ideia contém aspectos positivos — amplia a carga horária, dá espaço ao ensino profissionalizante e torna o currículo mais flexível, o que pode ser um atrativo para tantos jovens que andam desinteressados da sala de aula. Mas há ponderações que precisamos observar: municípios mais pobres terão condições de fazer uma mudança tão profunda?”.

E sobre rever o novo ensino médio, o ministro afirma: “O fato é que nem esse nem qualquer outro debate podem ser pautados pelo filtro ideológico, que acaba por ofuscar a visão. O melhor caminho é sempre consultar as pesquisas e ouvir o que diz a ciência”.

Sobre a primeira cabe ressaltar que no Art. 10, da secção IV da LDB (Lei 9394/1996) fica claro que a atribuição de garantir o Ensino Médio é prioritariamente de Estados,[iii] não de municípios, então sua pergunta caberia aos sistemas de ensino dos estados brasileiros.

Mas tratando dos pontos positivos a que se refere o Ministro, é possível afirmar: não há flexibilidade, há desestruturação do ensino, enfraquecimento do conhecimento científico a ser oferecido aos estudantes, há quebra da exigência de formação específica para atuação na docência e a organização para a satisfação de necessidades das empresas ou fundações que pretendem vender ensino de má qualidade em pacotes para estudantes ou redes e sistemas de ensino em escala industrial, proporcionando formação ideologizada e distante da ciência – a que chamaremos de mercadorização.[iv]

Esse será um ensino pouco educativo, no sentido da formação que defendemos, e um ensino na formação do homem neoliberal, pessoas que acreditarão em visões fantasiosas sobre meritocracia, possibilidade de ignorar a organização do sistema de exploração em que vivemos, racista, machista, classista e excludente de maneira estrutural.

Sobre o desinteresse dos estudantes, esse é sem dúvidas um elemento fundamental do processo, porque adolescentes e jovens vêem pouco ou nenhum interesse no conhecimento científico e na escola. Mas percebe-se que este problema não somente não foi resolvido, como foi agravado pelo Novo Ensino Médio e que a promessa de poder escolher os itinerários formativos se demonstrou mentirosa, afinal 55% dos municípios tem apenas uma escola de ensino médio, que não tem estrutura nem para manter o modelo original. Que a maioria delas oferece no máximo duas opções e que elas são absolutamente incapazes, por falta de estrutura e pessoas com formação para propor itinerários relevantes e organizados realmente capazes de dialogar com necessidades e motivações da juventude.

Em relação à afirmação sobre a neutralidade científica sugerida, ela já foi debatida e desmontada pela própria ciência que analisa fenômenos sociais como a educação e o projeto educativo de uma nação de tantas formas que não seria possível citar as incontáveis fontes científicas existentes que demonstram sua impossibilidade e inexistência.

Por último e o mais importante: concordamos textualmente com o Senhor Ministro quando ele se refere a propor para a rede o modelo que se comprovou o mais eficaz na formação.

Apesar de não considerarmos que testes de avaliação sejam a principal e muito menos a única referência nessa análise, visto a complexidade do processo educativo em relação ao desenvolvimento do indivíduo e ao projeto social com o qual se relaciona. Enfatizamos: mesmo usando apenas testes como ENEM e PISA como referência alertamos ao ministro que o modelo que o MEC deve defender e oferecer como referência aos demais sistemas de ensino que operam e executam o Ensino Médio jamais seria o Novo Ensino Médio, mas deveria ser o ensino médio técnico integrado proposto e executado pela Rede de Institutos Federais em todo o Brasil.

Mesmo depois de ter passado por um processo de perseguição política e sabotagem pelos governos Temer e Bolsonaro, com cortes profundos nas verbas discricionárias, impedimento de concursos, difamação e perseguição dos trabalhadores e estudantes, entre outros, essa ainda é a rede que exibe os resultados mais relevantes e mesmo impressionantes quando nos referimos à educação pública brasileira historicamente.

Citando apenas a última edição do PISA temos que se destacarmos o desempenho dos estudantes dessa rede, o Brasil tem desempenho semelhante ao dos EUA, acima de estudantes de Espanha e Portugal em Ciências e Leitura e em todas as três áreas analisadas (a terceira é Matemática) é acima da média da OCDE, sempre acima de todos os demais países da América Latina que participam da análise e ficam próximos ou pouco abaixo (em avaliações anteriores em alguns itens inclusive acima) de Coreia do Sul, Canadá e Finlândia. Lembrando que há política de cotas raciais e sociais nessa rede e no mínimo 50% dos estudantes é oriundo de escolas públicas e/ou tem renda familiar abaixo de 1,5 salário mínimo per capita.

*Elenira Vilela é professora de matemática no Instituto Federal de Santa Catarina e Coordenadora Geral do SINASEFE.

*Daniel Cara é professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e membro do Comitê Diretivo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.

Desigualdade e educação, por Otaviano Helene.

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Sistema escolar está excluindo do futuro enormes contingentes de jovens

Otaviano Helene, Professor sênior do Instituto de Física da USP, ex-presidente do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) e autor, entre outros, de “Um Diagnóstico da Educação Brasileira e de seu Financiamento” (Autores Associados)

Folha de São Paulo, 07/04/2023

Por volta de 1990, o Brasil chegou a apresentar a maior concentração de renda do mundo; em nenhum outro país as diferenças entre ricos e pobres eram tão grandes quanto aqui. Essa situação só começou a melhorar de forma sistemática dez anos depois, mas, infelizmente, por apenas uma década e meia. Ainda somos um dos países mais desiguais de planeta.

Muitos fatores influenciam a desigualdade na distribuição de renda e por ela são influenciados.

Entre eles está a educação escolar: quanto mais desigual a distribuição de renda, mais desigual a educação das crianças e jovens — em especial em um país como o Brasil, que tem uma das maiores taxas de privatização da educação. E, quanto mais desigual for a educação escolar nos dias de hoje, mais desigual será a distribuição de renda no futuro.

Vejamos quais desigual é nosso sistema educacional. Crianças provenientes do grupo dos 20% ou 30% mais pobres, que vivem em domicílios com renda per capita inferior a cerca de meio salário mínimo por mês, raramente concluem o ensino fundamental regular. Consequentemente, o rendimento futuro dessas crianças será muito baixo.

A construção da desigualdade continua ao longo do ensino médio, cuja conclusão é rara entre jovens da metade mais pobre da população —e os que o completam apresentam, como regra, enormes deficiências de aprendizado.

Parte das pessoas que concluem o ensino médio tem expectativa de continuar seus estudos e participa do Enem. Mas mesmo nesse grupo também há enormes diferenças. Estudantes de escolas cujos investimentos por aluno (as mensalidades, no caso das instituições privadas) excedem os R$ 3.000 ou R$ 4.000 por mês têm nota média no Enem próxima dos 700 pontos, cerca de 100 pontos acima da média obtida pelos estudantes que frequentam escolas cujas mensalidades ficam em torno dos R$ 2.000. E, estes últimos, outros 50 a 100 pontos acima daqueles que frequentam escolas com mensalidades próximas dos R$ 1.000. Uma diferença de desempenho correspondente a 100 pontos no Enem é muito significativa e tem enorme efeito quanto às possibilidades futuras de um estudante, fazendo com que as desigualdades acumuladas até o final do ensino médio se prolonguem no ensino superior.

A grande maioria dos estudantes brasileiros do ensino médio frequenta escolas estaduais comuns. O desempenho desses estudantes é, em média, bastante baixo, equivalente ao desempenho dos estudantes que frequentam escolas privadas com investimentos por aluno entre R$ 1.000 e R$ 1.500 mensais, valores estes que são cerca de duas vezes superiores àqueles das escolas públicas. Por um lado, esse fato mostra a maior eficiência do sistema público, mas, por outro lado, revela as deficiências de formação da grande maioria dos estudantes brasileiros.

Nosso sistema escolar está construindo um futuro de desigualdades e excluindo enormes contingentes de crianças e jovens que, se continuassem seus estudos de forma adequada, muito poderiam contribuir para o desenvolvimento social e cultural do país e para o crescimento econômico. Assim como a realidade atual é, em grande parte, fruto do sistema educacional do passado, nosso presente educacional, com tantas diferenças e exclusões, definirá o futuro do país. Para um futuro melhor, precisaríamos construir hoje um sistema escolar (bem) melhor.

MEC precisa liderar a discussão sobre o novo ensino médio, por Alexandre Schneider

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Está na hora de entrar em campo, trazendo todos os interessados à mesa e sem deixar de reservar uma cadeira na cabeceira para os estudantes

Alexandre Schneider, Pesquisador da FGV/DGPE, pesquisador do Transformative Learning Technologies Lab da Universidade Columbia, em Nova York, pesquisador do Centro de Economia e Política do Setor Público da FGV/SP e ex-secretário municipal de Educação de São Paulo

Folha de São Paulo, 05/04/2023

A suspensão da implantação do novo ensino médio pelo MEC (Ministério da Educação) até que seja realizada uma consulta pública sobre a reforma é uma boa medida, embora tardia. A mudança do ensino médio enfrenta entraves técnicos e políticos.

Do ponto de vista político, embora a necessidade de reformar essa etapa viesse sendo discutida no âmbito do MEC desde o segundo mandato do presidente Lula, a alteração foi aprovada de forma inusual e açodada, por uma medida provisória, mesmo havendo um projeto de lei em tramitação no Congresso. Os referenciais para a elaboração dos itinerários formativos foram publicados três dias antes do fim do governo Temer. Depois tivemos por quatro anos um governo ausente e inepto no que se refere à educação pública.

Sem uma discussão mais ampla com o campo educacional, em um governo considerado ilegítimo pelo campo de esquerda —em especial pelo PT, o partido do atual presidente da República—, a medida rapidamente se transformou em uma “bandeira de luta” desse campo e de um segmento grande de profissionais da educação e de entidades estudantis que orbitam em torno dele. A chegada do PT ao poder trouxe de volta o assunto à mesa. Os “perdedores de ontem se transformaram nos vencedores de hoje” (me desculpe, Bob Dylan) e cobram coerência do governo que ajudaram a eleger.

A questão não é só política. Há problemas de desenho e implementação, que podem ampliar as já abissais
desigualdades educacionais existentes. Como esta Folha por diversas vezes já alertou, em redes como a estadual de São Paulo o novo modelo convive com falta de professores, docentes complementando jornadas de trabalho com disciplinas para as quais não foram formados, ampliação do ensino a distância e restrição de itinerários formativos, desrespeitando o direito de escolha dos estudantes, este último o principal mote da reforma do ensino médio.

Além de medidas extravagantes e inaceitáveis, como professores de português dando aulas de matérias optativas de física e alunos que se inscrevem em optativas de matemática obrigados a cursar os itinerários de humanas, há um problema de desenho. Como há uma definição muito genérica do que pode ser oferecido aos alunos, o aprofundamento em uma área de escolha do estudante pode ser ilusório.

O novo ensino médio pressupõe que se organize em 3.000 horas ao longo de três anos. Até 1.800 horas devem compor a chamada Formação Geral Básica (FGB), com as matérias tradicionais, e 1.200 horas devem compor os chamados itinerários formativos. Os alunos podem escolher entre itinerários propedêuticos, que deveriam servir ao aprofundamento nas áreas de interesse do estudante que pretende cursar o ensino superior, e os de formação técnica.

Assim, um estudante que pretende estudar engenharia tem menos horas de matemática na FGB e deveria aprofundar seus estudos na área cursando itinerários formativos correspondentes. Quando a escola lhe nega o itinerário em matemática, está violando dois de seus direitos: o de escolher seu percurso acadêmico e o de se preparar para o curso universitário de seu interesse. Aqui uma revisão da classificação das áreas de conhecimento adotadas, a melhor organização dos itinerários formativos em um desenho que vise o efetivo aprofundamento, seguindo a experiência internacional, seriam bons caminhos.

A despeito do que foi sugerido no relatório de transição, o MEC parece ter imaginado que a implantação do novo ensino médio era uma questão superada, e nesse momento vem adotando —ou sendo levado a adotar— medidas que poderiam ter sido tomadas na primeira semana de governo.

Políticas públicas bem-sucedidas precisam de um bom desenho, que leve em conta em especial quem as irá implantá-las, neste caso as redes públicas nos estados, escolas privadas e, sobretudo os profissionais da educação. Mas só se materializam com a boa política, composta pela escuta ativa, poder de convencimento, construção de consensos. O MEC tem uma excelente equipe técnica. Está na hora de entrar em campo e liderar a discussão, trazendo todos os interessados à mesa, sem deixar de reservar uma cadeira na cabeceira para os estudantes.

Economia travada

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Depois de um forte crescimento econômico em grande parte do século XX, a economia brasileira vem convivendo com taxas reduzidas de crescimento desde os anos oitenta, com altas taxas de inflação e forte endividamento externo, levando a economia a aumentar as vulnerabilidades sociais, incrementando as desigualdades de renda e salário, além do aumento da violência urbana, degradação das condições de trabalho, subemprego e desesperanças.

Neste período, a economia brasileira se acostumou com crescimento econômico decepcionante, com forte degradação de sua estrutura produtiva, fragilização industrial, incremento da intermediação financeira, redução dos investimentos produtivos e degradação das condições de trabalho, com isso, percebemos uma piora da qualidade dos empregos, cargas de trabalhos elevadas, salários reduzidos e a fuga de inúmeras empresas, levando a economia a perder o dinamismo, gerando uma forte desintegração social como a que estamos vivenciando na contemporaneidade.

Neste cenário, percebemos o crescimento acelerado das atividades financeiras, os grandes conglomerados bancários estão acumulando lucros estratosféricos, criando uma estrutura oligopolizada, onde poucos atores econômicos e financeiros controlam a estrutura produtiva, controlando a política monetária, dominando a Autoridade Monetária e pressionando o poder político. O poder econômico passou a controlar a sociedade, os governos e as políticas públicas, neste cenário, dominado pelo rentismo, ministros, grandes empresários e políticos influentes mantem seus recursos em paraísos fiscais, sem pagar impostos e exaltam a economia da picaretagem.

Neste momento, estamos vislumbrando uma economia travada, com perspectivas de manutenção de baixo crescimento econômico, sem investimentos produtivos, sem credibilidade, sem confiabilidade e as vésperas de um arrocho de crédito, cujos impactos sobre o sistema econômico são preocupantes. O desemprego está aumentando, em janeiro de 2023 passou 8,4%, os especialistas acreditam que os números de desempregos nacional são muito piores, se somarmos os informais, os desalentados e os desempregados encontraremos mais de 18,7%, dados preocupantes e necessitam de medidas urgentes de estímulo ao crescimento.

Dados alarmantes estão surgindo todos os dias, neste momento as empresas não-financeiras passam por dificuldades em seus balanços, mais de 70% de empresas de capital aberto apresentam grande alavancagem. Se essa situação preocupante predominar nas empresas maiores, imagine as dificuldades que estão passando as micro, pequenas e médias empresas que não possuem acesso ao sistema financeiro e para sobreviver aceitam pagar juros escorchantes, inviabilizando sua sobrevivência e levando-as a insolvência nos próximos anos.

Sem investimentos públicos a economia brasileira não vai começar sua recuperação econômica, depois de anos de contração, alguns acreditam, equivocadamente, que essa recuperação deveria ser capitaneada pela setor privado, investindo fortemente em infraestrutura, retomando projetos estratégicos esquecidos nos últimos anos e reconfigurando estímulos crescentes de reindustrialização, negociando estrategicamente com os dois grandes atores da economia internacional, EUA e China. Para tudo isso, é fundamental a atuação do Estado.

Neste cenário de fortes confrontos econômicos e políticos entre as potências, é imprescindível negociar recursos econômicos, transferência de tecnologias e investimentos estratégicos para alavancar a economia. Todas essas iniciativas só tendem a ganhar relevância para o crescimento econômico se investir fortemente em ciência e tecnologia, reduzir subsídios desnecessários e retomarmos as discussões estruturais para o desenvolvimento econômico produtivo.

A economia brasileira está travada. Neste cenário de baixo crescimento econômico e aumento das desigualdades, precisamos ser ousados, ambiciosos e estratégicos. Medidas econômicas liberais de contração fiscal e arrocho monetário, que nem mais fazem parte das agendas das nações desenvolvidas, tendem a aumentar as dificuldades econômicas, impulsionando a pobreza, contribuindo ativamente na degradação da renda da população. Na era da inteligência artificial, da robótica e do ChatGPT passou da hora de revermos os nossos conceitos.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicada no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 05/04/2023.

Precarização fragiliza efeitos do aumento da ocupação, por Cida Bento

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Mais prejudicados, mulheres e negros precisam de ações específicas

Cida Bento, Conselheira do CEERT (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades), é doutora em psicologia pela USP

Folha de São Paulo, 30/03/2023

Diante das manchetes positivas e generalistas de parte dos meios de comunicação festejando a melhora do mercado de trabalho, é fundamental não esquecer a perversa desigualdade que estrutura nossa sociedade. Ainda que as estatísticas indiquem um aumento na ocupação da população economicamente ativa, não é possível falar que o mercado de trabalho está prosperando, já que a alta precariedade se mantém persistente.

Um indicador utilizado pelo Radar Ceert, por exemplo, comprova a enorme precarização do trabalho, que, assim como a taxa de desocupação, afeta principalmente as mulheres e as pessoas negras e explicita que o racismo é uma das principais causas das desigualdades no país, destacando-se aí as precárias condições de trabalho em que vivem os negros brasileiros.

Relacionada com baixos salários, insuficiência de horas trabalhadas, informalidade, intermitência, falta de estabilidade e não garantia de direitos, a taxa de precariedade do trabalho alcançou 51,6% no último trimestre de 2022, apontando um crescimento relativo de 9,8% desde o último trimestre de 2015 (Pnad Contínua).

Essa análise revela o outro lado da história contada pelos indicadores que apontam uma melhora nas condições do mercado de trabalho, como a redução de 9,1% para 7,9% na taxa de desocupação, além de um aumento no número de ocupados em cerca de 7 milhões de pessoas entre 2015 e 2022.

O outro lado dessa história é que cresceu também em 7,9 milhões o número de pessoas em trabalhos precários, superando o aumento no total de pessoas ocupadas, e, dessa forma, as condições de milhares de ocupações estão mais fragilizadas e deterioradas.

A juventude brasileira, hoje majoritariamente negra (61%), se encontra cada vez mais atingida por um trabalho instável e precarizado, tendo como única forma de sustento trabalhos em aplicativos de entrega e transporte.

Podemos constatar essa realidade olhando para o perfil dos entregadores ciclistas: homem, jovem, negro, entre 18 e 22 anos de idade e com ensino médio completo, que estava desempregado e agora trabalha todos os dias da semana, sem proteção social e em jornadas exaustivas, segundo pesquisa da Aliança Bike (2019). Ou seja, é urgente construirmos o processo de regulação e regulamentação para trabalhadores e trabalhadoras das plataformas de aplicativos.

É certo que a elevação da taxa de precariedade atinge todos os grupos populacionais, porém os mais afetados são as mulheres e as pessoas negras, com proporções de 54,4% e 59,7% das pessoas ocupadas em condição de precariedade, ante os 49,5% e os 41,7% dos homens e das pessoas brancas, conforme dados do quarto trimestre de 2022.

As mulheres negras em ocupações precárias representam 63,1%, e os homens brancos na mesma condição são 39,3% dessas vagas. De outro lado, elas são minoria na área tecnológica, pois, embora representem 28% da sociedade brasileira, 11% trabalham em empresas de tecnologia e apenas 3% frequentam cursos de engenharia da computação (Report 2022 – PretaLab).

Nesses tempos de renovação que estamos vivendo, urgem a concertação e a implementação de políticas públicas, privadas e sindicais para o enfrentamento dessa desigualdade de gênero e raça, que vão da valorização do salário mínimo à retomada e ao fortalecimento das redes de proteção social, da negociação coletiva e das instâncias de representação de pessoas trabalhadoras.

Acima de tudo, trata-se de um outro conceito de crescimento e desenvolvimento econômico orientado pelos cuidados socioambientais e pela equidade como pressuposto para investimentos no mercado de trabalho, nos processos de geração de empregos de qualidade e nas inovações que precisam ser implementadas.

Culto armamentista nos EUA avilta valor da vida, por Lúcia Guimarães

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Republicanos preferem matar mulheres com gravidez de risco para controlar seu útero a oferecer proteção contra atiradores

Lúcia Guimarães, É jornalista e vive em Nova York desde 1985. Foi correspondente da TV Globo, da TV Cultura e do canal GNT, além de colunista dos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo.
Folha de São Paulo, 30/03/2023

Há tragédias que unem temporariamente cidades, países e até continentes. E há tragédias que desafiam a mais otimista expectativa de humanidade. Não da Humanidade, mas de sinais de compaixão que associamos à condição humana.

Armas de fogo já matam mais criança do que acidentes de trânsito nos EUA e também ultrapassaram as mortes por câncer. Mas números nada podem diante do culto armamentista da ultradireita, o que fica demonstrado a cada novo massacre, como o que ocorreu na escola cristã no Tenessee, com três crianças de 9 anos entre os seis morto.

Os mais cínicos observadores não conseguem prever o grau de niilismo depravado que acompanha o espetáculo de cada pequeno corpo despedaçado pelo poder da munição de rifles semiautomáticos, armas fabricadas para exércitos. O fato de que a pessoa responsável pelo ataque no Tennessee era ex-estudante transgênero da mesma escola naturalmente serviu de mote para “explicar” o massacre.

Na terça (28), Joe Biden explicou o óbvio: sua autoridade é limitada para impedir a dança macabra, que já soma 129 massacres nos primeiros 87 dias do ano. Sem o Congresso passando leis, não há como enfrentar a epidemia.

Mas a Câmara, controlada pelos republicanos, está consumida pela urgência em proteger crianças de exposição a gays e transexuais. Republicanos odeiam a infância. Preferem matar mulheres com gravidez de risco para controlar seu útero, mas, após o nascimento, virem-se os pimpolhos para ter água potável, assistência médica, educação e proteção contra atiradores.

É comum se referir ao zelo religioso com que uma minoria defende a acumulação de arsenais privados como um “culto de morte.” Mas Jeff Sharlet, um autor que monitora a ultradireita militante há 20 anos, diz que as milícias se veem como um culto de inocência. Clamam proteger igualmente o feto e usar a arma de fogo para se preparar para uma guerra defensiva.

O novo livro de Sharlet é “The Undertow: Scenes from a Slow Civil War” (a ressaca: cenas de uma lenta guerra civil). Ele diz que nunca testemunhou tanta acumulação de armas como no período pós-invasão do Capitólio. Encontrou igrejas comprando armas de fogo, na expectativa de uma guerra civil. Não é mais a milícia na zona rural que se arma para o fim do mundo. São líderes religiosos de ultradireita agora armados.

No começo de março, um juiz plantado por Donald Trump num tribunal de apelações se manifestou a favor de reverter uma lei centenária do estado de Nova York, que impede o porte de armas para pessoas sob restrição de ordem judicial por violência doméstica. São mais de um milhão de casos registrados por ano, e armas de fogo têm papel evidente na escalada de agressão.

Os americanos vão conviver por décadas com as consequências das nomeações de 234 dos 870 juízes federais ativos nos EUA, feitas por um presidente no bolso do obscurantista lobby nacionalista evangélico. Há magistrados americanos hoje tão despreparados que fazem um certo medíocre ex-juiz maringaense no Senado em Brasília parecer um intelectual.

O governo Biden pediu à Suprema Corte que dê um basta na orgia pistoleira do juiz trumpista, citando as estatísticas assustadoras de violência doméstica. Mas, como perguntou Linda Greenhouse, uma das mais astutas observadoras da Corte: fatos ainda importam? Para os juízes e para o país?

Como tornar escolas mais seguras, por Thiago Amparo

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Respostas são multifacetadas e exigem políticas de paz, não cassetetes

Thiago Amparo, Advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação.

Folha de São Paulo, 30/03/2023.

A professora Elisabeth Tenreiro, 71, era alegre. Defendia fervorosamente a vacinação e a ciência e trabalhou por muitos anos no Instituto Adolfo Lutz na área da saúde. Bem-humorada, postava nas redes sociais sobre química e biologia de forma espirituosa. Desafiando o etarismo, tornou-se professora na rede pública paulista aos 60 anos de idade. Gostava de samba e do Corinthians. Apesar da leveza deste prelúdio, leitor, o ofício de colunista impõe o fardo sufocante de escrever palavras duras.

Beth, como era conhecida por colegas e alunos, foi morta a facadas por um aluno de 13 anos na zona oeste de São Paulo na última segunda-feira (27). O adolescente tentara comprar uma arma de fogo online antes, sem sucesso. No Brasil, ataques violentos em escolas explodiram a partir de agosto de 2022, segundo dados da Unicamp e Unesp: foram nove ataques de extrema violência em oito meses; a média era um ataque a cada dois anos, mas passou a ser de um por mês.

Rapidamente, o governador paulista propôs policiamento permanente dentro das escolas e congressistas reaqueceram a redução da maioridade penal. Por trás da boçalidade bruta, há oportunismo penal — como se policiais em sala protegessem professores e resolvessem a saúde mental de alunos— e venda de soluções fáceis para temas complexos. Recair no niilismo de que nada possa ser feito, tampouco, ajudará. Tornar as escolas mais seguras requer respostas multifacetadas.

Entre elas estão o monitoramento por inteligência policial preventiva de discursos de ódio online; regulação adequada das plataformas para lidar com ameaças de violência; ensino e extensão nas escolas para uma cultura de paz e contra bullying, envolvendo pais, professores, alunos e comunidade; expandir e ampliar programas de saúde mental de crianças e adolescentes; apoio psicossocial à comunidade escolar, em especial àquelas com medo da violência. Tornar escolas mais seguras é possível e urgente, mas requer políticas de paz, não cassetete.

Desafios chineses

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Estamos caminhando para um período de grandes conflitos geopolíticos entre as grandes potências internacionais, muitos especialistas em política internacional acreditam que estamos numa Guerra Fria 2.0, que está gerando e intensificando os desequilíbrios da economia global, incrementando incertezas, aumentando as volatilidades financeiras e em contrapartida, destruições generalizadas, crescimento das desigualdades, aumento da violência e a redução dos investimentos produtivos.

Nas últimas décadas, estamos observando rapidamente a ascensão da China, que nos últimos quarenta anos construiu um novo modelo de desenvolvimento, centrado no Estado, com fortes investimentos governamentais, altos dispêndios em ciência e tecnologia, reconfigurando a sociedade internacional, ameaçando o predomínio norte-americano e fragilizando fortemente a economia europeia, gerando novos desafios para as nações, exigindo fortes investimentos em capital humano e gerando conflitos geopolíticos com todo ocidente, lembrando-os que este último dominou concretamente a sociedade mundial desde a consolidação da Revolução Industrial.

A ascensão chinesa está gerando novos modelos econômicos e produtivos, uma verdadeira revolução no pensamento econômico, levando novos eixos de análise e reflexão da economia, colocando em xeque os modelos de equilíbrio geral do sistema econômico, questionando a existência do homem econômico, rechaçando a chamada “mão invisível” conceito criado pelo economista escocês Adam Smith. Neste cenário, destacando a importância dos investimentos governamentais, políticas industriais ativas, modelo exaustivamente utilizado no fortalecimento das nações orientais, contribuindo diretamente para que essas nações saíssem de posições intermediárias e se transformassem em países desenvolvidos, relevantes e fortemente industrializados.

O mundo contemporâneo prescinde de pragmatismo, as nações precisam de fortes atuações conjuntas de todos os setores da comunidade, num momento de fragilização e questionamento da democracia, como estamos percebendo em todas as regiões do mundo, a sociedade global precisa aprofundar os ideários da verdadeira democracia, incentivando a participação social de todos os setores, abrindo espaços para grupos marginalizados e que aceitem a diversidade social que vem ganhando espaço na sociedade globalizada.

Nesta sociedade, percebemos que a ascensão asiática abre novos canais de negociação, buscando novos investimentos, novas parcerias estratégicas, trazendo novas tecnologias, consolidando nosso mercado interno que pode ser utilizado como um ativo fundamental para angariar novas perspectivas econômicas, revertendo as tendências negativas de um futuro sombrio da sociedade brasileira, fortemente polarizada, marcadamente imediatista, cada vez mais individualista, que degrada rapidamente o meio ambiente, destruindo a sociabilidade, nos levando a uma comunidade violenta, centrada na desigualdade e fortemente concentrada.

Nesta sociedade globalizada, marcada por conflitos militares, hostilidades crescentes, crises financeiras, crescimento de tecnologias disruptivas, onde os trabalhadores perdem renda e carecem de perspectivas futuras, marcados por desequilíbrios emocionais e afetivos, o discurso do empreendedorismo é muito limitado para compreendermos os desafios da sociedade do conhecimento. Neste cenário, as nações que conseguiram alcançar desenvolvimento econômico e diminuição das desigualdades sociais foram aquelas que conseguiram uma solidariedade entre todos os atores sociais, investiram fortemente em educação, melhorando a formação dos professores, aumentando os dispêndios em tecnologia, estimulando a capacidade inovadora, desenvolvendo pesquisa científica, incrementando projetos que incentivem a participação social e olhando sempre para o médio e longo prazo, deixando de lado uma visão imediatista, vislumbrando a construção de uma sociedade menos desigual, mais plural e desenvolvida.

A ascensão chinesa nos traz grandes ensinamentos para a construção de um desenvolvimento econômica e redução da pobreza, nos trazendo elementos para utilizarmos o mercado interno como alavanca de negociação internacional, atraindo empresas e transferência de tecnologias, investindo fortemente em infraestrutura urbana, cujos impactos são imediatos, impulsionando novos empregos, melhorando a renda, mas para isso, precisamos abandonar o complexo de vira lata que vigora no país.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 29/03/2023.

Como o financismo ameaça Lula 3, por Paulo Kliass

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É constrangedor assistir ministros defendendo bancos, como no caso do crédito consignado – e austeridade, em nome da “responsabilidade fiscal”. Bom-mocismo não reconstrói terra arrasada – e pode minar apoio popular ao governo

Paulo Kliass OUTRAS PALAVRAS – 21/03/2023

A importante vitória de Lula nas eleições de outubro passado gerou uma enorme expectativa de mudança para mais da metade da população, aqueles e aquelas que optaram por enterrar de vez o trágico e criminoso quadro deixado pelo quadriênio em que o bolsonarismo tomou conta do governo federal. O estado de terra arrasada em que o governo do genocida deixou o Brasil e, em especial, a sua população mais pobre estão a exigir ações e programas urgentes por parte da nova equipe governamental. Trata-se de criar as condições para se reconstruir o Estado, as políticas públicas e oferecer perspectivas de superação da crise para a grande maioria.

Ocorre que, apesar de ter sido fundamental para o futuro do país, a derrota de Bolsonaro por si só não alterou aspectos intrínsecos de nossa estrutura econômica e social. O quadro de profunda injustiça na distribuição da renda e do patrimônio permaneceu o mesmo após a maravilhosa e emocionante posse do dia 1º de janeiro. A raiva e o inconformismo dos derrotados no pleito também se fazem presente ainda, como bem demonstraram as tristes e chocantes cenas dos atentados terroristas perpetrados em Brasília antes e depois do 8 de janeiro. A grande diferença é que agora temos um governo que se pauta pelos valores democráticos, populares e republicanos. Assim, estão sendo retomados os processos contra o trabalho escravo, a expulsão o garimpo ilegal das terras Yanomani e vem sendo dada sequência aos inúmeros processos policiais e judiciais contra os atos de corrupção e arbítrio levados a cabo por Bolsonaro e sua quadrilha. Enfim, apenas alguns exemplos de um amplo leque de iniciativas do novo governo.

No entanto, apesar disso, algumas esferas da nossa complexa formação social ainda não foram tocadas. Refiro-me, em particular, aos poderes do financismo em nossas terras. Lula já declarou em alguns momentos que se arrependeu de não ter conseguido promover mudanças substantivas e duradouras em dois domínios nos quais as políticas públicas poderiam ter contribuído para algum tipo de rearranjo de natureza mais estrutural. E costumava mencionar o sistema financeiro e os grandes meios de comunicação. Na verdade, talvez ele tenha percebido que a política de boa vizinhança e do “lulinha-paz-e-amor” não tenham sido suficientes para que as elites brasileiras o aceitassem como legítimo representante da vontade da maioria da população. A tentação golpista reiterada ao longo dos 14 anos em que o PT esteve no governo e a adesão incondicional a Bolsonaro a partir de 2018 são provas cabais de tal comportamento de nossas classes dominantes.
Financismo segue firme e forte

O sistema financeiro segue achando que pode mandar e desmandar, como sempre fez. Essa postura arrogante e de defesa intransigente de sua pauta conservadora entrou em operação antes mesmo da realização das eleições. Depois de perceberem que o flerte com Bolsonaro não teria o efeito que conseguiram produzir em outubro de 2018, os representantes da banca passaram a assediar o futuro governo pelas bordas. Criaram factoides de candidatos ministros da área da econômica e impuseram, mais uma vez, sua terna agenda conservadora e monetarista. Alguns dos motes seguiam a linha da impossibilidade de se colocar um freio no processo da privatização, da necessidade de se manter a linha da austeridade fiscal ferro e fogo, que o novo governo não ousasse rever dispositivos da reforma trabalhistas de Temer/Bolsonaro e que a independência do Banco Central não fosse colocada em discussão.

A estratégia de criar um clima de alarmismo e de chantagem, caso suas propostas não sejam adotadas pela equipe de Lula, segue a pleno vapor. Assim tem sido, por exemplo, o debate a respeito da necessidade de revogar o criminoso “Novo Regime Fiscal”, o eufemismo inserido na Emenda Constitucional nº95, que criou o teto de gastos em 2016. A defesa enérgica do austericídio, levado à frente por parte dos “especialistas” a soldo do financismo, parece que colocou na defensiva os principais expoentes do novo governo na área econômica, que parecem morrer de medo de se opor aos interesses da banca. Ocorre que não há caminho possível para cumprir minimamente com o programa com que Lula foi eleito sem tocar nos ganhos fáceis do parasitismo financista e sem romper com as amarras que a austeridade fiscal burra e cega coloca no conjunto da política econômica.

É bem verdade que o governo mal começou, nem apresentou seu balanço dos 100 primeiros dias ainda não completados. No entanto, alguns casos da agenda da Esplanada, já sob nova direção, oferecem elementos de preocupação para quem se coloca na expectativa da mudança necessária. Em especial, vale a pena conferir três itens da pauta em movimento: i) a definição do novo arcabouço fiscal; ii) a relação do governo com a direção do Banco Central e a definição da Selic; iii) a discussão em torno do crédito consignado para aposentados e pensionistas do INSS.

Austeridade fiscal a todo custo?

No caso da indefinição do pacote fiscal, pode até parecer infantil e ingênuo o jogo de quem acha que pode atender a todas as demandas do sistema financeiro e dos economistas do campo conservador, ao mesmo tempo em que busca convencer o presidente da República de que não há outra alternativa que não seja o respeito a uma indefinida responsabilidade fiscal returbinada. A rápida reconversão daqueles que se diziam oposição a Paulo Guedes assusta qualquer analista mais isento. Manter elementos de austeridade em nome de um suposto respeito à responsabilidade fiscal é trair o resultado das eleições e abrir o caminho para frustração de parcela importante da sociedade que aguarda por sinais de mudanças.

Os analistas dos grandes conglomerados não escondem seu desejo e apontam para exigência de uma “âncora”, em lugar do termo “arcabouço” para tratar do novo arranjo fiscal. O assunto seguiu por semanas tratado a boca pequena, sem vazamento para imprensa. É importante esperar para conhecermos a última versão daquilo que vai ser apresentado ao Congresso Nacional em nome de Lula. Mas pelo que se pode imaginar, a preocupação da equipe da Fazenda é guiada mais por não contrariar o financismo do que em propor uma mudança necessária na abordagem do tema fiscal.

A armadilha de Campos Neto e do Copom

A relação com Roberto Campos Neto segue na mesma linha. Lula não poupou críticas ao nomeado por Bolsonaro para comandar a política monetária, juntamente com os demais oito integrantes da diretoria do órgão regulador e membros natos do Copom. A independência do Banco e a novidade dos mandatos fixos de seus diretores funciona como um sério obstáculo à implementação de uma política econômica voltada para o crescimento e o desenvolvimento. Mas a preocupação do Ministério da Fazenda parece se resumir a não criar nenhuma aresta com o neto de Bob Fields, com a ilusão de que essa postura submissa e de bom mocismo pode provocar alguma redução na Selic. Já houve duas reuniões do comitê responsável pela definição da taxa oficial de juros depois da eleição de Lula.

Em 7 de dezembro do ano passado e em 1º de fevereiro deste ano, o colegiado optou por manter a Selic nos estratosféricos níveis de 13,75%. Trata-se de flagrante sabotagem ao governo legitimamente eleito. Dentre outros problemas, Campos Neto representa os interesses do bolsonarismo no interior da nova equipe econômica. É até possível, ainda que improvável, que o Copom resolva demonstrar alguma boa vontade e decida por baixar a taxa em 0,25%, por exemplo, na próxima reunião prevista para ocorrer nesta semana. Seria uma mera demonstração de cosmética, sem alterar a essência da política monetária. E não adiantaria nenhuma tentativa de festejar por parte de integrantes da linha moderada do governo, pois não há nada a comemorar com esse patamar da Selic.

Mas como avaliam onze em cada dez economistas não vinculados ao financismo, o fato que importa reter é que esse nível de juros inviabiliza qualquer projeto de desenvolvimento de longo prazo. Em evento organizado pelo BNDES e praticamente ignorado pela grande mídia, o economista condecorado com o Prêmio Nobel, Joseph Stiglitz, não poupou palavras a respeito dos equívocos de nossa política monetária, mesmo estando junto a representantes do governo e do Ministério da Fazenda.

(…) “A taxa de juros de vocês é realmente chocante. Os números de 13,75% e 8% [taxa real] são o que vai matar qualquer economia. O que é impressionante é que o Brasil sobreviveu ao que é uma pena de morte. O que surpreende é que vocês tenham sobrevivido” (…)
Crédito consignado: governo não pode se humilhar

No desenrolar da questão dos juros consignados, mais uma vez fica demonstrado que os interesses do financismo seguem muito bem assegurados por setores deste governo. Tudo começou com uma decisão adotada pelo Conselho Nacional de Previdência Social (CNPS) no dia 13 de março. Por iniciativa do Ministro da Previdência, Carlos Lupi, o colegiado decidiu reduzir o limite máximo para a taxa na modalidade e de crédito consignado para aposentados e pensionistas do INSS. A taxa máxima autorizada para os bancos realizarem tal operação era de 2,14% ao mês e ela passou a ser 1,7%.

A medida começou a ser bombardeada pela grande imprensa e por integrantes do próprio governo, como o ministro Chefe da Casa Civil e o ministro da Fazenda. O boicote orquestrado para inviabilizar a mudança chegou ao ponto de os bancos federais, Banco do Brasil (BB) e Caixa Econômica (CEF), pararem de oferecer tal alternativa de empréstimo a seus clientes, assim como fizeram os grandes bancos do oligopólio privado.

Independentemente dos aspectos da disputa interna por espaço no primeiro escalão, o fato é que chega a ser constrangedor ver ministros de Lula argumentando contra a redução decidida, pois ela seria inviável do ponto de vista dos custos das instituições bancárias. Vergonha alheia completa!

Além de não ser verdadeira, a orientação do setor público adota a narrativa da banca privada. A seguir nessa toada, é bem capaz assistirmos gente do governo argumentando que não existe espaço para reduzir tampouco para diminuir os tresloucados spreads cobrados nas operações de cartão de crédito ou as elevadíssimas tarifas cobradas pela banca. Afinal, sempre alguém vai encontrar um “estudo técnico isento” escondido no fundo da gaveta para justificar essas práticas espoliativas absurdas.

Caso as taxas debatidas pelo CNPS sejam anualizadas, elas representam uma redução de 29% para 22%. Ora, frente a uma Selic de 13,75%, os bancos não teriam nenhum problema em se acomodar no novo limite. É importante levar em consideração que o crédito consignado do INSS apresenta risco zero para a instituição bancária. Não existe possibilidade de inadimplência nesse caso, uma vez que o pagamento da mensalidade do empréstimo contratado pelo cliente/beneficiário já sai direto do Tesouro Nacional para as contas do banco. Ao contrário do jogo de cena montado contra Lupi, caberia ao governo apoiar a medida e orientar o BB e a CEF a adotarem a linha de frente da modalidade, caso o financismo privado opte mesmo pelo boicote.

O próprio BC oferece respostas para esse ponto em sua página na internet. Há um conjunto de instituições bancárias que já estavam oferecendo crédito consignado a taxas inferiores ao novo limite máximo decidido pelo CNPS. E, obviamente, não estavam perdendo dinheiro com tais operações.

Na verdade, o financismo, receia que a medida seja um teste para eventual conjuntura mais à frente, onde os bancos federais possam eventualmente ser orientados pelo governo a operar com spreads mais reduzidos do que seus concorrentes privados em todas as suas modalidades de empréstimo. Esse movimento ocorreu durante o governo Dilma e agora a banca resolveu se antecipar e cortar a mal pela raiz (sic).

Lula já disse mais de uma vez que só teria aceitado o desafio de um terceiro mandato pois deseja fazer mais e melhor do que nos outros dois. O presidente sabe que para cumprir tal missão não pode ficar, de novo, refém do financismo. Pois agora precisa dar mostras de que está disposto a tanto.

Caso sua intenção seja mesmo a de deixar um legado de desenvolvimento e de redução das desigualdades em nosso país, ele precisa romper, desde já, com as amarras que pretende lhe impor esse pessoal da finança. Para que Lula 3.0 seja mesmo aquilo que os setores da base da sociedade aguardam dele, é preciso deixar de apenas agradar ao sistema financeiro e à tecnocracia que pensa como a banca. O governo precisa se voltar de forma urgente aos desejos e às necessidades da maioria.

Ventos intervencionistas

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Nos últimos anos a situação da economia internacional vem degradando de forma acelerada, com impactos sobre todas as regiões do mundo, levando a incertezas, aumento dos riscos dos países e piora dos indicadores macroeconômicos. Depois da crise financeira internacional de 2008, a chamada crise Imobiliária nos Estados Unidos, o mundo sentiu na pele uma forte degradação financeira na Europa, levando vários países a quase bancarrota, culminando na saída da Inglaterra da União Europeia. Somando a esse cenário de crises financeiras, destacamos ainda, a pandemia do coronavírus, que vitimaram mais de seis milhões de pessoas na sociedade mundial, a guerra entre a Rússia e a Ucrânia, com fortes impactos nos preços internacionais e o incremento da inflação, gerando instabilidades e volatilidades. Atualmente, estamos, novamente, vivenciando uma nova crise financeira global, cujos impactos ainda são impossíveis de fazer previsões, seus contágios, seus desdobramentos e seus impactos para todas as economias.

Neste cenário, de possível crise financeira internacional, os cenários estão confusos e pouco visíveis, mas percebemos que os agentes econômicos estão se movimentando ativamente para agilizar o socorro para as instituições bancárias, como fizeram anteriormente, despejando trilhões de dólares para proteger os investidores e evitar que acumulem perdas substanciais, que poderiam inviabilizar seus ganhos e seus patrimônios.

Essa crise, como em todas as outras que impactaram o sistema econômico e produtivo mundial, nos mostra claramente, que quando os grandes agentes econômicos e políticos solicitam proteção do Estado, os grandes incentivos monetários e subsídios financeiros crescem rapidamente, sem transparência, sem atrasos e sem mixarias, dispendendo fortunas que, se fossem canalizados para investimentos produtivos, seus retornos sociais seriam muito maiores, garantindo ganhos substanciais para toda a comunidade, aumentando o emprego, melhorando o salário e as rendas agregadas, vislumbrando um cenário propício para o crescimento econômico.

Neste cenário de possível crise financeira global, os governos se colocam numa condição de paradoxo crescente, dispendem trilhões de dólares para socorrer os investidores incautos, acenando positivamente para os setores financeiros, despejando recursos com pouca transparência, com ausência de governança e acenam para a redução dos investimentos públicos em políticas sociais, cujos retornos são maiores e auxiliariam na construção de um ambiente mais propício para a recuperação das economias.

A crise nos mostra, que ao contrário dos liberais, que advogam a ausência do Estado, todos os grandes conglomerados privados contaram com os recursos públicos, direto ou indiretamente, para se constituir, se consolidar e prescindem de seu apoio político e financeiro, protegendo-os, expandindo-os e fortalecendo-os para que seus lucros cresçam de forma acelerada. Na verdade, ao investigar os grandes conglomerados econômicos e produtivos percebemos que a parceria entre Estado e Mercado sempre existiu. A economista italiana Mariana Mazzucato, autora do livro O Estado Empreendedor, destaca os mais variados exemplos de parcerias exitosas entre governos e empresas, desde o financiamento a fundo perdido, auxílios institucionais, compras governamentais, proteção geopolítica, isenções tarifárias, dentre outras.

Neste cenário de incertezas e instabilidades crescentes no ambiente internacional, marcados por preocupações econômicas, polarizações políticas e o crescimento de crises sociais em todas as regiões, percebemos o incremento das parcerias entre Estados e Mercados, onde países desenvolvidos estão injetando trilhões de dólares para fortalecer setores econômicos estratégicos, nações desenvolvidas estão barrando empresas de países vistos como adversários e impedindo a compra de empresas nacionais por concorrentes externos. Neste ambiente de fortes concorrências, as nações desenvolvidas estão olhando mais fortemente para seus interesses imediatos, internalizando cadeias produtivas, fortalecendo suas empresas e consolidando setores nacionais.

Internamente, estamos desindustrializando, vendendo empresas estratégicas e acreditamos que somos contemporâneos. Será?

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 22/03/2023.