Saúde enfrenta doenças seculares, falta crônica de recursos e efeitos da pandemia, por Cláudia Collucci.

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Em 200 anos de Independência, Brasil avançou com criação do SUS, mas precisa melhorar condições sanitárias da população

Cláudia Collucci, Mestre em história da ciência pela PUC-SP e pós-graduada em gestão de saúde pela FGV. Está na Folha desde 1990 e, hoje, escreve sobre saúde.

Folha de São Paulo, 11/09/2022

[RESUMO] O Brasil chega a seus 200 anos como nação independente ainda lidando com doenças que remontam ao período colonial, muitas delas decorrentes de problemas sanitários e de qualidade de vida históricos, como falta de acesso à rede de esgoto e à água potável. Nas últimas três décadas, o SUS expandiu o atendimento básico e propiciou o aumento da expectativa de vida no país, mas seus avanços são limitados pelo subfinanciamento e pela ineficiência na gestão dos recursos.

O Brasil chega ao bicentenário de sua independência lidando com doenças infecciosas que remontam ao seu passado colonial, como a tuberculose, a sífilis e a varíola, agora em uma versão menos grave, aliadas a problemas ligados ao envelhecimento populacional, como o câncer e as doenças cardiovasculares, tudo isso somado à alta de transtornos mentais e a outras demandas geradas pela pandemia de Covid-19.

O país também enfrenta uma tensão crescente acerca das necessidades de financiamento e sustentabilidade do SUS (Sistema Único de Saúde), que atende a 75% da população e que, nos últimos 30 anos, contribuiu para a queda das taxas de mortalidade infantil e de óbitos por doenças transmissíveis e de causas evitáveis, que levaram a um aumento da expectativa de vida da população.

Desde a sua criação, na Constituição Federal de 1988, o sistema nunca teve recursos suficientes para fazer valer os preceitos que o regem: universalidade (direito de todos, sem discriminação), integralidade (prevenção, tratamento e reabilitação) e equidade (atendimento de acordo com as necessidades de cada paciente).

As consequências do subfinanciamento crônico e da ineficiência na gestão dos recursos são bem conhecidas e traduzidas em dificuldade de acesso, longas filas de espera para consultas e exames especializados, procedimentos e cirurgias, falta de medicamentos, entre outros.

A pandemia encontrou um SUS ainda mais depauperado com os efeitos do teto de gastos de 2016, que limita os gastos federais e tem impedido, na prática, o aumento de recursos para saúde e outras áreas sociais. A medida já retirou quase R$ 37 bilhões do sistema público entre 2018 e 2020.

Com a injeção de recursos extraordinários usados na ampliação de leitos de UTI, compra de equipamentos, contratação de pessoal, vacinação, entre outros, o sistema de saúde conseguiu enfrentar a maior crise sanitária da sua história, que causou mais de 683 mil mortes até o fim de agosto.

Ao mesmo tempo, as fragilidades ficaram expostas. “A pandemia mostrou que não temos política pública para enfrentar futuras epidemias que virão. Governos do Reino Unido e dos Estados Unidos já anunciaram propostas concretas para aumentar os gastos na saúde, mas, por aqui, não há nada ainda. Qual é o projeto de sistema adequado para que as pessoas tenham o mínimo de bem-estar social e não se sintam humilhadas quando precisam de atendimento?”, questiona a médica sanitarista Ligia Bahia, professora da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

Na última década, os gastos públicos em saúde se mantiveram estáveis, enquanto as famílias brasileiras passaram a gastar mais com planos de saúde, consultas e remédios.

Segundo o IBGE, entre 2010 e 2019, os gastos totais (públicos e privados) em saúde subiram de 8% para 9,6% do PIB. Porém, dos R$ 711,4 bilhões investidos em 2019, R$ 427,8 bilhões foram despesas privadas (5,8% do PIB). Os gastos do governo somaram R$ 283,6 bilhões (3,8%). Em 2010, a fatia das famílias correspondia a 4,4%, e a do governo, a 3,6%.

Na média, em países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), os governos gastaram em 2019 o equivalente a 6,5% do PIB, e as famílias desembolsam só 2,3% do PIB. Os governos de Alemanha, França e Reino Unido investiram 9,9%, 9,3% e 8,0% do PIB, respectivamente.

Até a Constituição de 1988, quando a saúde pública passou a ser um direito de todos e dever do Estado, a área era de responsabilidade do Inamps (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social) e destinada apenas aos trabalhadores com carteira assinada.

O restante das pessoas participava de programas específicos do Ministério da Saúde ou das secretarias estaduais, como o de vacinação, ou buscava ajuda em instituições filantrópicas, como as Santas Casas. “Vinha carimbado no prontuário ‘indigente’. Isso significava que todos os que trabalhavam na cidade sem carteira assinada e toda a população brasileira do campo não tinham direito a nada”, lembra o oncologista Drauzio Varella, colunista da Folha.

No final dos anos 1980, o Inamps entrou em declínio. Além dos inúmeros escândalos de corrupção, a arrecadação não cobria os gastos, e a conta não fechava. Ao mesmo tempo, existia uma pressão dos movimentos populares por uma reforma sanitária no país.

O artigo 198 da Constituição Federal estabeleceu que os recursos para financiar o SUS viriam do orçamento da seguridade social, entre outras fontes. “Quando a Constituinte permitiu a criação do SUS, colocou nas disposições transitórias que 30% do Fapas [Fundo de Previdência e Assistência Social] iriam para o SUS, mas, na primeira crise da Previdência, em 1992, os recursos deixaram de ir”, conta o médico sanitarista Gonzalo Vecina Neto, professor de saúde pública da USP.

Em 1993, a receita de contribuições de empregados e empregadores, que representava um terço do orçamento do Ministério da Saúde, passou a financiar exclusivamente benefícios previdenciários, deixando a pasta da Saúde endividada para bancar despesas de custeio.

Em 1996, o cardiologista Adib Jatene, então ministro da Saúde de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), usou do seu prestígio para obter a aprovação da CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira). Mas, de novo, os novos recursos não chegaram à saúde, o que levou o médico a pedir demissão do cargo.

Durante a década de 1990, as verbas federais eram instáveis, e o setor dependia de medidas emergenciais e provisórias. A emenda constitucional 29, de 2000, foi criada estabelecer parâmetros do financiamento, mas só em 2012 uma lei complementar definiu que a União passaria a aplicar, anualmente, o montante correspondente ao valor empenhado no exercício financeiro anterior, acrescido de, no mínimo, o percentual correspondente à variação nominal do PIB. Os estados e o Distrito Federal gastariam, no mínimo, 12% e os municípios, 15%.

Porém, os gastos federais em saúde estão em queda. Em 1991, a União contribuía com 73% do financiamento do SUS. Em 2019, entrou com 43%, segundo a Abres (Associação Brasileira de Economia da Saúde). Neste ano, o orçamento do Ministério da Saúde encolheu 20%, passando dos R$ 200,6 bilhões em 2021 para R$ 160,4 bilhões.

Para Ligia Bahia, da UFRJ, o setor econômico se divorciou definitivamente das políticas sociais e, neste ano de eleições presidenciais, são necessárias propostas concretas dos candidatos para o aumento dos gastos públicos em saúde. “Mas os recursos públicos precisam ser alocados na saúde pública.”

Na opinião do médico sanitarista Vecina Neto, da USP, o problema de financiamento não se resolverá nos próximos quatro anos, independentemente do resultado das eleições de outubro, mas é possível otimizar os atuais recursos redesenhando o modelo de gestão.

“Grande parte dos atendimentos fica a cargo de prefeituras que não têm capacidade administrativa para entregar todos os serviços de saúde, e às vezes, nem a atenção primária”, diz o cientista político Miguel Lago diretor do Ieps (Instituto de Estudos de Políticas de Saúde).

Na contramão de outros países, como a Espanha, que no passado descentralizaram os serviços de saúde em direção às comunidades autônomas (com autonomia legislativa e competência jurídicas próprias), o Brasil optou por um processo de descentralização político-administrativa voltado aos municípios.

Se, por um lado, isso possibilitou um SUS com capilaridade no país todo, por outro, dificultou o trabalho em rede. “A gente vê uma quantidade de prefeitos que são rivais entre si e que não têm motivação política para cooperarem”, observa o historiador da saúde Carlos Henrique Paiva, pesquisador do Observatório História e Saúde da Casa Oswaldo Cruz (Fiocruz).

Além do prejuízo à assistência e de drenar os parcos recursos da saúde, a troca de gestores a cada eleição municipal leva à descontinuidade nas ações de prevenção e de controle de epidemias como de dengue, zika e chikungunya, afirma o historiador Luiz Antonio Teixeira, também pesquisador da Fiocruz.

No campo da assistência, alguns estados têm investido em consórcios regionais de saúde para melhorar a oferta de consultas médicas especializadas em áreas como cardiologia, endocrinologia, urologia, ortopedia e neurologia, um dos grandes gargalos do SUS.

A Bahia, por exemplo, criou 22 policlínicas, que atendem hoje 402 municípios —96% das cidades baianas. Os pacientes são deslocados de uma cidade a outra em microônibus e vans. O estado participa com 40% do custeio, e outros 60% são financiados pelos municípios consorciados.

Vecina Neto é um dos defensores da criação de regiões de saúde com base populacional como forma de melhorar a gestão dos recursos do SUS e da assistência. “Os recursos vão para um conjunto de municípios e estados para fazer a gestão conjunta e decidir onde investir”, diz. Para ele, parcerias público-privadas podem ajudar nesse processo.

“Precisamos de mais eficiência na capacidade de comprar, contratar e de criar escala. Não interessa quem faz, interessa o que faz e para quem faz. O estado tem fazer a fiscalização. Sem fiscalização, é natural que existam desvios.”

A expansão e a melhoria da qualidade da atenção primária à saúde —tendo como pilar a Estratégia Saúde da Família, conectada aos demais níveis de atenção, como ambulatórios de especialidades e hospitais— também são citadas como caminhos que o SUS deveria perseguir.

No entanto, há problemas ainda mais básicos a serem atacados, como as doenças ligadas às condições de vida da população. “As intervenções na tuberculose, sífilis e câncer de colo de útero continuam tão frágeis quanto no passado”, afirma o pesquisador Luiz Teixeira, da Fiocruz.

“Se não melhorar a nutrição e a moradia, não vai se reverter a tuberculose. Se não diminuir o machismo na sociedade, não tem como reduzir a sífilis congênita que está relacionada, principalmente, ao fato de os maridos [portadores da doença] não quererem transar com camisinha. Mulheres com menos estudo são as mais afetadas pelo câncer de colo de útero porque não fazem o Papanicolaou.”

Sem resolver a falta de saneamento básico, o país continuará reforçando as desigualdades na saúde, de acordo com o historiador André Mota, diretor do Museu Histórico da Faculdade de Medicina da USP. Hoje, quase metade dos brasileiros vive sem acesso à rede de esgoto, e 16% não são atendidos pela rede de água. Um novo marco legal do setor estabeleceu que, até 2033, 99% da população tenha água potável e 90% desfrute de coleta e tratamento de esgoto.

Mota lembra que, há mais de um século, já se sabe que as condições de vida estão intrinsecamente ligadas à saúde da população, mas o país ainda patina nessa questão. “Quantas pessoas morreram de Covid por não terem água para lavar as mãos? A assepsia era uma questão nossa no século 19 e continua até hoje.”

Uma das razões, segundo ele, é o fato de o Brasil produzir tecnologias de ponta em saúde, mas elas não chegarem às populações de baixa renda. “Por que, na Cidade Tiradentes [zona leste de São Paulo], as pessoas morrem, em média, aos 58 anos e no Alto de Pinheiros [zona oeste], aos 80? Porque esse raio tecnológico não desce, não perpassa a vida do indivíduo como um direito.”

SUS É HERDEIRO DE EXPERIÊNCIAS DA ERA VARGAS
O SUS é herdeiro de várias experiências anteriores, principalmente as que ocorreram na Era Vargas, entre 1930 e 1945. Com a criação do Ministério da Educação e da Saúde Pública, em 1930, iniciou-se um período de transformações, especialmente na gestão de Gustavo Capanema (1934-1945). A estrutura de saúde passou a estar em todo o país, e uma rede de serviços começou a ser montada.

“A ideia central da reforma Capanema era a de que a saúde deveria ser organizada com base no território. Ou seja, a maneira como respondemos aos problemas de saúde tem que estar relacionada a questões demográficas e epidemiológicas locais. Parece óbvio hoje, mas foi fruto de aprendizado e um investimento imenso em ações nos anos 1930”, afirma o pesquisador Carlos Paiva, da Fiocruz.

Segundo ele, pela primeira vez a política de saúde passou a ser pensada em âmbito nacional, o que estava alinhado com o ideal de nação de Getúlio Vargas. Na prática, o território brasileiro foi dividido em grandes regiões e, em cada uma delas, havia uma autoridade de saúde (delegacias federais de saúde).

Dentro dessas regiões, existiam microrregiões, os distritos sanitários, com centros de saúde. “Digamos que ali estava um certo esboço da atenção primária que a gente tem hoje”, diz ele, coautor da obra “Atenção Primária: uma História Brasileira Recente”.

Também já exista a compreensão de que as instituições de saúde precisavam se articular e estar integradas, de que os problemas de saúde das pessoas são complexos e de que o percurso do usuário no sistema necessitava uma certa racionalidade. “A ideia era não deixar que as pessoas ficassem zanzando, procurando um local de atendimento. Era um problema dos anos 1930 e ainda hoje não foi todo resolvido”, afirma o pesquisador.

Também remonta ao governo Vargas a ideia de que as ações preventivas e curativas de saúde devessem estar integradas institucionalmente. Durante a ditadura militar (1964-1985), contudo, houve uma separação dessas ações. A partir de 1975, a medicina curativa ficou a cargo do Ministério da Previdência, e as ações de saúde pública permaneceram no Ministério da Saúde.

“Isso fortalece uma dualidade institucional na saúde brasileira. O Ministério da Previdência fica com muito mais recursos, e míngua o orçamento para as ações de prevenção”, afirma Luiz Teixeira, da Fiocruz.

As políticas de saúde dos tempos imperiais até o final da Primeira República (1930) priorizaram basicamente debelar as epidemias, como o cólera, a febre amarela e a peste bubônica. As questões sanitárias, agravadas com a urbanização das capitais e as condições de vida precárias, geravam surtos de infecções gastrointestinais e doenças transmissíveis como a sífilis e a tuberculose.

“A saúde era importante à medida que não atrapalhasse a economia. Só tinha orçamento se tivesse epidemia. As ações de saúde pública não tinham continuidade para evitar novos problemas”, diz Teixeira.
Nesse período, São Paulo construía um projeto de saúde à parte do resto do Brasil. Antes mesmo da Proclamação da República, oligarquias cafeeiras começaram a investir em ações para evitar que as epidemias afetassem a economia. Em 1891, por determinação constitucional, estados e municípios passaram a ser responsáveis pelos cuidados da saúde de suas populações.

“São Paulo acaba fazendo um código sanitário independente do Brasil. A fundação Instituto Butantan [em 1901] e a produção de soro antiofídico vêm a socorrer uma demanda gerada pela chegada dos imigrantes nas fazendas de café no interior, pelas picadas de cobras, aranhas, escorpiões”, afirma o historiador André Mota, da USP.

O Brasil entrou nos anos 1900 com as epidemias causando muitas mortes, especialmente de imigrantes. A cidade do Rio de Janeiro era conhecida na época como o túmulo dos estrangeiros.

Iniciou-se, no período, um processo de reorganização com uma meta ambiciosa de reverter a imagem da capital do país e transformá-la na “Paris dos trópicos”. Sob comando do engenheiro Francisco Pereira Passos, então prefeito do Rio, ruas foram alargadas e cortiços, demolidos. Os mais pobres acabaram expulsos para os extremos, formando as favelas.

O saneamento da cidade ficou a cargo do médico Oswaldo Cruz, que dirigia o Instituto Soroterápico Federal (hoje Fundação Oswaldo Cruz). Em 1903, ele assumiu também a diretoria-geral de Saúde Pública com a meta de enfrentar as doenças epidêmicas, especialmente a febre amarela, a peste bubônica e a varíola.

As campanhas sanitárias ganharam um caráter militar, e, em 1904, foi aprovada a Lei da Vacinação Obrigatória, desencadeando uma grande manifestação popular que ficou conhecida como a Revolta da Vacina.

Para muitos, a obrigatoriedade da vacinação contra a varíola infringia o direito à privacidade e à autodeterminação, discursos muito parecidos aos atuais negacionistas da vacina contra a Covid-19. No fim, depois de muita briga, Oswaldo Cruz recebeu várias homenagens no exterior e se tornou herói nacional.

Banda ogra do agronegócio sustenta cruzada antiamazônia, por Marcelo Leite.

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No supermercado e na urna, você decide futuro das florestas tropicais

Marcelo Leite, Jornalista de ciência e ambiente, autor de “Psiconautas – Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (ed. Fósforo).

Folha de São Paulo, 11/09/2022.

Viajantes no interior dos estados americanos de Washington, Oregon e Califórnia, neste fim de verão, não se preocupam com a previsão do tempo —a possibilidade de chuva é quase zero. Ficam é de olho nos registros de fogo, pois duas dúzias de incêndios florestais se propagam pelas florestas temperadas de coníferas.

Diferentemente do Brasil e de outros países com florestas tropicais, nesse caso a responsabilidade direta da atividade agrícola pelas chamas é desprezível. O ressecamento da mata e os ventos que as insuflam se agravam com o aquecimento global, do qual todos somos culpados, a começar pelo diesel dos descomunais SUVs dos turistas
americanos e os trailers que arrastam.

Outros 500, no Brasil, são as queimadas intimamente ligadas ao desmatamento, em particular na Amazônia. Aqui, a banda ogra do agronegócio está por trás dos atuais recordes de fogo e fumaça que tornam o uso da terra em maior fonte nacional de gases do efeito estufa.

Os mais de 33 mil focos de incêndio registrados pelo Instituto Nacional de Pesquisa Espaciais (Inpe) no Brasil em agosto, grande parte na Amazônia, representaram avanço de 7% sobre o mesmo mês do ano passado. A área calcinada ultrapassou 24 mil km2, com crescimento de 30% sobre 2021, ficando atrás só de 2010, ano de seca ímpar, e 2019, primeiro ano de Bolsonaro.

Queimadas não são sinônimo de desmatamento recente, embora sempre ligadas a derrubadas anteriores. Usa-se fogo também para limpar pastos (que um dia foram florestas) e queimar detritos acumulados noutras temporadas. Incêndio florestais como os do noroeste dos EUA não ocorrem na Amazônia, uma floresta úmida.

Com a dinâmica presente de desmatamento na região, contudo, não se descarta que a floresta amazônica caminhe nessa direção. Quase 20% da cobertura do bioma já sofreu corte raso, e talvez outro tanto tenha sido degradado pelo garimpo localizado e pela retirada seletiva de madeira e suas estradas clandestinas.

Prevê-se que o contínuo ressecamento por essas atividades e anos de pouca precipitação com a mudança global do clima possa deflagrar um colapso do ecossistema conhecido como “dieback”. Alcançando 25% de devastação, a mata reverteria para algo parecido com uma savana, bem mais inflamável.

Quanto dessa espiral destrutiva da floresta tropical pode e deve ser atribuída à atividade agrícola? Não é tarefa trivial determinar a responsabilidade, como discute alentado artigo de revisão publicado sexta-feira (9) no periódico Science.

Na penca de autores da equipe está Tasso Azevedo, líder no Brasil da iniciativa MapBiomas. O trabalho colaborativo põe em dúvida uma cifra muito citada na literatura científica, além de organismos internacionais e ONGs: 80% do desmatamento de florestas tropicais no mundo resultaria da atividade agrícola.

O artigo conclui que um número mais provável ficaria entre 90% e 99%. Nem toda área derrubada se converte de imediato em campos cultivados com grãos, verdade, mas o agronegócio não está dissociado do desmatamento especulativo, por exemplo, como bem demonstra a grilagem com abertura de pastos no Brasil.

Essa influência indireta do agronegócio na devastação das florestas tropicais decerto complica a tarefa de combatê-la. Muito esforço se dedica, no cenário internacional, a restringir o comércio de commodities ligadas a desmatamento, mas o trabalho na Science questiona a eficácia desse foco exclusivo, ainda que sem negar a importância de tais barreiras.

Boa parte dos grãos, da carne e da madeira oriundos de desmatamento, afinal, se destina a mercados domésticos, não exportação. É fogo: pense nisso na próxima vez que for ao supermercado e, dentro de três semanas, ao votar.

Duzentos anos

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O Brasil está comemorando os 200 anos de independência, um momento de reflexões, momentos de repensarmos as políticas adotadas neste período, melhorando aquelas que contribuíram para as melhorias sociais, incrementando as condições de vida e que reascenderam as nossas esperanças, consolidando avanços fundamentais. Ao analisarmos as políticas adotadas, é fundamental, extinguirmos aquelas que não trouxeram os avanços esperados, reestruturando algumas e abolindo por completa aquelas que geraram resultados equivocados e beneficiaram apenas poucos grupos privilegiados.

Neste momento de tantas transformações na sociedade contemporânea, onde o desenvolvimento da tecnologia aproxima os indivíduos e, ao mesmo tempo, contribuem ativamente para distanciar as pessoas, aumentando os medos, incrementando as ansiedades e as incertezas que crescem aceleradamente. O mundo contemporâneo evoluiu no âmbito da tecnologia, garantiu mais riquezas e contribuiu para construir novos instrumentos de desenvolvimentos sociais, mas ao mesmo tempo, gerou mais incertezas, instabilidades, individualismo e imediatismo.

Depois de duzentos anos, muitas foram as transformações, algumas positivas e outras nem tanto, saímos de uma sociedade altamente dependente dos mercados internacionais, uma sociedade extremamente desigual, onde uma parte substancial da população vivia em péssimas condições de vida, alijados de seus direitos fundamentais, sem escolas, sem assistência médica, sem dignidade e sem esperanças. Em plena reconfiguração do capitalismo internacional, o Brasil era um país exportador de produtos primários de baixo valor agregado, onde uma grande parte da sociedade sobrevivia sem condições dignas e uma pequena parte concentrava privilégios elevados, ganhos estratosféricos baseado na exploração escrava e em salários escorchantes, criando uma sociedade dual, uma parte ambicionando a vida dos grandes endinheirados europeus e outra parte vivendo de exploração, sem empregos decentes e vistos com desconfiança crescente, gerando rancores e ressentimentos travestidos de convivência cordial.

Depois de duzentos anos de independência, encontramos uma reconfiguração das elites dominantes, antes os grandes donos do poder eram os cafeicultores, a elite rural, depois vieram os industriais e agora os grandes financistas, todos eles se caracterizam como predadores do Estado Nacional, usam seus poderes políticos e seus recursos financeiros para angariar mais controles sociais, perpetuando seus ganhos monetários, seus subsídios elevados, suas isenções fiscais e tributárias, inviabilizando os projetos nacionais autônomos e garantindo a condição de sócios menores dos grandes detentores das riquezas internacionais.

Depois de duzentos anos de independência a democracia ganhou mais relevância, se transformou em um projeto nacional visando a melhoria das condições de vida da comunidade, incrementando o crescimento econômico, garantindo mais espaços de direitos sociais e políticos, mas não conseguiram abarcar a grande parte da população, criando espaços de contestações crescentes, inviabilizando direitos de inúmeros grupos, negando cidadania para muitas classes sociais e criando tensões urgentes que inviabilizam a tão chamada democracia. Ao analisarmos estes duzentos anos de independência brasileira, onde fomos os últimos países a acabar com a escravidão e ao refletirmos sobre os indicadores sociais, econômicos e políticos degradantes para os negros, os indígenas e minorias, percebemos que não entendemos nada, infelizmente, da verdadeira história nacional.

A tecnologia cresce na sociedade contemporânea prescindindo de novos padrões de acumulação econômica e de convivência democrática, deixando de lado esta visão dominante, centrada no imediatismo, no individualismo, no consumismo, no hedonismo e nos ganhos materiais em detrimento dos valores mais consistentes, do respeito aos seres humanos, valorizando o compartilhar, o cooperar e a solidariedade.
Duzentos anos depois, os desafios são elevados e exigem uma coletividade que ultrapasse os interesses do capital, deixando o ser humano e a solidariedade no centro das discussões. Só assim, que venha mais duzentos anos…

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 07/09/2022.

“Bicentenário da Independência chega sem projeto de nação”, diz historiador

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José Murilo de Carvalho fala sobre como os brasileiros destruíram seu paraíso terrestre e a urgência de mudanças

Wilson Tosta – O Estado de São Paulo, 04/09/2022

O Brasil celebra 200 anos de vida independente em 2022 sem projeto de nação e longe da grandeza anunciada em 1500 pela natureza exuberante e sonhada no século 19 pelos que lutaram por sua Independência. A constatação é do historiador e membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) José Murilo de Carvalho, que avalia com desânimo o panorama nacional hoje. Para ele, os brasileiros destruíram o seu paraíso terrestre. Poluíram ares, águas e praias e levam às terras, inclusive a Amazônia, à desertificação, sob o impulso do desmatamento e da mineração predatória.
“O sonho de grandeza desvaneceu, não se transformou em política de Estado a ser implementada independentemente da mudança de governo, afirma, em entrevista ao Estadão. “Vamos levando sem termos um projeto (de nação), um fim a atingir, algo como o Manifest Destiny (Manifesto do Destino) dos norte-americanos.”

O historiador diz que o Brasil é um “país sem revolução”, no qual ocorreram movimentos apenas de “ajuste” entre as elites. Foi assim, considera, na Proclamação da República, para permitir a entrada dos cafeicultores na política; na Revolução de 1930, para quebrar o monopólio das oligarquias rurais; no golpe de 1964, para conter o trabalhismo criado por Getúlio Vargas. As elites brasileiras, afirma, desde o Império, tiveram enorme capacidade de se reproduzir e, em conluio, barram as medidas que envolvam redistribuição de renda no Brasil.

“O Leopardo de Lampedusa concordaria: é preciso mudar para que nada mude”, diz. Ele se refere ao romance Il Gattopardo, do italiano Giuseppe Tomasi di Lampedusa (1896-1857), sobre a decadência da nobreza siciliana durante o Risorgimento, movimento que buscou a reunificação italiana no século 19. A frase (“É preciso mudar para que tudo permaneça como está”) é de um personagem do livro, o príncipe de Falconeri.

O acadêmico avalia que o conservadorismo brasileiro é basicamente cultural, moral e de família, gênero e religião, não político, como “provavelmente as urnas” mostrarão, diz. O campo político, diz, é da elite econômica e financeira. O pesquisador afirma que os brasileiros deveriam seguir os chineses, que pensam seu país “para trás e para frente”.

“O que será do País quando completarmos 250 anos de independência?”, pergunta. Para ele, “com a história que temos, com a magra herança desses 200 anos, não é fácil prever o que podemos esperar.” A seguir, a entrevista do historiador ao Estadão.

O que os brasileiros têm a celebrar nos 200 anos da Independência do País?
Américo Vespúcio via nestas terras o paraíso terreal, no que foi seguido por outros cronistas coloniais. Às vésperas da Independência, José Bonifácio disse que voltara de Portugal para ajudar a fundar aqui um grande império. Na metade do século 19, Gonçalves Dias exaltou nossas riquezas e belezas em versos que cantamos no Hino Nacional. Em 1900, celebrando os 400 anos da chegada dos portugueses, o conde Afonso Celso escreveu Porque me Ufano de meu País. Os governos militares falaram em construir aqui uma grande potência.

E o que têm a lamentar?

A grandeza não passou de sonhos. Destruímos nosso paraíso terrestre. Nossos ares, nossas águas, nossas praias estão poluídas, nossas matas, destruídas, nossas terras, em perigo de desertificação, a Amazônia, ameaçada pelo desmatamento e pela mineração predatória. A grande população indígena da época da chegada dos colonizadores foi quase toda extinta. Grande parte da população ainda sofre as marcas da escravidão. O sonho de grandeza desvaneceu, não se transformou em política de Estado a ser implementada independentemente da mudança de governo.

A herança colonial lusitana ainda pesa ou os maiores culpados por nossos problemas somos nós mesmos?

Nenhum país pode ignorar seu passado porque ele sempre deixa vestígios mais ou menos fortes. Em nosso caso, não há como ignorar a colonização portuguesa, a quase extinção da população nativa, a introdução de milhões de escravos trazidos da África, o desenvolvimento de uma economia agrária de exportação dominada por latifundiários, o forte papel de um Estado absolutista, o monopólio religioso do catolicismo. É uma herança pesada. É certo que os 200 anos testemunharam grandes mudanças. Os poucos milhões de portugueses, indígenas e africanos se transformaram em mais de 215 milhões de brancos, pardos e negros e imigrantes europeus, asiáticos e do Oriente Médio. Tornamo-nos um dos mais populosos países do mundo e uma de suas maiores economias. Mas, ao mesmo tempo, montamos um sistema de dominação política que excluiu a participação popular por mais de 100 anos. O povo só entrou em nossa vida política na década de 1930 e teve as tentativas de participação frustradas por duas ditaduras. Temos hoje uma democracia em que o povo político, embora possa votar, não orienta a política e boa parte dele se torna, pela pobreza, imensa clientela vítima de políticas populistas. Patrimonialismo, paternalismo, elitismo, estatismo têm raízes profundas e ainda dificultam a construção de uma sólida república democrática.

O escravismo colonial e o racismo ainda moldam a sociedade brasileira, como no passado?

A escravidão deixou marcas profundas que se manifestam ainda hoje em preconceitos, discriminações, exclusões. Só recentemente, com a adoção de políticas afirmativas de inclusão, como o sistema de cotas no acesso ao ensino superior, a situação está sendo combatida, e uma nação mais inclusiva se esteja construindo. Por muito tempo, a negação oficial da existência de discriminação racial e a imagem do convívio fraterno de três raças causaram um mal enorme, ao camuflarem o preconceito e a exclusão.

Por que o Brasil parece tão resistente a mudanças, apesar da brutal desigualdade social brasileira?

São perguntas de um milhão de dólares. As elites brasileiras desde o Império tiveram enorme capacidade de se autorreproduzir. No Império, sob as asas do Poder Moderador, na Primeira República com a política dos Estados – renovando-se na década de 1930 –, mais tarde apoiando golpes. Façamos a revolução antes que o povo a faça, disse Antônio Carlos em 1930. O Leopardo de Lampedusa concordaria: é preciso mudar para que nada mude. Basta um exemplo: milhões de pobres votam. No entanto, os eleitos por eles, boa parte dos congressistas, no máximo dedicam-se a práticas clientelistas e populistas, sem promover reformas estruturais em favor da redução da desigualdade. Não representam os interesses de milhões de eleitores que neles votaram. A representação, vale dizer, a democracia, não funciona. A insensibilidade à desigualdade é marca de nossas elites. Veja-se o exemplo do Judiciário que abriga os marajás da República. Em meio à dura crise causada pela covid, vemos o STF reivindicar aumento salarial de 18% para toda a magistratura. Os juízes do STF que ganham R$ 39,2 mil, fora os penduricalhos, passariam a ganhar R$ 46 mil.

Isto num país onde o salário mínimo é de R$ 1.212. É uma indecência que retrata a cara de nossa elite.

Quem resiste mais a mudanças no Brasil? A elite econômica, a classe média?

O topo dos negócios, da política e da burocracia estatal em conluio. Entre si conseguem barrar todas as medidas que envolvam redistribuição de renda.

Em quais episódios históricos o Brasil mudou para conservar tudo como estava, como na assertiva de O Leopardo de Lampedusa?

O Brasil é um país sem revolução. Alguns movimentos foram de reajuste, rearrumação do andar de cima. Alguns exemplos: a Proclamação da República, para entrar os cafeicultores; a chamada Revolução de 1930, para romper o monopólio das oligarquias rurais; o golpe de 1964, para conter o trabalhismo getulista.

Ao fazer 200 anos, o Brasil tem um governo que se diz conservador. Os conservadores venceram no Brasil?
Diria que uma boa parte de nosso conservadorismo é de natureza cultural, tem a ver com valores relativos à moral, família, gênero, religião. Prova disso é o rápido avanço dos evangélicos. Politicamente, não vejo uma predominância conservadora, como provavelmente as urnas irão mostrar. O conservadorismo político talvez seja mais de setores da elite, sobretudo da elite econômica e financeira.

O governo Bolsonaro é continuidade ou rompimento com a tradição brasileira de governos?

De 1930, quando começou a entrar povo na política, a 1985, fim da ditadura, foram quase 36 anos de governo autoritário contra 19 de democracia. Qual seria, então, a tradição brasileira? Seriam os 37 anos de 1985 a 2022? É pouco para formar tradição. A consolidação de uma cultura política democrática exige mais tempo. Daí a importância de uma vitória democrática nas próximas eleições. Enquanto não houver consolidação da democracia, permaneceremos sob a tutela das Forças Armadas.

Como o senhor avalia as ameaças autoritárias que o presidente tem feito justamente neste ano, dos 200 anos de independência do Brasil? Há algo de simbólico nisso?

Simbólico de quê? A Independência foi uma libertação e teve envolvimento popular. A não ser que se esteja referindo ao fechamento da Assembleia Constituinte em 1823, nosso primeiro golpe político.

O que explica a nossa irrelevância nas relações internacionais?

Temos também um corpo diplomático respeitado internacionalmente. Uma explicação para isso talvez seja o fato de não termos um projeto de nação. Vamos levando sem termos um projeto, um fim a atingir, algo como o Manifest Destiny dos norte-americanos. Por um tempo, pensou-se que deveríamos construir um soft power, participando de missões internacionais de paz. Não foi adiante.

O nosso “complexo de vira-lata”, apontado por Nelson Rodrigues, ajuda nessa irrelevância? Não temos importância porque não nos damos importância?

Volto ao projeto de nação. Há 200 anos tínhamos um projeto de nação: construir um grande império com base em nosso tamanho, em nossas riquezas, na pujança e beleza de nossa natureza. Faltava apenas população. Veio a população, uma das maiores do mundo, e não dissemos a que viemos. Nem a liderança da América Ibérica conseguimos exercer.

Nunca vi nada nada parecido com atual momento, diz decano do direito constitucional

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José Afonso da Silva recebeu homenagem especial em ato pela democracia do dia 11 de agosto

UIRÁ MACHADO, FOLHA DE SÃO PAULO, 04/09/2022

SÃO PAULO

José Afonso da Silva não escondeu a emoção quando recebeu uma homenagem especial durante o ato pela democracia do dia 11 de agosto, realizado na mesma Faculdades de Direito da USP em que se formou em 1957 e onde deu aulas até 1995.

Há muito tempo considerado um dos juristas mais importantes do país, ele se destacou entre as poucas pessoas que assinaram a “Cartas aos Brasileiras” de 1977 e a “Carta às Brasileira e aos Brasileiros” deste ano: era o mais velho do grupo, com 97 anos de idade.

Com a autoridade de quem já viveu quase um século, ele olha para o passado e diz: “Não testemunhei nada parecido com o momento atual, a não ser certos aspectos da personalidade histriônica e autoritária de Jânio Quadros, que
também quis dar o golpe”.

Jânio presidiu o Brasil em 1961; o atual mandatário, Jair Bolsonaro (PL), proferiu tantas ameaças ao Estado de Direito que o manifesto lido no dia 11 somou mais de 1 milhão de assinaturas.

Nesta entrevista à Folha, concedida por email, Silva se manifesta sobre alguns dos debates jurídicos repisados por Bolsonaro e seus apoiadores, como o suposto respaldo da Constituição a uma intervenção militar e a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em relação à pandemia.

Professor aposentado da USP, ele é apontado como doutrinador mais citado no STF e escreveu livros influentes na área do direito constitucional, além de ter sido assessor da Assembleia Constituinte de 1987.

Como o senhor se sentiu sendo homenageado no ato de 11 de agosto? Foi uma surpresa, e me senti profundamente honrado, com uma homenagem durante um evento da magnitude do que estava ocorrendo na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, por onde me formei e onde fui professor titular. E mais, imediatamente o público se ergueu em palmas por muito tempo, acolhendo com entusiasmo as generosas palavras do diretor Celso Campilongo, a quem sou muito grato.

Eu já estava emocionado naquele ambiente, lembrando de meu pai sentado lá em cima na ponta do balcão, orgulhoso do seu filho alfaiate se formando em direito na melhor faculdade do país. Foi muito emocionante, mais ainda quando milha filha veio a mim, chorando de emoção, e, depois, José Carlos Dias veio e me abraçou carinhosamente. As lágrimas vieram à tona. Haja coração!

O sr. é testemunha de quase um século de história do Brasil. O momento político atual é comparável com algum outro que o senhor tenha vivido? Eu nasci bem no meio da década de 1920, quando a República oligarca sofria seus abalos mais fortes com o aparecimento de camadas médias urbanas, que foram abrindo campo ao surgimento de movimentos contrários às oligarquias, com destaque para o tenentismo.

Eram os tenentes das Forças Armadas, especialmente do Exército, que se imbuíram da ideia de que, como militares, eram responsáveis pela sociedade e representantes dos interesses gerais da nação, e por isso lhes cabia a missão de intervir no processo do poder e exigir mudanças nos costumes políticos. Uma tese certamente inaceitável. Mas ali era o sertão de Minas, aonde essas coisas não chegavam.

Só quando vim para São Paulo, aos 22 anos de idade (em 1947), é que pude acompanhar a vida política, já sob o regime da Constituição de 1946, regime muito conflituoso, sobretudo depois que o brigadeiro Eduardo Gomes perdeu a eleição para o Getúlio Vargas (em 1950), quando a UDN, convencida de que não chegaria ao poder pelo voto, e já sob a liderança de Carlos Lacerda, se transformou num partido golpista aliado a alguns militares.

Mas veja a diferença. Não era o presidente da República que fomentava o golpe, era a oposição buscando o poder pela deposição do presidente. Como se vê por esse pequeno apanhado histórico, não testemunhei nada parecido com o momento atual, a não ser certos aspectos da personalidade histriônica e autoritária do presidente Jânio Quadros, que também quis dar o golpe.

Nos últimos anos, têm sido comuns discussões sobre o artigo 142 da Constituição. Segundo uma interpretação, esse dispositivo dá respaldo a uma intervenção militar no Brasil. Faz sentido? Essa interpretação não é correta. Nada no artigo 142 a autoriza. Esse artigo confere às Forças Armadas a função essencial de defesa da pátria e a garantia dos Poderes constitucionais; vale dizer, defesa contra agressões estrangeiras em caso de guerra externa e defesa das instituições democráticas, pois a isso corresponde a garantia dos Poderes constitucionais, que, nos termos da Constituição, emanam do povo. Mas isso não implica intervir em seu funcionamento.

Outra função é subsidiária e eventual, de defesa da lei e da ordem. Subsidiária porque essa função é de competência primária das forças de segurança pública, que compreendem a Polícia Federal e as Polícias Civil e Militar dos estados e do Distrito Federal.

E sua interferência aí, além do mais, depende de convocação dos legítimos representantes de qualquer dos Poderes federais: presidente da mesa do Congresso Nacional, presidente da República ou presidente do Supremo Tribunal Federal.

Outra visão incabível, que andou circulando por aí, é aquela que concebe as Forças Armadas como “poder moderador”. Mas como é possível essa concepção, se as Forças Armadas são definidas no artigo 142 como instituições organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade do presidente da República e essencialmente obediente?

Poder moderador é poder independente em face dos demais poderes, e, para tanto, não pode ser obediente nem sujeito
a autoridade de qualquer deles.

O presidente Jair Bolsonaro e seus apoiadores criticam o que eles chamam de ditadura do Judiciário, sobretudo devido à atuação do STF. O sr. considera que o Supremo tem extrapolado suas funções? Há dois aspectos a considerar: o daqueles que acusam o STF de ativismo judicial e essas reclamações do presidente Bolsonaro.

A questão do ativismo judicial está relacionada com a função interpretativa dos tribunais. Há um debate já antigo sobre isso, ou seja, sobre quão criativa pode ou deve ser a interpretação feita pelos tribunais. Por isso, a conclusão sobre quão ativista é o STF varia conforme a concepção que cada um tem sobre os limites da interpretação judicial. Esse é o debate legítimo.

As reclamações do presidente se prendem a algo menos comum, que são os inquéritos promovidos pelo ministro Alexandre de Moraes. Mas inusitados também são os fatos que têm dado ensejo a esses procedimentos.

Ocorreram os fatos e a inércia do Ministério Público; o STF e seus ministros, como vítimas, foram buscar no seu Regimento Interno norma que os socorressem, talvez, como alguns especialistas entendem, numa interpretação bastante elástica. Cabe ao plenário do tribunal corrigir, se houver exagero.

No caso do combate à pandemia, o STF acertou ao decidir pela competência conjunta? Sim. É simples. A Constituição diz que cuidar da saúde é de competência comum da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios. Declara que a saúde é direito de todos e dever do Estado, isto é, dever daqueles entes federativos que têm que cuidar da saúde, e esse direito é garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos.

O isolamento social é um modo de realizar essa política social; competência que é cumprida mediante a execução das ações e serviços para a promoção, proteção e recuperação da saúde, integrados no SUS, financiado com recursos orçamentários daqueles entes federativos. Competência comum significa que todos os entes competentes podem executar tudo que é previsto nas competências.

Mas, para evitar superposição de ações, o artigo 198 da Constituição estabeleceu que as ações e serviços públicos da saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com diretrizes ali indicadas, que é o SUS.

Veja que são os estados e municípios que executam as ações e serviços de saúde. Eles é que criam e mantêm hospitais, postos de saúde e outros serviços para o povo. A União não o faz. O SUS confere à União a coordenação e as diretrizes gerais, entre outras ações de caráter geral. Ela o faz por meio do Ministério da Saúde, o que não ocorreu.

O presidente da Câmara, Arthur Lira, recebeu inúmeros pedidos de impeachment de Bolsonaro, mas não deu sequência a nenhum. Faz sentido o presidente da Câmara ter esse poder? É um poder extraordinário, absoluto e abusivo, incompatível com os princípios democráticos, em prejuízo da oposição. Há que se buscar meios de corrigir essa anomalia.

Segundo algumas pessoas, o procurador-geral da República, Augusto Aras, tem uma postura pouco combativa ou até mesmo omissa em relação a supostos crimes do presidente da República. À luz da Constituição, qual sua avaliação sobre a atuação dele? Não há o que estranhar. Ele foi escolhido fora da lista tríplice organizada pela classe para isso mesmo: fazer o que interessa à autoridade nomeante: o presidente da República.

À luz da Constituição, isso não é para acontecer. Pois o Ministério Público foi institucionalizado para a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis com independência e autonomia funcional, em face de quem comete crime, seja quem for.

E se as ações criminais contra o presidente da República devem ser propostas pelo procurador-geral da República e ele não o faz, está se omitindo e prevaricando.

Nos anos 1990, o sr. foi secretário de Segurança de São Paulo e criou mecanismos para reduzir mortes provocadas por policiais. Mais de 20 anos depois, temos inúmeras notícias de ações letais por parte da polícia, entre as quais se incluem chacinas. Por que o Brasil não consegue avançar em relação a isso? É verdade. No primeiro mês de minha gestão, a Polícia Militar matou 30 pessoas. No segundo, fevereiro, matou 29. Chamei o comandante-geral e lhe disse para tirar da rua os policiais que cometiam essas mortes. Ele tirou 200. Em março, mais de 30 mortes.

Então, estabeleci que os policiais que matassem fossem recolhidos para prestar serviços no centro da cidade, mediante acompanhamento psicológico. No mês seguinte, o número de mortes caiu substancialmente, e assim foi durante minha gestão, sem prejuízo da eficiência dos serviços policiais.

Respondo: o Brasil não consegue avançar em relação a isso por falta de vontade política.

José Afonso da Silva, 97
Professor aposentado da USP, é autor de livros como “Curso de Direito Constitucional Positivo” (JusPodivm/Malheiros), que está na 44ª edição, e “Aplicabilidade das Normas Constitucionais” (Malheiros). Na Assembleia Constituinte, foi assessor do senador Mario Covas, então líder do PMDB. Foi secretário da Segurança Pública de São Paulo de 1995 a 1999.

O futuro está onde as pessoas mais estão se divertindo, diz Steven Johnson.

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Pensador norte-americano estará no Brasil para apresentação no Fronteiras do Pensamento

DANIELA ARCANJO, FOLHA DE SÃO PAULO, 04/09/2022

SÃO PAULO

Conversar com o pensador norte-americano Steven Johnson é poder falar sobre quase qualquer assunto —de epidemia de cólera no século 19 a bitcoin, passando por tentativas de contato extraterrestre.

Para ele, quem quiser saber para onde o futuro caminha, deve olhar com o que as pessoas estão se divertindo.
“Uma das coisas que faz algo ser divertido e prazeroso é a novidade”, afirma. “Não tem nenhum propósito, mas é interessante. E para continuar surpreendendo as pessoas você tem que continuar desenvolvendo coisas novas, desafiar expectativas. E isso leva a outras ideias que são mais sérias, úteis ou práticas.”

Na sua última publicação, o escritor resolveu fazer uma incursão nos avanços científicos que permitiram elevar a expectativa de vida das pessoas. “Longevidade”, lançado no Brasil pela editora Zahar em 2021, foi motivado pela pandemia e pelos ataques à ciência durante a crise sanitária.

“Qualquer criança em idade escolar nos Estados Unidos pelo menos ouviu falar sobre o pouso na Lua em 1969. Mas quantos deles sabem sobre a erradicação da varíola, que estava acontecendo na mesma época?”, questiona Johnson.

O pesquisador é um dos convidados deste ano do ciclo de palestras Fronteiras do Pensamento. Além de uma palestra online no dia 23 de setembro, ele se apresentará presencialmente em São Paulo no dia 12 de setembro e em Porto Alegre, em 14 de setembro.

Você fundou uma das primeiras revistas online, a Feed Magazine, em 1995. A internet era melhor naquela época? Não, não era. Em 1995 realmente não era porque, em primeiro lugar, poucas pessoas estavam online. Ainda tinha muito o que fazer para simplesmente explicar o que era a web. E as ferramentas eram muito limitadas. Era muito baseado em texto, nós praticamente só tínhamos o hipertexto. Queríamos fazer comunidades, interagir com os leitores, e era muito difícil fazer isso naquela época. Eu diria que a era de ouro foi um pouco mais tarde. Nos primórdios dos blogs, no final dos anos 1990, início dos anos 2000. O período pós bolha da internet foi muito produtivo, muitas ideias novas surgiram.

E agora, o que acha da internet? É um mix de coisas. Eu continuo sendo um grande fã do Twitter, por exemplo. Eu sigo músicos, arquitetos, escritores, políticos, tecnólogos e vejo todos os dias o que eles estão pensando, compartilhando e comentando. É uma fonte incrível de inspiração e surpresa. Eu simplesmente não percebo muitas dessas questões problemáticas com as redes sociais —que são legítimas. Da maneira que eu uso, não me afeta. Então eu ainda vejo o lado positivo disso tudo.

O grande problema é que, no começo, a internet não tinha um padrão aberto para registrar identidade e relacionamentos. A web foi projetada para registrar formalmente as relações entre documentos, por meio de hiperlinks, e isso foi incrivelmente poderoso. Mas não havia uma maneira de criar identidade. Como esse recurso não se construiu em padrões abertos, foi definido por empresas privadas, como Facebook, LinkedIn e Twitter. A definição de todos esses relacionamentos estava subitamente nas mãos de uma empresa, sendo conduzida por um modelo de publicidade e por investidores. Foi aí que nos metemos em alguns problemas.

Você escreveu um artigo em 2018 sobre a bolha do bitcoin. Na época, a moeda estava em torno de US$ 12 mil. O preço já quintuplicou desde então, e agora vemos um novo colapso. O que isso diz sobre criptomoedas? Acho que quase todo mundo já desistiu da ideia de que essas coisas vão funcionar como moedas. Estamos enlouquecendo aqui nos Estados Unidos com uma inflação de 8%. É muito difícil fazer isso funcionar. Além disso, os custos de transação são enormes. Quando o bitcoin surgiu estavam todos falando: “nós precisamos de uma nova moeda descentralizada”. Agora dizem que não é para isso que serve. Acho um pouco suspeito.

Sua gama de interesses vai da epidemia de cólera na Inglaterra do século 19 até tentativas de contato extraterrestre. O que liga todos esses assuntos? Sim, a variedade de coisas sobre as quais escrevi é realmente grande. Essa é uma das coisas que eu amo, mergulhar nesses campos malucos, conversar com especialistas, aprender e ler. Eu sou muito interessado em novas ideias, em como elas vêm ao mundo. Quais tecnologias e avanços científicos permitiram essa ideia transformadora de que a cólera se transmite pela água e não pelo ar, que Jon Snow teve em 1854? Por que em Londres e não na Índia, em 1800, ou em Nova York, em 1870? A mesma coisa com o bitcoin. Sempre que eu vejo surgir uma nova maneira de pensar, começo a prestar atenção.

Já podemos dizer que a pandemia deixou um legado tecnológico? Acho que há dois bastante significativos a longo prazo. Um deles é a vacina. Os cientistas as desenvolveram em um prazo curto, o mapeamento foi incrivelmente rápido. Foi um marco na história da medicina e da ciência. Falaremos sobre isso daqui a cem anos como um avanço fundamental.

A outra questão está no nosso estilo de vida. Sempre disseram que a internet ia permitir que a gente vivesse em qualquer lugar, sem precisar se aglomerar em uma cidade como Nova York ou São Paulo, e isso nunca aconteceu. Então a pandemia nos obrigou a ficar em casa e a tecnologia finalmente avançou ao ponto de uma reunião por Zoom ser muito boa. Acho que todos nós aprendemos que não precisamos viajar 45 minutos todos os dias para o escritório. E isso terá um impacto duradouro.

Na pandemia também vimos líderes negando a crise sanitária e sociedades profundamente divididas. Esse foi um dos motivos pelos quais eu escrevi “Longevidade”. Acho que uma das razões pelas quais temos esse tipo de elemento anticiência em nossa sociedade é porque não celebramos as conquistas da saúde pública e da medicina.

Temos um milhão de memoriais para heróis militares. Qualquer criança em idade escolar nos Estados Unidos pelo menos ouviu falar sobre o pouso na Lua em 1969. Mas quantos deles sabem sobre a erradicação da varíola, que estava acontecendo na mesma época? Foi um exemplo incrível de colaboração internacional e tem um impacto muito maior em nossas vidas.

As pessoas morriam de varíola o tempo todo, é provavelmente o maior assassino da nossa história. E estamos muito mais focados nos astronautas na Lua. Se seus heróis são astronautas e não médicos e autoridades de saúde pública, você não está pré-condicionado a apreciar essas figuras e instituições quando vem uma pandemia.

Para onde temos que olhar para ver o futuro? Eu escrevi há alguns anos o livro “O poder inovador da diversão: como o prazer e o entretenimento mudaram o mundo” [Editora Zahar]. Ele é só sobre brincadeiras e coisas que as pessoas fazem por diversão. Nossos ancestrais, por exemplo, criando instrumentos musicais primitivos antes de inventar a escrita. Ou a relação entre inteligência artificial e jogos, por exemplo. Muito da inteligência artificial surgiu do treinamento de um algoritmo para jogar um game.

Uma das coisas que faz algo ser divertido e prazeroso é a novidade. Você fica surpreso, como se estivesse vendo uma boneca mecânica pela primeira vez. Não tem nenhum propósito, mas é interessante. E para continuar surpreendendo as pessoas você tem que continuar desenvolvendo coisas novas, desafiar expectativas. E isso leva a outras ideias que são mais sérias, úteis ou práticas. Você encontrará o futuro onde quer que as pessoas mais estejam se divertindo.

Onde as pessoas mais estão se divertindo hoje? Provavelmente o melhor exemplo atual são as ferramentas de imagem que estão saindo da inteligência artificial. As pessoas estão simplesmente criando essas fotos malucas com software, e ninguém está usando oficialmente ainda. Só a energia que está sendo gasta para explorar essas ferramentas já é um sinal de que esse será um espaço muito interessante no futuro.

STEVEN JOHNSON, 54
Autor de 13 livros sobre ciência e inovação, Johnson é apresentador da séria Extra Life, da rede de televisão PBS, e do podcast American Innovations. O escritor tem pós-graduação em literatura inglesa pela Universidade Columbia e é professor da Universidade de Nova York

Sobre cigarras e formigas: os ciclos de commodities, por Ana Paulo Vescovi

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Abundância de recursos naturais é vantagem comparativa, mas pode ser desafio ao desenvolvimento

Ana Paulo Vescovi, Economista-chefe do Santander Brasil

Folha de São Paulo, 04/09/2022

Desde o segundo semestre de 2020, durante a pandemia, iniciou-se um novo ciclo de alta nos preços internacionais de alimentos, metais e energia, tal como nos de petróleo. Tais bens são conhecidos como commodities, pois estão na base das cadeias produtivas mundiais. Os períodos de alta de preços tendem, supostamente, a beneficiar o Brasil, por ser produtor e exportador destes bens. Porém, esta não é uma vantagem que se reverta em benefícios automáticos para a população. É preciso criar as condições capazes de converter ciclos de commodities em novas bases de crescimento sustentado no país.

O atual ciclo de commodities tem componentes inusitados.

No Brasil, pela primeira vez desde a introdução do Real, a alta de commodities esteve conjugada à desvalorização da nossa moeda frente ao dólar, algo contraintuitivo. Usualmente, o aumento no preço das exportações e as perspectivas positivas que se abrem para o país contribuem para ampliar os saldos na balança comercial e a entrada de divisas e, assim, valorizar a moeda local.

Ainda mais recentemente, após o início da guerra entre Rússia e Ucrânia, o reforço na valorização das commodities também esteve associado a perdas no comércio internacional brasileiro, pois os preços das principais importações brasileiras (fertilizantes, combustíveis, produtos industriais) subiram mais do que os preços dos bens que exportamos. Assim, contraditoriamente, também está associado ao aumento dos juros e do custo de financiamento da economia, não obstante ajudar temporariamente na melhoria do quadro das contas públicas.

Outra observação: desde que temos estatísticas, o Brasil tem aumentado a sua dependência em relação a commodities. Em 2021, estes produtos estiveram entre os dez principais itens na nossa pauta exportadora, respondendo por 52% do total das exportações. Em 1997, estes mesmos produtos respondiam por apenas um quarto da pauta. Ademais, não exportávamos petróleo e este agora responde por 11% das exportações. Isto não é um problema em si, mas apenas nos remete a pontos de atenção sobre o crescimento de longo prazo do país.

A evidência mundial sugere que a abundância de recursos naturais pode ser um desafio para o desenvolvimento. Isso porque ou são finitos ou porque encontram-se em setores com produtividade por trabalhador mais baixa.

Há países que tiveram a capacidade de, ao longo dos anos, reduzir a dependência destes bens e promover processos relativamente rápidos de aumento da renda média, diversificando suas economias para setores de mais alta produtividade, como indústria ou serviços. Outros mantiveram ou ampliaram esta dependência ao longo do tempo e não conseguiram reverter tais benefícios em aumento da renda média da população.

A dependência de commodities está associada, além de baixos níveis de produtividade do trabalho, ao crescimento lento e à alta frequência de choques negativos de produtividade. O problema central é a elevada oscilação de preços internacionais que leva, via de regra, a oscilações cambiais e macroeconômicas mais severas nestes países. A alternância de momentos com elevada entrada de recursos externos, e consequente apreciação das moedas locais, pode expulsar outros setores produtores de bens comercializáveis, com menor remuneração relativa, mas com trabalho mais qualificado e maior produtividade.

Analogamente, em momentos de escassez de recursos (na fase de baixa do ciclo), amplifica o endividamento público, eleva o custo do capital e contrai a atividade econômica, dificultando a expansão das atividades dos demais setores.

Construir a capacidade de suavizar os ciclos torna-se tão fundamental quanto permitir usos destes recursos para melhorar a governança pública, fomentar o aumento da escolarização, da inovação e da produtividade geral da economia. O problema é quando o dinheiro fácil dos períodos de expansão leva ao aumento do rent-seeking (pressão de grupos de interesse) e da corrupção, além do desestímulo à educação e à inovação, casos bastante conhecidos na literatura econômica.

Por exemplo, o ciclo de commodities anterior mais recente trouxe benefícios iniciais para o Brasil, com sinais de enriquecimento (o PIB per capta cresceu em média 3% ao ano. entre 2005 e 2014, com redução da pobreza), mas também o conduziu à pior crise econômica da sua história ao final, com perda significativa de renda.

Foi um ciclo duradouro, com o índice que mede preços internacionais saindo de valores próximos a 180 pontos em 2003 e voltando a este mesmo patamar em 2015. Isto depois de ter alcançado mais de 300 pontos entre 2007 e 2014. Ou seja, os preços praticamente dobraram no período, ainda que entremeado pela crise financeira internacional de 2008/2009. A volta do ciclo foi muito repentina, entre 2014 e 2015.

Como na Fábula de Esopo, a forma como um país se defende das armadilhas dos ciclos de commodities é poupando nas épocas de prosperidade para compensar as épocas restritivas. Isto é determinante para transformar a abundância de recursos naturais em desenvolvimento. Além de aprender a elucidar os ciclos, suavizar seus efeitos, e assim permitir maior estabilidade e previsibilidade, é igualmente importante atenuar a dependência das commodities e desenvolver instituições capazes de consolidar um ambiente de negócios transparente, descomplicado, promotor de ganhos persistentes de produtividade e competitividade das empresas.

Na atual conjuntura global, o Brasil encontra-se muito bem posicionado, pois possui uma matriz energética diversificada e limpa, importantes ativos ambientais com capacidade de capturar carbono e produzir alimentos, além de reservas minerais e metálicas. Cabe a nós, brasileiros, transformar esse legado natural em mais preservação, educação, tecnologia, conhecimento, equidade, coesão e estabilidade.

As cotas raciais e o Brasil: dez anos depois, por Silvio Almeida.

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Uma das mais bem-sucedidas políticas públicas da história do país e que mudou o Brasil

Silvio Almeida, Advogado, professor visitante da Universidade de Columbia, em Nova York, e presidente do Instituto Luiz Gama.

Folha de São Paulo, 02/09/2022.

No último dia 29 de agosto completaram-se dez anos da promulgação da lei 12.711/2012, a chamada “lei das cotas”, que institui a reserva de vagas para estudantes pobres, negros e indígenas em instituições federais de educação
superior e de ensino técnico de nível médio.

A lei de cotas raciais fez bem mais do que abrir as portas das universidades públicas para pessoas pobres, negras e indígenas. As batalhas por sua implementação revelaram, ao mesmo tempo, o poder transformador das políticas públicas, mas também o quanto este país é atravessado pelo racismo e pelo ódio de classes.

Para quem acompanha o cotidiano nas universidades, o impacto das cotas raciais foi nítido. E não me refiro apenas a mudanças quantitativas, mas também às transformações qualitativas deflagradas na educação superior do Brasil.

Uma das dimensões de reprodução do racismo se dá na cultura, o que significa que a discriminação contra pessoas negras e indígenas manifesta-se no rebaixamento ou no apagamento cultural dessas populações. A educação, portanto, ocupa um lugar central na continuidade dos processos discriminatórios, com destaque especial para o ensino superior, cuja função é oferecer à sociedade parâmetros do conhecimento científico e formar técnicos, professores e pesquisadores.

Isso faz da universidade um lugar de legitimação de certos grupos sociais cujos membros, ao passarem pelo ensino superior e por certas instituições de prestígio, são “autorizados” a participar de espaços de poder e decisão. Não seria exagero dizer que a universidade brasileira sempre foi um sistema de validação racial e de classe.

Se as cotas não eliminaram essa lógica, certamente conseguiram subvertê-la. Ficou mais difícil com as cotas considerar natural a ideia de que ser médico é “ser branco”. Ficou mais difícil considerar natural que a filha da empregada seja herdeira da mesma profissão da mãe, já que se abriu a possibilidade desta mesma filha ser médica, advogada ou engenheira.

Por certo que o deslocamento do imaginário social provocado pelas cotas raciais gerou reações que, como dito antes, mostraram a pior face do Brasil. Tornou-se evidente que parte da sociedade se recusa a aceitar que pobres, negros e indígenas possam fazer mais do que servir e limpar.

Dez anos depois, ao contrário do que diziam alguns, a política de cotas não destruiu a universidade e nem “humilhou os negros cotistas” (este argumento é o mais interessante, pois é uma mistura passivo-agressiva de racismo e condescendência). O que vem destruindo a universidade é outra coisa.

No caso, as políticas neoliberais de cortes orçamentário na educação e em ciência e tecnologia. Vale ressaltar que a demolição da universidade brasileira tem sido arquitetada por pessoas brancas que, em sua grande maioria, estudaram em universidades públicas ou que tiveram bolsa paga pelo governo para estudar no exterior.

A verdade é que a política de cotas raciais é uma das mais bem-sucedidas da história do Brasil. Dadas as condições específicas da formação social brasileira, as cotas tiveram um impacto estrutural expressivo, pois atacou o racismo, que é um dos pilares do atraso social e econômico brasileiro.

Para os negacionistas que acham que não existem dados que possam comprovar a importância e o sucesso da política de cotas raciais, deixo como indicação o relatório de pesquisa sobre a implementação da política de cotas raciais nas Universidades Federais de autoria da Defensoria Pública da União e da ABPN (Associação Brasileira de Pesquisadores Negros).

O relatório, lançado no aniversário da política de cotas raciais, revela a extrema relevância das cotas raciais para o aperfeiçoamento da educação brasileira. Com informações colhidas das 69 universidades federais existentes no Brasil, o relatório mostra os avanços e os problemas que precisam ser corrigidos, dentro os quais os relativos ao controle e prevenção de fraudes; à fiscalização e monitoramento; às políticas de permanência dos estudantes; e à ampliação das cotas para os programas de pós-graduação.

Dez anos deveriam ter nos ensinado que as políticas de ação afirmativa não se referem apenas aos grupos discriminados. As cotas raciais referem-se a algo que muito aparece em discursos, mas que muito poucos querem verdadeiramente para o Brasil: democracia.

Elas estão à espreita, por Juliano Spyer.

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Mulheres evangélicas que rejeitam Lula e Bolsonaro esperam um aceno da senadora Simone Tebet

Juliano Spyer, Antropólogo, pesquisador do Cecons/UFRJ, autor de Povo de Deus (Geração 2020) e criador do Observatório Evangélico.

Folha de São Paulo, 01;09/2022

Mais de 30 milhões de evangélicos no Brasil são mulheres. E, para muitas delas, Lula e Bolsonaro disputam o posto do candidato “menos pior”. Por isso, elas estão à espreita por alternativas.

A senadora Simone Tebet pode ser esta alternativa? Sim, pode. Há um caminho narrativo para ela se aproximar das eleitoras evangélicas.

Elas rejeitam Bolsonaro porque ele é o homem agressivo que só é tolerado por ser casado com uma mulher evangélica. Elas rejeitam Lula porque ele é visto hoje como inimigo da família tradicional.

A senadora de Mato Grosso do Sul foi a surpresa positiva para os eleitores indecisos monitorados pelo Instituto Datafolha durante o debate da Band. Qual é, então, a possibilidade que a senadora tem de dialogar com mulheres conservadoras insatisfeitas com a postura irascível do presidente?

Tebet fraturou a imagem de Bolsonaro como defensor da família quando o denunciou por espalhar desinformação sobre a pandemia e responsabilizou o governo por tentar ganhar dinheiro ilicitamente com a compra de vacinas. Mas esse encanto se desfez para muitas evangélicas quando a senadora se apresentou como feminista.

Há um fosso de desentendimento separando mulheres, especialmente as de classe média e alta, e as evangélicas pobres. E o termo “feminismo” é onde esse curto-circuito conceitual acontece.

Feministas das camadas médias e altas percebem as evangélicas como mulheres submissas promotoras do patriarcado.

Para mulheres com mais recursos, a resposta para situações de abuso masculino deve ser a ruptura do relacionamento, mas as igrejas incentivam as fiéis a “perseverar na fé” para preservar o casamento.

É um assunto polêmico. Essa orientação das igrejas mantém a vítima exposta à violência física ou psicológica. Ao mesmo tempo —e esse é o X do problema—, o ambiente das igrejas também fortalece a posição da mulher na família e na sociedade.

A mulher pobre evangélica ganha poder quando o companheiro sai do bar e deixa de gastar dinheiro com bebida, festas e relacionamentos paralelos, e passa a habitar o espaço vigiado das igrejas. A família economiza dinheiro, que é investido na casa, em educação e em atividades de lazer.

Quando a senadora Simone Tebet se apresentou como feminista, ela se colocou na mesma posição que outros candidatos de esquerda ocupam: a de quem é contrário aos valores familiares por defender o divórcio e a legalização do aborto.

O que uma mulher que pretende combater a polarização e unir o país pode fazer para evitar esse campo minado?

Participei recentemente de uma pesquisa privada para examinar de quais conquistas o brasileiro popular se orgulha.

A resposta dos homens foi em geral desinteressada, mas as mulheres ecoaram a percepção de que elas se orgulham delas mesmas e de outras mulheres de suas famílias.

Em um mundo de tantas instabilidades e perigos, mulheres de baixa renda correm atrás, cuidam de seus familiares, se sacrificam, resistem, estudam, empreendem, e percebem que melhoram de vida por causa desse esforço.

“Guerreira” é um termo percebido positivamente em todos os segmentos da sociedade. Vale para evangélicas e para as que não são evangélicas. É um sinônimo de “feminista” que não evoca o desentendimento entre mulheres que vivem em mundos socioeconômicos tão diferentes.

É ainda uma imagem que conversa e evoca o respeito de muitos homens das camadas populares, que se sentem mais
devedores de suas mães presentes do que de seus pais ausentes.

Quando aconteceu a chacina do Carandiru em 1992, a fronteira do presídio ficou marcada pelos cães policiais de um lado e por mães, filhas, irmãs e companheiras dos presos do outro. Essa cena, que pode ser revista pela internet, sintetiza a imagem ao mesmo tempo forte e familiar da “mulher guerreira” no mundo popular. E foi também ela, a guerreira, que cativou a imaginação da audiência do debate neste último domingo.

Novos confrontos

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O mundo contemporâneo está vivendo momentos de confrontos de novas hegemonias geopolíticas, novos atores estão surgindo e os antigos estão perdendo espaço no cenário internacional, com isso, percebemos um verdadeiro xadrez estratégico, exigindo novas posturas políticas e comportamentos econômicos, buscando novos caminhos, novas oportunidades e instrumentos alternativos de sobrevivência, garantindo autonomia e soberania.

Neste ambiente, percebemos que nesta sociedade centrada no conhecimento, na tecnologia e nas informações, as nações que não conseguirem compreender os rumos da contemporaneidade, tendem a perder espaços relevantes para outros países, gerando conflitos internos e inúmeros desequilíbrios, motivando desajustes produtivos, degradando a economia, desemprego crescente, aumento da exclusão social, da desesperança e dos desequilíbrios emocionais.

A economia internacional vive momentos de incertezas crescentes, conflitos militares que dispendem bilhões de dólares, com desajustes nos preços, onde a inflação corrói a renda dos trabalhadores, reduzindo o poder de compra da população, gerando uma insatisfação nos cidadãos e preocupações emocionais, escasseando as esperanças e aumentando as preocupações materiais.

No âmbito das nações, percebemos o aumento das hostilidades e das rivalidades, gerando preocupações de conflitos degradantes com potencial de guerras nucleares, cujos impactos são imprecisos, indeterminados e preocupantes, pois podem levar a sociedade a uma destruição generalizada. Neste cenário, saímos de uma pandemia que ceifou milhões de indivíduos em todas as regiões do globo e estamos caminhando para um momento de degradação militar, buscando a satisfação de seus interesses imediatos, mesquinhos e individualistas, sem se preocuparem com o futuro da humanidade.

Vivemos momentos de provocações crescentes entre os maiores atores econômicos, Estados Unidos e China, motivados por seus interesses geopolíticos, geoestratégicos, seus ganhos econômicos e financeiros e a busca crescente pela hegemonia global, impactando a comunidade internacional, angariando parcerias estratégicas, alimentando desequilíbrios culturais e interesses xenofóbicos que incentivam as violências, ódios e ressentimentos extremados.

Neste cenário, percebemos que os grandes confrontos internacionais do século XXI tendem a ser travados no Pacífico, que se transformou no centro da economia internacional, responsável pelos novos espaços de acumulação na contemporaneidade, região que ganhou relevância nas últimas décadas, com forte crescimento econômico, imensos investimentos na formação de capital humano, melhoria da qualidade de vida da sua população, com isso, o oriente se transformou no grande responsável pelas novidades na sociedade mundial, incluindo milhões de indivíduos no mercado de consumo e reduzindo a pobreza e a indignidade humanas, gerando novos espaços de esperanças.

Os modelos econômicos adotados nesta região devem ser vistos com cautela e parcimônia, algumas medidas devem ser estimuladas e implementadas na sociedade brasileira, tais como os fortes investimentos em educação, os elevados dispêndios em ciência e tecnologia, as parcerias geoestratégicas entre os setores governamentais e dos setores produtivos, garantindo recursos abundantes e taxas de juros reduzidas, proteção centrada por metas rigorosas e factíveis, além da busca de novos espaços no comércio internacional, aumentando a produtividade e elevando a participação das organizações nacionais e garantindo a acumulação de recursos em moedas conversíveis.

Neste momento de intensos confrontos militares precisamos construir agendas mais pragmáticas, deixando de lado políticas centradas em ideologias ultrapassadas, construindo consensos políticos e aprendendo com as nações desenvolvidas que, hipocritamente, clamam por mais competição econômica e redução do intervencionismo estatal na economia, mas ao mesmo tempo, adotam políticas protecionistas e intervencionistas, injetando trilhões de dólares nas suas estruturas produtivas, aumentando os subsídios governamentais para proteger suas corporações e usam seu poder militar para garantir seus interesses imediatos. Como diz o conhecido ditado popular: “…faça o que eu falo mas, não o que eu faço.”

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 31/08/2022.

Dos escombros neoliberais, nasce a ultradireita, por Ana C. Evangelista.

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Na terra arrasada pós-2008, emergiu classe média ultraconservadora – insuflada para se contrapor à solidariedade social e à igualdade. Diferentes estudiosos já demonstram como o vigor da “nova direita” emerge das ruínas do mercado sem limites

Por Ana Carolina Evangelista, Revista Piauí – Disponível Outras Mídias – 29/08/2022

Em 2018 já nos perguntávamos como as forças de extrema direita estavam chegando ao poder pelas vias eleitorais. O que acontecia naquele momento e o que segue acontecendo, não apenas no Brasil, para que isso ocorra? A mera viabilidade eleitoral do então candidato Jair Bolsonaro era algo inserido numa lógica muito mais estruturante e sistêmica do que apenas uma leitura tradicional da nossa realidade pudesse explicar.

Em 2018 já nos perguntávamos como as forças de extrema direita estavam chegando ao poder pelas vias eleitorais. O que acontecia naquele momento e o que segue acontecendo, não apenas no Brasil, para que isso ocorra? A mera viabilidade eleitoral do então candidato Jair Bolsonaro era algo inserido numa lógica muito mais estruturante e sistêmica do que apenas uma leitura tradicional da nossa realidade pudesse explicar.

Se autores como Pierre Rosanvallon, na França, ou André Singer, aqui no Brasil, falam em “desdemocratização” para tratar do avanço do populismo de direita combinado com autoritarismo, Brown se refere ao que chama de “política antidemocrática”, um tipo de política que emerge das “ruínas do neoliberalismo”, para usar a feliz expressão convertida num dos seus principais livros.

O ponto central do seu raciocínio é o de que o triunfo exacerbado do neoliberalismo resultou na deformação da própria utopia neoliberal. No momento em que ele triunfa e produz seus maiores efeitos, ele dá errado. Dos escombros – das ruínas –, portanto, dessa sociedade que o projeto neoliberal não conseguiu desmantelar por completo surgem as atuais deformações contra o próprio projeto, e que estão na base de governos antidemocráticos e de uma política antidemocrática de forma mais ampla.

Como lembra Brown, o neoliberalismo buscava habilitar, ao mesmo tempo, o mercado e a moral para governar e disciplinar indivíduos, maximizando a liberdade. Nas suas palavras, “indivíduos e famílias seriam pacificados politicamente pelo mercado e pela moral, e subentendidos por um Estado autônomo e com autoridade, mas despolitizado”. Vivemos há décadas sob essa lógica em muitos países.

No Brasil, o debate se concentrou em grande parte sobre as medidas econômicas resumidas no chamado Consenso de Washington, que incluíam o receituário de recomendações aos países da América Latina: desregulamentações, reformas fiscais restritivas, abertura comercial e redução do Estado. Mas vão além disso e dizem respeito também a princípios, práticas, políticas e formas de governar – era uma ordem, repita-se, de natureza financeira e também moral. Não era, ou é, apenas uma política, mas uma ética, nos lembra Brown. Passando por várias dimensões da vida, não apenas a econômica.

Como definiu um dos expoentes do neoliberalismo, o economista e filósofo austríaco Friedrich Hayek, a partir da lógica de mercado convém moldar o Estado, a moral e a lei. Onde havia solidariedade social e igualdade, famílias passam a ser responsáveis pela educação moral e social dos indivíduos. Nesse contexto, a moralidade tradicional tem um lugar central. Mercados e moral estão enraizados numa ontologia comum – um depende do outro.

Estamos falando de um capitalismo exacerbado, ou desenfreado, desregulado, com liberdade e autonomia total dos mercados – para muitos, essa autonomia em tal nível foi a responsável pela crise financeira de 2008. Tudo isso conjugado com a promoção de valores familiares, em especial valores cristãos, ocidentais e brancos. Do auge da Era Reagan-Thatcher, nos anos 1980, até o fim do século XX e início do século XXI, viveu-se uma onda devastadora de favorecimento do capital, desregulamentação do capital financeiro, repressão do trabalho, demonização do estado de bem-estar social, ataque às igualdades e maximização das liberdades individuais.

Esse projeto – econômico, social e político – não conseguiu, nos termos da análise de Brown, desmantelar por completo o que pretendia. No lugar do “sonho neoliberal”, portanto, sobram escombros e ruínas. Surgem daí as atuais deformações que estão na base de uma espécie de sustentação ampla de governos e práticas antidemocráticas. De onde veio isso? Surgiu de repente? Para onde estávamos olhando antes de 2018?

Observando a realidade norte-americana, a autora vai dizer que, por dentro de uma democracia liberal capitalista, emerge algo que deveria lhe parecer oposto: nacionalismo, conservadorismo cristão, racismo e masculinismo branco. No caso brasileiro, muitos desses elementos são estruturantes da constituição de nossa democracia inacabada de longa data.

A nova direita se assentaria aí, na reação às ruínas que todo esse projeto gera, e segue contra ele mesmo. As respostas, portanto, viriam em forma de restrição do alcance do poder político democrático, expansão do alcance da moralidade tradicional, um programa político-moral que visa proteger as hierarquias tradicionais e o mercado,
negando a própria ideia do social e, por fim, doses importantes de niilismo e ressentimento.

Como medidas e políticas defendidas pelo neoliberalismo não entregaram o que prometeram, restava encontrar culpados. Nas palavras de Brown: “Isso significava gritar contra o Estado Islâmico, contra os imigrantes ilegais, contra os mitos acerca das ações afirmativas e, acima de tudo, culpar o governo e o estado social pela catástrofe econômica, sorrateiramente transferindo a culpa de Wall Street para Washington, porque o governo limpava a lambança resgatando bancos, enquanto deixava as pessoas comuns na mão.”

Na terra arrasada pós-2008 vimos emergir uma massa de descontentes, fundamentalmente de classe média, branca e cristã. Um vasto grupo antes em ascensão perde renda, aposentadorias, propriedade privada e emprego diante de uma economia alicerçada no capitalismo financeiro, rentista, mas em ruínas. O castelo de cartas desmoronava, enquanto essa mesma massa de descontentes era bombardeada por mensagens, comentários e análises de direita – nas tevês e nas redes sociais.

Brown sintetiza o problema recorrendo ao binômio “o bispo e o banqueiro”: de um lado, o “bispo” (valores familiares e morais); de outro, o “banqueiro” (mercado, autonomia). Nem um nem outro davam conta de apaziguar tamanho descontentamento e precarização das condições materiais. Restava, insista-se, culpar migrantes, grupos com pouca representação econômica, social e política ou beneficiários de políticas de inclusão. A reação ao neoliberalismo ganhou contorno “rebelde, populista e repulsivo”, segundo suas palavras. Emergiu o novo populismo de extrema direita. Ressentido, rancoroso, raivoso e vingativo.

Uma das características desse populismo de direita, ou dessa política antidemocrática, é a política permanente de vingança: atacar aqueles acusados de destronar as estruturas que prevaleciam – as feministas, os multiculturalistas, os globalistas e os ambientalistas. Qualquer semelhança com o governo de Jair Bolsonaro não será mera coincidência. Outra característica é um populismo de resgate do passado, um passado idílico para alguns, onde existiam ordem, controle, protagonismo. Ou, nas palavras de Brown, “um passado mítico de famílias felizes, íntegras e heterossexuais, quando mulheres e minorias raciais sabiam de seus lugares, quando vizinhanças eram ordeiras, seguras e homogêneas, e a heroína era problema dos negros, o terrorismo não estava em solo pátrio e quando a cristandade e branquitude hegemônicas constituíam a identidade, o poder e o orgulho manifestos da nação e do Ocidente”.

Líderes populistas de direita, a partir dos anos 2010, se tornariam os defensores do que sobrou dessas bases e prometeriam restaurá-las. Ou o que dizer de slogans e ideias-forças típicas desses líderes, como “Make America Great Again” (EUA), “França para os Franceses” (França), “Take Back Control” (Brexit) e “Nossa cultura, nosso lar, nossa Alemanha” (Alemanha). Como bem sintetiza Marina Lacerda, cientista política brasileira e estudiosa do trabalho de Brown, “se os homens brancos não podem ser donos da democracia, não haverá democracia. Se os homens brancos não podem governar o planeta, não haverá planeta”. Síntese que facilmente encontra eco na realidade brasileira.

O que explicaria a adesão das camadas populares a esse projeto? Como Brown sustenta, e Marina sintetiza, para aqueles que se sentem “deixados para trás”, os valores tradicionais forneceriam proteção contra os deslocamentos e perdas que décadas de neoliberalismo geraram para as classes trabalhadoras e médias. O que a socióloga Christina Vital chama de “retórica da perda” e a cientista política Flávia Biroli de “moralização das inseguranças”. Para Brown, por exemplo, os evangélicos se identificaram profundamente com Donald Trump devido à experiência compartilhada de serem desprezados pelas elites culturais e atacados por forças mundanas, particularmente aquelas vindas da academia. É uma associação direta entre evangelismo e ressentimento, entre o evangelismo e o anti-intelectualismo, no caso norte-americano.

A promessa de recuperar um mundo que não existe mais – mas que sempre existiu para uma parcela da população – cria uma base extraordinária para o autoritarismo: um mundo estável, seguro, homogêneo, organizado por valores cristãos e patriarcais. Como Trump, Bolsonaro aproveitou muito bem esses anseios em meio a ruínas. Trump não foi reeleito, mas o trumpismo não foi derrotado após a eleição de Joe Biden. E no Brasil, como será?

Gasto público, tetos e pisos, por Marcos Mendes.

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Quem manda na política está mais interessado em pisos do que em teto de gastos

Marcos Mendes, Pesquisador associado do Insper, é autor de ‘Por que É Difícil Fazer Reformas Econômicas no Brasil?’

Folha de São Paulo, 27/08/2022.

Há um debate sobre o que fazer com o surrado teto de gastos no próximo governo. O Ministério da Economia fala em uma regra mais flexível que a atual, que permite aumentos reais de gastos sempre que a dívida pública estiver baixa. Há quem fale em uma suspensão temporária, para dar tempo de desenhar uma nova regra.

É uma válida tentativa de evitar o pior, que seria a pura e simples revogação, com o retorno ao regime fiscal anterior ao teto, de crescimento real do gasto de 6% ao ano. O problema, contudo, é mais profundo. Nenhuma regra, por mais engenhosa que seja, resistirá aos incentivos políticos criados nos últimos anos.

Gastos públicos decorrem de decisões políticas. Regras fiscais, como o teto, só funcionam quando uma parte majoritária das forças políticas reconhece os benefícios do equilíbrio fiscal para a sociedade e decide limitar as habituais pressões sobre o Orçamento.

Logo após o impeachment de Dilma, em meio a uma das maiores recessões da história, acompanhada de descontrole fiscal, houve a formação dessa maioria, frente ao temor da continuação da espiral recessiva, o que permitiu a aprovação do teto.

A maioria favorável ao equilíbrio fiscal precisaria ter sido mantida por tempo suficiente para que se aprovassem reformas fiscais. A redução da rigidez e da inércia do crescimento dos gastos viabilizaria o cumprimento do teto. Não foi o que ocorreu. A maioria dissolveu-se.

Criou-se nos últimos anos um modelo em que o Legislativo ganhou poder para gastar mais sem arcar com as consequências dos seus atos, como a inflação e os juros altos, cujo desgaste vai para a conta do Executivo. Poder sem responsabilidade não leva a bons resultados.

A musculatura do Legislativo não é exibida apenas nas anabolizadas emendas obrigatórias e de relator ou nos bilionários financiamentos partidário e de campanhas. Está, também, na facilidade com que rejeita medidas provisórias, derruba vetos, aprova decretos legislativos anulando decisões administrativas do Executivo.

Aparece, ainda, na sem-cerimônia com que seus dirigentes atropelam o regimento interno do Senado e da Câmara, votando qualquer coisa por celular, dispensando a análise das comissões, mudando regras no momento das votações.

Fixam a agenda de votações sem negociar com o Executivo. Aprovam novos gastos obrigatórios e só depois discutem se há espaço no Orçamento. Ampliam seus poderes sobre a gestão do Orçamento a cada Lei de Diretrizes Orçamentárias.

O processo foi catalisado, nos últimos meses, pelo esforço de reeleição do presidente da República, que passou a ser sócio e estimular o vale tudo no Legislativo. Aprova-se, a toque de caixa, dinheiro para programas de alto impacto eleitoral e a distribuição de dinheiro para quem grita mais alto.

Decisões recentes já deram uma casquinha do Orçamento para: agentes comunitários de saúde, enfermeiros, caminhoneiros, taxistas, portadores de deficiência, usineiros, produtores culturais, hotéis, igrejas, universidades privadas, portos, empresas de transporte coletivo e de carga, produtores de gasodutos, donos de pequenas centrais hidrelétricas, grandes e pequenas empresas devedoras do fisco, militares, microempreendedores, pequenas empresas, empresas de comunicação, construção civil, call centers. Na indústria ganharam os setores calçadista, de têxteis, confecções e vestuário, couros, máquinas e equipamentos, tecnologia de informação e comunicação, circuitos integrados e semicondutores.

Nada indica que a lista pare por aí. Há, por exemplo, 88 projetos em tramitação propondo a fixação ou aumento de pisos salariais de mais de 30 profissões, com impacto sobre as despesas dos três níveis de governo. Tem de tudo: conselheiros tutelares, guardas municipais, contadores públicos, médicos. Se foi dado para enfermeiros, professores e agentes de saúde, por que não aos demais?

Com uma economia política tão deteriorada, o máximo que um teto de gastos pode almejar é segurar um pouco os exageros no curto prazo, sendo inevitavelmente furado de tempos em tempos. Não importa quão engenhoso e flexível seja seu desenho.

Colapsismo chega às análises sobre a economia da China, por Tatiana Prazeres.

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Não é a primeira vez que se decreta o colapso de Pequim nem será a última

Tatiana Prazeres, Executiva na área de relações internacionais e comércio exterior, trabalhou na China entre 2019 e 2021.

Folha de São Paulo, 27/08/2022.

Duas patologias correlatas costumam afetar análises sobre a China: o triunfalismo e o colapsismo. O primeiro é diagnosticado entre os que veem como inexorável e inabalável a ascensão do Império do Meio, destinado a reocupar o centro do mundo.

Os desafios atuais da economia chinesa, no entanto, favorecem o segundo viés analítico – o colapsismo. Para começar, o setor imobiliário, que responde por cerca de 25% do PIB do país, enfrenta problemas graves. As vendas caíram mais de 30% no primeiro semestre, mas as construtoras dependem de novos empreendimentos para concluir os que estão em curso. Diante do temor de que obras sejam paralisadas, comprador aderiram a “greves de pagamento”. E, sem receber as prestações, as construtoras não concluem as obras.

Profecia que se autorrealiza, num setor altamente alavancado e endividado. Analistas lembram, não sem razão, do risco de que a crise imobiliária se espalhe para o setor financeiro e contagie o conjunto da economia.

Além disso, há custos crescentes na manutenção da política de Covid zero no país. Em 2020, a China foi a primeira a entrar e a primeira a sair da fase inicial da pandemia. A economia se recuperou em V. Dois anos depois, as autoridades seguem procurando uma porta de saída para a estratégia que, no início, efetivamente funcionou. Lockdowns em Shenzen e Xangai, neste ano, custaram caro para a atividade econômica.

Para piorar, secas sem precedentes estão, hoje, provocando racionamentos de energia. Ainda, o setor de tecnologia sente os efeitos de regulações restritivas recentes. Para completar, aumentam as tensões geopolíticas.

Apesar da meta de crescimento anunciada de 5,5% para 2022, o PIB chinês ficou praticamente estagnado no segundo trimestre. O FMI estima que a expansão será de 3,3%, o que, excluído 2020, seria a menor em mais de quatro décadas.

Nesse cenário, não surpreende que o colapsismo esteja em alta. De todos os cantos, brotam análises que pintam um quadro de derrocada da economia chinesa. E que profetizam que desta vez é para valer. A bolha que nunca estoura —título de um livro sobre a China do economista-chefe da Bloomberg— agora estouraria.

Ocorre que tanto o triunfalismo quanto o colapsismo sofrem de viés de confirmação. Adeptos de ambas as práticas apenas valorizam o que reforça suas teses. Costumam analisar a realidade à luz do que gostariam que acontecesse.

Para os colapsistas, a atual fotografia econômica da China corrobora a visão apocalíptica.

Apesar da gravidade dos problemas, há exagero entre aqueles que enxergam tão somente fragilidades e ignoram tanto a resiliência da economia chinesa quanto o fato de que as autoridades detêm mais ferramentas e menos restrições para corrigir rumos econômicos do que em outras partes. Não é garantido que irão acertar —mas seguramente têm mais instrumentos para isso.

Em 2016, a conhecida Foreign Affairs trouxe um artigo intitulado “O fim da ascensão da China”. Em 2021, a mesma revista trouxe outro artigo exatamente com o mesmo título. No Twitter, um observador perguntou, ironicamente, se a Foreign Affairs estava sob algum tipo de obrigação contratual de publicar periodicamente um texto antecipando a derrocada chinesa.

Um segundo logo postou a capa de outra renomada publicação, a Foreign Policy, cujo título vaticinava, em 1995, “O colapso iminente da China”. O PIB per capita chinês passou de US$ 1.520 para US$ 11,2 mil desde então.

Ambas as patologias analíticas são oportunistas, teimosas e danosas. Longe dos excessos dos extremos, a China pode, sim, estar embarcando numa trajetória de crescimento mais lento —o que não significa que sua economia esteja prestes a esfarelar. Não é a primeira vez que se decreta o colapso chinês. Não será a última.

Byung-Chul Han: Infocracia e a caverna digital.

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Mundo online forja novo totalitarismo, aponta o filósofo em recente livro. Esfera pública é pervertida: emerge comunicação sem comunidade. Verdade vira borrão e, através de algoritmos e autoexploração, desejos coletivos são reduzidos ao eu

Por Fernando D’Addario, no Pagina 12 | Tradução: Roney Rodrigues

Outras Palavras, 30/05/2022

Byung-Chul Han é um operador saudável do quadro social e comunicação que expõe seu trabalho: seus livros são breves, rápidos, transparentes. Cada um deles propõe apenas um punhado de conceitos, facilmente reduzidos a uma frase-slogan que flui através das redes sociais e funciona como um “coringa” para reforçar opiniões de diversas índoles. Sua grande contribuição ao pensamento nas últimas décadas certamente foi sua análise do indivíduo autoexplorado, o novo sujeito histórico do capitalismo. Mas, além dessa ideia-força, o principal mérito do filósofo coreano é ter captado a “atmosfera” dessa época para, dessa forma, traduzi-la em textos nos quais um cidadão comum com certa sensibilidade – política, cultural, trabalhista – se sente refletido.

Em seu último livro, Infocracia [2022], ainda sem tradução no Brasil, Han explora como o “regime de informação” substituiu o “regime disciplinar”. Da exploração de corpos e energias – tão bem analisadas por Michel Foucault em sua época — passamos à exploração de dados. Hoje o signo dos detentores do poder não está ligado à posse dos meios de produção, mas ao acesso à informação, que é utilizada para a vigilância psicopolítica e a previsão do comportamento individual.

Em sua exposição genealógica, Han descreve o declínio desse modelo de sociedade dissecado pelo autor de Vigiar e Punir, e encontra pontes com outros autores do século XX como Hannah Arendt, de quem resgata certas abordagens do totalitarismo. Han diz que hoje estamos submetidos a um novo tipo de totalitarismo. O vetor não é mais o relato ideológico, mas a operação algorítmica que a sustenta.

O filósofo circunda os temas que já havia exposto em outras obras (a compulsão à performance que descreveu em A sociedade do cansaço; o surgimento de um habitante voluntário do panóptico digital, encarnado em A sociedade da transparência; o comodismo frente ao imperativo do like como analgésico do tempo presente, abordado em A sociedade paliativa), mas centra-se na mudança estrutural da esfera pública, atravessada pela indignação digital, que fragiliza o que outrora entendíamos como democracia.

Han argumenta que nesta sociedade marcada pelo dataísmo, o que está ocorrendo é uma “crise da verdade”. Ele escreve: “Esse novo niilismo não significa que a mentira se faça passar como verdade ou que a verdade seja difamada como mentira. Ao contrário, mina a distinção entre verdade e mentira”. Donald Trump, um político que opera como se ele próprio fosse um algoritmo e só se orienta pelas reações do público expressas nas redes sociais, não é, nesse sentido, o mentiroso clássico que deturpa deliberadamente as coisas. “Ao contrário, [ele] é indiferente à verdade dos fatos”, diz o filósofo. Essa indiferenciação, continua Han, representa um risco maior para a verdade do que aquele instaurado pelo mentiroso.

O pensador coreano diferencia os tempos atuais daqueles não muito distantes quando dominava a televisão. Ele define a TV como um “reino das aparências”, mas não como uma “fábrica de fake news”. Destaca que a telecracia “degradava as campanhas eleitorais a ponto de transformá-las em guerras de encenações midiática. O discurso foi substituído por show para o público”. Na infocracia, por outro lado, as disputas políticas não degeneram em espetáculo, mas em “guerra de informação”.

Porque fake news também é, antes de tudo, informação. E sabe-se que “a informação se espalha mais do que a verdade”. Por isso, conclui com o pessimismo que lhe é próprio: “A tentativa de combater a infodemia com a verdade está, portanto, fadada ao fracasso. Ela é resistente à verdade”.

Define a situação atual com uma frase-slogan que o autor de Não-coisas tanto gosta: “A verdade se desintegra em poeira informativa transportada pelo vento digital”.

Mas como essa vítima é varrida pelo vento digital? Como se comporta? “O sujeito do regime de informação não é dócil nem obediente. Pelo contrário, acredita-se livre, autêntico e criativo. Ele se produz e realiza a si mesmo”. Esse sujeito – que no sistema atual também se realiza como objeto – é simultaneamente vítima e vitimizador. Em ambos os casos a arma utilizada é o smartphone.

Por meio dessa ferramenta, a mídia digital pôs fim à era do homem-massa. “O habitante do mundo digitalizado não é mais aquele ‘ninguém’. Mas é alguém com um perfil, enquanto que na era das massas só os criminosos tinham perfil. O regime de informação se apodera dos indivíduos elaborando perfis comportamentais”.

O grande feito da infocracia é ter induzido em seus consumidores/produtores uma falsa percepção de liberdade. O paradoxo é que “as pessoas estão presas à informação. Elas mesmo se colocam grilhões aos comunicar e produzir informações. A prisão digital é transparente”. É precisamente esse sentimento de liberdade que garante a dominação.

Por fim, atualiza o mito platônico: “Hoje vivemos aprisionados em uma caverna digital mesmo acreditando que estamos livres”.

É uma revolução nos comportamentos que exclui qualquer possibilidade de revolução política. Diz Han: “Na prisão digital como uma zona de bem-estar inteligente não há resistência ao regime prevalecente. O like exclui qualquer revolução”>

Em tempos de microtargeting eleitoral, porém, ocorre um fenômeno paradoxal: a tribalização da rede. Interesses segmentados que se expressam por meio de discursos previamente elaborados e que aos poucos vão corroendo o que Jürgen Habermas definiu teoricamente como “ação comunicativa”. “A comunicação digital como comunicação sem comunidade destrói a política baseada na escuta”, escreve Han, enfatizando que no antigo processo discursivo os argumentos poderiam ser “melhorados”, ao passo que agora, guiados por operações algorítmicas, dificilmente são “otimizados” em função do resultado que se almeja.

É a direita que a mais capitaliza esse fenômeno de tribalização da rede, assegura o filósofo, porque nessa franja a demanda por “identidade do mundo vital” é maior. Em uma sociedade desintegrada em “irreconciliáveis identidades sem alteridade”, a representação, que por definição gera uma distância, é substituída pela participação direta. “A democracia digital em tempo real é uma democracia presencial”, que ignora sua esfera natural de representação: o espaço público. Isso leva a uma “ditadura tribalista de opinião e identidade”.

O sujeito autoexplorado da sociedade do cansaço, o habitante voluntário da sociedade transparente, o indivíduo que se entrega à sociedade paliativa, também se submete, conclui Han, à fórmula do regime de informação: “comunicamos até morrer”.

Desafios futuros

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Estamos caminhando para momentos de grandes decisões e desafios que tendem a definir a sociedade nos próximos anos, neste momento de incertezas e de instabilidades crescentes, precisamos ter seriedade para a tomada de decisões estratégicas que se aproximam, pavimentando caminhos mais suaves numa sociedade centrada em turbulências crescentes.

A sociedade brasileira é descrita internacionalmente como um dos maiores produtores de alimentos do mundo, somos campeões em variados produtos que contribuem para alimentar parte considerável da comunidade global e percebemos, com espanto e preocupação, que voltamos para o mapa da fome, onde mais de 125 milhões de brasileiros apresentam insegurança alimentar, gerando preocupações políticas e desequilíbrios econômicos e sociais.

A sociedade brasileira precisa encarar de frente o crescimento da desigualdade econômica e da exclusão social que crescem de forma acelerada, essa desigualdade cresceu no período pós-pandemia e exige do Estado políticas públicas efetivas e imediatas, evitando a naturalização desta situação de degradação que presenciamos cotidianamente e nos transformam em indivíduos frios, distantes e indiferentes diante das dores dos outros.

A sociedade brasileira precisa construir instrumentos de preservação do meio ambiente, sua degradação está presente no cotidiano de todos os indivíduos, as chuvas estão se escasseando, as tempestades estão mais intensas, as enchentes estão mais violentas, as geleiras estão secando e as queimadas estão em ascensão, gerando preocupações com as gerações futuras, preocupações crescentes com os setores produtivos e custos de insumos mais elevados que impactam sobre todos os grupos da sociedade e afetando mais fortemente os mais vulneráveis e fragilizados.

A sociedade brasileira precisa reestruturar o Estado Nacional, retomando seu papel proeminente de planejador e fomentador dos setores produtivos, estimulando os investimentos de longo prazo, fomentando a geração de mão de obra capacitada para superar os grandes desafios que vislumbramos num mundo centrado nas incertezas e nas turbulências. Neste momento, precisamos construir ou reconstruir laços sólidos entre Estado e Mercado, investindo em ciência e tecnologia, criando vantagens competitivas e abandonando pensamentos simplificados que contribuem para aprofundar a pobreza e a degradação social.

A sociedade brasileira precisa combater arduamente os desvios de recursos que atravancam o crescimento econômico e o tão sonhado desenvolvimento social, para isso, faz-se necessário que os agentes governamentais, e toda a coletividade, assumam o papel de fiscalizar, regulamentar e reconstruir os instrumentos institucionais de combate a corrupção que perpassa a sociedade, deixando de lado políticas proselitistas, protecionismo de grupos políticos e setores econômicos que se escondem sob uma legislação frouxa e garante a impunidade dos setores mais abastados da sociedade. Políticas efetivas de combate a corrupção contribuem para a retirada das máscaras que escondem interesses imediatos, de indivíduos e de corporações que contribuem para que vivamos numa sociedade que caminha rapidamente para a degradação e convulsões sociais, econômicas e políticas.

A sociedade brasileira precisa acordar para os desafios educacionais do século XXI, numa sociedade descrita como a do conhecimento, estamos distantes dos padrões mínimos exigidos para a manutenção de uma estrutura produtiva capaz de garantir autonomia e soberania nacional. Neste ambiente de atraso visível precisamos retomar o planejamento educacional, priorizar o ensino de qualidade, garantir fontes de financiamentos e aumentar os investimentos em pesquisa, ciência e tecnologia, deixando de lado os cortes obscuros nos orçamentos da educação que criam instabilidades, incertezas e degradam o futuro da nação e perpetuam nossas indignidades.

São inúmeros os desafios da sociedade brasileira, neste espaço elenquei apenas alguns, encará-los de frente podem nos trazer esperança e dignidade ou continuaremos a ser vistos como um pária na sociedade internacional.

Ary Ramos da Silva Júnior, bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 24/08/2022.

Sachs: Ocidente brinca com o perigo nuclear

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Há hipocrisia e supremacismo nos ataques contra a Rússia e a China, reconhece economista liberal. EUA manipulam opinião pública, omitem suas agressões e expõem mundo à guerra total – para manter a todo custo condição hegemônica

Por Jeffrey D. Sachs, no Other News | Tradução: Maurício Ayer

OUTRAS PALAVRAS – 23/08/2022

O mundo está à beira de uma catástrofe nuclear em grande parte por causa do fracasso dos líderes políticos ocidentais em serem honestos a respeito das causas da escalada dos conflitos globais. A incansável narrativa ocidental de que o Ocidente é nobre, enquanto Rússia e China são malévolas, é não apenas simplória como extraordinariamente perigosa. É uma tentativa de manipular a opinião pública para não encarar uma tarefa diplomática bastante real e urgente.

A narrativa essencial do Ocidente está embutida na estratégia de segurança dos EUA. A ideia central dos EUA é que a China e a Rússia são oponentes implacáveis que “tentam carcomer a segurança e a prosperidade norte-americanas”. De acordo com os EUA, esses países estão “determinados a tornar as economias menos livres e menos justas, aumentar seu poderio militar e controlar informações e dados para reprimir suas sociedades e expandir sua influência”.

A ironia é que desde 1980 os EUA escolheram entrar em pelo menos 15 guerras contra outros países (Afeganistão, Iraque, Líbia, Panamá, Sérvia, Síria e Iêmen, para citar apenas alguns), enquanto a China não esteve em nenhuma e a Rússia apenas em uma (Síria) fora dos limites da antiga União Soviética. Os EUA têm bases militares em 85 países, a China em três e a Rússia em um (Síria) fora dos limites da antiga União Soviética.

O presidente Joe Biden promoveu essa narrativa, declarando que o maior desafio do nosso tempo é competir com as autocracias, que “procuram fazer avançar seu próprio poder, exportar e expandir sua influência ao redor do mundo e justificar suas políticas e práticas repressivas como uma maneira mais eficiente de enfrentar os desafios de hoje”.

A estratégia de segurança dos EUA não é obra de um único presidente, mas da burocracia de segurança dos EUA, que é amplamente autônoma e opera por trás de um muro de sigilo.

O medo exagerado em relação à China e à Rússia é vendido ao público ocidental por meio da manipulação dos fatos. Uma geração antes, George W. Bush Jr. vendeu ao público a ideia de que a maior ameaça contra os Estados Unidos era o fundamentalismo islâmico, sem mencionar que foi a CIA, com a Arábia Saudita e outros países, que criou, financiou e mobilizou os jihadistas no Afeganistão, Síria e outros lugares para lutar nas guerras ao lado dos Estados Unidos.

Ou considere a invasão do Afeganistão pela União Soviética em 1980, que foi retratada na mídia ocidental como um ato de perfídia não provocado. Anos depois, soubemos que a invasão soviética foi na verdade precedida por uma operação da CIA destinada a provocar a invasão soviética. A mesma desinformação ocorreu em relação à Síria. A imprensa ocidental está cheia de recriminações contra a assistência militar de Putin a Bashar al-Assad da Síria a partir de 2015, sem mencionar que os EUA apoiaram a derrubada de al-Assad a partir de 2011, com a CIA financiando uma grande operação (Timber Sycamore) para derrubar o governante anos antes da chegada da Rússia.

Ou, mais recentemente, quando a presidente da Câmara dos Deputados dos EUA, Nancy Pelosi, visitou Taiwan de forma totalmente irresponsável, desrespeitando as advertências da China — e nenhum ministro de Relações Exteriores do G7 criticou a provocação, mas os mesmos ministros criticaram duramente a “exagerada reação” da China à viagem de Pelosi.

A narrativa ocidental sobre a guerra na Ucrânia é de que se trata de um ataque não provocado de Putin na busca de recriar o império russo. No entanto, a história real começa com a promessa ocidental ao presidente soviético Mikhail Gorbachev de que a OTAN não avançaria para o Leste, seguida por quatro ondas de expansão da OTAN: em 1999, incorporando três países da Europa Central; em 2004, incorporando mais sete, inclusive no Mar Negro e nos Estados Bálticos; em 2008, comprometendo-se a expandir-se à Ucrânia e à Geórgia; e em 2022, convidando quatro líderes da Ásia-Pacífico à OTAN para mirar na China.

A mídia ocidental também não menciona o papel dos EUA na derrubada, em 2014, do presidente da Ucrânia, Viktor Yanukovych, aliado da Rússia; o fracasso dos governos da França e da Alemanha, garantes do acordo de Minsk II, em pressionar a Ucrânia a cumprir seus compromissos; a vasta quantidade de armamentos dos EUA enviados para a Ucrânia durante os governos Trump e Biden no período que antecedeu a guerra; nem a recusa dos EUA em negociar com Putin a avanço da OTAN à Ucrânia.

É claro que a OTAN diz que isso é puramente defensivo, e Putin não tem nada a temer. Em outras palavras, Putin deve fingir que não existiram as operações da CIA no Afeganistão e na Síria; o bombardeio da OTAN à Sérvia em 1999; a derrubada de Muammar Kadafi pela OTAN em 2011; a ocupação do Afeganistão pela OTAN por 15 anos; nem a “gafe” de Biden pedindo a deposição de Putin (o que obviamente não foi uma gafe); nem a afirmação do secretário de Defesa dos EUA, Lloyd Austin, de que o objetivo de guerra dos EUA na Ucrânia é enfraquecer a Rússia.

No centro de tudo isso está a tentativa dos EUA de permanecer como a potência hegemônica do mundo, ampliando as alianças militares em todo o mundo para conter ou derrotar a China e a Rússia. É uma ideia perigosa, ilusória e ultrapassada. Os EUA têm apenas 4,2% da população mundial e agora apenas 16% do PIB mundial (medido a preços internacionais). De fato, o PIB combinado do G7 já é menor que o dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), enquanto a população do G7 é apenas 6% do mundo, em comparação com 41% dos BRICS.

Há apenas um país cuja fantasia autodeclarada é ser a potência dominante do mundo: os EUA. Já passou da hora de reconhecerem as verdadeiras fontes de segurança: coesão social interna e cooperação responsável com o resto do mundo, em vez da ilusão de hegemonia. Com essa política externa revisada, os EUA e seus aliados evitariam a guerra com a China e a Rússia e permitiriam que o mundo enfrentasse sua miríade de crises ambientais, energéticas, alimentares e sociais.

Acima de tudo, neste momento de extremo perigo, os líderes europeus devem buscar a verdadeira fonte de segurança para a Europa: não a hegemonia dos EUA, mas arranjos de segurança europeus que respeitem os interesses legítimos de segurança de todas as nações europeias, certamente incluindo a Ucrânia — mas também a Rússia, que continua a resistir às expansões da OTAN ao Mar Negro. A Europa deveria refletir sobre o fato de que o não alargamento da OTAN e a implementação dos acordos de Minsk II teriam evitado esta terrível guerra na Ucrânia. Nesta fase, é a diplomacia, não a escalada militar, que é o verdadeiro caminho para a segurança europeia e global.

Elites e a corrupção legalizada, por Michael França.

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Não devemos esquecer de quem define o que é certo e errado

Michael França, Ciclista, doutor em teoria econômica pela Universidade de São Paulo; foi pesquisador visitante na Universidade Columbia e é pesquisador do Insper.

Folha de São Paulo, 22/08/2022

Corrupção é um conceito amplo, e costuma ser pensado como o conjunto de práticas voltadas para usar dinheiro público com o propósito de gerar ganhos privados para indivíduos e, eventualmente, para suas famílias.

Também é um termo comumente empregado para definir o uso ilegítimo do poder público com o intuito de autofavorecimento. Porém, olhar somente para o que é feito dentro dos limites da lei é uma forma um pouco limitada de encarar a realidade.

Aquilo que é certo ou errado costuma ser uma função das vontades dos setores mais influentes da sociedade que, em última instância, tendem a definir as leis e moldar o funcionamento do Estado de forma a atender seus próprios interesses.

Uma série de convenções que foram historicamente institucionalizadas pelos grupos mais proeminentes conduz a um amplo conjunto de vantagens, geralmente indevidas, porém dentro da lei, somente para uma pequena parcela da população.

O aparato institucional, que deveria ser um meio de orquestrar o equilíbrio social, gerar oportunidades equânimes de desenvolvimento e reger o progresso, também contribui para a manutenção da apropriação do poder público pelas elites.

Quando consideramos a corrupção legalizada, o cenário brasileiro fica ainda mais emblemático. Nosso sistema político é corrompido. A desigualdade reforça ao longo do tempo a concentração de influência e leva ao aprofundamento da subversão da justiça social. Não faltam aqui exemplos de grupos que vivem em uma espécie de simbiose com o Estado.

Não é por acaso que a oferta de muitos bens públicos de melhor qualidade está localizada em regiões mais ricas dos espaços urbanos. Por sua vez, é possível criar vários outros meios de favorecer certos grupos no uso do dinheiro público.

As universidades públicas, por exemplo, foram durante grande parte de nossa história um espaço dominado pelas elites. Apesar dos avanços recentes na representatividade discente, o mesmo não se pode dizer em relação a seu corpo docente.

Além disso, bancamos altos salários de alguns cargos do funcionalismo público em que o retorno para sociedade não reflete seu custo. Em relação aos impostos, há considerável dificuldade de torná-los mais progressivos e, assim, onerar em maior proporção aqueles que possuem alta renda e que costumam ser os mesmos que são contemplados com subsídios e créditos baratos do governo em projetos com inexpressiva capacidade de gerar valor para sociedade.

A baixa taxação das heranças é somente mais um exemplo da hipocrisia de uma elite que se diz merecedora do que possui, apesar de que parte considerável de seu patrimônio representar apenas o legado do trabalho de terceiros e, não raramente, obtida por meio de algum conluio com o poder público.

Existe uma inaptidão moral por parte de muitos cidadãos em se comprometer com o bem comum e uma alta predisposição em usar o Estado para obter significativas vantagens privadas. A incapacidade de ir além das práticas corriqueiras voltadas para aumentar a gratificação pessoal parece ser uma das marcas de nossas elites.

Apesar disso, tivemos alguns avanços. Os filhos dos porteiros saíram das universidades e passaram a disputar espaço com os filhos da elite. Os mais desfavorecidos tiveram ganho no poder de compra. As empregadas domésticas começaram a pegar o mesmo avião da patroa.

Curiosamente, no mesmo período, as elites resolveram sair para as ruas para protestar contra a corrupção sistêmica. Escolheram um alvo e contribuíram para eleger um presidente que, além de corrupto, é um dos mais estúpidos da nossa história.

No final, fica a questão: a suposta indignação com a corrupção foi verdadeira ou somente um pretexto para recuperar alguns privilégios?

Mazzucato: A economia guiada por missões sociais, por Ladislau Dowbor

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Definir as necessidades da sociedade e organizar, para supri-las, iniciativas de múltiplos atores, lideradas pelo Estado. A proposta da economista italiana para superar as brutais disfuncionalidades do capitalismo atual é a base de seu novo livro

Ladislau Dowbor – Outras Palavras – 17/08/2022

Mariana Mazzucato está virando referência para todos nós. Mulher, italiana, baseada em Londres, está abrindo espaços muito mais amplos do que os eternos comentários sobre Hayek, Milton Friedman e outros economistas parados no tempo e no espaço. Estamos enfrentando um sistema diferente do capitalismo industrial que conhecemos, com o domínio das plataformas financeiras, de comunicação, de controle do conhecimento e da indústria da informação pessoal. Surge uma economia de pé no chão que ganhou força, é muito mais do que “heterodoxa”, apresentando os problemas nas suas novas configurações e as soluções correspondentes.

O capitalismo que hoje enfrentamos, e que gera tantos desastres econômicos, sociais e ambientais, tenta se justificar com sucessos do passado. Isso tem pouco legitimidade, pois as fortunas atuais têm essencialmente origem em atividades-meio, com pedágios sobre a economia imaterial como os drenos financeiros, que pouco têm a ver com os avanços produtivos do século passado, no tempo dos capitães da indústria. Exploravam trabalhadores, mas geravam emprego e produtos, e pagavam impostos, o que permitiu desenvolver infraestruturas e políticas sociais. Hoje enriquecem com juros e dividendos, e colocam os lucros em paraísos fiscais. E se apresentam como “os mercados”, mas são drenos sobre a economia real.

Não há dúvidas quanto às contribuições do capitalismo produtivo, e inclusive hoje tantas empresas fornecedoras de bens e serviços. Mas é importante lembrar que os imensos avanços planetários nos últimos dois séculos, frente a milênios de estagnação antes disso, se devem essencialmente a avanços tecnológicos, fontes de energia que permitiram mecanização, a imensa transformação gerada pela eletricidade, o aproveitamento do petróleo, os avanços da química, a mais recente revolução digital, a explosão dos conhecimentos biológicos, tudo isso são avanços do conjunto da humanidade, resultantes da confluência de esforços de pesquisadores individuais, de universidades públicas, e também de sua implementação empresarial. O principal vetor da transformação mundial que vivemos está muito mais ligado aos avanços científicos globais do que ao capitalismo, tanto assim que transformou também a União Soviética que saiu da idade média em 1917, e conseguiu derrotar o poder militar da Alemanha nos anos 1940. A China constitui outro exemplo impressionante de como a tecnologia moderna, no quadro de diferentes formas de organização política e social, pode promover o progresso.

Lembrar que o capitalismo de plataformas que hoje enfrentamos, que tenta se vestir da legitimidade de outros tempos, teve como motor principal não liberdade de mercado, mas o avanço científico e tecnológico generalizado, ajuda a entender que estamos enfrentando novos desafios, que exigem novas respostas organizacionais. O vale-tudo das corporações internacionais rompe com o essencial do que justificava o capitalismo, ou seja, de que cada um procurando maximizar os seus lucros geraria o correspondente bem-estar para a sociedade. Seja qual for o nome que damos aos novos tempos que vivemos, indústria 4.0 ou revolução digital, o fato essencial é que precisamos resgatar a sua funcionalidade: a lógica do seu funcionamento mudou.

Mariana Mazzucato publicou nos últimos anos três livros de grande impacto internacional: O Estado Empreendedor, O Valor de tudo, e agora este Missão Economia, título que seria melhor traduzido como “economia organizada por missões”, já que em inglês Mission Economy traz esse sentido. O primeiro, Estado Empreendedor, é muito utilizado no mundo e no Brasil, pois desmonta a farsa da privatização, mostra as bases públicas que permitiram inclusive os avanços privados, e propõe resgatar uma parceria inteligente em vez das simplificações ideológicas do estado mínimo. Prejudicar o interesse público para maximizar os lucros corporativos simplesmente não funciona, e muito menos a narrativa de que o Estado atrapalha o bem que o setor privado poderia trazer. Estado empreendedor, motor essencial da economia.

O Valor de Tudo, de 2018, tem o subtítulo de making and taking in the global economy, que podemos traduzir como “produzir e extrair na economia global”, subtítulo que reflete o essencial do aporte do livro, que é como diversos grupos sociais, empresas privadas, o setor público e os movimentos sociais, contribuem ou geram custos para a economia moderna, nesta era digital e financeirizada. O livro é essencial na medida em que mostra que o lucro já não passa necessariamente por aportes produtivos, e sim por diversos sistemas de apropriação e controle improdutivos ligados à financeirzação. A criação de valor e a apropriação de valor se desassociaram.

A Mission Economy que aqui resenhamos tem uma guinada radicalmente propositiva, e nos interessa em particular nesses tempos em que o Brasil regrediu radicalmente. O exemplo usado por Mazzucato é o da Missão Apolo. Nos anos 1960, com J.F. Kennedy na presidência, os Estados Unidos assistiram atônitos aos russos mandarem para o espaço primeiro um satélite, depois o Iuri Gagarin, até uma cadela, a Laika, com ida e retorno seguros. A reação não foi um projeto governamental, mas uma “missão” nacional, envolvendo o governo como promotor político, bem como centros de pesquisa, universidades, inúmeras empresas dos mais diversos setores. O impressionante sucesso, com um homem na lua, não foi resultado de primazia do governo ou do setor privado, na guerra absurda que hoje enfrentamos, mas uma articulação política, financeira e tecnológica dos mais variados setores da sociedade. Ou seja, a sinergia, confluência de diversas áreas em torno a um objetivo comum, gerou um sucesso impressionante.

Essa ideia, do potencial do que podemos fazer como humanidade ao nos unirmos em torno aos grandes objetivos sociais, é o núcleo do que a autora desenvolve e detalha no livro. Na era da sociedade complexa, de desafios sistêmicos, a colaboração é simplesmente mais eficiente. Não se trata apenas da dimensão econômica, mas da geração de um entusiasmo mobilizador em torno do que queremos atingir. E precisam ser objetivos suficientemente amplos para que possam mobilizar o conjunto da sociedade. Ainda que nos alimentem diariamente com visões de um Bezos, Buffett, Jobs ou outros heróis do sucesso individual, na mística antiga do cowboy solitário, a realidade é que hoje precisamos de sistemas colaborativos e de sinergia organizada, para voltarmos a ter rumos na sociedade. Esperar que os “mercados” consigam equilibrar magicamente as diversas dinâmicas de uma sociedade complexa, que enfrenta desafios sistêmicos, é simplesmente ridículo, ainda que sirva a interesses mais estreitos.

“Este livro adotou a ideia, que considero imensamente poderosa, de usar as missões para atacar os problemas ‘perversos’ com que nos defrontamos hoje. Argumento aqui que o combate a grandes desafios só será exitoso se reimaginarmos o governo como um pré-requisito para a reestruturação do capitalismo, de modo a torná-lo inclusivo, sustentável e inovador.”(196) Enquanto tantos livros descrevem as desgraças da humanidade e os desafios que temos de enfrentar, Mazzucato se concentra no processo decisório correspondente. Isso é fundamental, na medida em que na sociedade de hoje sabemos o que deve ser feito, inclusive com objetivos sistematizados nos ODS, temos as tecnologias, e temos os recursos financeiros necessários. Mas não conseguimos gerar a governança correspondente.
“Primeiro e acima de tudo, isso envolve reinventar o governo para o século XXI – equipando-o com as ferramentas, organização e cultura necessárias para impulsionar a abordagem orientada por missões. Também envolve introduzir a noção de propósito no cerne da governança corporativa, priorizar o valor para os stakeholders em toda a economia e transformar o relacionamento entre os setores público e privado e entre ambos e a sociedade civil, para que trabalhem em simbiose em prol de um objetivo comum. A razão para a ênfase em repensar o governo é simples: apenas o governo tem a capacidade para promover a transformação na escala necessária. O relacionamento entre os agentes econômicos e a sociedade civil revela nossos problemas no nível mais profundo, e é isso que devemos desvendar. ”(196)

Com o domínio das corporações financeiras no mundo atual – só lembrando que a BlackRock administra 10 trilhões de dólares, o equivalente à metade do PIB dos Estados Unidos (21,5 trilhões) – resgatar a sua utilidade social tornou-se essencial: “Como argumentei neste livro, isso envolve enfrentar um dos maiores dilemas do capitalismo moderno: reestruturar os negócios de modo que os lucros privados sejam reinvestidos na economia, em vez de direcionados para objetivos financeirizados de curto prazo.” (198)

A revolução digital também exige novas formas de organização. “Outra área importantíssima são as plataformas digitais. Como gerir as plataformas digitais de modo a fomentar a criação de valor para a maioria dos cidadãos, em vez de apenas gerar lucros privados para uns poucos, é o grande tema da atualidade…Empresas como Amazon e Google detêm enorme poder de mercado. O problema é que elas cada vez mais têm usado esse poder para extrair o que tenho chamado de “rentas algorítmicas” (algorithmic rents)[3] num sistema capitalista moderno que mais parece um “feudalismo digital” – a capacidade de usar algoritmos para manipular o que as pessoas veem e querem.” (189)
Isso envolve uma inversão profunda, tanto nas corporações como nos governos: pensar a economia a nosso serviço. “Grande parte da atual análise econômica tende a focar nas dívidas e nos déficits públicos. Mas uma abordagem orientada por missões traz uma nova maneira de ver as coisas. Fazer a economia trabalhar para os objetivos sociais, em vez de fazer a sociedade trabalhar para a economia, exige reverter a maneira como se avaliam os orçamentos hoje. Devemos começar com a pergunta ‘O que precisa ser feito?’ e, então, passar para a questão de como arcar com os custos.”(162) A abordagem lembra muito a missão “Fome Zero” que articulou tantos programas no Brasil e permitiu grandes avanços.

Não são sonhos, são transformações que teremos de adotar cedo ou tarde, conforme se aprofundam os desastres sociais e ambientais, e se desarticulam as democracias. Mazzucato resume as mudanças necessárias em torno a sete eixos: o conceito de valor centrado na utilidade pública, mercados articulados com os outros atores sociais, formas de organização mais centradas na colaboração, finanças reorientadas para o que é necessário para a sociedade, processos de distribuição que enfrentem a desigualdade, promoção de parcerias para o bem-comum, e participação dos atores envolvidos. (165) Não são regras simplificadas, a autora aprofunda cada um dos pilares, e o resultado é uma visão não de algum sonho no futuro – os vários “ismos” segundo as ideologias – mas medidas viáveis de reorientação em torno às prioridades humanas.

Mariana Mazzucato é hoje uma autora de referência no mundo, pela forma como ultrapassa as eternas discussões sobre teorias econômicas herdadas do passado, e se vincula à corrente que se deu conta de que o mundo mudou, de que o capitalismo funciona de modo diferente da era industrial, de que precisamos de novas regras do jogo. Uma leitura em nenhum momento atolada em economicismo, centrada em medidas concretas para nos tirar do atoleiro. Uma leitura que vale muito a pena, em particular para não-economistas.

Advertência póstuma do filósofo Zygmunt Bauman

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Revista Prosa Verso e Arte – 07/08/2022

Você já reparou que os filmes e romances de ficção científica são classificados com uma frequência cada vez maior nas seções de cinema de terror e de literatura gótica, ou seja, em um futuro tenebroso no qual ninguém gostaria de viver?

Pode parecer algo irrelevante, mas para Zygmunt Bauman, um dos pensadores mais influentes do século XX, é o reflexo de que começamos a buscar a utopia em um passado idealizado, uma vez que o futuro deixou de ser sinônimo de esperança e progresso para se tornar o lugar sobre o qual projetamos nossas apreensões.

O sociólogo e filósofo polonês deixou desenvolvida essa tese da retrotopia (a busca da utopia no passado) em dois escritos, os primeiros traduzidos ao espanhol depois de sua morte, em janeiro, aos 91 anos.

São o ensaio Retrotopia (Retrotopia) e o texto Symptoms in Search of an Object and a Name (Sintomas em Busca de um Objeto e de um Nome) parte de uma obra coletiva sobre o estado da democracia, The Big Regression (O Grande Retrocesso), que chega às livrarias espanholas no dia 27 e reúne nomes como Slavoj Žižek, Nancy Fraser e Eva Illouz.

“O futuro é, em princípio ao menos, moldável, mas o passado é sólido, maciço e inapelavelmente fixo. No entanto, na prática da política da memória futuro e passado intercambiaram suas respectivas atitudes”, aponta.
Bauman fala sobre medos como o de perder o emprego, do multiculturalismo, de que nossos filhos herdem uma vida precária, de que nossas habilidades de trabalho se tornem irrelevantes porque os robôs saberão fazer – melhor e mais barato – o nosso trabalho. Em suma, medo porque tudo o que era sólido agora é “líquido”, usando o adjetivo que popularizou Bauman.

“Existe uma brecha crescente entre o que precisa ser feito e o que pode ser feito, o que realmente importa e o que conta para aqueles que fazem e desfazem, entre o que acontece e o que é desejável”, aponta.

Bauman argumenta que voltamos à tribo, ao seio materno, ao mundo cruel descrito por Hobbes para justificar a necessidade do Leviatã (o Estado forte para evitar a guerra de todos contra todos) e a desigualdade mais gritante, na qual “o ‘outro’ é uma ameaça” e “a solidariedade parece uma espécie de armadilha traiçoeira ao ingênuo, ao incrédulo, ao tolo e ao frívolo”.

“O objetivo já não é conseguir uma sociedade melhor, pois melhorá-la é uma esperança vã sob todos os efeitos, mas melhorar a própria posição individual dentro dessa sociedade tão essencial e definitivamente incorrigível”, lamenta. A filósofa Marina Garcés, professora da Universidade de Zaragoza, elogia a capacidade de Bauman para “assumir o fim do pensamento utópico e suas consequências”. “Ele não pretende nos enganar com novas e falsas promessas de futuro, mas tenta entender o que está acontecendo depois da era das revoluções e suas várias derrotas”, afirma.

Pensador de inspiração marxista, Bauman cita algumas vezes o filósofo alemão em Retrotopia, ataca o chamariz da sociedade de consumo de massa e não renuncia à análise científica das contradições do capitalismo, mas também “recorre a outras ferramentas” para oferecer “uma visão em grande-angular”, explica o catedrático de filosofia da Universidade de Barcelona e deputado socialista Manuel Cruz. “A ideia de que a materialização da utopia foi perdida é um zumbido no pensamento do século XX”, mas “na obra de Bauman há um esforço para reconhecer o novo que traz ‘o novo’”. “Os pensadores que agora consideramos que representaram uma revolução foram recebidos com um ‘isso nós já sabíamos’. É preciso tempo para que a sociedade entenda o que tinham de novidade”, comenta.

Nos dois textos póstumos o filósofo apresenta um desafio e uma –abstrata e pouco desenvolvida– resposta. O desafio é “conceber –pela primeira vez na história humana– uma integração sem separação alguma à qual recorrer”. Até agora, argumenta, o que funcionou é a divisão entre ‘nós’ e ‘eles’, e continuamos empenhados a buscar um ‘eles’, “de preferência no estrangeiro de sempre, inconfundível e irremediavelmente hostil, sempre útil para reforçar identidades, traçar fronteiras e construir muros”. No entanto, essa dicotomia histórica “não se encaixa” com a “emergente ‘situação cosmopolita’”. Qual é, então, a única resposta possível? “A capacidade para dialogar”, conclui Bauman depois de citar de forma elogiosa o papa Francisco.

Garcés se diz “surpresa” tanto pela chamada ao diálogo (“de quem com quem?”, pergunta) quanto pela invocação da figura do Papa. “Acredito que é um pedido de socorro” de um Bauman que “tenta desenhar um cenário para a palavra compartilhada” porque sabe que “já não há soluções parciais para nenhum dos problemas do nosso tempo”. É a advertência final do pensador polonês: “Devemos nos preparar para um longo período que será marcado por mais perguntas do que respostas e por mais problemas do que soluções. (…) Estamos (mais do que nunca antes na história) em uma situação de verdadeiro dilema: ou damos as mãos ou nos juntamos ao cortejo fúnebre do nosso próprio enterro em uma mesma e colossal vala comum”.
ANTIDEPRESSIVOS E CEGUEIRA

A partir de seu posto de professor em Leeds (Inglaterra), Bauman teria podido lançar um olhar complacente ao presente, depois de ter vivido a invasão nazista de seu país, a Segunda Guerra Mundial na frente de batalha, o antissemitismo e os expurgos na Polônia comunista. Em vez disso, sua análise em Retrotopia é taxativa: “É praticamente inevitável que respiremos uma atmosfera de desassossego, confusão e ansiedade e a vida seja qualquer coisa menos agradável, reconfortante e gratificante”. Nesse contexto, os cada vez mais consumidos tranquilizantes e antidepressivos proporcionam alívio, mas também “contribuem para cegar os próprios seres humanos em relação à natureza real do seu padecimento em vez de ajudar a erradicar as raízes do problema”.

Nós do SUS

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Há muito a melhorar na gestão, mas saúde pública também precisará de mais verba

Editorial Folha de São Paulo, 21/08/2022

Houve um tempo em que o único “serviço” que o cidadão poderia esperar do Estado era um exército que protegeria a cidade de invasores. Aos poucos, vieram também uma força policial e algo que com muito boa vontade poderíamos chamar de sistema de Justiça.

A partir do século 18, países mais avançados adicionaram à lista a educação pública e, mais tarde, um sistema de pensões. Foi só depois da Segunda Guerra que veio a explosão de serviços que caracterizam os Estados contemporâneos. E o mais complexo deles é, sem dúvida alguma, a saúde.

O Brasil, num raro destaque positivo, é o único país de renda média do mundo a oferecer um sistema universal de saúde gratuito à sua população. E os desafios do SUS, já imensos antes da pandemia, tornaram-se ainda maiores depois, como mostrou reportagem da série Nós do Brasil, na Folha.

O problema de base é, evidentemente, o subfinanciamento. Embora os gastos públicos e privados do Brasil com saúde sejam até proporcionalmente maiores que de países desenvolvidos, o jogo muda inteiramente quando se consideram apenas despesas de governo.

Em 2019, os desembolsos totais chegaram a 9,6% do Produto Interno Bruto, ante 8,8% na média da OCDE. Já o dispêndio público ficou em 3,8% do PIB, ante 6,5%.

A pandemia escancarou o papel essencial do SUS. Embora nosso desempenho na crise sanitária tenha sido péssimo, muito pior seria sem o sistema de saúde.

A grande disposição com que a população arregaçou as mangas para tomar as primeiras doses da vacina, a despeito da insistente propaganda contrária de Jair Bolsonaro (PL), tem muito a ver com a confiança acumulada em vários anos do programa nacional de imunização, apontado como um dos melhores do mundo.

Seja como for, a pandemia colocou ainda mais pressão sobre o SUS. A demanda pelos serviços, que já era maior do que a oferta, foi reprimida por cerca de dois anos. A chamada Covid longa criou uma nova categoria de usuários; algo parecido vale para a saúde mental.

Embora o sistema esteja sendo mais exigido, é difícil imaginar como suas verbas possam aumentar de forma permanente. O Brasil lida com severa restrição orçamentária, agravada pela recente rodada de gastos eleitorais. Há amplo espaço para melhorias na gestão, mas isso não bastará para equacionar todas as carências.

O melhor caminho é cortar algo dos muitos subsídios e programas ineficientes bancados pelo Estado brasileiro para aumentar os recursos para a saúde pública. Politicamente, trata-se, na maior parte dos casos, de enfrentar grupos de interesse e suas benesses.