Viagem ao mundo do empreendedorismo popular, com Henrique Costa.

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Henrique Costa estudou as periferias de São Paulo por semanas, durante a pandemia. Agora, conta o que viu sobre a revalorização dos “bicos”, a difusão do discurso do “empresário de si mesmo” e as atitudes contraditórias diante dos R$ 600

OUTRASMÍDIAS – TRABALHO E PRECARIADO – 09/10/2020

Segundo ele, o empreendedorismo nessas regiões começou a crescer a partir da valorização dos “bicos” e da “viração” que caracterizavam o trabalho precarizado. “Nos últimos anos, a noção de ‘viração’, que era pejorativa – porque o trabalhador que não tinha emprego formal era visto de forma rebaixada – foi positivada. A partir do momento em que se passa a compreender o camelô como um empreendedor, já não se dá mais a carga negativa que se dava ao trabalho dele. Ao contrário, cresce o discurso de que ele está no caminho certo e isso virou um grande negócio”, afirma. Ao lado dessa transformação, a desvalorização do diploma universitário, o crescimento de cursos técnicos e universitários de curto prazo, a supervalorização da extensão universitária em detrimento da pesquisa e a expansão de cursos de empreendedorismo voltados para as classes populares levam os jovens a buscarem inovação incessantemente, com o objetivo de investirem em um negócio de sucesso.

Nesta entrevista, concedida por WhatsApp à IHU On-Line, Costa narra alguns exemplos de novos empreendedores nas periferias paulistas e também comenta a reação dos empresários populares ao auxílio emergencial, a percepção dos seus entrevistados sobre a atuação do presidente Bolsonaro durante a crise pandêmica e os elementos de distinção social que foram criados a partir de estereótipos.

Henrique Costa é doutorando em Ciências Sociais na Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, mestre em Ciência Política e graduado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo – USP. É autor do livro recém-lançado Entre o lulismo e o ceticismo. Um estudo com bolsistas do Prouni de São Paulo (São Paulo: Alameda, 2018), baseado na etnografia política com bolsistas do Prouni, tema de sua dissertação de mestrado. Ele concedeu a entrevista “A esquerda optou pela obsolescência da transformação social e se rendeu à ideia de que as coisas são feitas aqui e agora” à IHU On-Line em 2016, quando a pesquisa estava sendo realizada.

Confira a entrevista

Hoje se fala muito em empreendedorismo no Brasil. Quem são os empreendedores no país?
É preciso definir essa categoria porque é comum ver o empreendedor como alguém que cria coisas novas e leva seu negócio para frente. Essa é uma concepção de Schumpeter, um economista austríaco, que pensava o empreendedorismo como destruição criativa, ou seja, o empreendedor era aquele que não tinha medo de encerrar um produto para lançar um novo. Essa é a concepção que os mais jovens têm hoje, e Bill Gates é um exemplo disso, ou seja, são pessoas que estão sempre inovando e continuam nesta busca incessante por inovar. Inovação é uma palavra importante nesse contexto.

Empreendedorismo e a crise econômica
A ideia de empreendedorismo foi popularizada nos últimos anos como consequência da crise econômica que perdura desde 2015 e porque o desemprego estrutural não consegue mais prover empregos de boa qualidade para a população brasileira. Nesse contexto, o discurso do empreendedorismo acabou se tornando uma saída de emergência, uma pílula, para tentar responder a uma questão social muito mais ampla.

Hoje, 99% dos Cadastros Nacionais da Pessoa Jurídica – CNPJ das empresas brasileiras, segundo o Sebrae, são micro e pequenas empresas. Então, aquela ideia de empresário como alguém que tem 100, 200 funcionários, é uma minoria. A grande maioria dos empresários no país é formada de comerciários e comerciantes. Por isso, meu trabalho, nos últimos anos, tenta entender quem são essas pessoas, onde elas estão – elas estão nas periferias das grandes cidades e não necessariamente têm empreendimentos na periferia, mas moram na periferia –, por que elas aderem ao empreendedorismo e por que essa tem sido uma escolha entre os jovens. Venho pesquisando esse tema desde o meu mestrado, quando pesquisei bolsistas do ProUni e percebi que o discurso do empreendedorismo era muito constante na fala dos entrevistados.

Em artigo recente, você menciona que o empreendedorismo popular está em ascensão. Esse tipo de empreendedorismo sempre esteve presente no Brasil ou é uma novidade? Ele está em ascensão somente por causa da crise econômica e social ou há outras razões?

Tem a ver com a crise econômica, mas também com a hegemonia do discurso neoliberal dos últimos anos, que veio se implementando nas classes populares brasileiras. O empreendedorismo não é novo e um dos argumentos que uso é o de que sempre existiu a categoria do “virador” no Brasil, principalmente nas periferias brasileiras. O “virador” é aquele cara que faz “bico”, não tem um emprego formal, precisa se virar e vai de um trabalho a outro. Essa ideia de “viração” sempre esteve presente no Brasil por causa das condições precárias de trabalho.

Nos últimos anos, essa noção de “viração”, que era pejorativa – porque o trabalhador que não tinha emprego formal era visto de forma rebaixada – foi positivada. A partir do momento em que se passa a compreender o camelô como um empreendedor, já não se dá mais a carga negativa que se dava ao trabalho dele. Ao contrário, cresce o discurso de que ele está no caminho certo e isso virou um grande negócio.

Cursos de empreendedorismo e a busca pela inovação
Tenho acompanhado, durante os últimos anos, alguns cursos de empreendedorismo voltados para as classes populares e para pessoas mais velhas, que não têm outra opção de trabalho e resolvem vender artesanato ou abrir algum negócio ligado a culinária. Por exemplo, alguns nordestinos que vivem em São Paulo trabalham como pedreiros e, no tempo livre, fazem acarajé para vender. Eles têm esperança de viverem da venda de acarajé, mas para isso, não basta fazerem o que sempre fazem, como vender marmita para os vizinhos localmente. Esses cursos vendem para as pessoas uma esperança de que elas vão conseguir ter um negócio maior e vão conseguir se sustentar a partir disso. As dificuldades, contudo, são evidentes, porque mesmo antes da pandemia o brasileiro já tinha perdido muita renda.

A pandemia acelerou a busca por inovação e muitas pessoas passaram a usar as ferramentas da internet para venderem seus produtos. Muitas não sabiam fazer isso, mas foram forçadas a aprender. De outro lado, muitos dos empreendedores sociais que entrevisto fecharam as portas porque trabalhavam a partir de um contato muito estreito com a classe média. Com a quarentena e o isolamento social, eles tiveram que se manter endogenamente na periferia e o que segurou as pontas foi o auxílio emergencial.

Essas experiências empreendedoras se inserem em uma mudança cultural, econômica e de discurso hegemônico que se está implementando desde os anos 1970 e que agora chegou às periferias – e chegou num momento muito conveniente por causa da crise econômica. As pessoas que já não têm mais a oportunidade de conseguir um emprego estável se valorizam como empreendedoras. Isso é uma falácia, mas é o que está colocado.

No artigo, você menciona o relato de um trabalhador que trocou um emprego estável pelo empreendedorismo porque não se sentia valorizado pela empresa e tampouco tinha novas oportunidades, apesar de ter concluído a graduação e cursado uma especialização. Que questões motivam as pessoas a apostarem no empreendedorismo?

No artigo, tentei criar um jogo de espelhos para entender como ocorre essa transformação. Os comerciantes mais velhos – que se chamam de comerciantes e, inclusive, o linguajar do empreendedorismo não faz parte do vocabulário deles – valorizam o reconhecimento no trabalho, ou seja, estar fixo num lugar, ser reconhecido pelas pessoas, ter uma relação comunitária e ser um ponto de referência. Nesses casos, o reconhecimento social é até mais importante do que ter o emprego estável, porque eles trabalham mais cuidando do seu negócio do que se estivessem em outro emprego – eles trabalham sete dias por semana.

Os mais jovens, ao contrário, têm uma ambição “neoliberal”; eles querem crescer. Este rapaz que você mencionou abriu um novo negócio no meio da pandemia. Eles têm uma ansiedade, muito característica dessa geração, de fazer as coisas acontecerem.

Os comerciantes mais velhos estão satisfeitos: eles têm seu comércio, que é uma referência local, e alguns trabalham há 15 anos sem tirar férias, mas possuem um negócio razoavelmente sustentável. Muitos alegam que se estabeleceram e se acomodaram nesse perfil porque não têm estudo. Eles são muito diferentes da nova geração, que fez faculdade.

Tiago, o rapaz que você mencionou, tem dois comércios de objetos supérfluos no Jardim Ângela e abriu mais um em Santo Amaro. Ele deu um depoimento interessante, contando como aumentou o consumo dessas coisas nos últimos meses porque as pessoas estão ficando mais tempo em casa. Ele não se sentia valorizado no emprego, tinha um contrato de trabalho confortável, mas como estudou, queria que o seu estudo desse algum retorno. Sentia que poderia fazer mais do que estava fazendo no antigo trabalho e não pensou duas vezes em abrir mão do emprego para se tornar empreendedor. E, neste caso, podemos chamá-lo de empreendedor, porque ele se vê nessa condição e assimila um conjunto de ideias e visões de mundo que estão dentro deste pacote que é o “neoliberalismo”; entende o seu curso de psicologia como algo útil para o seu trabalho e quer abrir outra loja, assim que for possível. Ele também trabalha demais – a exaustão do trabalho é algo muito visível nestes casos. Além disso, tem três filhos e não se importa de estar pouco tempo presente em casa. Este é um retrato muito acurado e exemplar desse empreendedorismo popular que surgiu, ganhou força e passou a ser notado nos últimos anos.

Você já esperava ouvir o discurso empreendedor dos mais jovens?
Estudo essa temática há algum tempo, mas estava estudando outro perfil de empreendedor: o empreendedorismo de impacto social. Existem muitos cursos universitários sobre esse tema e as universidades vêm investindo nisso, seja em faculdades de administração, seja em cursos de ciências sociais aplicadas ou em gestão de políticas públicas, a partir de um discurso de transformação social. Este tipo de empreendedor quer ter um negócio que gere renda e tenha um impacto social na sua comunidade; essa é uma característica desses negócios de impacto social.

Antes da pandemia, eu participei de eventos de empreendedorismo social na periferia para entender como esse discurso é falado e recebido. Agências de impacto social agenciam negócios e têm algum capital por trás delas, a partir de parcerias com fundações, como a Fundação Casas Bahia, que financiam essas redes. Quando iniciou a pandemia, minha ideia era contrastar o impacto do empreendedorismo social – que identifico como ideológico – com o outro empreendedorismo, aquele por necessidade, em que o sujeito entende seu negócio sobretudo como geração de renda e não tem pretensões de transformar a sociedade, mas sustentar sua família e ter um reconhecimento social na sua região.

Em função da pandemia, visitei duas periferias em São Paulo e tinha a expectativa de entender como as pessoas estavam reagindo ao auxílio emergencial, se elas tinham tido perda de renda e como viam o futuro. O que eu vi foi justamente os personagens que entrevistei e descrevi no artigo: os comerciantes e os novos empreendedores.

Como eles reagiram ao auxílio e reagem à proposta do governo de instituir a Renda Cidadã?
Este tema é muito controverso e isto me surpreendeu. Nós da academia esperamos que as pessoas sejam coerentes, mas elas não são, e mais contradições aparecem. O auxílio emergencial é sintomático disso. Diante do que vi, é razoável afirmar que as pessoas têm sentimentos ambíguos sobre o auxílio porque são contra a ideia de que o governo deve ajudar. Elas querem que as pessoas trabalhem porque o que traz dignidade para a pessoa é a renda fruto do trabalho.

Eu passei uma tarde numa loja de um comerciante e ele não vendeu nada, mas ele trabalha sete dias por semana. Aí você pergunta se é preciso trabalhar tanto, mas a pessoa se sente completa quando está trabalhando. É justamente isto que a pandemia nos mostrou: a importância do trabalho para a vida das pessoas. Claro que o trabalho não é tudo na vida e na identidade de uma pessoa, mas não podemos ignorar que se alguém passa sete dias por semana, dez horas por dia num lugar, é porque ele se vê como um trabalhador e se reconhece ao estar trabalhando. Isso não quer dizer que isso seja toda a vida dele, mas é algo que não dá para ignorar.

Distinção social
Um dos entrevistados recebeu o auxílio, mesmo tendo um comércio essencial, e fez uma distinção social entre o sujeito que não trabalha – que é vagabundo ou noia (usuário de drogas) – e o que trabalha. Existe essa pretensão de distinção social também na periferia e ela se dá pelo trabalho. Quanto mais as pessoas trabalham, mais dignidade elas têm. Na cabeça de muitos deles, quem recebe auxílio é noia e não trabalha. Essa visão se encaixa com o discurso de Bolsonaro na pandemia. Ele captou esse sentimento do trabalhador brasileiro que quer trabalhar e se sente digno ao trabalhar.

Alguns comerciantes reconhecem o fato de o auxílio ter permitido que as pessoas pudessem comprar no comércio, ou seja, percebem que o auxílio dinamiza a economia. Mas é difícil para as pessoas admitirem essa verdade porque isso vai de encontro à ideologia na qual elas acreditam, de que o sujeito digno é o que trabalha. Vários colegas quiseram manter uma rede de solidariedade durante a pandemia, pagando as diaristas, mas muitas mulheres não aceitaram porque, para elas, é inconcebível a ideia de receber sem trabalhar. Não é cômodo e confortável para as pessoas receber sem trabalhar.

A ideologia contemporânea
Não é por acaso que Bolsonaro fez aquele discurso durante a pandemia. Não é só por ele não querer ver a economia desabar; ele tem uma característica de se comunicar com esse perfil que vai desde o comerciante apegado à ética do trabalho até aquele que se vê como empreendedor, que também é apegado ao trabalho. Para eles, ficar em casa, mesmo ganhando renda do governo, implica em não crescer e estagnar.

A ideologia contemporânea gera esse sentimento, inclusive, em nós pesquisadores. Não é à toa que estamos sempre preocupados em produzir, em escrever artigos, em participar de eventos, porque não se pode ficar parado. O grande pecado contemporâneo é a estagnação, é ficar parado. Mesmo num emprego estável, você é cobrado por se qualificar o tempo todo. Inclusive, nesta pandemia vimos a quantidade de webinars disponíveis – as pessoas estão em casa e não podem ficar sem fazer nada.

Além disso, houve uma intensificação do trabalho no home office. Parece que o home office é um privilégio – e, do ponto de vista da contaminação, é um privilégio porque as pessoas se mantêm seguras do vírus, mas não se mantêm seguras da intensificação do trabalho.

Na sua avaliação, o discurso do empreendedorismo, mas também o do teletrabalho, ocultam, de outro lado, a essência da precarização do trabalho. Como a precarização do trabalho tem afetado a vida afetiva das pessoas e suas relações, especialmente neste período de pandemia?

Esta é uma das questões interessantes de se analisar neste período. À primeira vista, os trabalhadores ditos “essenciais” ficaram muito visíveis por causa da natureza do seu trabalho. Por outro lado, isso gerou, curiosamente, algumas consequências subjetivas e psicológicas naqueles que estão trabalhando em casa.

Estereótipos
Tenho notado que se criou uma oposição entre essas categorias. Os trabalhadores não essenciais olham para os outros trabalhadores como irresponsáveis porque eles não fazem isolamento social e caem no discurso de Bolsonaro. Ou seja, há uma estereotipização de algumas categorias de trabalhadores, mas esta não é uma questão política. As pessoas não saem porque Bolsonaro mandou; é exatamente o contrário. Ele está dizendo o que elas querem: uma legitimação para fazer o que elas já fazem ou fariam. Essa é uma percepção inteligente de Bolsonaro na medida em que ele percebe qual é o sentimento que está colocado para esses trabalhadores. Tanto é assim que ele diz que, para fazer o Renda Cidadã, não quer tirar dos pobres para dar aos paupérrimos. Ou seja, ele está falando para os pobres que têm renda familiar de dois a cinco salários mínimos: os precários, humildes e que têm uma ideia de trabalho que se sobrepõem à política. Aqueles que estão trabalhando em casa olham para esses trabalhadores com preconceito e julgam que são irresponsáveis e bolsonaristas. Eles sentem que estão fazendo a sua parte, se sacrificando com as crianças em casa, sem diarista, para conter o vírus, enquanto outras pessoas não estão fazendo o mesmo.

Consequências psicológicas
A pandemia criou mais um elemento de distinção social, fazendo com que a classe média olhasse para si mesma como melhor diante de outras classes que não são responsáveis, não entendem o valor da vida e que, portanto, saem de casa e, para piorar, votam em Bolsonaro. O teletrabalho gerou, por exemplo, esse tipo de comportamento. Mas o fato é que todo mundo precisa sair de casa. Por mais que as pessoas se sintam valorizadas por estarem em casa – em tese, ajudando a conter o vírus, porque na cultura do narcisismo contemporâneo elas acham que sozinhas estão fazendo muita coisa para resolver os problemas sociais, quando na verdade os indivíduos não resolvem problemas dessa dimensão –, elas acabam sofrendo consequências psicológicas que não são irrelevantes, principalmente para quem tem filho em casa.

Quando os pais tinham a escola para deixar os filhos, tinha alguém olhando por eles, mas hoje o filho se tornou mais uma demanda de tempo integral. Não é uma demanda de somente dar a janta à noite e colocar para dormir. As consequências psicológicas entre os trabalhadores do teletrabalho são mais profundas do que para as classes populares que estão, como diz Bolsonaro, “tocando a vida”.

Os seus entrevistados, via de regra, aprovam o modo como o presidente tem conduzido a crise. O que eles relatam?
O rapaz mais empreendedor tem apreço por Bolsonaro, mas fora ele, as pessoas não sentem um amor incondicional pelo presidente. O fato é que Bolsonaro tem uma sensibilidade grande para entender essas pessoas. Contudo, elas não o amam justamente por causa da ética do trabalho. Numa entrevista, um homem me disse que era errado o presidente xingar os repórteres, porque eles estão trabalhando. A reprimenda é em relação ao comportamento dele com outros trabalhadores e não ao que nós, universitários, entendemos como sendo grave: o fato de ele ser violento e elogiar a tortura. Não é este o problema. As pessoas não gostam de xingamentos, de esporro. Gostaria de enfatizar o papel do trabalho aqui: essas pessoas veem o trabalhador de outra maneira e este é o núcleo de uma constelação de valores.

Se a pessoa trabalha, merece respeito, mas se não trabalha, merece desprezo.

Talvez Bolsonaro não tenha essa sintonia fina de perceber que o comportamento dele é visto como imoral quando ofende os trabalhadores. Esse é um traço curioso que notei nessas entrevistas e merece mais aprofundamento.
No artigo, você também menciona que essas pessoas não veem o presidente como responsável pelas mortes de covid-19. O que elas dizem?

Em relação ao vírus em si, a maioria das pessoas não vê Bolsonaro como o maior responsável pelas mortes de covid-
19. A pandemia é vista como um evento da natureza e as pessoas avaliam que ele fez o que pôde.

Nós gostamos de debochar do discurso dele acerca da cloroquina, mas o que passa pelo raciocínio das pessoas não é se o remédio fez efeito ou não, mas sim que o presidente está fazendo alguma coisa, porque ninguém sabe o que funciona até o momento. Então, elas leem os discursos dele como boa intenção de fazer algo. Além disso, veem Bolsonaro como uma pessoa comum que está trabalhando e tentando fazer algo. Nesse sentido, ele pode errar e falar num tom equivocado às vezes ou se expressar mal, porque ele não peca pela omissão. Do mesmo modo, embora saibamos que não era uma proposta do governo conceder o auxílio emergencial, no fim, quem deu a canetada que colocou R$ 600 na conta das pessoas foi ele.

Nas universidades também cresce o discurso do empreendedorismo. Como vê esse movimento no horizonte para o futuro econômico e social do país?

A universidade está num momento de redefinição dos seus rumos – e a pandemia acelerou esse processo – e há algum tempo está mudando o seu perfil. Existe uma desvalorização do diploma e ele não é mais o que foi antigamente do ponto de vista social – mas é claro que ter o diploma ainda é melhor do que não ter do ponto de vista de remuneração, mas ele não é mais um passaporte para uma vida melhor; ele é um visto temporário.

As universidades, principalmente as de pior qualidade, veem nisso um problema e, ao mesmo tempo, uma solução. Em função disso, começam a se proliferar aqueles cursos de curto prazo, de dois anos, e a ideia de que as pessoas precisam fazer cada vez mais. Ou seja, não basta fazer um curso só; é preciso fazer vários e, portanto, as pessoas precisam pagar por vários. O discurso do empreendedorismo penetra em diversos poros da sociedade, e na universidade isso acontece quando se percebe que o diploma não é mais tão necessário.

A situação fica ainda mais complicada quando essa visão penetra nas instituições públicas que, em tese, por terem financiamento público, estariam preservadas, mas não estão. Elas investem cada vez mais na ideia de inovação, e isso penetra em lugares que não geram valor econômico, como nos cursos de história, pedagogia, sociologia, ou seja, em disciplinas que não servem para gerar valor econômico. Por que alguém tem que ser produtivista numa faculdade de filosofia? Se o professor publicar um ou dez artigos por ano, isso não lhe dará mais dinheiro. Então, de onde vem essa gana por produzir como se fosse uma empresa? Este é o núcleo do neoliberalismo como ideologia e como ele penetra na nossa subjetividade.

Como ele penetra em todos os poros, vai desde o indivíduo até o Estado, que cria editais e mecanismos que empurram a universidade para este lado. Então, a extensão universitária, que tem o seu valor como um tripé universitário, acabou virando uma muleta. A universidade, para se sentir valorizada perante a sociedade, precisa investir em extensão universitária, porque a pesquisa não é vista como algo de valor. A própria universidade e o Estado não veem a pesquisa como valor.

A universidade está em crise, sem saber exatamente qual é o seu papel na sociedade?
Exatamente. Ao invés de a universidade enfrentar a difamação de ser um lugar de pessoas que não trabalham, e valorizar o que ela tem de melhor, que é a pesquisa, isso não é valorizado pela própria universidade. Ela se vê acuada por esses ataques e responde do jeito errado, ou seja, dizendo que tem um projeto de extensão social e trabalha em parcerias com ONGs. Ou seja, isso vira uma muleta para ela se legitimar. Mas aí entra o papel dos dirigentes universitários.

Se nós, enquanto pesquisadores, nos vemos como empreendedores acadêmicos que precisam produzir cada vez mais e trazer sempre coisas novas, se estamos fazendo isso no nosso cotidiano, como temos condições de cobrar que a universidade seja diferente? Nós reproduzimos a mesma lógica, mesmo quem é crítico.

É um momento difícil e não saberia dar uma receita, mas a universidade deveria enfrentar os ataques. Já tivemos um AI-5 para mostrar que a universidade consegue sobreviver a ataques mais violentos, mas por que não conseguimos resistir ao neoliberalismo – que não é um decreto – no nosso próprio cotidiano, na nossa rotina de trabalho? Por que estamos nos dispondo a trabalhar cada vez mais, incessantemente, tendo inúmeros problemas de saúde mental? Os problemas de saúde mental no ambiente acadêmico são inúmeros, com depressão, casos de suicídio por conta da pressão por produção. Escrever uma boa tese de doutorado é muito melhor do que escrever vinte artigos por ano falando sobre a mesma coisa. No dia a dia, as pessoas se veem incapacitadas de enfrentar esta lógica.

‘Falar sobre suicídio e morte ainda é um grande tabu’, diz Walcyr Carrasco

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Autor lança, na Bienal do Livro, duas obras que tratam de drogas e suicídio de jovens: ‘Êxtase’ e ‘Meu Lugar no Mundo’

Ubiratan Brasil, O Estado de S. Paulo – 08/07/2022

Walcyr Carrasco é mais conhecido como autor de telenovelas de sucesso – títulos como O Cravo e a Rosa e Chocolate com Pimenta, além da minissérie Verdades Secretas, já figuram entre os grandes nomes da TV brasileira. Mas Walcyr ostenta também uma consolidada obra literária, especialmente a dedicada ao público infantojuvenil, com mais de 50 livros publicados. E é justamente o lançamento de duas novas obras que levará o escritor de 70 anos à Bienal do Livro de São Paulo, neste sábado, 9.

A partir das 16h, Walcyr estará no estande da Santillana Educação para o lançamento oficial de Meu Lugar no Mundo, seu mais recente livro voltado ao público jovem e que trata de questões espinhosas, como saúde mental e suicídio na adolescência. Ele também assina Êxtase (Assírio & Alvim Brasil), volume que traz o texto da peça teatral que foi encenada em 2002 e que lança um olhar objetivo sobre a realidade dos dependentes químicos.

São dois livros que tratam de momentos delicados da fase juvenil, quando a situação parece fugir do controle e as soluções escolhidas muitas vezes são drásticas demais. A peça Êxtase traz dois jovens: Felipe, usuário de drogas, e Raul, cujas atitudes revelam alguém já perto de virar traficante. Há ainda Tânia, mãe de Felipe, que não percebe as falcatruas do filho para conseguir dinheiro e sustentar o vício. Walcyr pesquisou entre pessoas envolvidas nesse problema para conseguir mais fidelidade.

Já Meu Lugar no Mundo foi inspirado em um episódio da juventude de Walcyr, quando descobriu o suicídio de um amigo. Assim, o autor conta a história de Aleph, adolescente que é constantemente submetido a comparações com seu irmão Ariel, considerado por seus pais um exemplo. O drama se agrava quando uma amiga de Aleph sofre bullying e, não suportando a pressão, comete suicídio. Walcyr trata de um tema delicado e comum entre jovens, quando são questionados a respeito de seu lugar no mundo. Sobre o assunto, o escritor conversou por telefone com o Estadão.
Os dois livros relatam momentos problemáticos vividos por jovens, quando se encontram em situação-limite. Como foi isso?

Há algumas diferenças. Êxtase é uma peça escrita há 20 anos e sobre um tema que me tocava – escrevi com base em depoimento de dependentes químicos em recuperação, visitas a clínicas e leituras. Mas eu não tinha um público-alvo com esse texto. Já Meu Lugar no Mundo, que concluí no ano passado, tem a vocação, a ambição de ser lido por estudantes, como leitura paralela ao currículo escolar. E trata de temas próximos a esse público, com questões sobre o que vou ser e como vou ser. Aleph é um personagem positivo. Já em Êxtase, os jovens não têm saída, cada um tenta cuidar de si e não se importa com o outro. Ao contrário de Aleph e outros personagens, que concluem que não precisam seguir o caminho que é apontado por eles por pais ou professores.

Aliás, o tema do bullying sempre é incômodo, não?

É muito forte. Nos dias atuais, trabalhar e educar um jovem ficou muito difícil em relação ao que era anos atrás, pois há uma grande quantidade de estímulos que os cercam e, às vezes, não é fácil identificar esses estímulos. Antes, era mais fácil para um pai estabelecer um contato com seu filho, mas hoje ele não sabe jogar os brinquedos eletrônicos favoritos dos jovens, o que o afasta dos adolescentes. Claro que há filhos que buscam estabelecer um diálogo, mas há também aqueles que não se interessam. Sei que não é fácil acompanhar a evolução dos tempos. Há 20 anos, fui ao Japão fazer uma pesquisa para uma novela que estava preparando e passei a entender tudo sobre robótica. Hoje, eu não conseguiria assistir a uma aula online, algo que os jovens fazem com naturalidade.
A sociedade ainda tem vergonha de falar sobre certos assuntos.

Sim, suicídio é um deles, é um tabu enorme. Na verdade, falar sobre morte é o tabu. Tenho 70 anos e sei que não viverei mais tanto tempo. Mas, quando falo isso, as pessoas ficam horrorizadas, me preconizam uma vida muito longa, como se eu pudesse chegar aos 140 anos. Sabemos que não somos eternos. Mas o suicídio é um assunto muito delicado, pois representa a decisão da pessoa de abandonar todos os seus sonhos e suas esperanças.

Como foi seu trabalho com esse tema?

Muito antes de escrever meu livro, li uma obra espantosa, O Demônio do Meio-Dia, em que o americano Andrew Solomon, ao narrar sua própria batalha contra a depressão, conta o caso de um amigo que era o rei das festas e, de repente, comete suicídio. Foi uma surpresa pois, aparentemente, ele não deu indícios de que faria isso. Provavelmente, ele deu, mas não perceberam. O potencial suicida nem sempre dá sinal claro de que vai se matar. É um ato que implica um valor moral que só é bem compreendido pelas pessoas que têm uma moral semelhante – não podemos nos esquecer que nossa sociedade estabelece valores religiosos que interferem diretamente nessa moral.

E como foi tratar desse assunto para os jovens?

Parto do princípio de que tudo que é explicitamente educativo é chato. Um livro que coloca a moral da história no final não é nada atraente. Temos de oferecer argumentos para que o leitor tire suas conclusões. Assim, em livro como Meu Lugar no Mundo, procuro abrir caminho para a discussão. Não se pode determinar nada inflexível. Considero terrível o fato de os jovens de 15, 16 anos serem obrigados a escolher uma profissão. É difícil saber a resposta com tão pouca idade.

E como é escrever para um público jovem?

Sou um autor muito intuitivo. Se tenho de escrever um texto para crianças de 7 anos, a ideia sai formatada para essa idade. O mesmo acontece se é uma novela de época. Minha única preocupação é com o público, uma sociedade plural.

A quem interessa o armamento da população?, por Carlos Alberto Vilhena,

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Armar civis é levar a morte a suicidas, pela tristeza; às mulheres, pelos homens furiosos; e aos Durvais, pelos Aurélios amedrontados.

Carlos Alberto Vilhena, PROCURADOR FEDERAL DOS DIREITOS DO CIDADÃO

O Estado de S. Paulo – 09/07/2022

Durval Teófilo Filho era negro e tinha 38 anos. Pai de Letícia e marido de Luziane, trabalhava num supermercado. Morava com a família num condomínio em São Gonçalo, Rio de Janeiro. Na noite de 2 de fevereiro, ele voltava a pé para casa enquanto mexia em sua mochila. Sem aviso, recebeu três tiros na barriga. Aurélio Alves Bezerra, militar da Marinha e seu vizinho, efetuara os disparos. Ele havia confundido Durval com um bandido e pensou que fosse ser assaltado. Durval morreu. Até maio, Aurélio seguia preso.

Aurélio provavelmente queria se sentir protegido, por isso a pistola. Essa tem sido a base do discurso armamentista. Nessa linha, com uma arma, uma pessoa será capaz de se defender de qualquer ameaça, num país de violência extrema como o Brasil.

O lema “mais armas significam mais segurança” permeou a campanha do atual presidente da República. Seu programa de governo previa a alteração do Estatuto do Desarmamento para garantir ao cidadão a legítima defesa, ou seja, armar os civis.

O governo tenta cumprir seu compromisso eleitoral. Sua intenção é facilitar o acesso a armas e munições pela população civil. Publicou, até março deste ano, 36 normativos infralegais com esse fim.

Os Caçadores, Atiradores Desportivos e Colecionadores (CAC) foram especialmente contemplados: segundo o texto do Decreto n.º 9.846/2019, questionado no Supremo Tribunal Federal (STF), um atirador pode ter até 60 armas, 30 delas de uso restrito, e adquirir até 180 mil balas por ano.

Coincidentemente, os registros de CACs aumentaram 474% entre 2018 e 2022, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Há mais de 673 mil CACs no Brasil, um número superior ao de todos os policiais civis e militares somados, cujo efetivo era, segundo o site da revista Piauí, de 499 mil agentes em 2021.

Contudo, armar a população não produz os efeitos apregoados pelo governo. O próprio presidente foi assaltado quando era deputado federal em 1995. Dois rapazes roubaram sua moto e sua pistola. Na ocasião, ele disse: “Mesmo armado, me senti indefeso”.

O fato é que as armas contribuem para a insegurança da sociedade. Das mais de 47 mil mortes violentas ocorridas em 2021 no Brasil, 76% foram causadas por armas de fogo. Ressalte-se que 78% das vítimas de assassinatos eram pessoas negras, como Durval.

O mesmo ocorre nos feminicídios. Entre 1999 e 2019, 51% das vítimas desse crime foram mortas a tiros. E mais de 70% delas eram mulheres negras.

Quanto a enfrentar assaltantes, um estudo da Secretaria de Segurança de São Paulo, realizado em 1998, mostrou que uma pessoa armada tinha 56% mais chance de morrer em um latrocínio do que uma desarmada.

Além disso, as taxas de suicídio crescem nos lugares onde há mais armas. Estudo conduzido nos Estados Unidos indicou que cada incremento de 10 pontos porcentuais na taxa estadual de lares com armas eleva o suicídio de jovens em quase 27%.

Ressalte-se que muitas armas usadas em crimes têm origem legal. Estudo do Instituto Sou da Paz mostrou que 33 mil armas legais foram parar nas mãos de criminosos entre 2011 e 2020.

Uma recente pesquisa do instituto Datafolha indicou que 72% de nossa população discordam da ideia de que mais armas trarão mais segurança à sociedade, enquanto 70% das pessoas discordam da facilitação do acesso a armas. Ou seja, o governo age em desacordo com a vontade popular.

Com tantas objeções de peso e com mais gente contra do que a favor, por que insistir no armamento da população?
A principal razão talvez seja econômica: segundo a revista Tecnologia & Defesa, Taurus e CBC, as duas principais empresas de armas de fogo e munições do Brasil, geram 60 mil empregos diretos e indiretos, com faturamento de R$ 5 bilhões.

É preciso refletir sobre um gestor público que propõe o armamento de civis como política de segurança. Ao fazê-lo, diante de tantas evidências contrárias a essa ideia, ele confessa sua incapacidade de proteger a população.

A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) entende que as medidas adotadas para armar civis contrariam o espírito de nossa Constituição. Se a segurança pública é dever do Estado, e há ampla comprovação de que mais armas significam mais mortes, tais medidas não podem ser legítimas.

Some-se a isso o uso de meios infralegais para burlar o Estatuto do Desarmamento, aumentando a circulação de armas no País. É inadmissível que o Executivo extrapole suas competências regulamentares, visando a alterar normas aprovadas pelo Legislativo.

A PFDC também repudia ato em defesa da liberação das armas convocado por grupos armamentistas para este 9 de julho, Dia Mundial pelo Desarmamento.

Armar civis é levar a morte aos suicidas, pela tristeza; às mulheres, pelos homens furiosos; e aos Durvais, pelos Aurélios amedrontados.

Arma é lucro, arma é violência, arma é morte. Arma não é segurança. Quem vende essa ideia está com o dedo no gatilho, apontando e apostando contra mim, contra você e contra milhões de brasileiros que não desejam matar, mas apenas viver.

Possível recessão global

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O século XXI está nos trazendo grandes instabilidades e incertezas que desestruturam a sociedade, espalhando medos e ansiedades que crescem em todas as regiões, intensificando os conflitos sociais, políticos e econômicos, exigindo dos Estados Nacionais mais consistência e a busca de novos consensos e buscando políticas públicas mais ousadas e que reduzam o crescimento da desigualdade que crassa na sociedade global.

Depois da crise internacional de 2008 que desestruturou os sistemas financeiros nacionais e internacionais e exigiram dos governos a adoção de políticas efetivas de socialização dos custos como forma de proteger os grandes conglomerados e evitar, que muitas organizações fossem a bancarrota. Nos últimos anos, a pandemia contribuiu negativamente para desagregar acordos internacionais e trouxe grandes custos físicos e humanos e, com milhões de mortes e desequilíbrios gritantes. Somando aos fenômenos anteriores que contribuem para degradar os cenários econômicos, o conflito militar entre ucranianos e russos tendem a elevar a temperatura internacional, prejudicando os investimentos, aumentando o protecionismo e reduzindo os fluxos de comércio internacional, além de contribuir para a elevação dos preços globais e reduzindo a renda das populações, degradando as condições sociais da população, aumentando o xenofobismo e os conflitos culturais e religiosos.

Depois de uma severa crise gerada pela pandemia, que está reorientando as nações, criando novos desafios e abrindo espaços para novas oportunidades, a sociedade global precisa construir novos consensos, criando instrumentos de solidariedade e empatia, estimulando a tão combalida democracia e a construção de uma agenda que proteja os grupos sociais mais fragilizados, respeitando suas manifestações culturais e aprofundando todos os canais de participação social, política e econômica.

A guerra na Ucrânia está fragilizando as estruturas de poder global, criando novos embates entre as nações, revivendo rivalidades históricas, espalhando desagregações e estimulando o crescimento de políticas protecionistas, priorizando seus interesses imediatos e deixando de lado a solidariedade que contribuiu, anteriormente, para a construção de um ambiente centrado no progresso social, no crescimento econômico e na estabilidade política no pós-segunda guerra mundial.

Neste ambiente percebemos perspectivas crescentes de recessão global nos próximos meses, com baixo investimento produtivo, redução dos empregos, aumento do endividamento dos governos e das famílias, com isso, postergamos a recuperação da renda da população e o crescimento da fome. Destacamos ainda a elevação dos custos energéticos, o incremento dos preços dos combustíveis e dos alimentos que impactam diretamente sobre as sociedades, num ambiente de grandes incertezas que reduzem os investimentos produtivos e passam a exigir das nações políticas públicas e sociais mais consistentes.

Internamente, percebemos grandes incertezas na condução da política econômica, o cenário fiscal é preocupante e marcado por grandes instabilidades, contribuindo negativamente para a chegada dos investimentos estrangeiros, além disso, destacamos que as taxas elevadas de juros, que visam o controle dos preços e impedir a escalada inflacionária, reduzindo os investimentos governamentais, aumentando a insegurança alimentar, fomentando a fome e a exclusão social. Neste cenário de degradação econômica, a atuação do governo é premente e imprescindível, retomando os investimentos produtivos, aumentando a progressividade tributária, investindo em pesquisas científicas, aumentando os dispêndios em educação, aumentando a transparência da coisa pública, melhorando os recursos para a saúde e reestruturando políticas públicas.

A comunidade internacional já percebeu a necessidade de novos estímulos fiscais e investimentos governamentais como forma de reativar o sistema econômico e produtivo e, infelizmente, ainda estamos discutindo questões secundárias, ultrapassadas e rudimentares, degradando as instituições de regulação do Estado Nacional, devastando as riquezas naturais e nos esforçando para sermos um verdadeiro pária internacional.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa (Unyleya), Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 06/07/2022.

Racismo e desigualdade marcam educação pós-Independência, por Paulo Saldaña.

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Processo histórico que afastou negros e pobres da escola levou país a imenso atraso civilizacional

Paulo Saldaña, Repórter de educação da Folha de S.Paulo em Brasília. É fundador e um diretores da Jeduca (Associação de Jornalistas de Educação).

Folha de São Paulo, 03/07/2022

[RESUMO] A educação pública nos 200 anos do Brasil independente teve como barreiras o racismo, a desigualdade e o subfinanciamento, fatores ainda não totalmente superados que marginalizaram a população negra e pobre e legaram ao país um imenso atraso civilizacional. Após avanços nas últimas décadas, ensino segue sem rumo no governo Bolsonaro, cujo Ministério da Educação virou até caso de polícia.

Olhar para o filme da educação pública ao longo desses 200 anos pós-independência é entender, por um lado, a arquitetura do nosso atraso em relação a outros países e, sobretudo, entre nossa população. Por outro, vê-se uma tardia, mas bem-vinda, reação em busca de uma democratização da escola.

O Brasil ter vivenciado uma independência com a manutenção da e escravidão é, na opinião de estudiosos, ponto de
partida obrigatório para uma reflexão que reconheça o papel essencial da educação na socialização dos indivíduos, no preparo para a cidadania, na formação de capital humano e na garantia de igualdade de oportunidades.

A persistência de estruturas racistas e excludentes faz com que a discussão sobre independência e autonomia esteja permeada por um questionamento: como o país aceitou que, ano após ano, parcelas significativas da população, especialmente negra e pobre, fossem alijadas do acesso a algo tão fundamental para uma vida digna, como é a educação?

“Não se passa impunemente pelo fato de o Brasil ter sido o último a abolir a escravidão, depois de receber quase metade dos negros escravizados e ter vivenciado a escravidão em todo o território”, diz a antropóloga e historiadora Lilia Moritz Schwarcz. O Brasil foi a última nação da América Latina a acaba com a escravidão, fato considerado derradeiro no mundo ocidental.

“A escravidão criou uma linguagem da desigualdade no país que se inscreveu na educação.”

Estima-se que o Brasil recebeu 4,8 milhões de negros escravizados, segundo o Banco de Dados do Comércio Transatlântico de Escravos. Isso representaria 46% dos escravizados embarcados, segundo análise de pesquisadores.
Todos os indicadores educacionais atuais mostram a população negra mais prejudicada, assim como os pobres em geral, indígenas e crianças e jovens com deficiência —seja no acesso, na permanência ou no aprendizado.

Quase 4 em cada 10 jovens negros de 19 anos não conseguiram terminar o ensino médio, segundo dados de 2020, os mais atualizados com esse recorte. A proporção é semelhante quando se olha para dados segregados dos 25% mais pobres.
Entre os jovens brancos, os indicadores inspiram preocupação, mas a relação cai para 2 de cada 10. Já o quartil da população de maior renda está perto da universalização, com 93% de conclusão da educação básica, que vai da creche ao ensino médio.

A escolaridade avançou com alguma rapidez no país só mais recentemente. Há dez anos, em 2012, quase metade de todos os jovens de 19 anos ainda não havia concluído o ensino médio. Hoje, o montante de jovens dessa faixa etária sem ensino médio concluído é, na média, de 30,6% (dados de 2020).

O acesso à educação tem impactos que superam a esfera acadêmica. A remuneração ao longo da vida de uma pessoa com ensino médio pode ser, por exemplo, entre 17% e 48% maior que a daquela com o mesmo perfil, mas escolarizada até o ensino fundamental. Outros índices de qualidade de vida, como saúde e planejamento familiar, também são desfavoráveis, segundo estudo recente do professor Ricardo Paes de Barros, do Inper.

Para cada 1% a mais de jovens entre 15 e 17 anos nas escolas, há uma diminuição de 2% na taxa de assassinatos nos municípios, indica pesquisa de 2016 do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).

A ideia de uma oferta escolar no Brasil tem um pontapé inicial após 1822, de maneira mais simbólica que prática. Encontram-se a partir dali, no entanto, raízes de alguns dos grandes desafios da evolução educacional brasileira, como racismo, exclusão, desigualdade, subfinanciamento e o empura-empurra de atribuições.

Se o Brasil começou a vivenciar certas institucionalidades a partir de 1808, com a chegada da família real portuguesa, foi somente na Constituição de 1824 que surgiria a menção à gratuidade da “instrução primária”. Isso, porém, valeria apenas para uma elite bastante restrita —ficou de fora a imensa maioria da população, como os escravizados e praticamente todos os não proprietários de terras.

Como comparação, a oferta de escola como obrigação aparece pela primeira vez no mundo em 1612, na Prússia (que se tornaria parte da Alemanha). Vários países passam a incluir a educação dentro de políticas incentivadas a partir do século 19, como ocorreu nos Estados Unidos, país que conseguiu ainda nessa época grande expansão na escolaridade, embora com marcas persistentes de segregação racial.

Ainda no Brasil imperial, a Lei de Instrução Pública de 1827 fez um movimento em direção a alguma organização nesse sentido. Transferiu para as províncias (denominados de estados após a República) o encargo da oferta da educação primária, ficando a superior a cargo do poder central.

Esse desenho institucional, em que sobram responsabilidades para governos locais e falta dinheiro de impostos, explica, segundo vasta bibliografia, um dos grandes obstáculos para uma expansão. Mesmo hoje, tal organização guarda desequilíbrios.

Fato é que o crescimento da escolarização foi inexpressivo no império. Após a Proclamação da República, alguns estados registraram iniciativas de criação de escolas, inclusive as chamadas escolas normais, para formação docente.

Essa ação descoordenada desencadearia parte das profundas desigualdades regionais que vemos hoje, com desvantagens substanciais para o Norte e o Nordeste.

Na transição do Império para a República, foram se consolidando certas estruturas significativas da nossa história, como a zona cinzenta entre público e privado do patrimonialismo brasileiro e as marcas de um mandonismo local.
“O grande senhor acabou por ser o senhor da educação”, diz Schwarcz, que é professora da USP. “Quanto mais mandonismo associado a um grande patrimonialismo, mais há contaminação dessas esferas e o favorecimento de certas elites que tendem a se perpetuar no poder.”

Também esteve ausente qualquer movimento de reparação aos anos de escravidão, embora seja consenso entre historiadores e estudiosos a existência de movimentos reivindicatórios pelo acesso à educação.

“O Brasil foi forjado na compreensão de uma nação com direitos para poucos”, diz Suelaine Carneiro, coordenadora de Educação e Pesquisa do Geledés Instituto da Mulher Negra. “A educação nasce desse jeito, as universidades, sempre para aqueles que eram considerados merecedores.”

Em 1830, a pioneira Prússia já tinha 70% das crianças de 5 a 14 anos na escola. Já o Brasil chega a 1900, por exemplo, com apenas 10% da população entre 5 a 14 anos nos bancos escolares, segundo estimativas elaboradas por Peter Lindert, no livro “Growing Public”.

O percentual nos Estados Unidos nessa época era de 94%. Em Cuba, 37%; na Argentina, 32%; e a Bolívia chegava a 14%. Alguns países europeus, como Inglaterra, Holanda e França, conseguiram diminuir significativamente, ou zerar, o analfabetismo por volta de 1900.

Por aqui, altas taxas de analfabetismo perduraram até o fim do século 20. Quase 30% da população era analfabeta em 1970 —até 1985, o analfabeto não tinha direito a voto no Brasil.

A partir da democratização, esses índices começam a melhorar. Estima-se, entretanto, que hoje 11 milhões de brasileiros não sabem ler e escrever (6,6% da população com mais de 15 anos).

A situação educacional no Brasil estava longe de uma organização mesmo após o primeiro centenário da Independência. Foi somente a partir da década de 1930 que um sistema educacional começou a ganhar corpo, sobretudo na ditadura do Estado Novo (1937-1945).

Data dessa época o empenho de intelectuais em torno do tema. Iniciativa emblemática é o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, de 1932, que uniu nomes como Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira, e versava sobre a universalização da escola pública, laica e gratuita, e a necessidade de tornar a educação uma prioridade nacional.
Até quando houve esse certo otimismo com a educação, o sistema foi sendo estruturado distante de uma visão democrática.

Na educação básica, a reforma promovida por Gustavo Capanema, ministro da Educação e Saúde de Getúlio Vargas, institucionalizou uma lógica excludente e dualista: a instrução primária seria para todos e “às classes menos favorecidas”, como ressalta a Constituição de 1937, deveria haver o pré-vocacional (profissionalizante).

Já a educação secundária teria a finalidade de “formar as individualidades condutoras”, como é descrito em decreto de 1942. Assim, essa etapa, que hoje compreenderia do 6º ano do fundamental ao ensino médio, estaria destinada à elite, preparada para chegar à universidade —o que, de fato, pouco ocorria.

Essa dualidade ainda tem ecos em discursos recentes. O pastor Milton Ribeiro, ex-ministro da Educação do governo Jair Bolsonaro (PL), causou polêmica no ano passado ao dizer que universidade deveria ser para poucos, e a massa que ficasse com o ensino técnico —cuja oferta é muito baixa.

Na reforma de Capanema, consolida-se um caráter seletivo do sistema, com exames de admissão, aliado a altos índices de reprovação. Em 1960, a cada mil estudantes que começavam a educação básica, nem 60 chegavam ao ensino superior.
O professor emérito da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) Carlos Roberto Jamil Cury explica que há um marco em 1934: surge pela primeira vez a vinculação específica de impostos para a educação.

Um instrumento que persevera no país, apesar de interrupções. “Cada vez que tivemos regimes ditatoriais, como em 1937 e 1964, houve a desvinculação”, diz Cury. O governo Bolsonaro aventou mais uma vez eliminar essa vinculação, que hoje preconiza a aplicação mínima na educação de 18% das receitas para a União e 25% para municípios e estados.

Na ditadura militar, mais uma vez um contrassenso. A desvinculação de recursos surgiu na Constituição de 1967, concomitantemente à ampliação da obrigatoriedade de matrícula para 8 anos. Assim, impunha-se um passivo enorme para construção de escolas, garantia da permanência, formação e contratação de professores, em um país continental e desescolarizado, sem que houvesse fontes consistentes de recursos.

Segundo Cury, intensificou-se ali o processo de uma expansão sucateada, acompanhada de desvalorização docente. Uma desvalorização profissional que recai sobre a mulher, predominante na carreira até hoje.

Em 1985, na redemocratização, o investimento em educação no país não chegava a 3% do PIB (Produto Interno Bruto). A escolaridade média do brasileiro não passava de quatro anos nessa época; na Argentina e no Chile, estava em torno de sete.

Os dados mais recentes mostram que a escolaridade média do brasileiro com mais de 25 anos é de 9,4 anos, segundo o IBGE. Quando considerada a população entre 18 e 29 anos, são 11,8 anos de estudo, o que cai para 10,8 entre os 25% mais pobres.

“A partir dos anos 1980, a escola começa se tornar mais pública, mas a classe média começa a sair, com o processo de privatização e o estabelecimento da educação como um negócio”, diz a historiadora e educadora Pilar Lacerda, ex-secretária de Educação Básica do MEC (Ministério da Educação).

“A escola pública acabou relegada para os pobres. Nunca se construiu no país uma escola pública no sentido literal, aquela que, nas palavras de Anísio Teixeira, seria a verdadeira fábrica da democracia”.

O ensino superior, com mais verbas da União, viu avanços durante a ditadura militar. Houve a criação de universidades e fortalecimento de instituições de fomento à pesquisa e pós-graduação, como o CNPQ (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e a Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior).

Hoje, as universidades públicas brasileiras concentram a maior parte da pesquisa científica e da inovação no país, um papel que a indústria não conseguiu realizar a contento.

É com a Constituição de 1988 que a educação se cristaliza como um direito de todos. Ainda diante de um cenário em que a União concentra a arrecadação e sobram para estados e municípios os maiores gastos, a criação do Fundef, em 1998, dá um importante impulso para um avanço substancial das matrículas.

O Fundef (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério) é uma sub-vinculação de recursos destinados à educação com lastro no número de matrículas por redes de ensino. Como o nome deixa claro, a base do cálculo levava em conta só o ciclo fundamental.

Em 2007, esse fundo foi substituído pelo Fundeb, que passou a contemplar a creche, a pré-escola e o ensino médio. Surge assim, pela primeira vez, um mecanismo que olha para o tipo de aluno. Matrículas indígenas, quilombolas e de educação especial, por exemplo, têm ponderação diferenciada na hora da divisão do bolo.

Somente em 2008, duas décadas após a Constituição Cidadã, o país alcançou uma taxa líquida de matrículas no ensino fundamental de 95%. O índice era de 84% em 1991. “Temos, sim, o que celebrar por ser um país que passou de uma minoria branca, masculina e proprietária nas escolas para um cenário de universalização do ensino fundamental”, diz Pilar Lacerda.

Também apenas em 2008 o Brasil supera a marca de ter metade dos jovens de 15 a 17 anos no ensino médio. Essa taxa ficava em 18% em 1991, segundo o Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais).

Na Coreia do Sul, país com população de 52 milhões e cujo sucesso educacional é muitas vezes citado como exemplo, o ensino primário (equivalente aos primeiros anos do fundamental) foi universalizado no final dos anos 1960, com avanços nas décadas seguintes da escolarização nas outras etapas.

O Brasil concentra atualmente 36 milhões de matrículas na educação básica pública. Um contingente que representa quase duas vezes a população do Chile.

Em 2020, o Fundeb foi renovado, incluído na Constituição, com a previsão de maior complementação da União no financiamento. Houve uma inovação com recursos direcionados à educação infantil, cuja importância para o desenvolvimento tem sido reforçada por estudos científicos.

Ao passo que os mais pobres passaram a ser incluídos, entrou pela porta da escola a realidade socioeconômica do grosso da sociedade. Evidências mostram como o perfil dos alunos, como a escolaridade da mãe, é fator de grande relevância para o alcance do sucesso educacional —o que configura um desafio extra na busca de melhoria educacional.

Até antes da pandemia, os dados de aprendizagem mostram uma curva de melhoria nos anos iniciais do ensino fundamental (do 1º ao 5º ano). A tendência enfraquece nos anos finais (do 6º ao 9º), e o cenário é mais preocupante no ensino médio.

Dados da avaliação federal de 2019 indicam que somente 10% dos concluintes do ensino médio aprenderam o considerado adequado em matemática, segundo tabulação do Todos Pela Educação. Essa marca fica abaixo de 5% entre pretos e mais pobres, e é somente 3% na zona rural.

A melhoria de aprendizado provoca reflexos sociais amplos. Uma pesquisa de março de 2022 mostrou que avanços na qualidade do ensino podem estar associados à diminuição de 25% nos homicídios e no aumento de 200% na geração de empregos entre jovens de 22 e 23 anos.

Já no ensino superior, políticas recentes como bolsas em faculdades privadas, com o ProUni, o Fies (Financiamento Estudantil), a expansão para o interior das universidades federais e a Lei de Cotas contribuíram para diversificar o retrato que por décadas foi dominado pelas classes abastadas.

Estudo do pesquisador do Inep Adriano Senkevics apontou que apenas 16% dos jovens de 18 a 24 anos que acessam o ensino superior estão entre os 40% mais pobres da população. Em 1995, esse percentual era de 3%.

O Brasil tem uma das piores taxas de pessoas com ensino superior completo entre os países e territórios avaliados em 2019 pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Apenas 21% dos brasileiros de 25 a 34 anos têm diploma universitário, índice inferior ao de países como México (23%), Costa Rica (28%) e Colômbia (29%). A média da OCDE é de 44%.

INICIATIVAS DO GOVERNO BOLSONARO NÃO DIALOGAM COM PRIORIDADES DA ÁREA
Ao comentar o cenário educacional nesses 200 anos da Independência, o professor emérito da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) Carlos Roberto Jamil Cury pondera que sua análise vai até 2018, no fim do governo Michel Temer (MDB).

Para ele, as iniciativas do governo Jair Bolsonaro (PL) não dialogam com as prioridades da área. “As prioridades foram exatamente desqualificadoras da escola pública, como a expansão de unidades cívico-militares e o ensino domiciliar”, diz Cury.

Até 2018, avalia, os esforços nos sucessivos governos democráticos se debruçaram, mesmo que com falhas e questionamentos, às questões de avanço da matrícula, monitoramento do aprendizado, ampliação de creche, definições curriculares, com a Base Nacional Comum Curricular, e reforma do ensino médio.

“Agora, o que vemos é discussão de ideologia de gênero [termo nunca usado por educadores], marxismo cultural, e todo um discurso de desqualificação do professor e da própria escola, como se fossem antros de esquerdismo.”

Sob o governo Bolsonaro, o orçamento de educação cai a cada ano, e o MEC viveu entre trocas de equipe, disputas ideológicas e uma ausência de políticas públicas estruturadas, inclusive na pandemia.

Como se não bastasse o cenário, o terceiro ministro da Educação de Bolsonaro, o pastor Milton Ribeiro, foi preso em 22 de junho em operação da Polícia Federal que investiga um balcão de negócios operado com pastores aliados do presidente.

Milton Ribeiro havia deixado o cargo em março, uma semana depois de a Folha revela áudio em que ele dizia privilegiar solicitações de pastores para liberação de recursos da pasta. Essa priorização seria um pedido de Bolsonaro, diz Ribeiro na gravação.

Para Suelaine Carneiro, do Geledes, a busca por direitos é um processo permanente. “O nível de otimismo tem que estar alto sempre”, diz. “A gente sabe que a luta é digna e que contempla toda população.”

Auxílio Brasil não é ágil o suficiente para mitigar perdas recorrentes de renda, por S. Firpo.

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Aumento do benefício para R$ 600 pode amplificar ineficiência da distribuição de recursos para transferência de renda

Sérgio Firpo, Professor de economia e coordenador do Centro de Ciência de Dados do Insper

Folha de São Paulo, 01/07/2022

O governo conseguiu ampliar o valor dos benefícios do Auxílio Brasil para R$ 600 por família. A despeito de parecer evidente oportunismo eleitoral, essa é uma ótima notícia para os beneficiários do programa. Mas vale notar que, para além do custo fiscal óbvio de tal medida, o aumento amplifica um potencial custo de ineficiência, que é o da má distribuição do Auxílio Brasil entre as famílias vulneráveis.

Para que o maior número possível de famílias seja retirada da pobreza com uma dada quantidade de recursos, distribuição focalizada é fundamental. Há duas principais razões, como já foi apontado por Ricardo Henriques em artigo recente, para a redução na focalização do Auxílio Brasil, quando comparada àquela do Bolsa Família.
Primeiro, os critérios de alocação dos valores por família usados no Bolsa Família e baseados em estrutura demográfica e de geração de renda foram solapados com a distribuição uniforme de R$ 400 (e agora, R$ 600). Em seguida, há um contexto de baixíssima taxa de atualização cadastral das famílias em situação vulnerável. Os dados de várias famílias têm permanecido sem atualização por anos, fazendo com que o critério de elegibilidade não seja prontamente verificado.

Há, contudo, um ponto relevante que deve ser levado em conta na discussão sobre custos de ineficiência associados à falta de atualização cadastral. Famílias vulneráveis estão expostas à alta volatilidade da renda do trabalho. Atualizações cadastrais muito espaçadas não captam variações da renda, sobretudo de quem não tem vínculo formal de emprego, amplificando, portanto, erros de inclusão indevida no programa.

Os dados longitudinais do IBGE permitem uma dimensão da variação da renda individual entre cinco trimestres. Com foco nos anos de 2018 e 2019, ou seja, antes da pandemia, e na renda familiar per capita, que inclui todas as rendas, inclusive transferências, de todos os membros da família, alguns padrões emergem.

Em 2018, 75% da população tinha renda familiar per capita mensal superior a R$ 412 (em reais de janeiro de 2019). Em 2019, um indivíduo que em 2018 teve renda igual a R$ 412 por mês tinha 90% de chance de ganhar menos do que metade da população e os mesmos 90% de chance de ter renda superior a 9% da população.

Ou seja, indivíduos em famílias com renda inferior a meio salário mínimo per capita enfrentam uma grande oscilação da sua posição relativa na distribuição de renda. Vistos por um outro ângulo, eles têm 80% de chance de no ano seguinte ganharem entre R$ 200 e R$ 825, ou seja, entre menos da metade e o dobro do que ganhavam no ano anterior.
O custo de monitoramento dessas oscilações via cadastro é muito alto. Atualizações mais frequentes são importantes, mas elas não serão suficientes para evitar o erro de exclusão indevida de quem, em um bom momento, conseguiu sair da pobreza via mercado de trabalho.

Para reduzir esse erro, pode-se pensar em relaxar o critério de elegibilidade. Com isso, quem esteve circunstancialmente “não pobre”, mas é estruturalmente pobre, não seria punido. O custo seria uma eventual redução da focalização. De toda sorte, há que se pensar em um novo sistema de transferências de renda que leve em conta, explicitamente, a volatilidade do trabalho no país.

A crise mundial e a desglobalização, por Alexandre Nigri.

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A crise mundial e a desglobalização

Cresce o temor de um distúrbio financeiro nos EUA

Alexandre Nigri, Economista e administrador de empresas com especialização no mercado imobiliário, é CEO do Grupo Maxinvest e ex-professor do curso de finance & real estate da pós-graduação do Ibmec

Folha de São Paulo, 03/07/2022

A maioria dos analistas de Wall Street tem a percepção de que algo muito errado está prestes a acontecer na economia norte-americana.

Jamie Dimon, CEO do JPMorgan Chase, o maior banco dos Estados Unidos, veio a público há algumas semanas dizer que “um furacão está chegando” naquele mercado. O mítico gestor de “hedge funds” (fundos de investimento de alto risco) e investidor Jeremy Grantham, que previu duas das últimas bolhas, também vem professando um distúrbio financeiro.
Dimon e Grantham, além de outros importantes nomes, como Larry Summers (ex-secretário do Tesouro americano) e o lendário bilionário e investidor Ray Dalio, formam uma corrente uníssona que bate bumbo ao defender o fato de que uma abrupta correção nos preços de ativos, como ações e títulos, pode acontecer a qualquer momento —e inclusive se estender para o mercado imobiliário. Tudo isso em razão de um processo que entendemos como “desglobalização”.

Sabemos que a bonança mundial, logo após a revolução chinesa de Mao Tse Tung, entre 1949 e 1976, veio das altas taxas de industrialização dos tigres asiáticos a custo de mão de obra barata e êxodo rural. Algumas décadas mais tarde, entre 2005 e 2016, os salários por hora na indústria da China triplicariam.

A ascensão de classe do trabalhador asiático, combinada à política compulsória de fertilidade chinesa, levou a uma diminuição da oferta de trabalho não especializada. Recentemente, ainda como agravante, tivemos o incremento do custo do frete diante da guerra entre Rússia e Ucrânia.

Mas tais eventos ainda não resultam por si só no fator desglobalização, que vinha despercebidamente tomando a economia global como um novo paradigma de comércio internacional e que culminou com a pandemia e a guerra na quebra das cadeias de produção, reposicionando assim a nova lógica industrial e do protecionismo.

Nos últimos anos, é fundamental observar o excesso de liquidez pelo expansionismo fiscal dos governos e dos bancos centrais enquanto agentes econômicos, principalmente pelos americanos e europeus, considerando o pandemônio vivido na crise do subprime, em 2008.

Grantham, em entrevistas recentes, tem sido enfático ao dizer que, nos últimos quatro anos, nenhum presidente do Fed (o banco central dos EUA), incluindo o atual, Jerome Powell, foi suficientemente cauteloso em sua política de contenção monetária. O megainvestidor demonstra que, por essa razão, o índice de mercado Russel 2000, que mede as 2.000 maiores empresas americanas, já apresentava queda de 25% do pico de suas cotações em novembro de 2021, o que denota uma defasagem real dos ativos em relação a Standard & Poor’s e ao Dow Jones.

Em fevereiro de 2019, em um artigo que escrevi e cujo título era “A iminente crise econômica americana”, mencionei sobre esse mesmo expansionismo fiscal, do exagerado corte de impostos no sistema e das barreiras migratórias que trariam escassez e inflação de mão de obra. Já em abril de 2020, no ápice da pandemia que começara em janeiro, o governo americano envidaria em um processo jamais visto de injeção de trilhões de dólares na economia
(flexibilização quantitativa) —que até arrefeceu a crise naquele momento, mas que procrastinaria o problema, hoje agravado por incremento de inflação e desvalorização cambial.

Importante dizer que até pouco tempo atrás os juros eram menores que o 0,25%, o que produziria um impacto pequeno sobre a dívida do governo norte-americano.

Por último, vale refletir que, enquanto analistas falam de alta esperada da FFR (a selic americana) de até 3%, é importante que nós, brasileiros, sejamos cuidadosos com nossas perspectivas. Há exatos 40 anos, o então presidente do Fed, Paul Volcker, elevou o FFR a 20%. O efeito foi desastroso para países do terceiro mundo e levou Brasil e México, por exemplo, a uma crise econômica e consequente moratória.

Não se espera, desta vez, tal furacão por aqui. Somos hoje uma economia mais forte e mais estruturada do que éramos no passado —mas, definitivamente, são tempos desafiadores.

Males da financeirização

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Vivemos numa sociedade marcada pelo crescimento da competição entre os atores econômicos, sociais e políticos, gerando mal-estar ascendente em todos os grupos sociais. A ansiedade acelera, os transtornos emocionais crescem, os estresses aumentam em todos os indivíduos e sociedades, gerando uma busca imediata por sobrevivência, emprego, remuneração e ganhos monetários, como forma de sobreviver numa sociedade que se compraz com o consumo, o imediatismo e o hedonismo.

O mundo contemporâneo se caracteriza pelo crescimento das tecnologias e transformações estruturais em todas as áreas e setores, alterando as condições de vida dos indivíduos, a concorrência cresce de forma acelerada, os trabalhadores precisam se adaptar a estas alterações, buscando se capacitar e se qualificar como forma de se inserirem nos mercados de trabalhos, canalizando seu tempo para a vida profissional, perdendo espaços de sociabilização e sendo vistos como autômatos, transformando a vida em espaços de sobrevivência material, deixando de lado laços sociais e familiares, aumentando as depressões, as ansiedades e a busca do significado da existência do ser humano.

Desde os anos 1980, percebemos o crescimento do modelo econômico global conhecido como financeirização, que passou a dominar todas as estruturas econômicas e produtivas internacionais, dominando a essência da economia e transformando tudo em um processo de intermediação financeira, que se caracteriza pelos altíssimos ganhos imediatos, deixando de lado os processos de planejamento econômico de longo prazo, além de limitar a capacidade de enxergar uma visão sistêmica da sociedade, transformando as relações sociais em espaços de negócios.

Neste cenário, percebemos um incremento da financeirização da sociedade, que exige resultados imediatos para garantir a sanha dos acionistas e investidores, com isso, percebemos que essa visão vem ganhando espaços em todas as relações econômicas e sociais. Nos setores educacionais, percebemos a implantação de modelos de gestão centrados numa visão de sociedade baseado nos retornos imediatos, adotando uma redução dos trabalhadores e sobrecarregando as atividades dos profissionais que sobrevivem, gerando ganhos imediatos e elevação dos rendimentos dos acionistas. Com estes movimentos, percebemos o surgimento de estruturas produtivas enxutas, com poucos trabalhadores e ganhos financeiros adicionais dos acionistas, levando-os a aquisição de empresas concorrentes menores e a consolidação de um modelo de gestão que se mercantiliza na sociedade, contribuindo para o surgimento de um ensino cada vez mais degradante e de qualidade questionável, mas com grandes lucros e a alegria dos acionistas.

Este modelo de gestão baseado na financeirização da economia se espalha para a sociedade global, gerando grandes atores econômicos internacionais que dominam o sistema produtivo internacional, setores que se caracterizam com poucos concorrentes, garantindo retornos elevados, tributação reduzida para estes setores, fragilizando a democracia, garantindo isenções fiscais e tributárias, com isso, não é difícil compreender que as desigualdades crescem em todas as regiões do mundo, criando novos grupos sociais que sobrevivem com migalhas, sem empregos, sem trabalhos e sem dignidades.

Neste ambiente, os projetos nacionais são deixados de lado, pensadores que pensam a sociedade de uma forma global são deixados de lado, cancelados e marginalizados, os espaços são abertos para aqueles grupos que defendem este modelo de financeirização, são grupos sociais que usufruem destes ganhos, interessados em altos retornos financeiros, além de serem vistos como prepostos dos grandes ganhadores da financeirização da economia, que se afastam do investimento produtivo, da geração de emprego e do crescimento do mercado interno, em detrimento dos lucros escorchantes garantidos por juros proibitivos que dominam a sociedade brasileira e contribuem para a situação de penúria que vive parcela significativa da população nacional.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Comportamental, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 29/06/2022.

Aborto, Estado mínimo e liberalismo de ocasião, por Glezer e Kignel.

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Nenhum liberal, ainda que de perfil conservador, deve celebrar decisão nos EUA

Rubens Glezer, Professor de direito constitucional da FGV Direito SP e coordenador do Supremo em Pauta
Daniel Kignel, Advogado criminalista, é sócio de Oliveira Lima e Dall’Acqua Advogados

Folha de São Paulo, 28/06/2022

É especialmente difícil construir consensos quando o assunto é a criminalização do aborto. Há muitos motivos para tal dificuldade, mas um deles é a confusão entre a questão moral e a questão política do aborto. Para qualquer pessoa que valoriza as liberdades individuais, é preciso separar esses dois pontos.

Na dimensão política, a dúvida é sobre os limites da intervenção do Estado na vida das pessoas. É um debate sobre o controle que uma comunidade pode impor, legitimamente, sobre as ações moralmente controversas de seus membros. Uma teoria popular para lidar com esse tipo de problema é o chamado liberalismo político; seus seguidores são liberais.

Para quem se diz liberal, a pergunta “isto é proibido?” é completamente diferente da pergunta “isto é imoral?”. O Estado não pode proibir uma conduta somente por sua moralidade contestável. Isso porque a premissa básica do liberalismo político é que o Estado deve promover a igualdade de oportunidades entre cidadãos, enquanto preserva ao máximo a autonomia e as liberdades individuais. No geral, o Estado só deve impedir que a liberdade de um indivíduo ou grupo seja utilizada para mitigar a liberdade ou autonomia de outros indivíduos ou grupos. Por isso, o Estado não poderia encampar uma ideologia moral.

Nesse sentido, o debate político sobre o aborto testa ao extremo a efetiva lealdade dos interlocutores ao valor da liberdade. Quem se diz liberal não pode ser a favor da criminalização do aborto só por reprová-lo como imoral ou pecaminoso.

Foi justamente com base nestes ideais que a Suprema Corte dos Estados Unidos julgou em 1973 o caso Roe versus Wade. Naquela oportunidade, se estabeleceu que levar a sério o valor da liberdade constitucional implicaria reconhecer o direito de cada mulher decidir se deve encerrar, de forma voluntária, sua gestação. O tribunal entendeu que os direitos reprodutivos da mulher, bem como os direitos sobre o seu próprio corpo, seriam inerentes à sua liberdade de decidir o seu futuro. Por esse motivo, a decisão era considerada um verdadeiro pilar do liberalismo no país. Roe vs. Wade é, e sempre será, um marco histórico.

Contudo, o precedente foi derrubado pela Suprema Corte dos EUA na semana passada. Agora, o tribunal considera que o valor da liberdade não protege o indivíduo da intervenção estatal sobre sua intimidade, escolhas e projeto de vida. A Suprema Corte dos EUA derrubou o direito ao aborto por considerá-lo, sobretudo, imoral. Na decisão consta que a criminalização do aborto deve ser pensada na sua condição de “questão moral crítica” incomparável.

Nenhum liberal, ainda que de perfil conservador, deveria celebrar esse novo entendimento. É um cheque em branco para que a moralidade estatal possa atropelar as liberdades individuais. Afinal, agora é constitucional nos EUA que o Estado prenda um motorista de táxi que conduza uma mulher para uma clínica de aborto, mesmo que não tenha a menor ideia do que está acontecendo. É constitucional naquele país prender e punir os cidadãos que não vigiem de forma policialesca outros cidadãos. Nada mais autoritário.

Porém, muita gente que se diz liberal no Brasil irá comemorar. Mas isso é porque são apenas liberais de ocasião. São os defensores da legislação antiaborto, mas que pregam a liberdade econômica e de expressão sem quaisquer amarras, e bradam pela intervenção mínima do poder público na vida privada.

São os mesmos que aplaudiram os esforços de uma juíza para impedir que uma menima de 11 anos, grávida após um estupro, pudesse abortar. Definem-se como “pró-vida”, mas fecham os olhos para os incontáveis óbitos que ocorrem todos os anos, em geral de meninas pobres e desamparadas, decorrentes de abortos clandestinos.

Os liberais de ocasião são autoritários moralistas, que defendem a intervenção do Estado sobre seus adversários, mas clamam pela máxima liberdade para si e para os seus. A vitória dos liberais de ocasião será sempre uma derrota para a liberdade de todos.

Metaverso: entre planos e incertezas, o risco de uma “bolha sem fora”

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IHU On Line – Edição 550 – Novembro 2021

Paula Sibilia, professora e pesquisadora da cultura digital, fala sobre como o debate renovado sobre o metaverso apresenta uma plataforma que em essência é totalmente nova em relação a experimentos anteriores.

Enquanto o metaverso distópico, por exemplo, do livro Snow Crash, de Neal Stephenson, de três décadas atrás, apresentava um mundo violento e cinzento, hoje, quando se pensa em metaverso, essa possibilidade assume outros contornos, constituindo-se em uma novidade. “De fato, ainda não existe [o metaverso], e muitos inclusive duvidam que possa se tornar viável no curto prazo. Mas há orçamentos bilionários e interesses de peso dispostos a construí-lo com urgência, portanto, é altamente verossímil”, propõe Paula Sibilia, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

O contexto, quando comparado às distopias dos anos 1990, é completamente outro e a experiência da pandemia da Covid-19, somada ao convívio intenso das redes sociais, também foi capaz de acelerar alguns processos. “Habitamos agora um terreno fértil para as realidades paralelas, virtuais, aumentadas, filtradas, turbinadas, instagrameadas e ambiguamente falsas, de um modo geral. A estranheza do isolamento motivado pela pandemia de Covid-19 não fez mais do que intensificar essa tendência, adubando um solo muito propício para que brotem todo tipo de metaversos bem-sucedidos”, descreve.

Os riscos, no entanto, estão no aprofundamento da algoritmização financeirizada de todas as dimensões da existência digital nesses ambientes. “E o capitalismo baseado em dados está no cerne dessa empreitada; disso, me parece, não há dúvida alguma. Tendo testemunhado o que vem ocorrendo nos últimos anos com o uso dos algoritmos nas redes sociais da internet, é assustador imaginar o que pode vir a acontecer numa atualização desses sistemas que leve ainda mais longe a ilusão de uma ‘bolha sem fora’ suscitada pela experiência da interação digital”, avalia.

Paula Sibilia é ensaísta e pesquisadora argentina residente no Rio de Janeiro e dedica-se ao estudo de diversos temas culturais contemporâneos sob a perspectiva genealógica, contemplando particularmente as relações entre corpos, subjetividades, tecnologias e manifestações midiáticas ou artísticas. Fez graduação em Comunicação e em Antropologia na Universidade de Buenos Aires – UBA, na Argentina; já no Brasil, fez mestrado em Comunicação na Universidade Federal Fluminense – UFF, doutorado em Saúde Coletiva na Universidade Estadual do Rio de Janeiro – IMS-UERJ e em Comunicação e Cultura na Universidade Federal do Rio de Janeiro – ECO-UFRJ. Desde 2006, é professora do Departamento de Estudos Culturais e Mídia, bem como do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense – UFF.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O metaverso não é um tema propriamente novo, sua origem remete à ficção científica ainda no final do século 20. Como a senhora compreende a noção e qual sua atualidade?

Paula Sibilia – Sim, mas há um detalhe bastante significativo: essa obra literária de 1995, Snow Crash (São Paulo: Editora Aleph, 2015), na qual foi cunhada a palavra “metaverso” para nomear esse tipo de experiência “virtual” que agora inspira as empresas mais poderosas do planeta, era um romance distópico. O livro de Neal Stephenson apresentava um mundo cinza e violento, povoado por criaturas viciadas em seus brinquedos tecnológicos e dominado por corporações gigantescas que, na época, consideravam-se puramente fictícias. Por isso eu diria que se trata, sim, de algo novo. De fato, ainda não existe, e muitos inclusive duvidam que possa se tornar viável no curto prazo.

Mas há orçamentos bilionários e interesses de peso dispostos a construí-lo com urgência, portanto, é altamente verossímil.

Gostaria de ressaltar, porém, essa questão do nome escolhido. Afinal, é como se Mark Zuckerberg tivesse decidido rebatizar Matrix a sua companhia, por exemplo, aludindo a um universo ficcional mais próximo do imaginário contemporâneo. O metaverso imaginado por Stephenson há três décadas era uma sorte de Matrix; e, levando em consideração o que tem acontecido do lado de cá da realidade desde então, custa acreditar que este nosso metaverso do século XXI venha a se tornar algo muito mais auspicioso. Ao contrário, talvez a realidade volte a superar a ficção, como aconteceu com o já antiquado “ciberespaço” dos inícios da internet.

IHU On-Line – No começo do século 21 houve a experiência, que restou frustrada, do Second Life. Era, também, um outro momento tecnológico, com equipamentos e conexões mais precárias que as atuais. O que muda agora, sobretudo quando levamos em conta a recente aposta do Facebook e da Microsoft no metaverso como futuro de seus negócios?

Paula Sibilia – Em primeiro lugar, não diria que a experiência de Second Life foi frustrada. Tanto é que a estamos lembrando aqui como uma precursora destes “universos virtuais” recém-anunciados. Além dos avanços puramente técnicos, que foram muito contundentes e prometem continuar, eu acrescentaria outro fator que vem a se somar agora e que não estava tão presente alguns anos atrás. Refiro-me à familiaridade que temos desenvolvido com as “realidades paralelas”. Não apenas os cenários publicitários de ambientes como Instagram ou Tinder, nos quais se tornou habitual o uso de “filtros” e retoques, mas também a “gamificação” de diversas atividades para adultos, a estética do “reality-show” permeando todos os gêneros midiáticos e artísticos, e inclusive fenômenos tão perturbadores como as fake news, os negacionismos e a “pós-verdade”.

Foi se aprofundando, nos últimos anos, essa fragilidade do real perpassada pela cultura do espetáculo. Habitamos agora um terreno fértil para as realidades paralelas, virtuais, aumentadas, filtradas, turbinadas, instagrameadas e ambiguamente falsas, de um modo geral. A estranheza do isolamento motivado pela pandemia de Covid-19 não fez mais do que intensificar essa tendência, adubando um solo muito propício para que brotem todo tipo de metaversos bem-sucedidos.

IHU On-Line – Até que ponto o metaverso abre horizontes ao que compreendemos como experiência humana e a partir de que ponto ele reduz o ser humano às lógicas e interesses do capitalismo pós-industrial?

Paula Sibilia – Não sabemos o que pode acontecer, nem se de fato essa tecnologia irá se desenvolver e obter o sucesso esperado. Afinal, pelo menos no caso do Facebook (ou Meta), está claro que se trata de uma estratégia audaciosa para se reinventar como empresa, num momento de crise em que chovem críticas gravíssimas a seu modelo de negócios, com vazamentos e denúncias, investigações judiciais e desconfiança do público. Contudo, sem ignorar todos esses fatores, a aposta faz sentido. E o capitalismo baseado em dados está no cerne dessa empreitada; disso, me parece, não há dúvida alguma. Tendo testemunhado o que vem ocorrendo nos últimos anos com o uso dos algoritmos nas redes sociais da internet, é assustador imaginar o que pode vir a acontecer numa atualização desses sistemas que leve ainda mais longe a ilusão de uma “bolha sem fora” suscitada pela experiência da interação digital.

IHU On-Line – O que significa pensar, parafraseando e adaptando uma proposição que a senhora traz em O homem pós-orgânico, que, no capitalismo contemporâneo das plataformas digitais, “tudo que é sólido se desmancha na luz”?

Paula Sibilia – Ao propiciar vivências “virtuais” que prescindem de interfaces mais sólidas como as telas e os teclados, o metaverso promete criar ambientes de pura luz para nossas interações, decompondo a espacialidade e nossos próprios corpos em imagens digitais. Não deveríamos esquecer, porém, que a imaterialidade desses mundos é ilusória, visto que, em algum lugar do planeta, há toneladas de equipamentos de enorme potência capazes de sustentar essa aparente leveza, e muita gente trabalhando em péssimas condições para manter isso funcionando. Do mesmo modo, embora os serviços de acesso a essas experiências possam ser gratuitos, como acontece agora com as redes sociais tipo Facebook ou Instagram, também é necessário possuir toda sorte de artefatos e chaves mágicas para fazer login. Nada indica que isso mudará no caso do metaverso.

IHU On-Line – Por outro lado, parece interessante pensar dialeticamente as reconfigurações que a noção de humano e, propriamente, de corpo sofrem com tecnologias digitais como a do metaverso. O que implica, portanto, pensar no atual contexto a obsolescência do corpo orgânico?

Paula Sibilia – A materialidade orgânica do corpo humano sempre representou um limite incômodo para os impulsos “virtualizantes” das tecnologias digitais. Há, inclusive, certo ressentimento pela consistência carnal, como sugere uma das acusações mais graves contra o Instagram reveladas nos documentos da empresa recentemente vazados: a exposição constante a imagens de corpos supostamente “perfeitos” estaria causando sofrimento mental com sérias consequências ao se comparar com elas. As telas de vidro e os aplicativos de edição repelem a viscosidade biológica e tendem a redesenhar os corpos como imagens lisas e puras.

A experiência da pandemia também contribuiu para intensificar estas questões, já que a grande maioria das atividades que antes ainda costumavam ser realizadas de modo presencial passou a ocorrer exclusivamente nas telas interconectadas por dispositivos como Zoom ou Meet. Todo esse treinamento do último par de anos não terá sido em vão: viramos, literalmente, avatares. E, nesse contato cotidiano com o espelho digital, foi se incrementando a vontade de “filtrar” a própria imagem. De fato, nos protótipos de metaversos já existentes, como o jogo Fortnite, é habitual que os usuários comprem skins ou “peles” pós-orgânicas para seus personagens.

IHU On-Line – O projeto, digamos assim, de humanidade do metaverso parece ser, justamente, o de ultrapassar os limites impostos pela organicidade do humano. As fronteiras corpóreas – geográficas, biológicas e temporais – são reorganizadas. Quais são as consequências desta promessa fáustica?

Paula Sibilia – Não sabemos, mas provavelmente ficaremos insatisfeitos e iremos querer mais. Se não, como fariam as empresas para continuar ganhando dinheiro atiçando nossos sonhos e desejos? A falta de limites é uma marca tanto das redes digitais quanto das subjetividades contemporâneas, com elas compatíveis, e os mercados aproveitam.

IHU On-Line – O que é a vida no metaverso? Faz sentido esse conceito e, se sim, de que forma?

Paula Sibilia – Imagino que um dos usos mais habituais desses ambientes será como “entretenimento”, ou seja, um portal para a evasão como tantos outros, alimentado pela publicidade e visando a perpetuar o consumo. Nesse sentido, não vejo uma diferença radical com os dispositivos digitais já existentes, embora seja claramente um passo a mais rumo a essa indistinção entre o dentro e o fora. Essa fronteira, já bastante tênue e cada vez mais nebulosa, tende a desaparecer de vez ao serem eliminadas as interfaces mais duras (teclados, telas, aparelhos) em proveito dos sensores ou das conexões neurais. “Em vez de apenas ver o conteúdo, você estará dentro dele“, explicou Zuckerberg numa entrevista.

Por isso, provavelmente esses dispositivos serão muito mais eficazes que os atuais na sua capacidade de capturar nossa atenção e nossos sentidos. Considerando o que já vem acontecendo nas redes bidimensionais da atualidade, é preocupante o que poderia gerar uma precisão extremamente customizada para cada “usuário” ou consumidor.

IHU On-Line – Por fim, até que ponto as possibilidades existenciais-tecnológicas inauguram um certo tipo de eugenia composta pela hibridização entre dimensões biológicas e digitais?

Paula Sibilia – Quando antes mencionei a possibilidade de comprar “peles” para os nossos avatares, estava pensando em algo assim, pois de fato já existe um mercado comparável na realidade analógica: cirurgias plásticas e um amplo cardápio de intervenções dermatológicas, também estimuladas pelo crescente uso de telas e imagens para a interação social. Em contraste com o escopo limitado de possibilidades que nossa carcaça biológica nos oferece, o mercado de retoques digitais é virtualmente infinito. Em suma, poderemos encarnar todas as peles imagináveis que sejamos capazes de comprar. Contudo, assim como ocorre na versão analógica do drama, é provável que não seja suficiente: continuaremos insatisfeitos e querendo mais (e o mercado não cessará de lançar tentadoras novidades), pois essa é precisamente a definição do consumidor. E, ao que tudo indica, é isso que serão os habitantes do metaverso.

IHU On-Line – Como pensar o metaverso em um contexto brasileiro, mas também global, de profunda desigualdade?

Paula Sibilia – Imagino que haverá metaversos para todos os gostos e bolsos, ou para quase todos, como ocorre atualmente com as versões bidimensionais da brincadeira.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Paula Sibilia – Talvez chamar a atenção para o fato de que a internet, atualmente, ainda excede as plataformas comandadas por empresas como Facebook, Amazon e Google. No entanto, nos últimos anos esse território parece ter sido praticamente conquistado pelas corporações; de fato, para muita gente as redes sociais são sinônimo da internet. Isso não é por acaso, claro, pois foram delineadas várias estratégias nesse sentido; contudo, a sua eficácia não deixa de surpreender. Cabe questionar se o metaverso contempla algum tipo de “fora” nesse sentido; ou seja, se haverá uma internet que não pertença aos “cercadinhos” das plataformas e, nesse caso, como se implementará o acesso a esses interstícios, com que artefatos e sob quais regras.

A doutrina do choque: uma contra-história do neoliberalismo, por Benedetto Vecchi.

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Com o tempo, amadureceu em Naomi Klein “a convicção de que o capitalismo do século XX apresentava robustos elementos de continuidade, mas também de descontinuidade”, conta Benedetto Vecchi, crítico cultural italiano e que colabora regularmente com o jornal comunista italiano Il Manifesto. “A continuidade vinha do Estado de Bem-estar, em suas diversas traduções nacionais, e de uma relação de dominação de alguns países fortes sobre outros mais ‘frágeis’, usados precisamente como laboratórios de experimentação de políticas econômicas prejudiciais (…) O difícil, ao contrário, era perfilar as descontinuidades. E são precisamente as descontinuidades que centram a atenção de Naomi Klein”, escreve Vecchi.

Benedetto Vecchi faz uma resenha do último livro de Naomi Klein, Shock Doctrine (A Doutrina do Choque), ainda sem tradução para o português. Nele, diz o resenhista, Naomi Klein procura desvelar “um trust de empresas cujo negócio consiste no esvaziamento do Estado de qualquer função, inclusive a da guerra”. Esse é o nascimento daquilo que a autora chama de “Estado corporativista”, ou seja, uma elite restrita que passa de uma empresa a cargos públicos sem o menor respeito às normas liberais contra o conflito de interesses. O “capitalismo dos desastres” só pode continuar renovando a insegurança social.

No livro, Klein faz uma reconstrução das carreiras políticas, dos vínculos de amizade, das relações de homens de negócios muito interessante. Naomi Klein é autora de Sem Logo. A tirania das marcas em um planeta vendido (2. ed. Rio de Janeiro: Record, 2002).

A resenha de Benedetto Vecchi foi publicada no sítio La Haine, 26-09-2007. A tradução é do Cepat.

Segue a íntegra da resenha de Benedetto Vecchi.
Uma coisa é certa. Naomi Klein, depois do sucesso de Sem Logo, não ficou de braços cruzados. Pôs-se novamente na estrada, visitando ou vivendo por breves períodos na Argentina, Brasil, África do Sul, Chile, Bolívia, Iraque, Sri Lanka, Tailândia, Líbano, Rússia e, não custa dizê-lo, nos Estados Unidos. A partir desses países enviou reportagens e nesses países entrevistou economistas e ativistas para jornais como The Guardian, The Nation ou o The New York Times. Ao mesmo tempo, acumulou informações sobre as mudanças operadas no neoliberalismo depois do ataque ao World Trade Center nova-iorquino do 11 de setembro, seis anos atrás.

Com o passar do tempo, no entanto, amadureceu nela a convicção de que o capitalismo do século XX apresentava robustos elementos de continuidade, mas também de descontinuidade, sobre os elementos que a ensaísta contemporânea chama de os Trinta Gloriosos, ou seja, o período de desenvolvimento econômico e social que se seguiu à 2ª Guerra Mundial, que viu surgir em muitos países a presença reguladora do Estado na economia e na vida social.

A continuidade vinha do Estado de Bem-estar, em suas diversas traduções nacionais, e de uma relação de dominação de alguns países fortes sobre outros mais “frágeis”, usados precisamente como laboratórios de experimentação de políticas econômicas prejudiciais que no potente Norte teriam encontrado não poucas resistências por parte das forças sindicais e políticas do movimento operário e de outros movimentos sociais. O difícil, ao contrário, era perfilar as descontinuidades. E são precisamente as descontinuidades que centram a atenção de Naomi Klein.

A constelação neoliberal
O resultado é um livro que pode ser lido como uma contra-história do neoliberalismo contemporâneo. Seu título, Shock Doctrine (A doutrina do choque), introduz imediatamente na tese do volume: as crises – econômicas, sociais ou políticas – e as catástrofes ambientais são usadas para introduzir reformas neoliberais que levaram à demolição do Estado de Bem-estar.

O livro entra, para começar, no coração da Guerra Fria. Naqueles anos, o futuro prêmio Nobel de Economia Milton Friedman começa a urdir seu tecido para construir uma rede intelectual de pesquisadores favoráveis ao livre mercado. É um economista brilhante, mas suas propostas a favor da demolição da intervenção estatal na sociedade e na economia são muito “extremistas” em relação ao que as empresas e o governo de Washington fazem. Contudo e com isso, seu centro de pesquisa recebe financiamento de fundações privadas e do governo. Milton Friedman sustenta, já então, que as crises podem ser usadas para uma “terapia de choque” a favor do livre mercado.

Milton Friedman se converte no agit-prop do neoliberalismo, ao passo que seus discípulos são enviados pelo mundo inteiro em missão de proselitismo. Suas receitas acabarão se convertendo em programas de política econômica no Chile, Paraguai, Argentina, Brasil, Guatemala, Venezuela. Há um pequeno problema. São programas aplicados com carros blindados nas ruas e tortura sistemática nas prisões, enquanto o número de desaparecidos chega a ser tão alto que nem sequer os meios de comunicação norte-americanos podem ignorá-lo.

A parte do livro que fala dos anos 60 e 70 conta a história dos golpes de Estado e do uso sistemático da violência contra os opositores políticos, e pode parecer um dejà vu de histórias conhecidas há muito tempo. Mas Naomi Klein o apresenta como a primeira crise do neoliberalismo. Chile, Argentina e Paraguai são laboratórios em que se enriquecem muitas transnacionais norte-americanas, às quais se permite que se apropriem de muitas matérias-primas e abram novos mercados para seus produtos. Uma espécie de renovada acumulação primitiva deslocalizada fora das fronteiras nacionais. Por isso, vale a pena financiar, em consonância com Washington, o terrorismo de estado chileno, argentino, brasileiro e paraguaio. E é precisamente nesse período que a rede intelectual tecida por Friedman se consolida e se estende ao mesmo tempo.

Torna-se impressionante o trabalho feito por Naomi Klein de reconstrução das carreiras políticas, os vínculos de amizade, as relações de homens de negócios – de Dick Cheney a Donald Rumsfeld, de John Ashcroft a Domingo Cavallo, de Michel Camdessus a Paul Bremen, a Paul Wolfowitz e à família Bush – que passam de um conselho de administração de alguma transnacional à direção de um think thank neoliberal, de postos de responsabilidade em algum governo aos despachos do Banco Mundial ou do FMI.

A história contada até agora é conhecida fora dos Estados Unidos. Naomi Klein sabe disso, mas também está consciente de que nos Estados Unidos é história conhecida ou desvelada só para uma minoria de ativistas ou intelectuais radicais. Daí sua obra de sistematização das informações antes de passar a contar a segunda onda neoliberal, que tem, como a primeira, um apóstolo. É outro economista, chama-se Jeffrey Sachs e quer demonstrar que o livre mercado, diferentemente do que pareceu ser o caso na América Latina, não é incompatível com a democracia. É um autêntico “evangelista do capitalismo democrático” e vê na queda da União Soviética e do socialismo real a melhor oportunidade para conciliar a democracia com as “leis naturais” do mundo dos negócios. Aconselha – e é ouvido – a Polônia de Lech Walesa e a Rússia de Boris Yeltsin a procederem a uma desregulação radical de suas economias. Sua receita será um fracasso, mas nesse momento sua “terapia de choque” encontra um valioso aliado num FMI já definitivamente depurado de economistas vinculados ainda às teorias de Lord Maynard Keynes.

A dívida será a arma vencedora empregada pelos neoliberais, que concederão empréstimos só na condição de que se desregularize completamente a economia. É o chamado Consenso de Washington, são seu corolário de “programas de ajuste estrutural”. Como no passado, as transnacionais nadarão em ouro, mas Sachs, assim como os outros “evangelistas do livre mercado”, sustenta que o que agora convém fazer é colocar em leilão todas as atividades produtivas e os serviços sociais gestionados pelo Estado, ainda que às custas do sacrifício de centenas de milhares de postos de trabalho sobre o altar da competitividade internacional. A pobreza, não deixam de repetir, é um efeito colateral que, no entanto, acabará sendo esclarecido pela mão invisível do mercado.

A “terapia do choque” se nutre de estratégias de marketing, propaganda e falsificação de dados, tratando de demonstrar que o livre mercado é a única via para escapar da decadência econômica e da pobreza em massa. Mas o consenso tem que ser conquistado eleitoralmente, mesmo se isso pode chegar a diminuir o ritmo das “reformas”.

A política woodoo
Para remover esse obstáculo há uma estratégia bem provada durante a “guerra da dívida” na América Latina: criar o pânico, para em seguida pressionar a fim de que se adotem “terapias” econômicas neoliberais. O Banco Mundial e o FMI se convertem então em instituições supranacionais adaptadas ao objetivo de limitar a soberania popular e privar os governos nacionais de qualquer autonomia em termos de tomada de decisões. Os programas econômicos são, pois, confeccionados em Washington, mas sua aplicação in situ vem garantida por pessoal político “fiel à linha”. Naomi Klein mostra documentalmente como mesmo as crises asiáticas dos anos 90 tiveram como protagonistas o Banco Mundial e o FMI, que orquestraram conscientemente a crise financeira a fim de demolir qualquer presença estatal na economia. E quando a Tailândia, Filipinas, Malásia, Indochina e Coréia do Sul capitularam frente ao FMI, um “Chicago boy” escreveu uma coluna no Financial Times comparando a revolução do livre mercado na Ásia com uma “segunda queda do Muro de Berlim”.

Na América Latina a situação é diferente. As ditaduras começaram a cair uma após outra e subiram ao poder muitas coalizões de centro-esquerda. É a era, afirma Naomi Klein, da política woodoo, caracterizada por programas eleitorais keynesianos e sucessivas políticas econômicas rigidamente neoliberais.

O complicado novelo que Naomi Klein pacientemente desfia mostra não tanto um comitê de negócios da burguesia, quanto um trust de empresas cujo negócio consiste no esvaziamento do Estado de qualquer função, inclusive a da guerra. É o nascimento do “Estado corporativista”, como o define a autora, onde uma elite restrita passa de uma empresa a cargos públicos sem o menor respeito às normas liberais contra o conflito de interesses. O “capitalismo dos desastres” só pode continuar renovando a insegurança social. O 11 de setembro é, deste ponto de vista, um maná para os neoliberais. A “guerra do terror” se converte assim na retórica atrás da qual ocultar a venda da defesa nacional às empresas privadas e o pleno controle do petróleo.

Com a invasão do Afeganistão e do Iraque, o warfare, ou seja, o uso da guerra para relançar a economia, se elevou a sistema, porque a guerra ao terror é uma guerra total que implica não apenas o setor militar, mas a sociedade inteira. Iluminador a este respeito é o capítulo que a jornalista canadense dedica a Israel, fazendo do desenvolvimento da indústria high-tech da segurança e da chegada dos hebreus do leste europeu depois da queda do Muro de Berlim duas das chaves interpretativas – não as únicas – da passagem de uma hipótese de paz com os palestinos ao funesto passeio de Ariel Sharon pela esplanada das mesquitas que provocou a segunda Intifada. Os fugitivos do leste europeu puderam substituir a força de trabalho palestina de baixo custo, ao passo que as empresas high-tech puderam oferecer seus produtos ao mundo inteiro, visto que a guerra ao terror é a guerra da civilização ocidental contra seus inimigos.

A economia da catástrofe
Quando Naomi Klein começa a analisar os efeitos devastadores do furacão Katrina e do Tsunami descobre que as catástrofes são utilizadas pelo FMI como missão creep, isto é, expansão indevida de uma missão, neste caso da máquina pública. Os últimos baluartes do Estado como garante da convivência social são submetidos a ataque. Nova Orleans se converteu no laboratório dessa ulterior privatização do Estado. Analogamente, o Tsunami é utilizado para transformar algumas regiões ou mesmo nações (Sri Lanka, Tailândia e as Ilhas Maldivas) em clubes de férias para as elites globais.

Assim é narrado o capitalismo dos desastres. Naomi Klein, como já fizera em Sem Logo, não quer construir uma teoria do desenvolvimento capitalista. É uma excelente publicitária e jornalista de investigação que se faz sempre a pergunta correta: como organizar a resistência ao neoliberalismo. É verdade que sua defesa do Estado de Bem-estar poder parecer ingênua, mas quando começa a enumerar o que os movimentos sociais fazem e o que propõem, o seu torna-se um keynesianismo que abre portas de autogoverno por parte dos movimentos sociais e a uma democracia radical.
Shok Doctrine é, pois, um livro ambicioso, porque pretende oferecer um mapa do “capitalismo dos desastres”. É certamente um fresco da reorganização do capitalismo depois do 11 de setembro e começa a identificar seus pontos fortes, as empresas líderes que estão emergindo e sua vocação global. Mas também identifica seus pontos frágeis. É, pois, um mapa útil de ler, também para preparar-se para resistir à próxima onda de terapia de choque que se alimentará da próxima catástrofe ambiental e da próxima etapa da guerra preventiva. Ou do anunciado e italianíssimo corte dos gastos sociais para fazer frente à decadência econômica.

O silêncio dos bons, por Cida Bento.

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Os bons’, como dizia Martin Luther King, precisam se manifestar contra o autoritarismo

Cida Bento, Conselheira do CEERT (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades), é doutora em psicologia pela USP

Folha de São Paulo, 23/06/2022

Nos últimos meses, temos visto a quebra de silêncio de instituições que se veem ameaçadas na sua existência, autonomia e dignidade, por autoridades do próprio Estado brasileiro.

E me lembro da famosa fala de Martin Luther King: “O que me preocupa não é nem o grito dos corruptos, dos violentos, dos desonestos, dos sem caráter, dos sem ética… o que me preocupa é o silêncio dos bons”.

Parece que, não sem tempo e ainda de forma pontual, esse silêncio vem sendo quebrado a partir de vozes que vêm do interior de importantes instituições brasileiras. Exemplos não faltam, como o de servidores e especialistas em ambiente, denunciando o desmonte do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais) e do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), em abril deste ano. Ou, ainda, a Univisa (Associação dos Servidores da Anvisa) reagindo, em nota de repudio de dezembro de 2021, a “tentativas de intervenção sobre o posicionamento da autoridade sanitária que não advenham do debate estritamente científico e democrático”.

Lideranças do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) e da Receita Federal, em dezembro de 2021, entregam cargos em clima de revolta, denunciando tratamento desrespeitoso e interferência técnica do governo federal nas instituições, fragilizando-as administrativa e tecnicamente.

Em outubro de 2021, um grupo de economistas, banqueiros, empresários e representantes da sociedade civil assina manifesto para preservar as instituições democráticas e defender as eleições.

A exemplo dos servidores do Banco Central, mais da metade de cargos de lideranças de auditores fiscais é entregue em janeiro de 2022, contra o que entendem ser um tratamento desigual à categoria. Servidores da Funai (Fundação Nacional do Índio) decidem, há poucos dias, por paralisação em razão de palavras proferidas pelo presidente da instituição sobre o brutal assassinato de Bruno Pereira e Dom Phillips e denunciam uma política anti-indigenista, que não faz a demarcação de terras, persegue servidores e militariza cargos estratégicos.

A reação que cresce e se espalha é contra líderes que tomam decisões e comandam importantes instituições públicas agindo como manipuladores perversos que não amam o Brasil, não se interessam pelo bem comum e trabalham para destruir as instituições democráticas.

Os movimentos sociais de mulheres negras, quilombolas, indígenas, os ambientalistas, estudantes, artistas, a oposição nos Parlamentos, as entidades sindicais há muito se manifestam sobre o ataque à democracia e a política de morte direcionada para determinados grupos. No entanto, é importante a manifestação pública de instituições,
algumas delas diretamente envolvidas na preservação da democracia.

Vale destacar, porém, que algumas instituições, como os organismos policiais ou das Forças Armadas, Parlamentos, as organizações de investidores e grandes corporações têm se mantido em silêncio.

Como não há instituição com centenas de milhares de pessoas, monolítica e de pensamento único, vou parafrasear Chico Buarque e Milton Nascimento perguntando: o que será que será, que andam sussurrando, em versos e trovas, que andam combinando no breu das tocas, que anda nas cabeças, anda nas bocas, que estão falando alto pelos botecos…

Ou seja, em vez de sussurrar, as vozes de integrantes de instituições, que não são cúmplices e que não concordam com a destruição da democracia, têm que se tornar audíveis, em alto e bom som para honrar as instituições brasileiras.

Pois a verdade é que não temos escolha. Ou quebramos o silêncio e defendemos nossas instituições ou vamos amargar anos de autoritarismo atrasado, brutal, violento e predador. Ou seja, “os bons”, como dizia Martin Luther King, precisam se manifestar.

Caminhos equivocados

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A economia internacional vem passando por grandes transformações nos últimos anos, desde a crise financeira de 2008 a sociedade mundial vem sentindo o aumento das instabilidades e das incertezas que crescem em todas as regiões, diante disso, percebemos o incremento das turbulências econômicas e financeiras, a ascensão da economia chinesa, a perda de poder relativo da economia norte-americana, a pandemia e seus custos crescentes e a guerra que atordoa a comunidade internacional, impondo custos financeiros assustadores, mortes de milhares de pessoas, destruição da infraestrutura, desestruturação das cadeias produtivas, o incremento dos preços e gerando mais volatilidades, desesperanças, racismos e xenofobias.

Neste ambiente de instabilidades econômicas e políticas, as nações desenvolvidas estão buscando novos espaços de consensos políticos e a reconstrução de novos modelos econômicos e produtivos, reestruturando as políticas públicas exitosas e reformulando aqueles que carecem de consistências econômicas e financeiras, reduzindo as disparidades econômicas e angariando espaços de acumulação e democracia.

Numa sociedade como a brasileira, percebemos a necessidade de reconstruirmos os laços sociais e o redesenho de políticas sociais que garantam autonomia para os indivíduos, reduzindo os poderes econômicos e financeiros dos grupos que dominam as estruturas do Estado Nacional, que controlam as burocracias governamentais e garantem aos seus prepostos os melhores cargos e remunerações, com isso, se utilizam deste poder para angariar isenções crescentes e subsídios que garantem a perpetuação de seus ganhos intocáveis desde os primórdios dos tempos coloniais.

Dentre as grandes reformas que devem ser vistas como urgentes e imprescindíveis para alavancar o crescimento econômico, devemos colocar a reforma tributária no primeiro lugar, isto porque vivemos numa sociedade que premia a especulação financeira e o rentismo, valorizando a ostentação e o palavreado alienado, deixando de lado os produtores e os verdadeiros empreendedores nacionais.

A reforma tributária deve preconizar que aqueles que ganham mais devem contribuir com mais recursos e estes devem ser canalizados para a construção de uma nação mais desenvolvida e a reconstrução dos canais de solidariedade, ainda mais num momento marcado por grandes incertezas e instabilidades impulsionadas pela pandemia. A progressividade tributária deve ser um projeto nacional, reduzindo subsídios em setores ineficientes, tributando fortemente os setores que usam seus lobbies para angariar ganhos adicionais, além de aliviar tributos no consumo e incrementando os de propriedade, desta forma, estaremos nos aproximando dos exemplos de nações desenvolvidas.
Neste ambiente, percebemos discussões desnecessárias e equivocadas, pautas ultrapassadas e ideologizadas que pouco contribuem para a melhora das condições sociais da coletividade e servem apenas para esconder os verdadeiros e, urgentes, debates nacionais. Neste momento, precisamos retomar ações concretas para reduzir a desigualdade que crassa a sociedade e perpetua as precárias condições da população, onde mais de 33 milhões de brasileiros estão passando fome e mais da metade da população nacional vive em condição de insegurança alimentar, enquanto uma minoria se compraz com a degradação de uma maioria, ecoando discursos de moralidade e eficiência mas, na realidade, sobrevivem com polpudos subsídios de um Estado ineficiente, mas servem para manter seus interesses imediatos, seus lucros estratosféricos, suas ostentações vulgares e a manutenção de seu status quo.

Estamos postergando decisões fundamentais para o futuro da nação, estamos negligenciando as pesquisas científicas, reduzindo os repasses para as universidades e os centros de pesquisas e estamos degradando instituições de Estado que contribuíram para melhorar a ciência nacional, num momento em que o conhecimento científico se transformou no grande instrumento de soberania e da autonomia das nações, sem investimentos na ciência estamos, novamente, flertando com a barbárie.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Comportamental (Unyleya), Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 22/06/2022.

Byung-Chul Han: Infocracia e a caverna digital

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Mundo online forja novo totalitarismo, aponta o filósofo em recente livro. Esfera pública é pervertida: emerge comunicação sem comunidade. Verdade vira borrão e, através de algoritmos e autoexploração, desejos coletivos são reduzidos ao eu

Fernando D’Addario – OUTRAS PALAVRAS – 30/05/2022

Byung-Chul Han é um operador saudável do quadro social e comunicação que expõe seu trabalho: seus livros são breves, rápidos, transparentes. Cada um deles propõe apenas um punhado de conceitos, facilmente reduzidos a uma frase-slogan que flui através das redes sociais e funciona como um “coringa” para reforçar opiniões de diversas índoles. Sua grande contribuição ao pensamento nas últimas décadas certamente foi sua análise do indivíduo autoexplorado, o novo sujeito histórico do capitalismo. Mas, além dessa ideia-força, o principal mérito do filósofo coreano é ter captado a “atmosfera” dessa época para, dessa forma, traduzi-la em textos nos quais um cidadão comum com certa sensibilidade – política, cultural, trabalhista – se sente refletido.

Em seu último livro, Infocracia [2022], ainda sem tradução no Brasil, Han explora como o “regime de informação” substituiu o “regime disciplinar”. Da exploração de corpos e energias – tão bem analisadas por Michel Foucault em sua época — passamos à exploração de dados. Hoje o signo dos detentores do poder não está ligado à posse dos meios de produção, mas ao acesso à informação, que é utilizada para a vigilância psicopolítica e a previsão do comportamento individual.

Em sua exposição genealógica, Han descreve o declínio desse modelo de sociedade dissecado pelo autor de Vigiar e Punir, e encontra pontes com outros autores do século XX como Hannah Arendt, de quem resgata certas abordagens do totalitarismo. Han diz que hoje estamos submetidos a um novo tipo de totalitarismo. O vetor não é mais o relato ideológico, mas a operação algorítmica que a sustenta.

O filósofo circunda os temas que já havia exposto em outras obras (a compulsão à performance que descreveu em A sociedade do cansaço; o surgimento de um habitante voluntário do panóptico digital, encarnado em A sociedade da transparência; o comodismo frente ao imperativo do like como analgésico do tempo presente, abordado em A sociedade paliativa), mas centra-se na mudança estrutural da esfera pública, atravessada pela indignação digital, que fragiliza o que outrora entendíamos como democracia.

Han argumenta que nesta sociedade marcada pelo dataísmo, o que está ocorrendo é uma “crise da verdade”. Ele escreve: “Esse novo niilismo não significa que a mentira se faça passar como verdade ou que a verdade seja difamada como mentira. Ao contrário, mina a distinção entre verdade e mentira”. Donald Trump, um político que opera como se ele próprio fosse um algoritmo e só se orienta pelas reações do público expressas nas redes sociais, não é, nesse sentido, o mentiroso clássico que deturpa deliberadamente as coisas. “Ao contrário, [ele] é indiferente à verdade dos fatos”, diz o filósofo. Essa indiferenciação, continua Han, representa um risco maior para a verdade do que aquele instaurado pelo mentiroso.

O pensador coreano diferencia os tempos atuais daqueles não muito distantes quando dominava a televisão. Ele define a TV como um “reino das aparências”, mas não como uma “fábrica de fake news”. Destaca que a telecracia “degradava as campanhas eleitorais a ponto de transformá-las em guerras de encenações midiática. O discurso foi substituído por show para o público”. Na infocracia, por outro lado, as disputas políticas não degeneram em espetáculo, mas em “guerra de informação”.

Porque fake news também é, antes de tudo, informação. E sabe-se que “a informação se espalha mais do que a verdade”. Por isso, conclui com o pessimismo que lhe é próprio: “A tentativa de combater a infodemia com a verdade está, portanto, fadada ao fracasso. Ela é resistente à verdade”.

Define a situação atual com uma frase-slogan que o autor de Não-coisas tanto gosta: “A verdade se desintegra em poeira informativa transportada pelo vento digital”.

Mas como essa vítima é varrida pelo vento digital? Como se comporta? “O sujeito do regime de informação não é dócil nem obediente. Pelo contrário, acredita-se livre, autêntico e criativo. Ele se produz e realiza a si mesmo”. Esse sujeito – que no sistema atual também se realiza como objeto – é simultaneamente vítima e vitimizador. Em ambos os
casos a arma utilizada é o smartphone.

Por meio dessa ferramenta, a mídia digital pôs fim à era do homem-massa. “O habitante do mundo digitalizado não é mais aquele ‘ninguém’. Mas é alguém com um perfil, enquanto que na era das massas só os criminosos tinham perfil. O regime de informação se apodera dos indivíduos elaborando perfis comportamentais”.

O grande feito da infocracia é ter induzido em seus consumidores/produtores uma falsa percepção de liberdade. O paradoxo é que “as pessoas estão presas à informação. Elas mesmo se colocam grilhões aos comunicar e produzir informações. A prisão digital é transparente”. É precisamente esse sentimento de liberdade que garante a dominação. Por fim, atualiza o mito platônico: “Hoje vivemos aprisionados em uma caverna digital mesmo acreditando que estamos livres”.

É uma revolução nos comportamentos que exclui qualquer possibilidade de revolução política. Diz Han: “Na prisão digital como uma zona de bem-estar inteligente não há resistência ao regime prevalecente. O like exclui qualquer revolução”>

Em tempos de microtargeting eleitoral, porém, ocorre um fenômeno paradoxal: a tribalização da rede. Interesses segmentados que se expressam por meio de discursos previamente elaborados e que aos poucos vão corroendo o que Jürgen Habermas definiu teoricamente como “ação comunicativa”. “A comunicação digital como comunicação sem comunidade destrói a política baseada na escuta”, escreve Han, enfatizando que no antigo processo discursivo os argumentos poderiam ser “melhorados”, ao passo que agora, guiados por operações algorítmicas, dificilmente são “otimizados” em função do resultado que se almeja.

É a direita que a mais capitaliza esse fenômeno de tribalização da rede, assegura o filósofo, porque nessa franja a demanda por “identidade do mundo vital” é maior. Em uma sociedade desintegrada em “irreconciliáveis identidades sem alteridade”, a representação, que por definição gera uma distância, é substituída pela participação direta. “A democracia digital em tempo real é uma democracia presencial”, que ignora sua esfera natural de representação: o espaço público. Isso leva a uma “ditadura tribalista de opinião e identidade”.

O sujeito autoexplorado da sociedade do cansaço, o habitante voluntário da sociedade transparente, o indivíduo que se entrega à sociedade paliativa, também se submete, conclui Han, à fórmula do regime de informação: “comunicamos até morrer”.

‘Para fugir de imposto, brasileiros viram empresas e aumentam desigualdade’, diz economista

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Livro do economista Manoel Pires mostra caminhos para uma tributação mais justa

Folha de São Paulo, 16/06/2022

O Brasil é um dos países com a tributação mais regressiva do mundo, o que leva pobres a pagarem mais impostos, proporcionalmente, que os ricos. Nas últimas décadas, foram mínimas as tentativas de reverter o quadro, no sentido de uma tributação mais progressiva.

Para ajudar a qualificar tecnicamente esse debate, o economista e ex-secretário de Política Econômica Manoel Pires lançou o livro “Progressividade tributária e crescimento econômico”, com a colaboração de vários autores.
A obra faz um profundo diagnóstico do sistema tributário e apresenta saídas, muitas baseadas nas melhores experiências internacionais. “O intuito é aprofundar a discussão para quando a oportunidade de uma reforma tributária aparecer”, afirma Pires.

O livro teve o apoio da Samambaia Filantropias e pode ser acessado gratuitamente do site do Observatório de Política Fiscal da FGV Ibre, coordenado por Pires.

O Brasil é famoso pela sua desigualdade de renda, mas ainda tem um dos sistemas tributários mais regressivos do mundo. O que explica a falta de ações no sentido de uma maior justiça tributaria? Há um conjunto de elementos que culminam em um Basil muito desigual. O sistema tributário é um deles, além das dificuldades de avançarmos em temas como educação. Há os lobbies de grupos econômicos que geram benefícios para si e que acabam impedindo uma democratização maior do Orçamento. Há muitas explicações.

Fizemos o livro a partir desse cenário de desigualdade enorme, que após uma década e meia de alguma redução voltou a aumentar. Isso em um contexto de baixo crescimento.

O objetivo foi buscar elementos para uma reforma tributária progressiva que gere crescimento, pois é muito mais fácil distribuir renda com a economia crescendo.

Diferentemente da tributação sobre o consumo, em que já existem proposta amadurecidas e que geram pouca controvérsia técnica, no caso de um imposto de renda progressivo ainda há muita discussão, com muitas contradições sobre os efeitos dessa reforma.

Sobre qual seria o efeito econômico de tributar dividendos, ou como um imposto sobre grandes fortunas poderia se encaixar no sistema tributário.

Quais seriam os vetores para uma tributação mais progressiva e que aliviasse os impostos sobre o consumo, que pesa mais sobre os pobres? Do ponto de vista internacional, há toda uma discussão sobre como criar sistemas competitivos para as empresas. Se não acompanharmos essa tendência de redução da carga sobre o setor privado, perderemos competitividade.

Em alguns países, isso tem vindo acompanhado da ampliação da base de arrecadação, para que os governos não percam receita. O que há, tipicamente, é a tributação sobre lucros e dividendos. E o Brasil é um dos poucos países que não tributa isso, algo claramente associado à nossa desigualdade.

Em termos domésticos, a tributação da pessoa física no Brasil tornou-se muito regressiva no topo da renda. Quem está no topo paga menos [proporcionalmente] do que quem em está no meio da distribuição. Quem está no topo tem mais de 50% da renda associada a lucros e dividendos, e ela não é tributada.

Outra questão é que, dependendo da forma com você estrutura sua atividade profissional, existe o que chamamos de iniquidade horizontal: pessoas com a mesma renda sendo tributadas de forma diferente.
De certa forma, seria preciso atuar nessas duas dimensões, aumentado a progressividade do sistema e tratando os iguais de maneira igual.

Como o capital no Brasil está sendo menos tributado, as pessoas estão se tornando empresas. Isso produz uma reconfiguração do sistema e acaba gerando fontes de desigualdade, com pessoas que ganham mais sendo menos tributadas.

Uma reforma progressiva poderia gerar um crescimento maior, tributando um pouco mais quem está no topo e desonerando quem está na base.

Na tributação sobre o patrimônio, temos espaço para um imposto sobre herança [no Brasil, o Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação varia de 2% a 8%, dependendo do estado]. Países com maior tributação sobre patrimônio acabam verificando um crescimento econômico um pouco maior. Pois ele não distorce tanto as decisões econômicas das empresas e das famílias, à medida em que você tributa o estoque [o patrimônio, não o fluxo financeiro].

Outro item o é imposto sobre grandes fortunas. Poucos o adotam, e as simulações da OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico] mostram que dá para ter um bom nível de progressividade sem necessariamente usar esse imposto.

Pesquisa recente mostrou que, desde a Constituição de 1988, só 5% das propostas tributárias no Congresso foram no sentido da progressividade. Nossa voracidade tributária deu-se via consumo. Nem em um governo de esquerda e popular como o de Lula a progressividade foi adotada. O que explica? A discussão sobre impostos é sempre antipática, pois ninguém gosta de pagar. Por isso nosso intuito é aprofundar a discussão para quando a oportunidade de uma reforma tributária aparecer.

O que eu vi na discussão da reforma do Imposto de Renda no ano passado foi uma dispersão política e técnica muito grande sobre o que deveria ser o sistema tributário brasileiro.

Já as medidas que o governo Lula tomou foram no sentido de consolidar um ajuste fiscal na passagem de 2002 para 2003. Aquilo replicou o processo dos anos 1990, quando o país precisava financiar gastos crescentes. Foram medidas de caráter arrecadatório.

De certa forma, com a economia ganhando força a partir de 2005, a melhora da distribuição de renda, do mercado de trabalho e a ampliação do Bolsa Família acabaram atrasando o sentido de urgência dessa discussão.

As janelas de oportunidade para uma discussão como essa são construídas com muita dificuldade.

Fome e insegurança

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Os indicadores sociais são muito negativos na sociedade brasileira, em pleno século XXI o Brasil está se reencontrando com a degradação das condições de vida da comunidade, vivemos num país que se caracterizou pela fortuna gerada pela agricultura tropical, dotada de grandes extensões de terras, solo altamente fértil e grande contingente populacional que poderia ser visto como grande mercado interno, mas, infelizmente, retornamos ao mapa da fome, da desesperança e da insegurança, degradando as condições sociais de vida e reduzindo os investimentos produtivos e intensificando a chegada de especuladores, sem compromisso com a nação e interessado em ganhos imediatos.

Pesquisas recentes divulgadas pelo IBGE nos mostram que mais de trinta e três milhões de brasileiros passaram fome na sociedade nacional em 2021, sem alimentos os indivíduos se perdem nos escaninhos da degradação, perdendo peso, destruindo a dignidade e gerando desequilíbrios generalizados nas condições sociais, levando a sociedade a conflitos sangrentos, abrindo caminho para soluções políticas mirabolantes que aumenta a instabilidade e a exclusão social.

Neste ambiente, as grandes economias do mundo já perceberam que, neste momento de intensas incertezas, faz-se necessário reconstruir a atuação do Estado Nacional, reconstruindo as políticas públicas e aumentando a proteção social, garantindo empregos decentes e reduzindo a degradação das condições dos trabalhadores, com isso, o mercado interno que sempre teve um papel estratégico no desenvolvimento das nações, melhorando as condições sociais e garantindo o crescimento da produtividade, levando os setores produtivos a incrementarem seus rendimentos, relembrando os ensinamentos de Barbosa Sobrinho de que o capital se faz em casa.

Os pressupostos liberais são encantadores e sedutores, a ideia de que a competição tende a fortalecer a estrutura produtiva e estimular a alocação dos investimentos internos, levando a economia ao desenvolvimento econômico é uma grande falácia e uma inverdade, todas as nações que angariaram o tão sonhado desenvolvimento econômico contaram com fortes investimentos estatais, planejamento estratégico sofisticado, incentivos produtivos e cobranças constantes, além de metas claras e a busca crescente por novos mercados externos, garantindo o incremento da produtividade do trabalho.

Numa sociedade como a brasileira, marcada pelo crescimento da fome, inflação em ascensão, desemprego nas alturas e degradação das condições de vida e o incremento da desesperança, precisamos de mais Estado, mais investimentos públicos e novos instrumentos de fortalecimento das estruturas produtivas, garantindo a construção de empresas nacionais fortes, mercado interno consolidado, investimentos em ciência e tecnologia e inovação constante.

A pandemia está nos mostrando a importância da empatia e da solidariedade como forma de construir uma sociedade mais digna, adotando políticas inclusivas, estimulando investimentos produtivos, retomando a esperança da civilização, enterrando as estruturas putrificadas que persistem na sociedade brasileira e que ganham ares de inovação e modernidade.

A fome que perpassa a sociedade brasileira, ou melhor, a fome que ainda persiste no Brasil, é um descalabro moral da alta magnitude no país e nos mostra, claramente, como os valores estão degradados, como os interesses individuais sobrepõem os interesses coletivos, neste cenário estamos nos acostumando com a violência e com a insegurança que crassa e aumenta no cotidiano, matando jovens de todas as classes sociais, postergando soluções estruturais, defendendo soluções frágeis e limitadas, enriquecendo poucos grupos sociais e aumentado o medo e a indignidade.

Neste ambiente, percebemos um governo confuso, sem credibilidade, sem ousadia, sem projeto nacional e suplicando para que os supermercados segurem os preços e jamais, pedindo para que os bancos reduzam seus altos spreads e ganhos financeiros, mesmo sabendo que a fome cresce diuturnamente.

Ary Ramos da Silva Júnior, bacharel em Ciências Econômicas e Administração, especialista em Economia Comportamental (Unyleya), mestre, doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 15/06/2022.

Fukuyama mostra que esquerda e direita têm instintos de censura, por J. P. Coutinho,

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FRadicalizados, ambos os lados ignoram que o liberalismo não se confunde com os abusos cometidos em seu nome

João Pereira Coutinho, Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.
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olha de São Paulo, 13/06/2022.

Todas as profissões têm as suas piadas privadas. Entre os cientistas políticos, “Francis Fukuyama” e “o fim da história” é uma delas. Sempre que alguém junta essas duas frases, há sempre risos inteligentes e a frase fatal: “A história terminou com a queda do Muro de Berlim e depois veio o 11 de Setembro.” As gargalhadas aumentam de volume.
Sou insuspeito: várias vezes participei no deboche. Mas, aqui entre nós, a paródia assenta num equívoco: Fukuyama não disse que a história terminara com o fim da Guerra Fria. Ele apenas declarou que o modelo democrático-liberal era superior aos restantes. E não é?

Não discuto abstrações. Discuto migrações. As democracias liberais têm os seus competidores —em Cuba, Rússia, Turquia, China. Mas não vejo muita gente querendo emigrar para lá.
Pelo contrário: o desejo é o inverso. Fugir de lá e vir para cá. Será que uma parte da humanidade está seriamente equivocada?

Escutando os nossos extremistas de direita e de esquerda, não existe nada de valioso por estas bandas. O liberalismo é uma fraude: gera desigualdade, relativismo moral e apenas mascara relações de submissão e poder, em que as elites dominam o povo (versão da direita) ou em que o povo reacionário é um freio ao progresso (versão da esquerda). Hora de abandonar o barco?

Um pouco de calma, aconselha o injustiçado Francis Fukuyama no seu livro mais recente: “Liberalism and its Discontents”. É um dos melhores livros de Fukuyama.

Comecemos pelo básico: liberalismo é uma doutrina política que emergiu na segunda metade do século 17 com a ambição meritória de limitar o poder dos governos e proteger os direitos dos indivíduos.

Mas, antes de ser uma doutrina, é também uma descoberta: os indivíduos não são definidos pelo grupo a que pertencem, mas pela autonomia de que são capazes para fazerem as suas escolhas e viverem suas vidas.
É um pensamento nobre, nem sempre respeitado ao longo da história, mas que foi sendo realizado, a duras penas, na defesa da tolerância perante a diversidade, na proteção da economia de mercado e na luta por iguais direitos para todos.

Acontece que, no último meio século, direita e esquerda radicalizaram a própria noção de autonomia — e, com isso, desfiguraram as virtudes do liberalismo.

Para Fukuyama, a direita neoliberal pôs o mercado acima de qualquer outro valor social, ao mesmo tempo que demonizou o papel do Estado.

Esse fanatismo pagou-se com desigualdade, desemprego maciço nas indústrias tradicionais do Ocidente —e, claro, crises financeiras destrutivas que abriram as portas aos populismos do momento.

A esquerda identitária também se entregou a uma nova interpretação das “políticas de identidade”. Originalmente, a ideia era completar o liberalismo pela integração de grupos marginalizados no mesmo contrato social. A luta pelos direitos civis nos Estados Unidos é um dos melhores exemplos.

Mas a radicalização do conceito de autonomia por uma parte da esquerda teve dois efeitos só aparentemente contraditórios, escreve o autor: por um lado, levou os indivíduos a procurarem o seu ser autêntico, livre das amarras sociais; por outro, levou esses mesmos indivíduos a concluírem que as amarras eram mais fortes do que a essência prometida e nunca encontrada.

A dimensão universalista do liberalismo, em que todos somos iguais em direitos e deveres, deu lugar a uma nova tribalização da sociedade, em que os grupos, e não mais os indivíduos, rejeitam os próprios pressupostos do modelo liberal.

É assim que estamos, diz Fukuyama. A direita e a esquerda rejeitam o liberalismo pelas suas alegadas patologias econômicas e sociais sem entenderem que a maior patologia de todas é a forma drástica como o liberalismo foi sendo aplicado.

Essa confusão conceitual gera seus monstros: entre a direita, um nacionalismo que parece importado do século 19, como se fosse possível regredir no tempo e restaurar uma uniformidade moral, étnica ou religiosa.
Entre a esquerda, a mesma atitude reacionária que procura aprisionar os indivíduos em identidades estáticas, essencialistas e pré-modernas.

Em ambos os casos, os mesmos instintos censórios e paranoicos. Quem nos salva desse manicômio? Ler Fukuyama é um princípio de salvação: no diagnóstico do problema está já contido o esboço de uma terapia. Que o mesmo é dizer: defender as democracias liberais significa não jogar fora o bebê com a água do banho. O liberalismo não se confunde com os abusos que foram cometidos em seu nome.

Aumento do PIB não vai trazer ajustes fiscais para o País, Mendonça de Barros.

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Mesmo com resultado positivo, resposta do PIB ainda não pode ser levada a longo prazo quando se fala em ajuste fiscal

José Roberto Mendonça de Barros.

O Estado de São Paulo, 12/06/2022

Acho inacreditável que a melhora da relação dívida/PIB leve a interpretações da existência de um ajuste fiscal estrutural no País. Explico o porquê.

A aceleração da inflação reduz o coeficiente, porque o PIB nominal cresce mais rápido do que a dívida. Além disso, cai o salário mínimo e, em consequência, reduzem-se os gastos da Previdência. Da mesma forma, derruba a folha de salários em termos reais. O problema é que isso será revertido em prazo curto, tanto pela queda na inflação resultante dos juros altos como porque as grandes corporações irão brigar pela reposição salarial em 2023.

A arrecadação de impostos cresceu em boa parte por conta do choque de commodities. Ora, é bastante provável que o ciclo desses preços se reverta no próximo ano pela esperada redução no crescimento global.

Da mesma forma, o forte crescimento do PIB de 2021 teve efeitos positivos na coleta de impostos, que em parte são pagos neste ano, como o ajuste do Imposto de Renda. Isso não mais se repetirá, dadas as modestas projeções para 2022 e 2023.

Além disso, o processo orçamentário regular está completamente destruído por conta do crescimento das emendas parlamentares, especialmente as de relator. Essas transferências são paroquiais, mal distribuídas, pouco transparentes e de escasso efeito no crescimento. Basta pensar em obras inacabadas e shows sertanejos.

O pior de tudo é que não existe mais uma regra fiscal, pois o teto foi tantas vezes perfurado que virou uma ficção. Não há estabilidade macroeconômica sem uma âncora fiscal crível.

O populismo fiscal chegou com tudo. Convencido de que não ganhará a eleição com a inflação tão alta, o presidente da República, com o entusiasmado apoio do seu ministro da Economia, enviou para o Congresso um pacote de medidas que busca reduzir os preços da energia. Ele tem três elementos: a limitação do ICMS em vários produtos em 17%, a zeragem dos impostos federais nos combustíveis e um pretenso estímulo para que Estados reduzam a zero a alíquota desses produtos, pelo menos até depois das eleições. O pacote total tem o astronômico custo fiscal de R$ 90 bilhões em 12 meses.

O pior de tudo é que, mesmo se aprovado, os preços na bomba podem não cair. Dificilmente os Estados concordarão em, voluntariamente, reduzir a zero o ICMS. É esperado que até o fim do ano o preço internacional do petróleo suba ainda mais. E o real deve se desvalorizar em resposta à farra fiscal, como já ocorreu nos últimos dias.

A herança fiscal será lamentável.

É razoável que alunos mais ricos paguem mensalidade em universidades públicas? NÃO

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Criam-se grupos diferentes de alunos, e valores pagos tendem a crescer

Miguel Buzzar, Professor e vice-diretor do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP
Paulo Martins, Professor de letras clássicas e diretor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (FFLCH-USP)
Vladimir Safatle, Professor titular de filosofia da FFLCH-USP

Folha de São Paulo, 11/06/2022

Há perguntas que não são perguntas. Pois a maneira com que são construídas expressam a enunciação de uma certeza, não a abertura a uma questão. Colocar o problema da cobrança de mensalidades em universidades públicas como uma pergunta sobre se ricos deveriam ou não pagar para nelas estudar é o caso de uma pretensa questão que já claramente induz a resposta e naturaliza suas consequências.

Pois o problema poderia ter sido colocado de várias outras formas. Por exemplo: “a educação superior pública deveria deixar de ser gratuita?”; “pessoas pobres que estudam em universidades públicas deveriam, a partir de agora, submeter-se a decisões discricionárias sobre se terão ou não direito a bolsas?”; “o Estado deveria se desresponsabilizar sobre o financiamento integral de suas universidades públicas, que são responsáveis pela quase totalidade da pesquisa no país?”.

É claro que somos contra privilégios das classes mais ricas, mas o eterno tópico das mensalidades das universidades públicas é apenas uma maneira de fazer, na verdade, os pobres e a classe média pagarem para suas filhas e filhos obterem uma formação de qualidade. Pois a virtude do tempo mostra a verdade das intenções aparentemente justas e puras. Nos países onde o sistema universitário público adotou mensalidades, a história foi a mesma. Primeiro, a definição de quem é “rico” vai paulatinamente ampliando-se. Para termos um exemplo, 60% das alunas e alunos da Universidade de São Pulo vêm de famílias que ganham até 10 salários mínimos. Se uma família que ganha 10 salários mínimos, com pai, mãe e dois filhos, for considerada rica —e paga aluguel e plano de saúde e o ensino superior for pago—, um dos filhos terá que deixar de estudar, como aconteceu em vários países.

“Mas podemos criar bolsas de estudos para os que não podem pagar”, dirá o apóstolo da educação neoliberal. No entanto, por uma dessas coisas inexplicáveis que ocorrem em todos os lugares, o número de bolsas nunca é suficiente. Isso fez com que vários estudantes em várias partes do mundo tivessem que contrair dívidas para estudar, iniciando a vida profissional endividados. O que não deixa de ser uma bela maneira de fazê-los submissos a qualquer emprego que consigam o mais rápido possível.

A partir do momento que o Estado se desengaja pontualmente de suas universidades, ele tende a se desengajar integralmente. Isso faria com que as universidades aumentassem suas mensalidades, criassem grupos diferentes de estudantes (exemplo: os estudantes não paulistas pagariam mais que os paulistas para estudarem nas universidades paulistas) e cobrassem fortunas por “cursos de especialização” e “de verão”.

Já os ricos que deveriam pagar mensalidades fariam o que fazem cada vez mais atualmente, ou seja, enviariam seus filhos e filhas para estudarem em universidades estrangeiras. Mais à frente certamente ganhariam diminuição de impostos como benesse de um Estado com menos responsabilidade social —além de poderem contar em suas empresas com recém-formados docilizados pelo endividamento.

No entanto, se quisermos efetivamente fazer justiça social, sugerimos outra pergunta: “É razoável que ricos paguem impostos sobre grandes fortunas, sobre consumo conspícuo e transações financeiras para financiar um grande projeto de universidade pública, gratuita, de qualidade e popular?”. Afinal, ensino como direito humano deveria ter garantido seu acesso de forma universal.

O poder civil, por Luís Francisco Carvalho Filho.

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A volta dos militares é lenta, gradual e segura

Luís Francisco Carvalho Filho, advogado criminal, presidiu a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (2001-2004).

Folha de São Paulo, 11/06/2022

Militares da Marinha, em Santa Helena, no Paraná, exigem que pessoas baixem as calças durante revistas pessoais porque as Forças Armadas não estão submetidas a controle externo.

A Justiça Militar, que eventualmente pune um ou outro soldado infrator, quando flagrado pela opinião pública, mas sem incomodar comandantes, é historicamente cúmplice de incontáveis atos de violência e barbárie.

Ao apurar assassinatos (ainda que as “pretensas vítimas” sejam “inocentes”), a Justiça Militar define os “erros” como “plenamente escusáveis” e arquiva as investigações, normalmente preguiçosas e conduzidas por companheiros dos investigados.

A Marinha, tão desinibida quando, no âmbito da operação Ágata, para “repressão dos delitos transnacionais e dos crimes ambientais”, humilha transeuntes, é tímida ao reagir ao desaparecimento do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Philips, gente que, ao olhar de Bolsonaro e das Forças Armadas, se mete indevidamente na Amazônia.

A volta dos militares ao poder segue, de forma invertida, o plano da abertura democrática cunhado por Golbery e Geisel na década de 1970: “Lenta, gradual e segura”. Precisa ser interrompido.

Após o ciclo de 1964, os militares se recolhem, sem deixar, contudo, de influir na feitura da Constituição de 88. O poder civil vasculha os crimes da ditadura, mas torturadores e terroristas das Forças Armadas alcançam a impunidade.

Ao criar o Ministério da Defesa em 1999, Fernando Henrique Cardoso transmite a ilusão de que uma pá de cal é lançada na tradição golpista brasileira.

A ascensão militar recomeça com seguidas operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), que, politicamente, configuram pedidos de ajuda formal dos presidentes da República às Forças Armadas para o combate do sentimento de insegurança pública.

O Ministério da Defesa contabiliza desde a ECO 92, no Rio de Janeiro, 145 GLOs. Algumas passam despercebidas, como as que “garantem” realização de “pleitos eleitorais”. Outras são chamadas para grandes eventos, como a Copa do Mundo ou os Jogos Olímpico Jogos Olímpicos, ou para reprimir greves de PM e caminhoneiros, ou para combater a violência urbana —as que costumam deixar rastros de sangue e de abuso de poder.

Jair Bolsonaro tem sido econômico em matéria de GLO (decretou apenas 9) porque ainda teme a responsabilização de militares por crimes que estão acostumados a cometer contra civis.

A partir do governo Temer (2016-2018), aumenta a presença política e vitórias se acumulam.
Conseguem a aprovação da Lei 13.491/2017, “retaguarda jurídica” que amplia a competência da Justiça Militar e facilita a impunidade de soldados assassinos.

Gesto inusitado e covarde, Dias Toffoli designa um general da reserva para assessorá-lo (ou vigiá-lo) na presidência do STF. Michel Temer quebra a tradição inaugurada por FHC e nomeia ministro da Defesa outro general.

O capitão Bolsonaro é eleito, e, para se legitimar nas tropas que o repudiavam, aumenta a remuneração dos militares, protegidos da reforma previdenciária, e loteia a administração federal entre oficiais cada vez mais simpáticos ao golpe.

Desde 2013, dormitam no STF ações contra julgamento de civis pela Justiça Militar: Raquel Dodge, ex-procuradora-geral da República, pedia decisão urgente. Desde 2017, tramitam no STF ações contra julgamento de crimes praticados por militares contra civis pela Justiça Militar. O Supremo patina.