Carta Mensal – Apresentação

0

Carta Mensal

www.aryramos.pro.br

A Carta Mensal foi criada como um instrumento de refletirmos sobre as atividades no mês anterior, este serviço será enviado a todas as pessoas que se inscreveram no site, onde será enviado um artigo sintético e condensado sobre os principais assuntos relativos aos eixos de publicação do site.

Vivemos numa sociedade que se transforma rapidamente, gerando medos e grandes preocupações, alterando as estruturas econômicas e produtivas impactando todos os indivíduos, as organizações e as nações, espalhando instabilidades e incertezas que exigem reflexões sobre o comportamento dos seres humanos, exigindo novas habilidades, mais flexibilidade, mais assertividade, mais sensibilidade e mais agilidade para compreendermos os grandes desafios de um mundo novo, altamente conectado, centrado no conhecimento, na imaterialidade e no imediatismo.

Neste assunto constará no máximo 600 palavras refletindo sobre assuntos prementes e variados sobre economia, gestão, sociologia, educação, gestão pública, política, cultura e saúde contemporaneidade, visando refletirmos sobre a sociedade brasileira e internacional, trazendo elementos para pensarmos os grandes desafios da sociedade do século XXI, marcados por grandes oportunidades criadas pelo incremento da tecnologia, alterações nas comunicações, mudanças nos modelos de negócios, no conhecimento e nos instrumentos de geração de riquezas.

A Carta Mensal será publicada sempre até o dia 10 dos respectivos meses, analisando os assuntos mais comentados na sociedade, além dos temas mais analisados e que mais chamaram mais atenção, com isso, teremos um período maior para destacar os assuntos mais relevantes que foram destaque no mês anterior, comentando, analisando e criando espaços de discussões.

A Carta Mensal foi criada e idealizada pelo site www.aryramos.pro.br e é mantida pelo professor doutor Ary Ramos da Silva Júnior, professor universitário desde 1997, formado em Ciências Econômicas (Unesp) e Administração (Unirp), Especialista em Economia Criativa (Unyleya), Mestre e Doutor em Sociologia pela Universidade Estadual Paulista (Unesp).

O futuro do agronegócio é a ciência, por Ronaldo Lemos.

0

Vamos competir também em propriedade intelectual, patentes, cultivares, insumos?

Ronaldo Lemos, Advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro.

Folha de São Paulo – 10/10/2022

Quais os elementos essenciais para um agronegócio competitivo e sustentável? Abundância de água, terra fértil, sol, ciência e tecnologia. De todos esses, o peso começa a crescer para os dois últimos.

O futuro do agronegócio não será de quem tem os melhores recursos naturais, mas sim de quem aplica melhor ciência e tecnologia. Competição por sementes, cultivares, know-how e implementos.

O Brasil sabe disso. Tanto é que a agricultura brasileira é das mais competitivas globalmente, especialmente em razão da Embrapa. No entanto, liderança é, por definição, um lugar instável.

Outros países estão constatando que, com ciência e tecnologia, é possível ganhar mais competitividade no agro, avançando sobre espaços que hoje são detidos pelo Brasil.

O país mais recente a transformar ciência e tecnologia no agro em prioridade nacional é um velho conhecido dos produtores brasileiros: a China. Nos últimos anos, o país decidiu que não quer mais depender de importações para garantir sua segurança alimentar.

O país abriga hoje 20% da população mundial, mas possui apenas 8% das terras aráveis do planeta. Por isso foi dada a largada para um esforço de aumento da produtividade por hectare. E também por reorganizar a forma como a produção agrícola acontece na China.

No entanto, o passo mais ambicioso do país relaciona-se diretamente à cadeia de suprimentos agrícolas global. Trata-se da aquisição da gigante global de tecnologia agrícola Syngenta. De origem Suíça, e até hoje com sua sede em Basileia, a empresa foi adquirida em 2017 por US$ 43 bilhões pela empresa ChemChina (atualmente Sinochem Holdings). Essa foi a maior aquisição internacional feita por uma empresa chinesa.

A Syngenta tem presença forte globalmente, inclusive no Brasil, no ramo de sementes, pesticidas, herbicidas e outros produtos e cultivares relacionados a lavouras de soja, milho e biocombustíveis.

Na China, a aquisição da empresa tem provocado uma verdadeira revolução agrícola. A empresa está desenvolvendo no país os chamados MAPs (sigla de Plataforma de Agricultura Moderna).

Mais de 500 MAPs foram implantados nas áreas rurais do país. Em cada um deles há sempre centros de pesquisa e aprendizado, onde se destaca a frase “In Science We Trust” (Na ciência nós confiamos).

Cada um deles tem uma estética parecida com a do Vale do Silício e ajuda produtores locais a desenvolver práticas mais “produtivas, eficientes e sustentáveis”. Vale lembrar também que a produção rural é apenas um dos segmentos do agronegócio.

Outro segmento fundamental, do qual o Brasil participa pouco, é o da propriedade intelectual, das patentes e dos cultivares. Nesse campo, a Syngenta é gigantesca. Antes da aquisição, a empresa já havia assimilado a Novartis e o braço agrícola da AstraZeneca.

Com isso, detém inúmeras patentes e cultivares, relacionados a milho, soja e alface, além de inúmeros produtos químicos. Até uma variedade de tomate típica da América do Sul a empresa chegou a patentear antes da aquisição, mas depois de muitos protestos a patente foi revogada.

Os produtores brasileiros são clientes da Syngenta com relação a vários produtos, muitos deles essenciais para as lavouras no país. E o Brasil? Apesar de sermos potência agrícola, dominamos só uma parte do setor.
Vamos competir também em propriedade intelectual, em patentes, cultivares, insumos e implementos? O futuro do setor depende da resposta a essa pergunta.

Já era – Pensar em agricultura apenas como exploração direta da natureza

Já é – Agricultura como atividade científica e tecnológica

Já vem – Competidores do Brasil com menos recursos naturais, mas mais tecnologia

Livre concorrência e livre-comércio – o fim de uma era? por Alessandro Octaviani.

0

Alessandro Octaviani – A Terra é Redonda – 09/10/2022

Nos países centrais, os anos do neoliberalismo e dos modelos mentais jurássicos de livre-comércio e livre-concorrência ficaram para trás

“You vitriolic, patriotic, slam fight, bright light\ Feeling pretty psyched\ … It’s the end of the world as we know it” (R.E.M).

A explicitação de conteúdos jurídicos protecionistas e de “segurança econômica nacional” exarados pelas principais economias do mundo, visando a remodelar seu ordenamento básico referente à livre-concorrência e ao livre-comércio, é um fato rotineiro da última década.

A Alemanha fornece um desses exemplos, principalmente porque se notabilizou, ao longo de todo reinado de Ângela Merkel, como uma das cidadelas do aglomerado retórico de “austeridade + livre-comércio + livre-concorrência” (as mais de 15.000 empresas estatais alemãs não figuram nesse amálgama porque são reais demais para a manutenção da ideologia…).

A recente reformatação de sua disciplina jurídica do setor energético é marcante. Após a consistente escalada da OTAN e da União Europeia rumo aos escombros da antiga URSS, absorvendo espaços geoeconômicos e geopolíticos sob a égide ocidental, a Rússia deflagrou a reação que teóricos do “realismo ofensivo”, como John Mearsheimer, em seu influente The tragedy of great power politics, previam: uma guerra que busca limitar tal avanço, podendo migrar para pressões crescentes no fornecimento de energia e ataques contra infraestruturas críticas.

A atual infraestrutura de energia alemã foi estrategicamente modelada pelo período Merkel, tendo como símbolo máximo a construção dos gasodutos do sistema Nord Stream. A configuração do setor de energia tinha (i) como premissa uma relação amistosa com a Rússia e (ii) como utopia a suposição de que o livre-comércio e a livre-concorrência criariam (paulatina, mas inexoravelmente) uma convergência institucional entre estratégias nacionais de desenvolvimento e ordenamentos jurídicos. Superando esse momento retórico, a nova doutrina da Alemanha e da União Europeia (ameaçadas pela posição de compradora exercida pela China, pela detenção das Big Techs pelos EUA e pela dependência energética em relação à Rússia) remete ao termo “autonomia estratégica”, durante décadas ridicularizado e escanteado pelo pensamento liberal que a OCDE e os centros bem-pensantes empurraram para os desavisados consumidores de jurisdições periféricas, dentre as quais o Brasil.

Demonstrando que, para os alemães, livre-concorrência e livre-comércio são conceitos mutáveis e imersos no pragmatismo que sempre deve manter seu país no cume, o governo de Olaf Scholz nacionalizou as subsidiárias alemãs da estatal petrolífera russa Rosneft, tomando o controle das refinarias e submetendo-as juridicamente ao Bundesnetzagentur, autoridade reguladora do mercado energético alemão, fato qualificado pelo ministro da Economia como “fundamental para garantir a segurança de sua cadeia nacional de abastecimento energético”, afastando o livre-comércio em área sensível à segurança econômica nacional: “The trust management will counter the threat to the security of energy supply”.

Esse não é um ato isolado. Há método na sanidade germânica. A conjunção da Außenwirtschaftsgesetz, lei de comércio exterior e pagamentos, com o Außenwirtschaftsverordnung, seu regulamento concretizador, organiza estruturas e condutas em conformidade com os ditames da segurança nacional e dos interesses externos do país, abrindo imenso leque retórico para imposição de restrições e obrigações a fim de “garantir os interesses essenciais à segurança alemã e membros da União Europeia”, visando a “prevenir distúrbios na coexistência pacífica das nações” ou “nas relações internacionais do país”, e para “implementar decisões do Conselho Europeu” ou “impor sanções econômicas no escopo da política comum de defesa europeia”.

São sujeitos a tais restrições e obrigações, em particular, os não-residentes da União Europeia que tentarem adquirir empresas ou meramente participações acionárias de companhias alemãs que possam ameaçar, por qualquer flanco, os interesses essenciais de sua segurança econômica nacional. Da mesma maneira, os atuais diplomas reguladores dos comportamentos em mercados “de relevante interesse coletivo”, como as normativas administrativas para definição de infraestruturas críticas, dispõem diversas hipóteses de controle administrativo e judicial de investimentos estrangeiros que “representem possível risco à segurança nacional”, destinando-se a proteger setores inteiros da economia alemã de concorrência estrangeira.

Como se vê, um dos atuais impulsos econômicos alemães é o velho e conhecido nacionalismo econômico. A erosão da retórica liberal no centro da disciplina jurídica da economia mais relevante da Europa revela o que ainda no Brasil temos dificuldade de assumir: nos países centrais, os anos do neoliberalismo e dos modelos mentais jurássicos de livre-comércio e livre-concorrência ficaram para trás. Chegaram a “concorrência estratégica”, “autonomia estratégica”, “políticas contra a vulnerabilidade externa”, “políticas contra a dependência”, “cadeias locais de produção”, “segurança econômica nacional” e outras expressões do gênero. It’s the end of the world as we know it, como anunciou o clássico do R.E.M. Só “a bailarina que não tem”, responderiam Chico e Edu Lobo.

*Alessandro Octaviani é professor de direito econômico da Faculdade de Direito da USP e ex-membro do Tribunal do Cade. Autor, entre outros livros, de Estudos, pareceres e votos de direito econômico (Ed. Singular).

Batalha dos chips entre EUA e China expõe estratégia de sufocamento, por Tatiana Prazeres.

0

Diante dos esforços de Pequim no grupo de elite dos semicondutores, nada serviu de incentivo tão poderoso

Tatiana Prazeres, Executiva na área de relações internacionais e comércio exterior, trabalhou na China entre 2019 e 2021

Folha de São Paulo – 08/10/2022

Muitos se surpreendem com o fato de que semicondutores são, de longe, o principal item de importação da China. A vulnerabilidade do país nessa área foi percebida em Washington como oportunidade.

EUA e China hoje protagonizam uma batalha dos chips, emblemática da competição tecnológica, econômica e geopolítica do mundo contemporâneo. Limitar o acesso chinês a semicondutores avançados e a insumos e máquinas para produzi-los foi a linha endossada pelos EUA.

A estratégia do sufocamento caiu no gosto dos “hawks” americanos, e abrir mão dela seria visto como sinal de fraqueza. Nesta sexta (7), Washington adotou mais uma leva de restrições às exportações para a China com esse objetivo.

Semicondutores estão na base de todas as tecnologias do presente e do futuro, desde seu próximo aparelho celular até inteligência artificial e computação quântica. Esses produtos envolvem cadeias produtivas complexas, cujos elos críticos, no entanto, estão concentrados em poucas empresas e mercados.

Centro das atenções geopolíticas, Taiwan concentra 90% da produção de semicondutores avançados —e numa única empresa. A taiwanesa TSMC, entretanto, depende do design desses semicondutores, um segmento de alta tecnologia dominado por empresas americanas como Qualcomm, Nvidia e Apple. Também necessita de equipamentos sofisticados para produzir chips de última geração, e eles vêm basicamente de uma única empresa, a holandesa ASML.

A Lei dos Chips dos EUA, promulgada em agosto, busca estimular a produção de semicondutores avançados em território americano. Dessa etapa da produção também participam a coreana Samsung e a americana Intel.

Biden busca coordenar posições tanto para aumentar a eficácia das medidas contra a China quanto para socializar o prejuízo que suas empresas têm ao serem privadas do mercado chinês. Quer que esse custo seja compartilhado. Fala-se na criação de uma espécie de Opep dos chips.

A China busca há anos se juntar à primeira liga do campeonato dos semicondutores. Já investiu centenas de bilhões de dólares no setor e tenciona produzir 70% dos chips de que precisa. Várias de suas empresas têm feito avanços em elos diferentes da cadeia —mas elas ainda estão distantes dos chips mais avançados de Taiwan. Produzem o chip commodity.

Quando Pequim desenhou mais um pacote de incentivos para o setor em 2020, o anúncio foi acompanhado de um conjunto de três “nãos”: empresas sem experiência, sem tecnologia e sem talentos na área não deveriam se aventurar com recursos públicos. Ainda assim, naquele ano, estima-se que mais de 50 mil empresas tenham sido criadas no setor,
várias delas evidentemente apenas pelas benesses.

Muitos apontam o setor de semicondutores como o grande fracasso da política industrial chinesa. É precipitada a conclusão. A maior produtora do país, a SMIC, anunciou há pouco um salto tecnológico importante e o fez em menos tempo que as concorrentes. Durante o lockdown rigoroso em Xangai neste ano, a empresa não parou. Obteve uma autorização especial para que dois terços dos seus empregados pudessem dormir na fábrica, que operou em circuito fechado em relação ao restante da cidade.

É uma questão de tempo —de recursos, talentos, investimentos em pesquisa e desenvolvimento— para a China participar da briga dos grandes. A estratégia do sufocamento coordenado faz o país convencido da necessidade de dobrar a aposta na autossuficiência. Aos poucos, junto com sinais de fracasso, surgem os de progresso.

Em décadas de esforços da China para entrar no grupo de elite dos semicondutores, nada serviu de incentivo tão poderoso como as medidas dos que querem contê-la.

Não há lugar para muro, por Gobetti e Orair.

0

A escolha agora é simples: civilização ou barbárie

Folha de São Paulo – 08/10/2022

Sérgio Wulff Gobetti, Pesquisador e doutor em economia pela UnB

Rodrigo Octávio Orair, Economista, é pesquisador do Made-USP (Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades) e ex-diretor da Instituição Fiscal Independente do Senado Federal

Em artigo nesta Folha (“Em louvor do voto inútil”, 29/9), o economista Alexandre Schwartsman criticou o “voto útil” em Luiz Inácio Lula da Silva (PT), declarando que não o pretendia fazer nem no primeiro nem no segundo turno por não acreditar nas credenciais democráticas do Partido dos Trabalhadores. Partido dos Trabalhadores.

Sim, leitor, apesar de Lula e o PT terem governado o Brasil por 14 anos sem jamais ameaçar nossa democracia, Schwartsman pinça declarações sobre o chamado “controle social da mídia” e sobre a “mídia golpista” para tentar forjar uma falsa —e repugnante— equivalência entre o ex-presidente e Jair Bolsonaro (PL).

Repugnante porque nada se compara à crise institucional e ao clima de golpe criado pelo atual presidente da República. Nada se compara à sua falta de humanidade ao debochar das vítimas da Covid-19 e ao declarar admiração por um torturador da ditadura militar que tinha como um dos seus métodos abusar de mulheres em frente aos filhos.

Nada se compara ao desrespeito cotidiano com jornalistas, especialmente mulheres, e ao estímulo à violência física contra adversários.

Talvez Bolsonaro não tenha forças para transformar o Brasil numa ditadura ao velho estilo da década de 1960, mas poderá transformar nosso país num regime autoritário aos moldes da atual Hungria de Viktor Orbán. Lá, como aqui, a ultradireita cria um inimigo imaginário (o comunismo), monta uma estrutura de propaganda paralela (baseada em fake news), promove uma fusão entre religião e Estado e busca minar a credibilidade das demais instituições para justificar o aparelhamento do Judiciário e das forças policiais.

Isso já está ocorrendo no Brasil e poderá se agravar caso o campo democrático, da esquerda à direita, não se una para derrotar Bolsonaro. Corremos o risco inclusive de retrocesso civilizatório, com a destruição de valores iluministas que balizaram a construção da sociedade moderna, como vemos com a tentativa de intervir no ensino e oprimir minorias.

Lula já deu declarações infelizes? Sim. Já cometeu erros? Sim. Mas o petista jamais falaria que a Covid é uma “gripezinha”, incentivaria tratamento não comprovados cientificamente, debocharia de quem está sofrendo falta de ar ou diria que não vai vacinar os filhos, tendo o dever de dar o exemplo como presidente da República. Ademais, Lula é um conciliador nato, respeitado pelos maiores líderes da democracia ocidental. Tão conciliador que até mesmo Schwartsman, um liberal de direita, ocupou cargo de diretor do Banco Central durante seu governo.

Na economia, a tendência conciliadora se evidenciou numa preocupação (até excessiva) em não desagradar o mercado e na adoção de uma política bem pragmática, ao mesmo tempo em que buscava reduzir a pobreza por políticas de transferência de renda e aumento de salário mínimo —com efeito limitado sobre a redução da desigualdade, como mostraram estudos posteriores. Se for eleito, Lula precisará negociar para avançar na agenda de reformas (tributária e fiscal) e, por isso, já sinalizou que escolherá um ministro da Economia com capacidade de articulação política.

Em resumo, Lula e o PT têm feito ao longo da história movimentos de moderação, se deslocando da esquerda para o centro, enquanto parte da brasileira, ao contrário, se desloca para o extremo. Se isso não é razão suficiente para liberais como Schwartsman saírem do muro, talvez a explicação esteja na vergonha. Vergonha de reconhecer o erro de ter votado em 2018 num candidato que nunca escondeu seu caráter autoritário, embora fosse inimaginável que demonstrasse tanta crueldade e irresponsabilidade como vimos na pandemia.

Felizmente, muitas personalidades de centro ou de direita, críticos do PT, como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB). compreenderam a delicadeza do momento histórico que estamos vivendo. A escolha é simples: civilização ou barbárie.

Observação: a economia cresceu 4% em média ao ano sob comando de Lula, declinou para 2,3% no primeiro governo de Dilma Rousseff (PT) e estagnou em 0,07% ao ano de 2015 a 2022 —e Schwartsman insiste em atribuir a década perdida exclusivamente aos erros do PT.

Mas esse é um debate secundário diante da necessidade de união da luz contra as trevas. Vamos juntos, Alex, derrotar Bolsonaro.

Capitalismo não vai resolver crise do clima, diz pai do conceito de sustentabilidade.

0

Segundo John Elkington, o atual sistema é incapaz de entregar até mesmo uma fração dos objetivos sustentáveis

Thiago Bethônico – Folha de São Paulo – 09/10/2022

Considerado o pai do conceito de sustentabilidade, John Elkington ganhou destaque no meio corporativo ao trazer os princípios ambiental e social para a discussão sobre desenvolvimento, sem abandonar a perspectiva financeira. Mas, se alguém viu isso como uma defesa de que o atual modelo econômico é capaz de resolver os problemas climáticos, o sociólogo britânico é categórico: “Não acho que podemos confiar no capitalismo de forma alguma.”

Em entrevista durante evento realizado pela Klabin, em setembro deste ano, Elkington defendeu que o atual sistema é incapaz de entregar até mesmo uma fração dos objetivos sustentáveis já definidos.

“A questão é: ou vamos para a revolução ou fazemos algo diferente. Estou otimista de que podemos fazer algo diferente, mas a menos que façamos isso rapidamente, essa revolução à moda antiga vai se impor em nosso mundo”, afirma.

Considerado uma das maiores autoridades no debate sustentável, o britânico tem discurso firme contra empresas poluidoras e defende que negócios que conscientemente poluam a atmosfera sejam levados ao tribunal. “Os danos que estão causando destruirão milhões de vidas, trilhões de dólares. Por que eles deveriam se safar disso?”, questiona.
Sobre a situação brasileira, Elkington critica a política do presidente Jair Bolsonaro (PL), argumenta que ele não seria capaz de melhorar a posição do país no mundo e diz que o Brasil está em um caminho muito perigoso. No entanto, ele também questiona se Luiz Inácio Lula da Silva (PT) seria capaz de mover o país numa direção diferente.

Como está a imagem do Brasil na comunidade internacional hoje considerando os retrocessos ambientais? Você terá de me perdoar porque vou ser indelicado. Muitas vezes, as pessoas não acompanham diariamente as notícias de um país, empresa ou marca. Eles se lembram do que ouviram falar. Por isso, no Norte Global, o Brasil é conhecido há muito tempo pelo desmatamento.

Quando estive no projeto da linha 6 [do metrô de São Paulo], vi grandes pedaços de madeira tropical por lá e minha pergunta óbvia era “de onde vem essa madeira?”. Porque, sendo de fora do Brasil, eu suspeito.

O desmatamento parece ser um problema relevante. [Também] Há uma preocupação crescente com o governo Bolsonaro e seu incentivo quase ativou a diferentes atividades econômicas que se deslocam para florestas praticamente intactas. Uma total disposição de ignorar os direitos dos povos indígenas.

Então depende com quem você fala na Europa ou na América do Norte. Alguns estarão interessados em direitos humanos e lhe darão um conjunto de questões. Outros estarão interessados em ecologia ou nas florestas tropicais.

Alguns ainda vão se interessar por política e pensar se vai ser melhor se Lula ganhar em vez de Bolsonaro. Ontem à noite, as pessoas estavam me dizendo que provavelmente não fará nenhuma diferença. Se for verdade, eu fico muito preocupado, porque acho que o Brasil está em um caminho muito perigoso.

As pessoas te disseram que Lula e Bolsonaro podem não representar muita diferença, mas como o sr. enxerga? Lula está comprometido por causa do processo contra ele —e eu sei que ele foi inocentado. Mas quando estou no Brasil trabalhando para diferentes empresas, e penso, por exemplo, na Petrobras, o nível de corrupção é bastante significativo e está aqui há muito tempo.

Então, mesmo que Lula seja completamente inocente, a percepção no mundo todo é de que o Brasil é outro desses países —como Índia e Indonésia— onde a questão da governança provavelmente ainda não foi abordada.
Quando penso em Bolsonaro, não acho em nenhum momento que ele possa melhorar a posição do Brasil no mundo. Eu acho que ele vai continuar a minar isso.

Acho que Lula é lembrado com algum carinho por muita gente. Lembro-me de algumas das cúpulas que ele fez sobre a agenda social. Ele é um homem extraordinário, mas será que pode realmente dar a volta por cima e mover o Brasil em uma direção diferente? Eu não sei.

O sr. argumenta que separar as questões políticas e ambientais está ficando mais complicado. Por quê? Não me refiro apenas à agenda ambiental. Refiro-me à agenda de sustentabilidade, portanto econômica, social, ambiental, governança e política também.

A maioria das empresas, a maioria dos líderes empresariais, que pensaram em sustentabilidade, pensaram nisso como uma agenda, que é a agenda de ser mais legal, um pouco mais transparente, abrir um pouco [as questões envolvendo] sua cadeia de suprimentos, fazer relatórios, auditorias sociais e todas essas coisas. Tudo isso é bom, mas não podemos pensar que, enquanto fizermos isso, a nossa parte estará feita.

O problema é que, enquanto isso está acontecendo, a política não tem funcionado. Os líderes empresariais foram, por muito tempo, instruídos a ficarem fora da política. Hoje, eles não podem mais esconder o fato de que estão dizendo uma coisa em público e fazendo outra bem diferente no particular. Portanto, devem ser transparentes.

Desculpe-me, mas a ExxonMobil é a inimiga. Sinto muito em dizer isso, e pode parecer irracional, mas há cerca de 15 anos eu tive um embate público com o então CEO da ExxonMobil, Rex Tillerson. Eu estava em uma conferência na

Noruega falando sobre o lobby que a empresa fez para conter a ação climática ao longo de décadas. Tillerson, então, entrou no fundo da sala, ouviu o que eu estava dizendo e gritou “isso é uma mentira maldita!”.
Uma semana depois, a imprensa nos EUA mostrou que não era uma “mentira maldita”. Era exatamente o que eles vinham fazendo há muito tempo. Essas pessoas pensam que podem forçar seu caminho para que os outros as deixem fazer o que quiserem.

Eu acho que elas deveriam ser levadas aos tribunais criminais. Qualquer um que conscientemente permita que seus negócios poluam a atmosfera com gases de efeito estufa deve ser levado ao tribunal. Os danos que estão causando destruirão milhões de vidas, trilhões de dólares. Por que eles deveriam se safar disso? É isso que quero dizer quando falo que [a sustentabilidade] é cada vez mais política.

O sr. defende uma mudança no capitalismo para atingir os objetivos sustentáveis. Mas ainda dá para confiar na lógica capitalista da acumulação e do lucro se realmente quisermos alcançá-los? Não. Eu não acho que podemos confiar no capitalismo de forma alguma. Acho que precisamos de formas diferentes de revolução. Não como a Revolução Russa, onde você gasta quase 200 anos, mas uma combinação de revolução da tecnologia industrial.

Acabei de comprar um livro, não me lembro como se chama, mas é sobre os bilionários que querem ir para a Patagônia, para a Nova Zelândia, e estão investindo cada vez mais em bunkers. É isso que o capitalismo, particularmente nos Estados Unidos e no Reino Unido, está nos dando no momento.

Minha experiência no Brasil é exatamente a mesma. Conheci pessoas aqui que administram grandes negócios e que estão completamente isoladas do mundo em geral.

Esse modelo não vai entregar nem mesmo uma fração dos objetivos de desenvolvimento sustentável. O capitalismo não vai desaparecer e acho que já estamos vendo o capitalismo evoluir para muitas formas diferentes.

A agenda ESG está crescendo no mundo e as empresas estão falando sobre sustentabilidade mais do que nunca. Ao mesmo tempo, vemos as emissões atingirem níveis recordes, o desmatamento no Brasil crescer… Quão otimista você realmente está sobre o futuro? Nasci otimista e sou otimista. Eu acredito, porque a história sugere isso, que quando as coisas estão ficando realmente terríveis, esse é o momento em que elas começam a mudar.

Não acho que a Guerra da Ucrânia terminará com um belo tratado de paz e Putin decidindo ser legal com as pessoas.

Acho que estamos caminhando para um período de expansão do conflito, não de encolhimento. E parte disso é a rivalidade de superpotências, como entre China e Estados Unidos —ou devo dizer Estados Unidos e China.

Sou otimista em certos níveis, mas também penso como espécie. Às vezes podemos ser incrivelmente míopes e incrivelmente estúpidos. E é onde estamos agora.

No entanto, acho que nos próximos 15, 20 anos veremos a inovação em diferentes formas. As pessoas vão começar a mudar o sistema, porque está cada vez mais claro que o sistema que desenvolvemos, por exemplo, nas décadas de 1940 e 1950, simplesmente não está funcionando para muita gente.

A questão é: ou vamos para a revolução ou fazemos algo diferente. Estou otimista de que podemos fazer algo diferente, mas a menos que façamos isso rapidamente, essa revolução à moda antiga vai se impor em nosso mundo.

Há um crescente movimento anti-ESG nos EUA. Você vê algum risco disso se espalhar para outros países? Qualquer movimento social ou empresarial com poder suficiente —e com alguma intenção radical— ameaçará os interesses dos investidores e das indústrias tradicionais.

Eu tenho dito há anos, e não estava falando sobre ESG, mas sobre sustentabilidade, que chegará o momento em que as pessoas perceberão quais são as implicações dos compromissos envolvendo carbono e a perda de espécies para seus investimentos e suas indústrias —e elas iriam começar a lutar de volta.

Elas estão lutando há muito tempo, como a ExxonMobil. Mas isso se tornará mais público e mais desagradável.
Vamos ter sucesso no final? Não sei, todas as civilizações entraram em colapso, seja por causa de pandemias, guerras ou mudanças ambientais críticas. Por que seríamos diferentes?

Eu espero poder continuar ajudando a manter essa agenda por mais tempo. Acho que o Brasil tem as condições e algum tipo de superpoder, mas não com essa classe política atual e provavelmente também não com a maioria de seus líderes empresariais.

John Elkington, 73
Autoridade mundial em responsabilidade corporativa, John Elkington é sociólogo, fundador da Volans, criador do conceito de tripé da sustentabilidade e autor de 20 livros, sendo o mais recente “Cisnes verdes: o boom que se aproxima do capitalismo regenerativo”. Nascido no Reino Unido, Elkington foi membro do corpo docente do Fórum Econômico Mundial de 2002 a 2008, atuou em mais de 70 conselhos consultivos e ajudou a criar o GRI (Global Reporting Initiative) e os índices de sustentabilidade do Dow Jones.

Brasil passa por mais um momento Gramsci, por Nelson Barbosa.

0

Sintomas mórbidos aparecem enquanto o velho morre e o novo ainda não nasce

Nelson Barbosa, Professor da FGV e da UnB, ex-ministro da Fazenda e do Planejamento (2015-2016). É doutor em economia pela New School for Social Research.

Folha de São Paulo, 07/10/2022

O Brasil passa por mais um momento Gramsci. Falo do historiador, filósofo e político italiano do século 20, que disse: “A crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo ainda não pode nascer. Nesse interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparece”.

Começando pelo que está acabando, assim como em outras democracias ocidentais, a extrema direita ocupou o espaço da centro-direita no espectro político brasileiro.

A nova composição do Congresso registrou grande avanço do bolsonarismo, espremendo a antiga centro-direita. A centro-esquerda e a extrema esquerda também cresceram, mas infelizmente menos do que a extrema direita.

Em minha opinião de cientista político amador, o encolhimento da centro-direita deve-se a dois fatores mundiais: o fracasso do neoliberalismo em gerar crescimento para todos e o surgimento das redes antissociais.

Na economia, a crise de 2008 e a estagnação que se seguiu, em parte derivada da hipótese de austeridade expansionista adotada em várias democracias ocidentais, desacreditaram o discurso neoliberal e os políticos a ele associados.

Somem-se à crise neoliberal os temores da classe média branca sobre globalização e imigração em países avançados e sobre corrupção e falsa ameaça comunista em países como o Brasil, e você tem a avenida aberta para a extrema direita.

Nos dois casos, o surgimento das redes antissociais, onde todos falam e quase ninguém escuta, permitiu a aglutinação de movimentos minoritários, mas ruidosos, de extrema direita. Existem também doidos de extrema esquerda (o pessoal que defende stalinismo), mas esses são minoria da minoria.

A maioria da minoria doidivana de rede antissocial está na extrema direita, em que vários “homens de bem” acharam a oportunidade de extravasar suas frustrações em racismo e misoginia, sempre com a desculpa: “Eu estava brincando”. Bolsonaro é a versão nacional de um fenômeno mundial.

E os sintomas mórbidos previstos por Gramsci? Há vários. Na economia, discurso fiscalista com prática populista, basta ver o pacote eleitoral de Bolsonaro e a crise atual no Reino Unido. Na política, judicialização crescente de todo e qualquer assunto, com paralisia administrativa. Nas relações sociais, crescimento do porte de arma e discussões pessoais que acabam em tragédia.

Os sintomas mórbidos continuam na saúde pública, educação, meio ambiente e outras áreas, mas paro por aqui para não desanimar os leitores.

Do lado positivo, a frente ampla construída por Lula é um sinal positivo do que pode aparecer. Do PSOL a eminentes tucanos, várias pessoas constataram que é preciso se juntar para barrar o bolsonarismo enquanto isso é possível, mas falta definir o que fazer depois.

Apesar de o “novo” ainda não ter nascido, é possível antever dois princípios para que ele tenha sucesso: 1) de nada adianta responsabilidade fiscal com paz de cemitério e 2) o crescimento econômico tem que ser para todos, em vez de para poucos. É por esses dois motivos que Lula ganhou o primeiro turno das eleições presidenciais. Convém escutar o que ele tem a dizer.

Do meu lado, digo apenas que há várias formas de reequilibrar o orçamento público com geração de emprego e redução de desigualdades, desde que petistas e ex-antipetistas concordem com uma pauta mínima de estímulos de curto prazo e reformas de longo prazo, mas hoje isso virou “detalhe” para depois das eleições.

Agora a prioridade é apoiar o santo guerreiro contra o dragão da maldade, por isso é Lula de novo com a força do povo!

Economia Comportamental

0

As transformações econômicas são gigantescas na sociedade contemporânea, as estruturas produtivas estão se alterando rapidamente, os modelos de negócios estão passando por grandes alterações, o mundo do trabalho está em forte modificação, a riqueza vem sendo transformada, anteriormente, as riquezas eram tangíveis e, na atualidade, as riquezas são intangíveis, com isso, percebemos novos campos de estudo na economia e de reflexões sociais, surgindo a economia comportamental, com novos desafios, novas perspectivas e novas oportunidades de reflexão sobre o pensamento econômico.

Neste momento de novas reflexões, percebemos que alguns pressupostos centrais da ciência econômica estão perdendo espaço e sendo questionados abertamente, gerando constrangimentos e novas formas de refletir sobre as realidades econômicas da contemporaneidade. O homem econômico, anteriormente era visto como o agente dotado de grande racionalidade, que era visto como a base da maioria das teorias econômicas clássicas e que defendiam a tese de que o comportamento dos indivíduos era constantemente racional e automático, advogando que as escolhas dos seres humanos eram sempre racionais. Neste momento, está surgindo novos instrumentos de reflexão teórica e novas formas de tomada de decisão. Com o passar do tempo, essa visão perdeu força e vem perdendo espaço nas discussões econômicas, gerando novos constrangimentos, novas discussões, novos horizontes e novas inquietações.

O princípio da racionalidade econômica é baseado no sentido de que os indivíduos se comportam de maneira sempre racional e consideram opções e decisões dentro de estruturas lógicas de pensamento, em oposição a envolver elementos emocionais, morais ou psicológicos. A maioria das teorias econômicas clássicas é baseada na suposição de que todos os indivíduos que participam de uma atividade estão se comportando racionalmente. Este pensamento contribuiu para que a ciência econômica se afastou do pensamento social e gerou um sistema baseado em cálculo matemático, com equações de grande compreensão e modelos sociais distantes na realidade prática.

Nos anos 1950, alguns autores começaram a refletir sobre a interação entre o campo da economia e do campo da psicologia, até então estas duas ciências pouco se relacionavam, a primeira sempre muito matemática, a segunda, baseada no experimental. Posteriormente, alguns teóricos passaram a flertar com essas disciplinas buscando criar modelos mais realistas de como os indivíduos tomavam decisões econômicas. Destas reflexões teóricas, destacamos autores como Richard Thaler e Daniel Kahneman, que publicaram trabalhos explorando as anomalias das teorias econômicas convencionais. A economia comportamental nasce para responder essas situações não explicadas através do método experimental, garantindo a estes autores o prêmio Nobel da Economia.

Seus pesquisadores partem de uma crítica à abordagem econômica tradicional, apoiada na concepção do “homo economicus” que é descrito como um tomador de decisão racional, ponderado, centrado no interesse pessoal e com capacidade ilimitada de processar informações. A economia tradicional considera que o mercado ou o próprio processo de evolução são capazes de solucionar erros de decisão provenientes de uma racionalidade limitada, com isso, percebemos a fé cega nos mercados como agentes de organização social.

Em contraposição a essa visão tradicional, a Economia Comportamental sugere que a realidade é diferente: As pessoas decidem com base em hábitos, experiência pessoal e regras práticas simplificadas. Aceitam soluções apenas satisfatórias, buscam rapidez no processo decisório, tem dificuldade em equilibrar interesses de curto e longo prazo e são fortemente influenciadas por fatores emocionais e pelo comportamento dos outros.

As novas ideias trazem novos horizontes para a ciência econômica, recolocando os seres humanos no centro das questões mais relevantes, mostrando que por trás dos cálculos econômicos existem indivíduos, com vontades, desejos e necessidades.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Comportamental, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 05/10/2022.

Bem-aventurados os perseguidos, por Juliano Spyer.

0

Igrejas evangélicas estão sendo cúmplices de perseguição religiosa e política e de assediar moralmente seus fiéis?

Juliano Spyer, Antropólogo, pesquisador do Cecons/UFRJ, autor de Povo de Deus (Geração 2020) e criador do Observatório Evangélico.

Folha de São Paulo, 29/09/2022.

Quando pensamos em perseguição religiosa, vem à mente a imagem de uma religião reprimindo representantes de outra. Nesta eleição, essa atitude foi superada: líderes e fiéis atacam, humilham e perseguem seus próprios irmãos e irmãs em Cristo.

O motivo da perseguição não é a igreja ter abandonado a posição de neutralidade para fazer política. Nem é o fato de líderes evangélicos terem abraçado a candidatura do presidente Bolsonaro e, por isso, usarem o espaço das igrejas para fazer propaganda eleitoral. O problema está em atacar e demonizar quem pensa diferente.

O pastor Nilson Gomes, da Assembleia de Deus, resumiu a indignação do evangélico que rejeita a bolsonarização das igrejas. Em uma pregação de 2019 que viralizou na internet, ele diz: “Eu sei [que] a Igreja tem sua vocação política. Eu não sou contra… Não quero nem saber em quem você votou. O voto é secreto, é livre e democrático. E você exerceu a sua obrigação e o seu direito de cidadão. Não é disso que eu estou falando, mas eu não posso me calar. E eu não vou me calar com pastores e igrejas que, para apoiar candidato, fazem arminha com a mão.”

É tragirônico uma igreja que se diz perseguida perseguir e tornar um inferno a vida de alguns de seus pastores e fiéis. De um lado, pregam o medo da “ameaça comunista” e, do outro, praticam a mesma perseguição ideológica de regimes totalitários.

Repreendido por participar de uma reunião de pastores com Lula, o pastor batista Sérgio Dusilek escreveu: “Não contaminei o espaço religioso: o templo. Não profanei o sagrado: o culto. Tampouco violei a consciência de qualquer congregação. Estava em um clube, em um evento político, com cidadãos e cidadãs de variados matizes de fé e ideologias… [Entretanto,] os batistas permitiram acenos ao espectro político mais à direita, tolerando inclusive a fala presidencial em assembleia. Tampouco condenaram o apoio de líderes denominacionais a candidatos.”

Neste domingo (25), no culto de posse do pastor batista Deividson Brito, transmitido pela internet, a igreja exibiu mensagem do presidente Bolsonaro. A Convenção Batista se manifestará como fez em relação ao pastor que declarou apoio a Lula?

A maneira como pastores e fiéis vêm sendo repreendidos, perdem seus cargos ou são cancelados e expulsos, a partir de decisões internas, sem prestar contas a suas comunidades, avisa como a dissidência é tratada.

É tragirônico também que essa nova inquisição esteja partindo de igrejas protestantes. Foram elas que lutaram e sofreram perseguições pela defesa da liberdade de culto, de expressão e de consciência. A ideia do estado laico é produto do ativismo protestante, para que estado e igreja existam separadamente e para que todas as formas de crer (e de não crer) tenham espaço.

Quantos fiéis vivem com medo e vergonha em suas igrejas porque não querem votar em Bolsonaro? O que temos de dados é o crescimento de número de desigrejados especialmente entre os jovens, e os casos conhecidos de pastores afastados de suas funções. Entre eles, Ed Rene Kivitz, Odja Barros, Sérgio Dusilek, Edson Nunes, Tiago Arrais e Alan Gentil. É a ponta visível desse iceberg.

A pressão nas igrejas aumenta na medida em que metade dos eleitores evangélicos não pretende votar em Bolsonaro no primeiro turno. Sair da igreja é uma decisão cara e dolorosa para o crente comum. Ficar na igreja também pode ser traumático: viver escondido, silenciado, eventualmente perder cargos e ser excluído do convívio social dentro de suas comunidades de fé. Além de ouvir que você será punido por supostamente contrariar a vontade de Deus. Não é pouca coisa para alguém que crê.

Por isso, o ambiente das igrejas dominadas pelo bolsonarismo lembra o de empresas que acobertam atos de assédio sexual. A vítima muitas vezes silencia porque tem medo de sofrer retaliações e de ser estigmatizada.

Me pergunto, então, em que medida, juridicamente, igrejas – que deveriam oferecer acolhimento – estão sendo cúmplices de perseguição ideológica e religiosa, e de assediar moralmente e provocar problemas de saúde mental em uma parte dos fieis?

A proposta do Emprego Digno Garantido, por Ladislau Dowbor.

0

Nova bandeira de luta, em tempos de crise: livro de Pavlina Tcherneva demonstra que Estados podem assegurar trabalho com direitos a todos os que o desejem. Garante renda e pertencimento social. Economiza recursos e esforço administrativo

Ladislau Dowbor – Outras Palavras – 03/08/2022

É perfeitamente possível assegurar uma sociedade com garantia de emprego. O setor privado empresarial constitui uma ótima fonte, e dominante, e o emprego público complementa. Mas lembremos que no caso do Brasil temos apenas 33 milhões de empregos formais privados, e 11 milhões de emprego público, o que nos deixa longe dos 106 milhões da nossa força de trabalho. Somando os 40 milhões do setor informal, que ganham em média a metade do que ganham os empregados do setor formal, os 15 milhões de desemprego aberto e os 6 milhões de desalentados, temos algo como 60 milhões de pessoas mal inseridas em atividades produtivas, o que significa um gigantesco desperdício de potencial produtivo. Segundo a ideologia primitiva que domina, devemos restringir o emprego público, e aguardar que os mercados resolvam. É a ideologia da austeridade, apoiada na narrativa da responsabilidade fiscal e de concentração de renda e riqueza. O problema não é as pessoas não terem vontade de trabalhar, e sim de não terem oportunidades.

O estudo de Pavlina Tcherneva, centrado nos Estados Unidos, mas sem dúvida cheio de lições para qualquer economia, foca precisamente como o governo pode assegurar uma garantia de emprego para todos os adultos, absorvendo, de maneira contracíclica, as flutuações de desemprego no setor privado, com pagamento do piso salarial. O financiamento viria do orçamento federal, mas a gestão se daria no nível local, nos Estados e municípios, apoiando-se inclusive nas organizações da sociedade civil, comunidades organizadas. A ideia geral é que como o desemprego e a subutilização do trabalho representam custos humanos e econômicos muito elevados, assegurar trabalho remunerado constitui uma opção de win-win: no balanço de custos e benefícios, a sociedade ganha em produtividade, em estabilidade social, e em equilíbrios financeiros, inclusive das contas públicas.

Não se trata de tiros no escuro. A Índia, com o National Rural Employment Guarantee Act (NREGA), garante um mínimo de 100 dias de trabalho pago por família por ano, um programa que atinge uma grande massa de subempregados rurais, mas hoje se expandiu para áreas urbanas. Uma das primeiras experiências foi o New Deal americano dos anos 1930, que envolveu 13 milhões de trabalhadores no quadro do Works Progress Administration, com efeito anticíclico: programas de infraestruturas urbanas nas cidades, saneamento básico, expansão de serviços básicos e outras iniciativas permitiram não só melhorar as condições de vida dos habitantes, como geraram demanda com a renda criada, o que por sua vez redinamizou o setor empresarial e o emprego privado. Celso Furtado há tempos mencionava que frente a trabalhadores parados, qualquer atividade é lucro.

A resistência a essa ideia por parte das elites é compreensível. A garantia de um emprego decente oferece aos trabalhadores uma alternativa a remunerações e condições de trabalho indignas que tanto se expandem no quadro de uma grande massa de desempregados e subutilizados, argumento particularmente forte nessa era de precariado. Como o programa é financiado com recursos públicos, o argumento utilizado é que geraria a inflação. No Brasil hoje, em nome de proteger o país da inflação, eleva-se a remuneração dos títulos públicos, essencialmente nas mãos dos 10% mais ricos (85%), e se aprofunda ainda mais a desigualdade. Na realidade, no quadro de uma ampla subutilização da capacidade e do potencial econômico do país como temos hoje (as empresas produtivas trabalham com 30% de capacidade ociosa), expandir atividades de utilidade pública que aumentam a demanda termina ampliando o nível de produção do próprio setor privado, além de contribuir com bens e serviços públicos necessários. Gera-se assim um ciclo virtuoso de ampliação de demanda, redução de desemprego e crescimento econômico.

Em termos administrativos Tcherneva traz numerosos exemplos de como as próprias estruturas de provimento de serviços sociais, inclusive todo o sistema de apoio financeiro aos desempregados, podem perfeitamente ser utilizadas para administrar o programa. De certa forma, em vez de financiar o desemprego, passa-se a financiar a garantia de emprego. As experiências já antigas no Brasil, com “frentes de trabalho”, acabaram com coronéis do Nordeste financiando açudes nas próprias fazendas, em vez de aumentar o capital do território com obras e serviços públicos. Mas numerosas iniciativas como a recuperação de praias em Santos, na “Operação Praia-limpa”, com obras de saneamento na cidade, não só tiveram custos limitados, como tornaram a cidade novamente atrativa para o turismo, dinamizando hotelaria, restaurantes e outros serviços, transformando o que foi uma operação temporária de uso dos desempregados da cidade numa fonte de empregos permanentes.

A visão de Tcherneva é que se trata de considerar o acesso ao emprego básico como um direito humano. (“to reaffirm the access to a basic job as a human right”, p.104). Mais governo? “A preocupação com o tamanho do governo tem o seu contrário. Já temos um ‘big government’, envolvendo centenas de bilhões de dólares, tempo, recursos, e esforço administrativo para lidar com os custos econômicos e sociais do desemprego, subemprego e pobreza. Como notado, o desemprego já foi custeado, possivelmente com custos multiplicados muitas vezes. A Garantia do Emprego reduziria esses custos do governo federal, enquanto também cortaria os custos de famílias, empresas e estados.” (p.101) Keynes já mencionava o absurdo de tanta gente parada com tantas coisas para fazer.

A existência de uma massa de desempregados e subempregados melhora sem dúvida a capacidade, por parte das empresas, de negociar contratações em situação desfavorável para o trabalhador, forçado a aceitar o que lhe propuserem, expandindo inclusive o trabalho informal. Uma garantia de emprego não substitui o setor empresarial privado, mas gera um contexto mais equilibrado, inclusive enriquecendo a sociedade com atividades que não interessam necessariamente ao setor privado. A autora lembra que “nos anos 1930, o programa Tree Army do Roosevelt plantou 3 bilhões de árvores, criou e reabilitou 711 parques estaduais, construiu 125 mil milhas de trilhas para caminhões, desenvolveu 800 parques estaduais novos, controlou a erosão de solo em 40 milhões de acres de solo agrícola, melhorou pastagens em terras públicas, e aumentou a população de animais. Esses projetos inspiraram uma vida nova no movimento de conservação ambiental dos Estados Unidos, antecessor do movimento de proteção climática dos nossos dias.” (p.94) Nesta era de prioridade de políticas ambientais, são ganhos em todos os níveis.

Na Índia o programa exige que as administrações municipais organizem um cadastro de projetos de utilidade social e que sejam intensivos em trabalho. No projeto mencionado de Santos, no levantamento dos desempregados da cidade, foram encontradas numerosas pessoas com curso superior, o que permitiu enquadrar grupos mais amplos, e diferenciar as atividades. Nas propostas de Tcherneva, “Os municípios em cooperação com grupos comunitários poderiam conduzir levantamentos semelhantes, catalogando as necessidades da comunidade e os recursos disponíveis ao desenhar os bancos de empregos comunitários. As organizações comunitárias, ONGs, empreendedores sociais e cooperativas podem também solicitar fundos diretamente no Ministério do Trabalho. Os financiamentos são concedidos com condições de 1) criação de oportunidades de emprego para desempregados; 2) sem efeito de substituição de trabalhadores existentes; 3) atividades realizadas úteis, medidas pelo seu impacto social e ambiental.” (p.86)

A autora faz um levantamento detalhado do custo-benefício do programa. “Assumindo uma visão conservadora sobre as economias realizadas, o impacto do programa sobre o orçamento, no cenário mais elevado, é de menos de 1,5% do PIB por ano. É plausível que ao se contar todas as reduções de gastos no setor governamental para desemprego, junto com todos os efeitos multiplicadores econômicos e sociais, o impacto orçamentário do programa seria neutro, ainda que isso não seria um critério de sucesso já que em momentos recessivos o governo normalmente precisa aumentar os gastos deficitários.” (P.79) Lembremos que no Brasil a evasão fiscal custa cerca de 7% do PIB, e que 80% do aumento da dívida pública, que atinge 90% do PIB, resulta não do uso produtivo dos recursos públicos, por exemplo com políticas sociais e financiamento de infraestruturas, mas com pagamento de juros às grandes instituições financeiras que aplicam na dívida pública. Pagamos o Estado para que transfira dinheiro para grupos financeiros, em vez de assegurar o financiamento do que a sociedade precisa.

“Um trabalhador não tem poder para dizer ‘não’ a um emprego ruim, a não ser que tenha a garantia de uma opção de um bom trabalho com pagamento decente.”(p.62) Neste sentido, um programa de garantia de emprego constituiria uma alavanca para relações de trabalho mais civilizadas. E ao dinamizar a economia no seu conjunto, gera efeitos positivos para o próprio setor empresarial privado. Tcherneva refuta radicalmente a visão ensinada nos cursos de economia, de que um desemprego básico é importante, ou “natural”, para que não haja pressões salariais ou inflação.

E traz o impacto dramático do desemprego para as famílias: “O desemprego está entre as causas da desnutrição, de crianças prejudicadas no crescimento, de problemas de saúde mental, resultados fracos na educação e no mercado de trabalho, redução de mobilidade social de esposas e de crianças. Nos Estados Unidos, as crianças sofrem a maior taxa de pobreza e 80% das crianças pobres moram numa família sem um trabalhador empregado.”(p.37)
De certa forma, ao invés de mitigar os impactos, miséria, fome, aumento de criminalidade, de prostituição e outros efeitos de adultos sem saída na vida, trata-se de enfrentar a principal causa, a ausência de um enquadramento laboral que permita tanto o acesso à renda como um sentimento de pertencimento social. Os Estados Unidos têm 4% da população mundial, mas 25% da população carcerária. Um suicídio de cada cinco é ligado ao desemprego. E mesmo nas famílias com emprego, o sentimento da permanente ameaça da destituição, de uma situação em que não poderão proteger os filhos, gera sofrimento e angústia simplesmente desnecessários.

O livro de Pavlina Tcherneva é curto, muito bem documentado, e centrado nas questões práticas: como funciona ou pode funcionar, quanto custa, como se administra, como se financia, quais os resultados já constatados em diversas experiências. Sai muito mais barato tirar os pobres da miséria do que arcar com as consequências. Se ainda por cima nos permite realizar um conjunto de atividades que clamam por braços e cabeças, temos tudo a ganhar. O livro convence.

Riscos Mundiais

0

Não é uma novidade para ninguém que vivemos numa sociedade global marcada por grandes incertezas e instabilidades, dificuldades econômicas crescentes, desafios geopolíticos, conflitos militares, desigualdades sociais, degradação ambiental, crescimento da imigração e as polarizações políticas. Neste ambiente, as perspectivas são preocupantes, aumentando o individualismo, o imediatismo, a violência e a insegurança, levando muitos indivíduos e grupos sociais a pregarem medidas extremadas, respostas insatisfatórias e teses equivocadas, postergando soluções e reflexões mais estruturadas.

A economia internacional vive momentos de volatilidades, inflação crescente com impactos sobre a renda da população, taxas de juros elevadas, aumento do desemprego ou degradação das condições de trabalho, endividamento da população e o crescimento das desigualdades sociais, contribuindo para a construção de um cenário econômico com baixo crescimento e aumento da pobreza. A eclosão de uma guerra na Europa aumenta os custos energéticos, eleva os preços dos combustíveis, dificuldades econômicas para empresas e conglomerados, levando governos nacionais a nacionalizarem setores, aumentando os subsídios para impedir as asfixias dos consumidores, com isso, impedindo a bancarrota das famílias e dos setores produtivos, além de pressionarem as contas públicas, elevando o endividamento das nações com juros maiores.

Depois de uma pandemia que gerou milhões de mortos em todas as regiões do mundo, o mínimo que a sociedade mundial deveria fazer era auxiliar na reconstrução das estruturas econômicas, produtivas e sociais devastadas, reaproximando as nações, coordenando as ações necessárias e reconstruindo novos espaços de investimentos públicos e privados, além de recuperarem a educação e a saúde, setores que foram imensamente impactados. Neste momento, infelizmente, o pós-pandemia incrementou os conflitos militares, aumentando os gastos bélicos e as rivalidades entre as nações, os discursos ásperos nos encontros mundiais, os comportamentos hostis e agressivos, gerando animosidades e preocupações com a escalada de uma guerra nuclear, cujos impactos são assustadores, perturbadores e incalculáveis.

Vivemos um momento de grandes desafios e oportunidades, onde devemos destacar o aumento das desigualdades econômicas e sociais. que crassa a comunidade internacional, neste cenário um pequeno grupo de bilionários domina a grande parte das riquezas globais em detrimento de uma massa de indivíduos fragilizados e precarizados, sem empregos, sem benefícios, sem perspectivas e sem dignidades. Sem combatermos as desigualdades crescentes da sociedade contemporânea, gerados por um sistema excludente, imediatista e dominados pelos agentes financeiros, os conflitos tendem a aumentar, as desigualdades tendem a elevar, os medos tendem a crescer e a insegurança tende a aumentar.

Percebemos ainda, neste ambiente externo instável, o aumento das tensões entre as grandes potências econômicas, EUA e China, constantemente duelam verbalmente nos palcos internacionais, gerando incertezas econômicas e preocupações políticas, que impactam negativamente sobre investimentos, aumentando o protecionismo e políticas unilaterais que prejudicam o sistema econômico e produtivo mundiais, reduzindo a oferta de empregos e fragilizando as condições de vida da população global.

Depois de uma crise sanitária como a gerada pelo coronavírus, que fragilizou as sociedades e criou desafios contemporâneos, um conflito militar e o incremento de confrontos econômicos entre as grandes superpotências, podem piorar as condições econômicas internacionais, aprofundando a desigualdade social e a degradação das estruturas políticas e sociais, abrindo espaço para o surgimento de movimentos autoritários, mais violência, discursos de ódio e desesperanças.

A situação internacional gera preocupações e constrangimentos, além do ambiente econômico hostil, destacamos os problemas climáticos e as questões de imigração que necessitam de uma cooperação internacional e lideranças políticas engajadas e, internamente, precisamos reconstruir novos espaços de sociabilidade, aumentando nossa autonomia, fortalecendo a democracia, reduzindo a pobreza e retomando o verdadeiro crescimento econômico.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 28/09/2022.

Refazer o país, por Marilena Chauí.

0

Marilena Chauí, professora Emérita da FFLCH da USP. Autora, entre outros livros, de Contra a servidão voluntária (Autêntica).

A terra é redonda – 26/09/2022

A tarefa do novo governo será enorme, difícil, e exige que a esquerda encontre seus pontos em comum
A tarefa da esquerda

Há uma visão ideologizada e, por tanto, ilusória, de que a pluralidade da esquerda representa uma crise. Eu penso que, pelo contrario, a multiplicidade enriquece a concepção da esquerda. Sem apagar as diferenças, nem pretender uma falsa unidade, a reunião periódica das esquerdas, em determinadas circunstâncias, é essencial. Há momentos em que um setor paralisa e outros procedem. De vez em quando o PT se paralisa, mas isso é compensado por inovações do PSOL.

Tenho insistido de que, pelo menos no primeiro ano de governo, tem que haver uma reunião, uma perspectiva comum, porque o governo vai enfrentar uma dificuldade gigantesca. Vai ter que refazer o país.

Há 33 milhões de desempregados no Brasil, 30 milhões de pessoas passando fome. Não há condição de pensar num plano econômico e de restruturação se a esquerda não operar em conjunto. Porque a oposição que vai ser feita, tanto pela direita como pelo centro, vai ser gigantesca.

A tarefa é enorme, difícil, lenta, e exige que a esquerda encontre seus pontos comuns.

Cinco pontos em comum
Será preciso recuperar uma proposta contra a economia neoliberal. É preciso recuperar o papel do fundo público e dirigi-lo a atender os direitos sociais. O fundo público tem que assumir novamente seu papel de garantia desses direitos.

Um segundo ponto é retomar aquilo que foi característica importantíssima do primeiro governo Lula: as conferências nacionais. O PSOL denomina de “consulta contínua às bases”. É necessária a retomada, num nível mais intenso, das conferências nacionais. O Poder Executivo e uma parte do Legislativo devem estar em contacto permanente com as demandas sociais.

Um terceiro ponto comum é a ideia de uma reconfiguração do Legislativo. Não sei se vai ter êxito, nem se será possível, mas é preciso encaminhar, logo no início, uma reforma política.

Um quarto ponto é o lugar proeminente da educação, a retomada da educação contra o desmonte do que foi trazido pela doutrina difundida por Olavo de Carvalho. Não houve um Ministro de educação deste governo que se salvasse. Não houve intervenção sobre a docência, mas houve no financiamento das pesquisas, nas escolhas dos Reitores, um desbaratamento total das faculdades técnicas (uma ideia muito cara à Dilma Rousseff).

Um quinto ponto é a questão de gênero. Não pensava ser possível, no Brasil, o machismo exposto nas formas mais perversas como nestes últimos cinco anos. Não é só a questão do machismo. É a da sexualidade, de gênero, das mulheres.

A agenda anticomunista
A agenda anticomunista esvaziou e eles pegaram uma carona na agenda do Donald Trump, que também se esvaziou.

A desmontagem dessas duas perspectivas faz com que a extrema direita caminhe em direção ao totalitarismo (não ao fascismo), por meio das Igrejas evangélicas, que desbarata a classe trabalhadora, toma o precariado para si e impede uma organização da base social. Esse é o projeto: impedir a organização da base social, da classe trabalhadora. Esse é o programa do movimento “Escola sem partido” e era a plataforma do Olavo de Carvalho.

Ao mesmo tempo, o percurso politico vai ser o da ameaça contínua da derrubada do governo, de intervenção no Legislativo e de ameaça de golpe quase cotidiana. Eu temo o que possa acontecer de outubro ou novembro até primeiro de janeiro, quando o novo governo toma posse. Não é só a ameaça de golpe, mas também a possibilidade do assassinato do Lula. Tem voluntário à beça para fazer isso.

A vitória de Lula
Essa é a única possibilidade que temos de refazer o país. Por um lado, ela representa uma exigência social e política de encontrar uma barreira para a extrema direita e para as formas mais perversas do neoliberalismo.

Eu vejo Lula como um estadista. Ele representa a percepção do Brasil na América Latina e no mundo; do nosso papel, que aparece com a criação do Mercosul e logo se desenvolve com nossa presença em grupos como o G-20 e o G-8, em nossa política externa de afirmação e não de subordinação.

Em termos populares, é a esperança de retorno dos direitos sociais, de recomposição da economia e da educação, que precisa ser refeita de cima abaixo.

Ele vai ter que negociar muito e não é por acaso que escolheu como candidato a vice-presidente o ex-governador Geraldo Alckmin. O vejo capaz de perceber quais são as negociações que garantirão direitos à sua base social. Não é uma negociação para se manter no poder, é uma negociação na qual certas exigências básicas terão que ser negociadas. Ele é capaz de fazer isso.

Lava Jato
Fui contra essa operação desde o primeiro instante, quando ainda aparecia como algo honesto. Nunca deixei de relacionar o timing da aparição do projeto com as dificuldades da economia, na época do governo de Dilma Rousseff. Havia dificuldades no manejo da economia, com a troca de ministros e a Lava Jato funcionando. Dilma Rousseff é uma mulher de princípios que não negocia. Não era desconhecido, no país, o antagonismo entre ela e o Michel Temer. Ela tolerou aquele vice, mas não o deixava participar em nada do governo.

A Lava Jato me fazia recordar a figura do Carlos Lacerda. Em instante nenhum considerei que havia seriedade na Operação Lava Jato. Pesquisei um pouco a formação e o trabalho dos principais agentes da Lava Jato. Eles não eram expressão do que havia de excelente no mundo jurídico brasileiro. Eram figuras inexpressivas.

Considerei a Lava Jato como emissária do Departamento de Estado norte-americano. A vi como uma operação política. Isso logo tornou-se uma evidência enorme. O fato de ter como alvo a Petrobras (e sabemos o que quer dizer isso), indica que havia alguma coisa por trás.

As Forças Armadas
O golpe de 1964 ocorreu sob o guarda-chuva da Aliança para o Progresso, da política do Departamento de Estado dos Estados Unidos, e do governo Kennedy. Militares brasileiros, educados nos Estados Unidos, trouxeram a ideia de que Cuba era uma ameaça, vieram com um projeto, logo adaptado à realidade brasileira.

No início do governo do Marechal Castelo Branco (1964) e no período final da ditadura militar, com o general Golbery do Couto e Silva, eles tinham uma ideia do que era o Brasil, do que devia ser a América Latina e do que deviam fazer. A resposta armada da esquerda ao governo militar provoca algo não previsto: o Ato Institucional número 5 (AI-5), em 1968. Após esse Ato foi preciso reelaborar o projeto, e isso é o que o Golbery tentou fazer.

Havia no governo gente bem formada, informada, com projetos. Não é o que temos agora.

Hoje temos na ativa as Forças Armadas tradicionais, mas destituídas de um projeto nacional. Do lado do Executivo temos simplesmente uma apropriação econômica dos recursos do Estado. Jair Bolsonaro absorveu, no Poder Executivo, um setor das Forças Armadas. Há quase dez mil militares no governo. Os militares se viram numa posição de poder sobre o mundo civil e, mediante uma corrupção sem fim, a possibilidade de ficarem ricos.

Se houver golpe será feito por esse grupo que se encravou no poder do Estado e que não quer perder os privilégios que conseguiram.

Texto estabelecido a partir de entrevista concedida ao jornalista Gilberto Lopes.

O parasitismo financeiro derrotou a independência, por Ladislau Dowbor.

0

Desindustrialização, desnacionalização e endividamento opressivo sugam recursos da maioria para servir a interesses estrangeiros e uma elite local clientelista. Ao celebrar o bicentenário, temos a soberania por resgatar
Ladislau Dowbor – Outras Palavras – 14/09/2022

A economia hoje é em grande parte globalizada. Em particular, com o dinheiro impresso por governos substituído por dinheiro virtual emitido também por bancos (97% da liquidez), as finanças passaram a funcionar em escala planetária. Por exemplo 3 corporações privadas, BlackRock, Vanguard e State Street, administram cerca de US$ 20 trilhões de dólares, três vezes o orçamento federal dos Estados Unidos. A globalização financeira reduz drasticamente a autonomia dos países definirem os seus rumos, já não só frente a países mais fortes, mas frente ao poder corporativo. Basicamente temos governos nacionais que enfrentam uma economia globalizada. O conceito de independência encontra aqui uma limitação estrutural.

Um segundo eixo que limita a autonomia de decisão é o controle norte-americano sobre as transações internacionais, por meio da dominação do dólar. Essa herança de Bretton-Woods, do fim da II Guerra Mundial, permite aos Estados Unidos emitirem dólares sem limites, sem gerar inflação ou desvalorização da moeda, na medida em que são absorvidos por bancos centrais de diversas partes do mundo. Tentativas de os países comercializarem entre si sem passar pelo dólar e taxas de transação são até hoje atacados militarmente pelos Estados Unidos (Iraque e outros). Um novo polo está se constituindo, inicialmente com China, Rússia e Irã, e numerosos interessados. A soberania do dólar é uma herança da hegemonia americana de 1945, hoje fragilizada e pouco realista. As propostas em discussão vão no sentido de um sistema internacional com várias moedas, mas por enquanto a limitação à soberania continua.

A soberania de um país depende também da sua capacidade de canalizar os recursos financeiros segundo as suas prioridades. A facilidade com a qual os recursos financeiros no Brasil são canalizados para paraísos fiscais torna qualquer tentativa de regulação muito precária. No Brasil o poder das corporações internacionais do agronegócio, ADM, Bunge, Cargill e Dreyfus (ABCD), que controlam 80% do comércio de grãos, leva a que o país priorize exportações, enquanto 33 milhões de pessoas passam fome, e 125 milhões estão em situação de insegurança alimentar.

A Índia, por exemplo, frente ao problema da fome, proibiu as exportações de trigo. O Brasil não só mantém a fome como isentou os exportadores de impostos (Lei Kandir, 1996), e os lucros e dividendos distribuídos são igualmente isentos de impostos (1995). O país é simplesmente drenado, inclusive com o Ministro da Economia escondendo milhões em paraíso fiscal (sob o nome código Dreadnaught). Ou seja, a opção de orientar os recursos para onde o país deles precisa, se vê muito limitada pelo sistema internacional de dreno. Em 2012 o Tax Justice Network estimou que o volume de capitais brasileiros em paraísos fiscais era da ordem de um terço do nosso PIB.

Interesses semelhantes atingem a autonomia energética. O fato do Brasil ter forte base hidrelétrica, e grandes reservas de petróleo, deveria assegurar independência no setor. Não se imagina a China, por exemplo, entregar o controle da sua base energética a corporações transnacionais. A Petrobrás, no quadro de um governo submisso a interesses internacionais, passou a cobrar preços absurdos no mercado interno – não há nenhuma razão econômica de se cobrar preços internacionais por um produto que é nacional – de forma a alimentar acionistas globais com dividendos elevados. Acionistas nacionais estão amarrados aos interesses internacionais, gerando travamento da economia pela elevação de preços da energia. Custos energéticos impactam numerosos setores. O processo pode ser encontrado nas diferentes privatizações: ao abrir acesso aos recursos do país pelos acionistas internacionais – por exemplo BlackRock, Glencore, Billiton e outros – com os seus aliados internos, perde-se a capacidade de usar recursos primários para financiar atividades industriais, ciência e tecnologia e semelhantes. Grande parte do legislativo depende de lucros indiretos obtidos pelo dreno de riquezas assim constituído. A privatização, na medida em que abre as empresas para compra de ações, significa desnacionalização. A independência cultural tem uma importância essencial. Mas a mídia comercial vive de publicidade paga em parte dominante pelos mesmos interesses.

Quando vemos grandes jornais explicar que devemos pagar os preços internacionais por um produto que é da nação, é o próprio conteúdo jornalístico que é apropriado pela lógica corporativa e da ideologia norte-americana. É muito impressionante varrermos os canais de televisão para encontrar um filme decente, passando por uma sequência de conteúdos quase idênticos, norte-americanos, com aviso de “violência, sexo, drogas”. O mundo tem uma imensa riqueza cultural que não aparece. O vazio cultural criado não aparece como vazio, pois sequer o conhecemos. O uso político da religião nos faz olhar para os céus quando deveríamos olhar para as crianças que passam fome.

É importante entender que hoje o país perdeu grande parte da sua independência não por intervenções ou ameaças externas, mas pela constituição de elites internas que são “clientes” (no sentido de Estado clientelista) dos interesses externos. A dependência está enraizada na força das fortunas internas e dos seus representantes políticos. A perda de soberania tem poderosas raízes locais. Há conexões profundas entre a desigualdade explosiva, a miséria de tantos, a entrega dos recursos naturais, o endividamento generalizado da população, e a orientação geral da economia e da política. Há poucos anos o Brasil foi tirado do mapa da fome, hoje a fome se generalizou. O país tinha se industrializado.

Hoje apenas dois setores são pujantes na economia: a exportação de bens primários e a intermediação financeira, ambos ligados aos mesmos interesses de um mundo financeirizado. A chamada autonomia do Banco Central, tirando do governo ferramentas de regulação financeira, completa um quadro de entrega de soberania que hoje depende mais de quem manda no dinheiro do que de quem manda na tropa. Quando vemos quem se veste de bandeira do Brasil, não podemos deixar de ver a ironia.

O reverso da medalha é que voltar a desenvolver o país em função dos interesses nacionais, do interesse geral da população, envolve uma reorientação econômica profunda: eliminar a Lei Kandir, para que a alimentação sirva ao país que a produz. Voltar a cobrar impostos sobre lucros e dividendos, para que os ricos paguem um imposto como o paga a população em geral. Usar as receitas geradas para voltar a financiar a educação, a ciência e a tecnologia, a pequena e média indústria, a saúde, as políticas ambientais. A independência hoje significa colaborar com a comunidade internacional para enfrentar os dramas globais, construir uma sociedade mundial economicamente viável, mas também socialmente justa e ambientalmente sustentável. Colaboração construtiva, em vez de submissão. O que fazer não é mistério: voltar a usar os recursos em função do bem comum. Isso gera PIB, gera emprego, gera desenvolvimento, e sobretudo resgata a dignidade nacional.

Uma breve história da igualdade, por Jorge Félix

0

Jorge Félix – A Terra é redonda – 25/09/2022

Comentário sobre o livro recém-editado de Thomas Piketty

O surgimento do economista francês Thomas Piketty no debate público mundial, em 2014, ainda precisa ser revisto pelos pesquisadores da comunicação como um dos maiores vexames do jornalismo econômico mainstream. O fato de o hoje best-seller planetário Capital no século XXI, traduzido em mais de 40 idiomas e com vendas acima de 2,5 milhões de exemplares, revelar uma tendência consistente de concentração de riqueza no funcionamento do capitalismo

contemporâneo e defender como remédio um imposto global sobre grandes fortunas e herança da ordem de 80%, fez os mais renomados veículos da imprensa internacional perderem a compostura, a ética e a exatidão e partirem para uma cobertura de desinformação muito antes de arvorarem-se contra opositores de fake news.

É conveniente lembrar esse triste episódio para o jornalismo sempre quando um novo livro do autor chega às livrarias, como agora com Uma breve história da igualdade, que acaba de ser traduzido no Brasil. Essa lembrança é como um antídoto para interpretações equivocadas dos jornalistas de economia e dos leitores. The Economist (que o chamou de “Novo Marx”), Financial Times, Bloomberg passaram maus momentos de credibilidade por estarem mais preocupados em desqualificar a pesquisa de Thomas Piketty do que de analisá-la com a civilidade que deve ser dispensada a todo trabalho acadêmico.

Em 2019, quando lançou Capital e ideologia na França, Thomas Piketty já estava devidamente vacinado contra o vírus do mau jornalismo. A recepção ao seu novo calhamaço [quase 1.200 páginas, parelho ao primeiro livro] foi mais fria, porém, ganhou muito em qualidade. É curioso verificar que os mesmos jornalistas que atacaram Capital no século XXI haviam perdido o fôlego para encarar as novas descobertas e reflexões de Thomas Piketty, justamente no momento em que o mundo se rendia à sua sugestão de adotar programas de transferência direta de renda – embora o autor, em entrevista que fiz com ele, em 2013, portanto, antes de seu sucesso mundial, tenha afirmado que sempre dará preferência à adoção de um sistema tributário progressivo (apesar de uma medida não anular ou dispensar a outra no árduo combate à desigualdade). Ou os jornalistas e veículos de Economia perderam o medo do “Novo Marx” e do “comunismo” ou ficaram, de fato, envergonhados (sem nunca reconhecerem o erro) quando viram governos liberais se “pikettyzarem”, sobretudo depois da pandemia de Covid-19.

O trabalho de Thomas Piketty, porém, é muito mais complexo do que a busca por cliques ou a necessidade de fazer eco à voz do “mercado”. No entanto, embora best-seller, o autor permanece confinado aos muros da universidade. Com exceção do slogan do Occupy Wall Street – I’m 99% – que apareceu em várias placas dos manifestantes, pouco da teoria de Thomas Piketty chegou às ruas. Salvo impulsionar o debate sobre a desigualdade. Mas mesmo o slogan citado ninguém sabia que teve origem em seus trabalhos, apesar de Joseph Stiglitz, a quem o slogan foi atribuído, tenha revelado a legítima autoria (ok, em uma nota de roda-pé!).

É preciso um profundo – profundíssimo – conhecimento econômico, histórico, sociológico, antropológico para dar conta da totalidade de seus argumentos e, talvez, oferecer alguma crítica ou reflexão. Isso, até hoje, como visto com os próprios colegas jornalistas, é um limitador para se entrar no debate. Quebrar essa barreira é a intenção de Thomas Piketty, agora, com seu Uma breve história da igualdade. O autor se propõe a escrever justamente para aqueles que jamais tiveram a coragem de enfrentar suas verdadeiras “bíblias” anteriores. Ou talvez que, antes de fazê-lo, precisam frequentar aulas de alinhamento. Pode ser válido. Inclusive para jornalistas econômicos. Nem sempre Thomas Piketty, nesse livro, é tão simples quanto imaginou ser, no entanto, incomparavelmente, o livro é bem mais acessível e conta a mesma história dos livros anteriores.

O leitor mais familiarizado com a obra de Thomas Piketty perceberá um amadurecimento de determinados pontos teóricos que vão se tornando identificadores de seu pensamento sobre a desigualdade social e a condição sine qua non para o mundo avançar no que ele chama de “marcha rumo à igualdade” – a qual, aliás, para ele, o mundo está condenado. Ainda bem. Embora as desigualdades continuem a se estabelecer em níveis consideráveis e injustificáveis, como sabemos, o leitor encontra um autor muito mais otimista. E quem não está precisando?

Thomas Piketty, como sublinha desde os seus primeiros trabalhos acadêmicos e foi quase uma pedra fundadora de sua linha de pesquisa, destaca a importância da “forte pressão demográfica” em toda a história da igualdade (ou da desigualdade) e como o envelhecimento populacional jogará um papel de destaque no decorrer dessa marcha da humanidade. E seus dispositivos de apoio para torná-la efetiva são: a democracia (sufrágio universal, liberdade de imprensa, direito internacional), o imposto progressivo sobre herança, renda e propriedade, a educação gratuita e obrigatória (e ele defende agora que deve ser “complexa e interdisciplinar”), a saúde universal (alçada nesse livro a um posto bem maior) e a cogestão empresarial junto ao direito sindical.

Esse último ponto merece uma atenção especial. Desde Capital e ideologia, Thomas Piketty explora esse ponto como indispensável dentro de qualquer perspectiva de distribuição de riqueza. De acordo com ele, no atual “hipercapitalismo”, o modelo de administração por gestores ou CEOs remunerados por bonificação e, portanto, centrados apenas no retorno sobre o investimento aos acionistas é um dos maiores estorvos à igualdade.

Sua proposta é a transição para um “socialismo participativo” (como ele usou em Capital e ideologia) ou “socialismo democrático, ecológico e diversificado” (que ele acrescenta agora), baseado em uma “propriedade mista” onde haverá propriedade pública, social e temporária. Dessa forma será possível superar a dicotomia entre o modelo estatal (soviético) versus modelo capitalista (norte-americano). A forma de se instaurar a propriedade temporária é o sistema tributário progressivo, pois, com mais recursos o Estado distribuiria a riqueza por meio de programas de transferência de renda, a começar pelos jovens.

O público leigo desconfiado, com razão, de projeções ou promessas econômicas pode até receber as “utopias” de Thomas Piketty com ceticismo. Mas a leitura de Uma breve história da igualdade é menos teoria e mais uma aula da evolução do pacto social, com suas crueldades, como a herança da escravidão, seus privilégios legitimados pela ideologia e suas revoluções e reações. Antes da “marcha da igualdade”, atestada por Thomas Piketty, precisamos entender o que permitiu a humanidade dar os primeiros passos. Nada foi conquistado sem luta social e o leitor tem no livro um bom resumo dessa lenta desconcentração do poder e da propriedade.

O prognóstico do autor é de que, sendo a desigualdade uma construção política a partir de escolhas históricas, como os sistemas tributário, educacional e eleitoral, outras mobilizações transformadoras serão suscitadas pela injustiça social. Mesmo que isso ainda dependa muito do papel da imprensa, Thomas Piketty insiste que outro mundo é possível, embora ainda incerto.

*Jorge Félix é jornalista e professor de economia no bacharelado em Gerontologia na EACH- USP. Autor, entre outros livros, de Economia da longevidade: o envelhecimento populacional muito além da previdência (Ed. 106 Ideias).

Piketty preconiza crise climática como novo fator de revoluções sociais

0

No livro ‘Uma Breve História da Igualdade’, economista relata avanços e falhas na redução das desigualdades

ALEXA SALOMÃO – FOLHA DE SÃO PAULO, 24/09/2022

Nunca foi por empatia ou senso de justiça social. A lenta redução das desigualdades depende da força —de revoluções, crises e leis impostas nos momentos em que se cria espaço para um Estado de direito. O mais novo livro do economista francês Thomas Piketty, “Uma Breve História da Igualdade”, repete esse princípio como um mantra.

Em pouco mais de 250 páginas e capítulos enxutos, o autor entrega o que promete. Faz um relato condensado, mas ilustrativo e bem organizado, de como as diferenças entre base e topo da pirâmide social foram se estreitando nos últimos 300 anos.

Uma profusão de números comprova a redução das desigualdades de renda e propriedade, especialmente de 1914 a 1980, graças ao avanço do Estado de Estado de bem-estar social e à aplicação do imposto progressivo, que passou a cobrar mais tributos dos mais ricos. Há até um capítulo para o tema, no qual Piketty reafirma que esse foi o momento da “grande distribuição”.

Mas o pequeno compêndio traz um truque. Na sua essência, impele o leitor ao sentido oposto —tatear para onde as desigualdades renitentes podem nos levar. Piketty pincela avisos, sempre com gritantes exemplos, sobre como os detentores de poderes político e econômico reinventam alternativas para se preservarem o mais distante possível da maioria menos abastada.

Destaca o autor: “A resistência das elites é uma realidade incontornável nos tempos atuais (com seus bilionários transacionais mais ricos do que Estados), no mínimo tanto quanto na época da Revolução Francesa. Tal resistência só pode ser vencida por meio de poderosas mobilizações coletivas, e em momentos de crises e tensões. Ainda assim, a ideia de que um consenso espontâneo em relação às instituições justas e emancipadoras e que para colocá-las em prática bastaria quebrar a resistências das elites é uma perigosa ilusão”.

O economista elabora a percepção de que o mundo caminha para uma nova etapa em sua busca pela redução das desigualdades, e pontua lacunas, em diferentes áreas, que podem servir de ponto de partida para as tensões propulsoras de mudanças.

Racismo é uma delas. Um exemplo: tornou-se ilegal nas escolas dos Estados Unidos, país que ainda nos anos de 1960 separava brancos e negros em lugares tão triviais quanto banheiros públicos e ônibus. No entanto, a segregação ainda é uma realidade cultural no cotidiano das salas de aulas de estados sulistas.

Há outros muros, étnicos e religiosos. Em 2015, pesquisadores franceses enviaram milhares de currículos para vagas de emprego com a intenção de medir o nível de preconceito a sobrenomes. A taxa de resposta foi quatro vezes menor para candidatos árabes e muçulmanos.

A questão de gênero está longe de ser pacificada. Estudos realizados na Índia com ocupantes de cargos públicos mostraram que a defesa de um mesmo argumento, como para construir uma escola, era considerada mais crível quando proferida por um homem do que por uma mulher.

São também profundos os abismos entre as nações, que refletem, afirma o autor, os efeitos do colonialismo e da desconexão entre Ocidente e Oriente, cada vez mais tensa.

Piketty destaca as disparidades fiscais. De 1970 a 2020, as receitas tributárias dos países mais pobres estagnaram na casa de 15% do PIB (Produto Interno Bruto). Em países africanos, como Nigéria e Chade, representam algo entre 6% e 8% do PIB. As dos países mais ricos, porém, subiram de 20% para 30% no mesmo período.

O economista também relata as dívidas históricas entre ex-dominadores e ex-dominados. O Haiti é um dos exemplos.
O pagamento à França por sua independência é tratado no livro como espoliação. O reinado de Carlos 10º pediu 150 milhões de francos-ouro a título de compensar as perdas de proprietários de terras e de escravos. O valor equivalia, à época (1825), a 300% da renda nacional do Haiti. O pagamento dessa dívida, encerrado apenas em 1950, inviabilizou qualquer chance de desenvolvimento da ilha, ainda hoje um dos lugares mais miseráveis do planeta.

No conjunto dessas antigas disparidades não solucionadas e potencialmente explosivas, Piketty acrescenta novos componentes com desfechos ainda imprevisíveis.

O maior deles é a mudança climática. A herança poluidora está ao Norte. Estados Unidos, Canadá, Europa, Rússia e Japão têm 15% da população mundial, mas representam 80% das emissões acumuladas desde o início da Revolução Industrial.

Hoje a maior parcela das emissões sai dos Estados Unidos, e a menor, da África Subsaariana e do Sul da Ásia. No entanto, quem já sofre os impactos do aquecimento global está no segundo grupo. Piketty teoriza que os cataclismos têm potencial, ainda que não mensurável no atual estágio, de alterar a ordem do mundo que conhecemos.

“A atenuação dos efeitos do aquecimento global e o financiamento de medidas de adaptação para os países mais afetados (em particular no Sul) demandam uma transformação total do sistema econômico e da distribuição das riquezas, o que passa pelo desenvolvimento de novas coalizões políticas e sociais em escala mundial. A ideia de que todos sairiam ganhando é uma perigosa e anestesiante ilusão, que precisamos abandonar o mais rápido possível.”

Outro fator de mudança, já dado como certo pelo autor, ainda que igualmente insondável, é a ascensão da China ao posto de potência número um do planeta.

A China não faz parte da lista dos 50% de países mais pobres desde 2010. Seu PIB supera o dos Estados Unidos desde 2013. A renda nacional, porém, ainda está abaixo, cerca de € 15 mil (R$ 76 mil), ante € 40 mil (R$ 203 mil) na Europa e € 50 mil (R$ 254 mil) nos Estados Unidos. Mantido o crescimento atual, as diferenças serão superadas entre 2040 e 2050.

Piketty acredita que o regime chinês verá na mudança climática uma brecha para firmar força política.
“Em geral, a China não se priva de lembrar que se industrializou sem recorrer à escravidão e ao colonialismo, do qual ela mesma pagou o preço. Isso lhe permite marcar pontos sobre o que é percebido pelo mundo como a eterna arrogância dos países ocidentais, sempre prontos a dar lições a todos no plano da Justiça e da democracia, mesmo se mostrando incapazes de enfrentar as desigualdades e discriminações que os corroem, e pactuando por conveniência com todos os potentados e as oligarquias que os beneficiam.”

Dica. Não deixe de ler as notas. São como capítulos adicionais.

Governo, sim, calango, não, por Rolf Kuntz

0

Hoje sem rumo e com milhões empobrecidos, o Brasil poderá retomar o avanço a partir de 2023, sedispuser de um governo de fato.

Rolf Kuntz, jornalista.

Estado de São Paulo, 25/09/2022

Um bife e uma salada – para todos. Com essas palavras, o ministro francês Valéry Giscard d’Estaing, magro e saudável, contou a um robusto brasileiro, numa charge publicada há algumas décadas, a fórmula da boa alimentação.

Desigualdade, pobreza e fome eram temas inevitáveis, naquele tempo, quando o lagarto calango, desconhecido na maior parte do Brasil, se tornou fonte de proteína para nordestinos. A fórmula simples, comida para todos, é requisito básico da ordem civilizada. Com a mesma simplicidade, qualquer candidato poderia desenhar um programa para o novo mandato presidencial. As necessidades, agora, são elementares e singelas. A mais urgente, depois de quatro anos sem rumo, será a implantação de um governo. E governar é muito diferente de mandar e de usar meios públicos, embora esse fato, como tantos outros, seja ignorado pelo presidente Jair Bolsonaro.

Governar é mais do que executar leis, administrar o dia a dia e manter a ordem. É definir objetivos, atender a demandas, desenhar planos e programas e construir o futuro. A maior parte dessas tarefas foi negligenciada a partir de 2019. O ministro da Economia, Paulo Guedes, nega a fome e acusa até o Banco Central de errar para baixo nas projeções de crescimento econômico. Mas é incapaz de ir além dos ataques e das bravatas e de apontar um rumo para o País. Nada fez, em quase quatro anos, para reverter a desindustrialização do Brasil – um dos primeiros, mais evidentes e mais importantes desafios para quem tiver de cuidar dos assuntos econômicos.

O retrocesso da indústria brasileira pode ter começado há mais de 20 anos, mas ficou mais evidente há cerca de uma década. Em julho, a produção industrial foi 17,3% menor que a de maio de 2011, pico da série registrada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A curva oscilou nesse período e pareceu, em alguns momentos, indicar uma recuperação, mas a tendência foi mesmo de recuo. Alguns distraídos confundem a desindustrialização do Brasil com a mudança observada em países mais avançados, onde se fala de uma era pós-industrial.

Distraídos continuam falando, também, de um suposto compromisso liberal de Paulo Guedes, como se liberalismo, na economia contemporânea, consistisse em combater direitos trabalhistas e em cortar tributos indiretos, como o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI). Mas a bobagem maior é reduzir o debate à aplicação de rótulos.

Muito mais séria é a discussão, ainda com pouco efeito, sobre o custo Brasil, os entraves à modernização e à competitividade e os obstáculos à integração no mercado global. Quase nada se avançou nesse front, nos últimos anos. Falou-se muito sobre reforma tributária, mas pouco se discutiu, no Executivo, a funcionalidade dos tributos.

Pouco atento à realidade das cadeias de produção e de circulação de bens, o ministro da Economia chegou a defender a adoção do cumulativo, regressivo e desastroso “imposto único”, já conhecido pela sigla CPMF.

É indispensável, sim, redesenhar o sistema de tributos, a partir, porém, de boas propostas, algumas já apresentadas por técnicos competentes. Também é preciso cuidar dos custos e da eficiência da administração, mas isso requer muito mais que a limitada reforma de RH projetada pelo Ministério da Economia. O retorno ao desenvolvimento econômico e social depende de uma ampla reversão das políticas do atual mandato.

Não haverá modernização, nem prosperidade, sem a reabilitação das políticas de educação e saúde, estraçalhadas nos últimos quatro anos. Nem o financiamento de creches foi respeitado. Além disso, o Executivo federal terá de se reconciliar com a cultura e com a atividade acadêmica. O presidente – ninguém deveria esquecer – declarou guerra à ciência e à tecnologia no começo de seu mandato, quando atacou o Instituto Nacional de Pesquisa Espacial (Inpe) por mostrar, com imagens de satélite, o aumento de queimadas na Amazônia.

Ao facilitar a devastação ambiental, o presidente prejudicou a reputação do setor mais competitivo da economia brasileira, o agronegócio, e deu argumentos ao protecionismo europeu. Combinada com outras ações diplomaticamente desastrosas, a negação dos valores ambientalistas contribuiu para deformar a imagem do País. Além disso, a ação presidencial foi particularmente eficaz na aproximação com governos autoritários. A visita de Bolsonaro a Vladimir Putin pouco antes da invasão da Ucrânia foi um dos pontos mais altos dessa política.

Apesar dos elogios à ditadura militar, da valorização da tortura e dos esforços para desacreditar o sistema eleitoral, o presidente foi incapaz, até agora, de reverter a experiência democrática das últimas décadas.

Judiciário e Congresso funcionam e a imprensa permanece atenta e vigorosa. A poucos dias das eleições, parece razoável apostar em tempos mais luminosos, com valorização da democracia, reconstrução do governo e retorno ao caminho do desenvolvimento e da criação de oportunidades, a partir de uma agenda tão elementar quanto a garantia de comida para todos.

Como regular as Criptomoedas? por Celso Ming

0

Criptoativos trouxeram grandes inovações na área monetária, mas ainda não há clareza sobre o que pode ser regulado nesse mercado.

Celso Ming, comentarista de Economia.

Estado de São Paulo, 24/09/2022

De todos os lados afloram pressões para regulamentar a criação e a circulação das criptomoedas. Faz mais de 10 anos que apareceu a primeira delas, o bitcoin. Hoje existem mais de 21 mil, cujo valor de mercado, embora altamente volátil, passa dos US$ 900 bilhões.

Neste mês, o Fundo Monetário Internacional (FMI) publicou artigo (Regulating Crypto) que relata as dificuldades para avançar nessa matéria.

Vítimas de fraudes, de escândalos financeiros, de pirâmides que envolvem esses ativos vêm cobrando ação das autoridades para controlar essas novidades.

Não há clareza sobre o que regular. Os criptoativos assumem inúmeras formas. Grande número de produtos digitais, muitos deles já incorporados pela rede bancária supervisionada pelos bancos centrais, também é considerado criptoativo.

As instituições reguladoras operam com objetivos diferentes. Os bancos centrais, por exemplo, temem que, à medida que se avolumam, essas moedas corroam sua capacidade de exercer a política monetária. Outras veem nelas importantes instrumentos de sonegação de impostos, fraude, lavagem de dinheiro e de financiamento de terrorismo e criminalidade. E há aquelas que estão mais preocupadas com a defesa do investidor. Alguns governos estão mais preocupados com o altíssimo consumo de energia elétrica exigido pela “mineração” dessas moedas.

São muito diferentes e numerosos os agentes que estariam sujeitos a uma regulação: “mineradores” de moedas, desenvolvedores de sistemas de informática (como o blockchain e afins), detentores e administradores de fundos que levam essas moedas. É um campo confuso onde escasseiam informações seguras.

Os reguladores enfrentam dificuldades para entender e acompanhar a rápida evolução dos programas e dos sistemas de informática adotados pelos criadores das moedas.

Mas não consta no artigo do FMI um ponto relevante. Como a emissão e as transações feitas com essas moedas ignoram fronteiras, qualquer regulação de âmbito apenas nacional será sempre insatisfatória. E, no entanto, a partir de todas as tentativas feitas pelos organismos internacionais, está distante um acordo mínimo sobre como avançar.

As criptomoedas trouxeram grandes inovações na área monetária e nos sistemas de pagamentos. Embora não exerçam todas as funções clássicas de uma moeda, elas mostram que não precisam da chancela de um Estado ou da efígie de César para operar como ativos monetários.

Discurso empreendedor da classe C mascara exclusão social e acena a Bolsonaro, por Barlach e Mendes.

0

Fenômeno se manifesta em conservadorismo que alia forte individualismo e desconfiança no Estado

Breno Barlach, Sociólogo e mestre em ciência política pela USP, com participação como pesquisador visitante na Cornell University (EUA). É diretor de pesquisa e inovação da Plano CDE, instituto de pesquisas sociais e de inteligência de mercado focado nas classes populares (C, D e E) brasileiras
Vinícius Mendes, Jornalista e sociólogo, mestre em sociologia pela USP

Folha de São Paulo, 25/09/2022.

[RESUMO] Precarizados e sujeitos a rendas incertas, milhões de brasileiros da classe C reforçam um discurso de empreendedorismo que, para eles, reflete uma condição em que são descartáveis no mercado de trabalho. A tradução política desse fenômeno é um tipo de conservadorismo que alia forte individualismo e desconfiança no papel do Estado, apontam pesquisadores.

Bacharéis inconformados sob o volante de um carro de aplicativo. Autônomos ansiosos com uma crise que não termina, embora estejam melhores que os informais, extenuados em longas jornadas para segurar o orçamento do mês com dificuldade. “Pejotas” inseguros em seus empregos, à espera de uma próxima oportunidade que os manterá na mesma condição.

Essa realidade de boa parte da massa de trabalho brasileira não é apenas uma fotografia do presente. Nessas mesmas condições, muitas pessoas ascenderam na primeira década do século 21, mas agora experimentaram os impactos de uma crise que perdura, ainda mais depois da Covid-19.

É dessa perspectiva que elas vislumbram o futuro imediato e, a partir disso, tomam suas decisões políticas.
Dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), analisados pela Plano CDE, instituto de pesquisas sociais e de inteligência de mercado, iluminam essa estrutura econômica com clareza: de 2015 para cá, a proporção de rendimentos oriundos de fontes incertas, como atividades informais ou por conta própria, sem contar os “bicos”, se manteve em torno de 43% da composição total do orçamento das famílias da chamada classe C, que representa metade da população.

Um número que mostra como esse tipo de arranjo baseado em uma conjunção de informalidades foi se tornando uma característica comum da economia nacional, sempre interpretada à luz dos diferentes contextos do país.

Nos anos de bonança, essa era uma situação quase imperceptível. No pano de fundo daquele período, porém, essas camadas já nutriam uma insatisfação com a dificuldade em encontrar um emprego celetista ou em ter estabilidade financeira. Só não era uma sensação profunda a ponto de superar o otimismo inevitável que se tinha com os rumos pessoais e, por consequência, com os do país.

Agora as circunstâncias são outras, e não é à toa que se vê a ascensão de um conceito torto de “empreendedorismo” para dar conta delas. Trata-se da narrativa econômica triunfante de um Brasil em crise. Ela diz que esses “empreendedores” seriam o que de mais livre, do ponto de vista econômico, o país produziu em muito tempo.

No Brasil popular, o empreendedorismo ganha outros nomes, embora mantenha o mesmo núcleo de valor: nas pesquisas qualitativas feitas nos últimos anos pela Plano CDE com esse público, que representa 100 milhões de pessoas com renda familiar per capita mensal entre R$ 500 e R$ 1.500, ele aparece ora como “corre”, ora, em uma associação essencialmente masculina, com a imagem do “batalhador” —o homem provedor da casa que se enxerga como baluarte de uma configuração social que premia qualquer mérito individual.

Trata-se de um sujeito sempre em competição com outros batalhadores, todos de vida parecidas. Nessa visão de mundo, é central a ideia de que o esforço de cada um determina a posição social que se ocupa —métrica que naturaliza a própria precariedade como mão de obra no mercado.

Esse grupo é composto de autônomos sujeitos à demanda e entregadores de comida, jovens universitários em busca do primeiro emprego e recém-formados desempregados pendurados em “bicos”, motoristas de aplicativos e a multidão de MEIs (microempreendedores) à espera de uma convocação.

Todavia, mais que empreendedores, eles também se definem como descartáveis. Em outras palavras, a narrativa da “liberdade do empreendedor” tenta esconder uma realidade mais perversa.

Nela, eles se sujeitam, por “conta própria”, à instabilidade constante do mercado de trabalho, recebem os mesmos salários há pelo menos meia década e ficam à mercê de fontes alternativas de renda para conseguir chegar até o fim do mês.

Em muitos casos, vivem quase totalmente desses rendimentos incertos e voláteis. Esses trabalhadores notam que o trabalho que oferecem é uma moeda de pouco valor no mercado, facilmente substituível e, por isso mesmo, repleto de incertezas.

Assim, se são alvos do discurso do empreendedorismo, é justamente porque já estão inseridos nesse contexto de descartabilidade. É desse jeito que observam a vida, os outros ao redor, o Estado, o país onde vivem.

O limite dessa realidade se observa na falta de perspectivas dos mais jovens: se até alguns anos atrás havia alguma esperança de que o curso universitário fosse o caminho mais sólido para mudar uma trajetória familiar: a geração que chegou ao ensino superior a partir de 2010, sobretudo por meio dos programas de auxílio estudantil, percebeu que a história não era mais desse jeito.

Nas duas últimas décadas, houve um crescimento exponencial de pessoas que concluíram a graduação, mas elas não se inseriram no mercado de trabalho como imaginavam. Muitas acabaram descartadas em empregos que, na maioria dos casos, nem sequer exigem o diploma e quase sempre oferecem salários baixos e padrões precários.

Nesse mundo, a informalidade reina. É por isso que cresceu o volume de pessoas com curso superior que trabalham por conta própria: no terceiro trimestre do ano passado, por exemplo, eles já somavam 4 milhões, como mostrou a Folha.

Esse grupo é mais sensível a essa descartabilidade porque levou adiante o projeto que prometia mudar a trajetória familiar e hoje engrossa a lista de inadimplentes do Fies, que teve um salto de 300% entre 2019 e 2021, segundo dados do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação.

Foi da crise atual que se colocou sobre a ascensão social da classe C que muitas análises extraíram uma mesma conclusão: o bolsonarismo, como fenômeno social, seria resultado, principalmente, de um ressentimento dessas camadas.

A crítica a esse argumento já foi feita pela antropóloga Rosana Pinheiro-Machado: tal sentimento negativo explica melhor a reação raivosa dos trabalhadores do Norte à crise dos empregos, como o trumpismo nos EUA, que a realidade dos sujeitos ao Sul, que nem chegaram a ter um trabalho formal para poder perdê-lo.

Para Pinheiro-Machado, o bolsonarismo é o sucesso definitivo de toda essa narrativa individual: o presidente encampa esse discurso e promete institucionalizá-lo. Mas não é só isso. Nos nossos estudos, é visível também como essas camadas compartilham a sensação de que foram enganadas.

Naquele momento em que o país prometia uma ascensão permanente, em que o bom momento da economia era experimentado no cotidiano, elas construíram seus projetos de futuro vislumbrando exatamente o contrário desse cenário de descartabilidade: uma formação universitária daria empregos mais seguros, o mercado de trabalho não seria um universo de precariedades e a renda não estaria em constante ameaça.

Enfim, elas esperavam uma transformação real, uma mudança na trajetória familiar que, de fato, foi prometida. É, então, mais do que só ressentimento ou uma vitória definitiva da narrativa individual: é ainda uma cobrança incisiva pelo que esperavam ter neste momento.

A tradução política desses sentimentos não terminou. O empreendedorismo à brasileira encontrou em Jair Bolsonaro a sua representação momentânea.

Descartadas no mercado de trabalho, cada vez mais abandonadas à própria sorte, essas pessoas tendem a elaborar uma visão de mundo conservadora, o que também representa uma formação política.

No centro dela está, sem dúvida, o batalhador, o protagonista do corre que segura as contas do mês na viração —no bico, no trabalho informal, na atividade autônoma ou na conjunção de todas elas. Nas pesquisas da Plano CDE, essa perspectiva comum aparece como um “conservadorismo moderado”, tendo em vista alas mais radicais que compõem a base de apoio irrestrito ao governo atual.

Esse grupo diz que o Estado não é só corrupto, como também promotor de desigualdades, pois produz políticas apenas para os mais pobres ou para detentores de “privilégios”, como seriam os negros no caso das cotas raciais.
Vem daí a adesão a uma ideia de Estado mínimo, cujo papel principal seria não atrapalhar quem está no corre, embora tivesse a obrigação de criar “oportunidades” de empregos que os contemplasse.

Há também a individualização da política, a crença de que as soluções não deveriam ser coletivizadas, já que o futuro depende do esforço de cada um. É nesse sentido que programas de transferência de renda, como o antigo Bolsa Família, soam como aberrações.

Essa visão de mundo se encaixa muito bem ao contexto familiar; o esforço individual é um valor transmitido às próximas gerações como forma de fazer surgir um país menos desigual. Bicos e trabalhos por conta própria são mais que o corre cotidiano, são a saída para o país.

Descartáveis não apenas no mercado, mas em seus próprios corpos, já que são objeto da violência urbana, materialmente insatisfeitos, mas convencidos pela narrativa do empreendedorismo, integrantes da classe C veem no Brasil um estado de pré-contrato social, um conflito cotidiano em que cada um luta por si e pelos seus.

Lidar com essa experiência da maioria da população é o desafio da eleição de outubro. Há caminhos possíveis para diálogo, e o primeiro deles é refinar o discurso em torno da CLT. Criada para promover segurança, ela não se encaixou em um país em que os empregadores são eles mesmos parte da base da pirâmide.

É preciso ainda reestabelecer alguma confiança em soluções públicas para os problemas do Brasil. As ineficiências do Estado têm contribuído para a desconfiança nutrida diante de qualquer proposta de política pública endereçada a grupos mais vulneráveis.

Milhões de brasileiros compõem esse vasto campo dos que não recebem benefícios dos programas do governo e nem acessam os melhores empregos.

Essa condição se transforma em uma posição social que, há quase uma década, dá o tom também da política nacional. O conservadorismo dos descartáveis está posto, e o desafio é agir agora para que ele não permaneça no horizonte do Brasil.

Eleitor civilizado não tolera ver o país atolado na lama da extrema direita, por Marcelo Leite.

0

Hora de mostrar que Brasil não seguirá irracional, ecocida, racista, misógino e homofóbico

Marcelo Leite, Jornalista de ciência e ambiente, autor de “Psiconautas – Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (ed. Fósforo)

Folha de São Paulo, 25/09/2022.

Esta é a última coluna do mês, chance derradeira de opinar sobre a eleição de domingo que vem. Invertendo o passo titubeante de Fernando Henrique Cardoso sobre o muro, cabe indicar não as razões para eleger alguém (todos sabem quem), mas para escorraçar os que se empenham em apodrecer o Brasil.

São quase quatro décadas escrevendo sobre ciência e meio ambiente, portanto sobre mudança climática, desmatamento e povos indígenas. Poucos e valentes companheiros levam essa cobertura à frente, mas viram nos últimos quatro anos um retrocesso sem par.

A floresta amazônica nunca esteve tão ameaçada. O corte raso recrudesceu e voltou ao patamar de cinco dígitos, em quilômetros quadrados, abaixo do qual se conservara por uma década inteira. Teme-se que o bioma entre em colapso, interrompendo a bomba hidrológica que irriga o país.

Não é só a Amazônia. O cerrado sofre mais, proporcionalmente, perdendo cobertura vegetal e enorme biodiversidade para a agropecuária. A mata atlântica, quase extinta, volta a ser ameaçada após tímida regeneração. Pantanal em chamas, caatinga desprezada.

Terras indígenas sucumbem ao assédio de invasores, em especial garimpeiros tidos como empreendedores e heróis no Planalto. Assassinatos, estupros e doenças vêm no rastro de suas retroescavadeiras. Nenhum centímetro de demarcação.

Ibama e ICMBio manietados na missão de fiscalização e controle, erodidos por dentro, a mando de sicários alçados a dirigentes. O equivalente a instalar um negro racista no comando de políticas contra a discriminação racial e a favor da cultura afro-brasileira.

Policiais e generais no topo da Funai. Um ex-astronauta vendedor de travesseiros e bugigangas para cuidar de ciência, tecnologia e inovação. Um almofadinha tocador de boiada no Ministério do Meio Ambiente. A musa do veneno na pasta da Agricultura. Um advogado do diabo no MPF.

Banda podre do agronegócio acima de tudo, grileiros e madeireiros pra cima de todos. Pastores argentários na linha de frente do farisaísmo, entrando pela porta dos fundos do MEC e pela porta da frente do Alvorada, enchendo as burras enquanto esgotam o bom senso de damas em transes pentecostais no palácio.

Irracionalismo e negacionismo campeiam. Dados só valem quando confirmam aquilo em que se põe fé. Fato e opinião se equivalem. Se um luminar diz que universidades públicas se distinguem por cultivar maconha, deixa de ser criminoso relegá-las à míngua e estimular o êxodo de cérebros.

Uma conversa retrógrada sobre segurança pública privilegia o armamento da população, quer dizer, daquela franja de machistas que se sentem ameaçados por mulheres assertivas e LGBTQIA + à vista de todos. Surpresa! —feminicídios e homofobia em alta.

O crime organizado pelo tráfico e pelas milícias condecoradas da família festejam. Armas e munições amontoados por CACs chegam depressa às mãos dos bandidos, que matarão mais competidores e inocentes na linha de tiro, além de policiais que tombam numa guerra insana.

Orçamentos secretos financiam máfias parlamentares no centrão do Congresso. Elogia-se a tortura, e nada acontece. Caluniam-se urnas eletrônicas que os elegeram, recrutam-se para fiscalizá-las militares que mal sabem pilotar escrivaninhas.

Nem nos momentos mais escuros da ditadura militar o Brasil desceu tão baixo, porque os generais e seus torturadores não eram eleitos. Os que hoje enxovalham o país foram escolhidos pelos eleitores. Os que tiverem vergonha na cara podem mudar tudo isso —no voto.

É hora de recobrar a sobriedade, por Oscar Vilhena Vieira.

0

A eleição deste ano é crucial para nosso futuro como nação democrática

Oscar Vilhena Vieira, Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.

Folha de São Paulo, 24 setembro 2022.

O mundo vem enfrentando um forte processo de regressão democrática. Na última década, 30 países, que congregam cerca de 26% da população mundial, deixaram de ser considerados democracias eleitorais, elevando para 5,4 bilhões o número de pessoas vivendo sob regimes autocráticos. Ou seja, nada menos que 70% da população mundial vive hoje sob regimes não democráticos.

Outros 35 regimes democráticos, entre os quais o brasileiro, vêm passando por um processo de erosão a partir de 2011, marcado por uma crescente polarização tóxica, ampliação das restrições à liberdade de expressão, manipulação de regras eleitorais e ataques ao poder judiciário. Importa salientar a natureza incremental desses processos contemporâneos de regressão democrática, que se consolidam, sobretudo, com o segundo mandato de líderes populistas autoritários.

É neste contexto global de enfraquecimento da democracia que os norte-americanos foram às urnas em 2020 e mais de 150 milhões de brasileiros estão aptos a irem às urnas no próximo dia 2 de outubro. A derrota eleitoral de Trump levou a uma grotesca tentativa de golpe de Estado na mais antiga democracia do mundo. No Brasil o presidente Jair Bolsonaro tem advertido que não aceitará um resultado que lhe seja adverso.

Não se pode tomar as próximas eleições brasileiras, portanto, como um evento ordinário na vida política nacional.

Dois são os desafios. Em primeiro lugar é preciso evitar algum curto-circuito no processo eleitoral. A sociedade organizada e as diversas instituições precisam entrar em vigília cívica para esvaziar iniciativas maliciosas de subverter o processo eleitoral, como ocorreu nos Estados Unidos. À Justiça Eleitoral cabe com exclusividade a apuração dos resultados. Quaisquer tentativas de sabotagem do processo eleitoral ou de usurpar competência do Tribunal Superior Eleitoral constituem crime e devem ser repudiadas.

O principal desafio, no entanto, recai sobre o eleitor. Numa eleição normal, o dilema incide sobre escolher políticas mais conservadoras, liberais ou progressistas. Nesta eleição, no entanto, o que está em jogo é a própria sobrevivência de nossa democracia, a possibilidade de continuarmos a poder fazer escolhas e coordenar nossos conflitos de maneira pacifica.

Um segundo mandato de Jair Bolsonaro fragilizaria ainda mais o Estado de direito, o pluralismo político, a laicidade do Estado, os direitos fundamentais (especialmente de negros e indígenas), o processo eleitoral, os mecanismos de controle da corrupção, o processo orçamentário (como expressão dos esforços da sociedade para enfrentar seus principais desafios), o meio ambiente, assim como as políticas sociais voltadas a assegurar o bem-estar da população mais vulnerável. Ainda fortaleceria o crime organizado, a intolerância política e religiosa, grupos radicais e a difusão de armas. A reeleição de Bolsonaro também aprofundaria o processo de isolamento internacional do Brasil, ferindo nossos interesses econômicos e estratégicos.

Trata-se, portanto, de uma eleição crucial para nosso futuro como nação democrática, plural e consciente de nossas responsabilidade e oportunidades nos campos do clima e da segurança alimentar de todo o planeta.

Se a polarização tóxica que marcou a eleição de 2018 impeliu muitos eleitores a fazer escolhas irracionais, que a dramática experiência desse período de arbítrio, obscurantismo e anormalidade contribua para que o eleitor brasileiro recobre sua serenidade e sensatez.