Byung-Chul Han: Infocracia e a caverna digital.

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Mundo online forja novo totalitarismo, aponta o filósofo em recente livro. Esfera pública é pervertida: emerge comunicação sem comunidade. Verdade vira borrão e, através de algoritmos e autoexploração, desejos coletivos são reduzidos ao eu

Por Fernando D’Addario, no Pagina 12 | Tradução: Roney Rodrigues

Outras Palavras, 30/05/2022

Byung-Chul Han é um operador saudável do quadro social e comunicação que expõe seu trabalho: seus livros são breves, rápidos, transparentes. Cada um deles propõe apenas um punhado de conceitos, facilmente reduzidos a uma frase-slogan que flui através das redes sociais e funciona como um “coringa” para reforçar opiniões de diversas índoles. Sua grande contribuição ao pensamento nas últimas décadas certamente foi sua análise do indivíduo autoexplorado, o novo sujeito histórico do capitalismo. Mas, além dessa ideia-força, o principal mérito do filósofo coreano é ter captado a “atmosfera” dessa época para, dessa forma, traduzi-la em textos nos quais um cidadão comum com certa sensibilidade – política, cultural, trabalhista – se sente refletido.

Em seu último livro, Infocracia [2022], ainda sem tradução no Brasil, Han explora como o “regime de informação” substituiu o “regime disciplinar”. Da exploração de corpos e energias – tão bem analisadas por Michel Foucault em sua época — passamos à exploração de dados. Hoje o signo dos detentores do poder não está ligado à posse dos meios de produção, mas ao acesso à informação, que é utilizada para a vigilância psicopolítica e a previsão do comportamento individual.

Em sua exposição genealógica, Han descreve o declínio desse modelo de sociedade dissecado pelo autor de Vigiar e Punir, e encontra pontes com outros autores do século XX como Hannah Arendt, de quem resgata certas abordagens do totalitarismo. Han diz que hoje estamos submetidos a um novo tipo de totalitarismo. O vetor não é mais o relato ideológico, mas a operação algorítmica que a sustenta.

O filósofo circunda os temas que já havia exposto em outras obras (a compulsão à performance que descreveu em A sociedade do cansaço; o surgimento de um habitante voluntário do panóptico digital, encarnado em A sociedade da transparência; o comodismo frente ao imperativo do like como analgésico do tempo presente, abordado em A sociedade paliativa), mas centra-se na mudança estrutural da esfera pública, atravessada pela indignação digital, que fragiliza o que outrora entendíamos como democracia.

Han argumenta que nesta sociedade marcada pelo dataísmo, o que está ocorrendo é uma “crise da verdade”. Ele escreve: “Esse novo niilismo não significa que a mentira se faça passar como verdade ou que a verdade seja difamada como mentira. Ao contrário, mina a distinção entre verdade e mentira”. Donald Trump, um político que opera como se ele próprio fosse um algoritmo e só se orienta pelas reações do público expressas nas redes sociais, não é, nesse sentido, o mentiroso clássico que deturpa deliberadamente as coisas. “Ao contrário, [ele] é indiferente à verdade dos fatos”, diz o filósofo. Essa indiferenciação, continua Han, representa um risco maior para a verdade do que aquele instaurado pelo mentiroso.

O pensador coreano diferencia os tempos atuais daqueles não muito distantes quando dominava a televisão. Ele define a TV como um “reino das aparências”, mas não como uma “fábrica de fake news”. Destaca que a telecracia “degradava as campanhas eleitorais a ponto de transformá-las em guerras de encenações midiática. O discurso foi substituído por show para o público”. Na infocracia, por outro lado, as disputas políticas não degeneram em espetáculo, mas em “guerra de informação”.

Porque fake news também é, antes de tudo, informação. E sabe-se que “a informação se espalha mais do que a verdade”. Por isso, conclui com o pessimismo que lhe é próprio: “A tentativa de combater a infodemia com a verdade está, portanto, fadada ao fracasso. Ela é resistente à verdade”.

Define a situação atual com uma frase-slogan que o autor de Não-coisas tanto gosta: “A verdade se desintegra em poeira informativa transportada pelo vento digital”.

Mas como essa vítima é varrida pelo vento digital? Como se comporta? “O sujeito do regime de informação não é dócil nem obediente. Pelo contrário, acredita-se livre, autêntico e criativo. Ele se produz e realiza a si mesmo”. Esse sujeito – que no sistema atual também se realiza como objeto – é simultaneamente vítima e vitimizador. Em ambos os casos a arma utilizada é o smartphone.

Por meio dessa ferramenta, a mídia digital pôs fim à era do homem-massa. “O habitante do mundo digitalizado não é mais aquele ‘ninguém’. Mas é alguém com um perfil, enquanto que na era das massas só os criminosos tinham perfil. O regime de informação se apodera dos indivíduos elaborando perfis comportamentais”.

O grande feito da infocracia é ter induzido em seus consumidores/produtores uma falsa percepção de liberdade. O paradoxo é que “as pessoas estão presas à informação. Elas mesmo se colocam grilhões aos comunicar e produzir informações. A prisão digital é transparente”. É precisamente esse sentimento de liberdade que garante a dominação.

Por fim, atualiza o mito platônico: “Hoje vivemos aprisionados em uma caverna digital mesmo acreditando que estamos livres”.

É uma revolução nos comportamentos que exclui qualquer possibilidade de revolução política. Diz Han: “Na prisão digital como uma zona de bem-estar inteligente não há resistência ao regime prevalecente. O like exclui qualquer revolução”>

Em tempos de microtargeting eleitoral, porém, ocorre um fenômeno paradoxal: a tribalização da rede. Interesses segmentados que se expressam por meio de discursos previamente elaborados e que aos poucos vão corroendo o que Jürgen Habermas definiu teoricamente como “ação comunicativa”. “A comunicação digital como comunicação sem comunidade destrói a política baseada na escuta”, escreve Han, enfatizando que no antigo processo discursivo os argumentos poderiam ser “melhorados”, ao passo que agora, guiados por operações algorítmicas, dificilmente são “otimizados” em função do resultado que se almeja.

É a direita que a mais capitaliza esse fenômeno de tribalização da rede, assegura o filósofo, porque nessa franja a demanda por “identidade do mundo vital” é maior. Em uma sociedade desintegrada em “irreconciliáveis identidades sem alteridade”, a representação, que por definição gera uma distância, é substituída pela participação direta. “A democracia digital em tempo real é uma democracia presencial”, que ignora sua esfera natural de representação: o espaço público. Isso leva a uma “ditadura tribalista de opinião e identidade”.

O sujeito autoexplorado da sociedade do cansaço, o habitante voluntário da sociedade transparente, o indivíduo que se entrega à sociedade paliativa, também se submete, conclui Han, à fórmula do regime de informação: “comunicamos até morrer”.

Desafios futuros

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Estamos caminhando para momentos de grandes decisões e desafios que tendem a definir a sociedade nos próximos anos, neste momento de incertezas e de instabilidades crescentes, precisamos ter seriedade para a tomada de decisões estratégicas que se aproximam, pavimentando caminhos mais suaves numa sociedade centrada em turbulências crescentes.

A sociedade brasileira é descrita internacionalmente como um dos maiores produtores de alimentos do mundo, somos campeões em variados produtos que contribuem para alimentar parte considerável da comunidade global e percebemos, com espanto e preocupação, que voltamos para o mapa da fome, onde mais de 125 milhões de brasileiros apresentam insegurança alimentar, gerando preocupações políticas e desequilíbrios econômicos e sociais.

A sociedade brasileira precisa encarar de frente o crescimento da desigualdade econômica e da exclusão social que crescem de forma acelerada, essa desigualdade cresceu no período pós-pandemia e exige do Estado políticas públicas efetivas e imediatas, evitando a naturalização desta situação de degradação que presenciamos cotidianamente e nos transformam em indivíduos frios, distantes e indiferentes diante das dores dos outros.

A sociedade brasileira precisa construir instrumentos de preservação do meio ambiente, sua degradação está presente no cotidiano de todos os indivíduos, as chuvas estão se escasseando, as tempestades estão mais intensas, as enchentes estão mais violentas, as geleiras estão secando e as queimadas estão em ascensão, gerando preocupações com as gerações futuras, preocupações crescentes com os setores produtivos e custos de insumos mais elevados que impactam sobre todos os grupos da sociedade e afetando mais fortemente os mais vulneráveis e fragilizados.

A sociedade brasileira precisa reestruturar o Estado Nacional, retomando seu papel proeminente de planejador e fomentador dos setores produtivos, estimulando os investimentos de longo prazo, fomentando a geração de mão de obra capacitada para superar os grandes desafios que vislumbramos num mundo centrado nas incertezas e nas turbulências. Neste momento, precisamos construir ou reconstruir laços sólidos entre Estado e Mercado, investindo em ciência e tecnologia, criando vantagens competitivas e abandonando pensamentos simplificados que contribuem para aprofundar a pobreza e a degradação social.

A sociedade brasileira precisa combater arduamente os desvios de recursos que atravancam o crescimento econômico e o tão sonhado desenvolvimento social, para isso, faz-se necessário que os agentes governamentais, e toda a coletividade, assumam o papel de fiscalizar, regulamentar e reconstruir os instrumentos institucionais de combate a corrupção que perpassa a sociedade, deixando de lado políticas proselitistas, protecionismo de grupos políticos e setores econômicos que se escondem sob uma legislação frouxa e garante a impunidade dos setores mais abastados da sociedade. Políticas efetivas de combate a corrupção contribuem para a retirada das máscaras que escondem interesses imediatos, de indivíduos e de corporações que contribuem para que vivamos numa sociedade que caminha rapidamente para a degradação e convulsões sociais, econômicas e políticas.

A sociedade brasileira precisa acordar para os desafios educacionais do século XXI, numa sociedade descrita como a do conhecimento, estamos distantes dos padrões mínimos exigidos para a manutenção de uma estrutura produtiva capaz de garantir autonomia e soberania nacional. Neste ambiente de atraso visível precisamos retomar o planejamento educacional, priorizar o ensino de qualidade, garantir fontes de financiamentos e aumentar os investimentos em pesquisa, ciência e tecnologia, deixando de lado os cortes obscuros nos orçamentos da educação que criam instabilidades, incertezas e degradam o futuro da nação e perpetuam nossas indignidades.

São inúmeros os desafios da sociedade brasileira, neste espaço elenquei apenas alguns, encará-los de frente podem nos trazer esperança e dignidade ou continuaremos a ser vistos como um pária na sociedade internacional.

Ary Ramos da Silva Júnior, bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 24/08/2022.

Sachs: Ocidente brinca com o perigo nuclear

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Há hipocrisia e supremacismo nos ataques contra a Rússia e a China, reconhece economista liberal. EUA manipulam opinião pública, omitem suas agressões e expõem mundo à guerra total – para manter a todo custo condição hegemônica

Por Jeffrey D. Sachs, no Other News | Tradução: Maurício Ayer

OUTRAS PALAVRAS – 23/08/2022

O mundo está à beira de uma catástrofe nuclear em grande parte por causa do fracasso dos líderes políticos ocidentais em serem honestos a respeito das causas da escalada dos conflitos globais. A incansável narrativa ocidental de que o Ocidente é nobre, enquanto Rússia e China são malévolas, é não apenas simplória como extraordinariamente perigosa. É uma tentativa de manipular a opinião pública para não encarar uma tarefa diplomática bastante real e urgente.

A narrativa essencial do Ocidente está embutida na estratégia de segurança dos EUA. A ideia central dos EUA é que a China e a Rússia são oponentes implacáveis que “tentam carcomer a segurança e a prosperidade norte-americanas”. De acordo com os EUA, esses países estão “determinados a tornar as economias menos livres e menos justas, aumentar seu poderio militar e controlar informações e dados para reprimir suas sociedades e expandir sua influência”.

A ironia é que desde 1980 os EUA escolheram entrar em pelo menos 15 guerras contra outros países (Afeganistão, Iraque, Líbia, Panamá, Sérvia, Síria e Iêmen, para citar apenas alguns), enquanto a China não esteve em nenhuma e a Rússia apenas em uma (Síria) fora dos limites da antiga União Soviética. Os EUA têm bases militares em 85 países, a China em três e a Rússia em um (Síria) fora dos limites da antiga União Soviética.

O presidente Joe Biden promoveu essa narrativa, declarando que o maior desafio do nosso tempo é competir com as autocracias, que “procuram fazer avançar seu próprio poder, exportar e expandir sua influência ao redor do mundo e justificar suas políticas e práticas repressivas como uma maneira mais eficiente de enfrentar os desafios de hoje”.

A estratégia de segurança dos EUA não é obra de um único presidente, mas da burocracia de segurança dos EUA, que é amplamente autônoma e opera por trás de um muro de sigilo.

O medo exagerado em relação à China e à Rússia é vendido ao público ocidental por meio da manipulação dos fatos. Uma geração antes, George W. Bush Jr. vendeu ao público a ideia de que a maior ameaça contra os Estados Unidos era o fundamentalismo islâmico, sem mencionar que foi a CIA, com a Arábia Saudita e outros países, que criou, financiou e mobilizou os jihadistas no Afeganistão, Síria e outros lugares para lutar nas guerras ao lado dos Estados Unidos.

Ou considere a invasão do Afeganistão pela União Soviética em 1980, que foi retratada na mídia ocidental como um ato de perfídia não provocado. Anos depois, soubemos que a invasão soviética foi na verdade precedida por uma operação da CIA destinada a provocar a invasão soviética. A mesma desinformação ocorreu em relação à Síria. A imprensa ocidental está cheia de recriminações contra a assistência militar de Putin a Bashar al-Assad da Síria a partir de 2015, sem mencionar que os EUA apoiaram a derrubada de al-Assad a partir de 2011, com a CIA financiando uma grande operação (Timber Sycamore) para derrubar o governante anos antes da chegada da Rússia.

Ou, mais recentemente, quando a presidente da Câmara dos Deputados dos EUA, Nancy Pelosi, visitou Taiwan de forma totalmente irresponsável, desrespeitando as advertências da China — e nenhum ministro de Relações Exteriores do G7 criticou a provocação, mas os mesmos ministros criticaram duramente a “exagerada reação” da China à viagem de Pelosi.

A narrativa ocidental sobre a guerra na Ucrânia é de que se trata de um ataque não provocado de Putin na busca de recriar o império russo. No entanto, a história real começa com a promessa ocidental ao presidente soviético Mikhail Gorbachev de que a OTAN não avançaria para o Leste, seguida por quatro ondas de expansão da OTAN: em 1999, incorporando três países da Europa Central; em 2004, incorporando mais sete, inclusive no Mar Negro e nos Estados Bálticos; em 2008, comprometendo-se a expandir-se à Ucrânia e à Geórgia; e em 2022, convidando quatro líderes da Ásia-Pacífico à OTAN para mirar na China.

A mídia ocidental também não menciona o papel dos EUA na derrubada, em 2014, do presidente da Ucrânia, Viktor Yanukovych, aliado da Rússia; o fracasso dos governos da França e da Alemanha, garantes do acordo de Minsk II, em pressionar a Ucrânia a cumprir seus compromissos; a vasta quantidade de armamentos dos EUA enviados para a Ucrânia durante os governos Trump e Biden no período que antecedeu a guerra; nem a recusa dos EUA em negociar com Putin a avanço da OTAN à Ucrânia.

É claro que a OTAN diz que isso é puramente defensivo, e Putin não tem nada a temer. Em outras palavras, Putin deve fingir que não existiram as operações da CIA no Afeganistão e na Síria; o bombardeio da OTAN à Sérvia em 1999; a derrubada de Muammar Kadafi pela OTAN em 2011; a ocupação do Afeganistão pela OTAN por 15 anos; nem a “gafe” de Biden pedindo a deposição de Putin (o que obviamente não foi uma gafe); nem a afirmação do secretário de Defesa dos EUA, Lloyd Austin, de que o objetivo de guerra dos EUA na Ucrânia é enfraquecer a Rússia.

No centro de tudo isso está a tentativa dos EUA de permanecer como a potência hegemônica do mundo, ampliando as alianças militares em todo o mundo para conter ou derrotar a China e a Rússia. É uma ideia perigosa, ilusória e ultrapassada. Os EUA têm apenas 4,2% da população mundial e agora apenas 16% do PIB mundial (medido a preços internacionais). De fato, o PIB combinado do G7 já é menor que o dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), enquanto a população do G7 é apenas 6% do mundo, em comparação com 41% dos BRICS.

Há apenas um país cuja fantasia autodeclarada é ser a potência dominante do mundo: os EUA. Já passou da hora de reconhecerem as verdadeiras fontes de segurança: coesão social interna e cooperação responsável com o resto do mundo, em vez da ilusão de hegemonia. Com essa política externa revisada, os EUA e seus aliados evitariam a guerra com a China e a Rússia e permitiriam que o mundo enfrentasse sua miríade de crises ambientais, energéticas, alimentares e sociais.

Acima de tudo, neste momento de extremo perigo, os líderes europeus devem buscar a verdadeira fonte de segurança para a Europa: não a hegemonia dos EUA, mas arranjos de segurança europeus que respeitem os interesses legítimos de segurança de todas as nações europeias, certamente incluindo a Ucrânia — mas também a Rússia, que continua a resistir às expansões da OTAN ao Mar Negro. A Europa deveria refletir sobre o fato de que o não alargamento da OTAN e a implementação dos acordos de Minsk II teriam evitado esta terrível guerra na Ucrânia. Nesta fase, é a diplomacia, não a escalada militar, que é o verdadeiro caminho para a segurança europeia e global.

Elites e a corrupção legalizada, por Michael França.

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Não devemos esquecer de quem define o que é certo e errado

Michael França, Ciclista, doutor em teoria econômica pela Universidade de São Paulo; foi pesquisador visitante na Universidade Columbia e é pesquisador do Insper.

Folha de São Paulo, 22/08/2022

Corrupção é um conceito amplo, e costuma ser pensado como o conjunto de práticas voltadas para usar dinheiro público com o propósito de gerar ganhos privados para indivíduos e, eventualmente, para suas famílias.

Também é um termo comumente empregado para definir o uso ilegítimo do poder público com o intuito de autofavorecimento. Porém, olhar somente para o que é feito dentro dos limites da lei é uma forma um pouco limitada de encarar a realidade.

Aquilo que é certo ou errado costuma ser uma função das vontades dos setores mais influentes da sociedade que, em última instância, tendem a definir as leis e moldar o funcionamento do Estado de forma a atender seus próprios interesses.

Uma série de convenções que foram historicamente institucionalizadas pelos grupos mais proeminentes conduz a um amplo conjunto de vantagens, geralmente indevidas, porém dentro da lei, somente para uma pequena parcela da população.

O aparato institucional, que deveria ser um meio de orquestrar o equilíbrio social, gerar oportunidades equânimes de desenvolvimento e reger o progresso, também contribui para a manutenção da apropriação do poder público pelas elites.

Quando consideramos a corrupção legalizada, o cenário brasileiro fica ainda mais emblemático. Nosso sistema político é corrompido. A desigualdade reforça ao longo do tempo a concentração de influência e leva ao aprofundamento da subversão da justiça social. Não faltam aqui exemplos de grupos que vivem em uma espécie de simbiose com o Estado.

Não é por acaso que a oferta de muitos bens públicos de melhor qualidade está localizada em regiões mais ricas dos espaços urbanos. Por sua vez, é possível criar vários outros meios de favorecer certos grupos no uso do dinheiro público.

As universidades públicas, por exemplo, foram durante grande parte de nossa história um espaço dominado pelas elites. Apesar dos avanços recentes na representatividade discente, o mesmo não se pode dizer em relação a seu corpo docente.

Além disso, bancamos altos salários de alguns cargos do funcionalismo público em que o retorno para sociedade não reflete seu custo. Em relação aos impostos, há considerável dificuldade de torná-los mais progressivos e, assim, onerar em maior proporção aqueles que possuem alta renda e que costumam ser os mesmos que são contemplados com subsídios e créditos baratos do governo em projetos com inexpressiva capacidade de gerar valor para sociedade.

A baixa taxação das heranças é somente mais um exemplo da hipocrisia de uma elite que se diz merecedora do que possui, apesar de que parte considerável de seu patrimônio representar apenas o legado do trabalho de terceiros e, não raramente, obtida por meio de algum conluio com o poder público.

Existe uma inaptidão moral por parte de muitos cidadãos em se comprometer com o bem comum e uma alta predisposição em usar o Estado para obter significativas vantagens privadas. A incapacidade de ir além das práticas corriqueiras voltadas para aumentar a gratificação pessoal parece ser uma das marcas de nossas elites.

Apesar disso, tivemos alguns avanços. Os filhos dos porteiros saíram das universidades e passaram a disputar espaço com os filhos da elite. Os mais desfavorecidos tiveram ganho no poder de compra. As empregadas domésticas começaram a pegar o mesmo avião da patroa.

Curiosamente, no mesmo período, as elites resolveram sair para as ruas para protestar contra a corrupção sistêmica. Escolheram um alvo e contribuíram para eleger um presidente que, além de corrupto, é um dos mais estúpidos da nossa história.

No final, fica a questão: a suposta indignação com a corrupção foi verdadeira ou somente um pretexto para recuperar alguns privilégios?

Mazzucato: A economia guiada por missões sociais, por Ladislau Dowbor

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Definir as necessidades da sociedade e organizar, para supri-las, iniciativas de múltiplos atores, lideradas pelo Estado. A proposta da economista italiana para superar as brutais disfuncionalidades do capitalismo atual é a base de seu novo livro

Ladislau Dowbor – Outras Palavras – 17/08/2022

Mariana Mazzucato está virando referência para todos nós. Mulher, italiana, baseada em Londres, está abrindo espaços muito mais amplos do que os eternos comentários sobre Hayek, Milton Friedman e outros economistas parados no tempo e no espaço. Estamos enfrentando um sistema diferente do capitalismo industrial que conhecemos, com o domínio das plataformas financeiras, de comunicação, de controle do conhecimento e da indústria da informação pessoal. Surge uma economia de pé no chão que ganhou força, é muito mais do que “heterodoxa”, apresentando os problemas nas suas novas configurações e as soluções correspondentes.

O capitalismo que hoje enfrentamos, e que gera tantos desastres econômicos, sociais e ambientais, tenta se justificar com sucessos do passado. Isso tem pouco legitimidade, pois as fortunas atuais têm essencialmente origem em atividades-meio, com pedágios sobre a economia imaterial como os drenos financeiros, que pouco têm a ver com os avanços produtivos do século passado, no tempo dos capitães da indústria. Exploravam trabalhadores, mas geravam emprego e produtos, e pagavam impostos, o que permitiu desenvolver infraestruturas e políticas sociais. Hoje enriquecem com juros e dividendos, e colocam os lucros em paraísos fiscais. E se apresentam como “os mercados”, mas são drenos sobre a economia real.

Não há dúvidas quanto às contribuições do capitalismo produtivo, e inclusive hoje tantas empresas fornecedoras de bens e serviços. Mas é importante lembrar que os imensos avanços planetários nos últimos dois séculos, frente a milênios de estagnação antes disso, se devem essencialmente a avanços tecnológicos, fontes de energia que permitiram mecanização, a imensa transformação gerada pela eletricidade, o aproveitamento do petróleo, os avanços da química, a mais recente revolução digital, a explosão dos conhecimentos biológicos, tudo isso são avanços do conjunto da humanidade, resultantes da confluência de esforços de pesquisadores individuais, de universidades públicas, e também de sua implementação empresarial. O principal vetor da transformação mundial que vivemos está muito mais ligado aos avanços científicos globais do que ao capitalismo, tanto assim que transformou também a União Soviética que saiu da idade média em 1917, e conseguiu derrotar o poder militar da Alemanha nos anos 1940. A China constitui outro exemplo impressionante de como a tecnologia moderna, no quadro de diferentes formas de organização política e social, pode promover o progresso.

Lembrar que o capitalismo de plataformas que hoje enfrentamos, que tenta se vestir da legitimidade de outros tempos, teve como motor principal não liberdade de mercado, mas o avanço científico e tecnológico generalizado, ajuda a entender que estamos enfrentando novos desafios, que exigem novas respostas organizacionais. O vale-tudo das corporações internacionais rompe com o essencial do que justificava o capitalismo, ou seja, de que cada um procurando maximizar os seus lucros geraria o correspondente bem-estar para a sociedade. Seja qual for o nome que damos aos novos tempos que vivemos, indústria 4.0 ou revolução digital, o fato essencial é que precisamos resgatar a sua funcionalidade: a lógica do seu funcionamento mudou.

Mariana Mazzucato publicou nos últimos anos três livros de grande impacto internacional: O Estado Empreendedor, O Valor de tudo, e agora este Missão Economia, título que seria melhor traduzido como “economia organizada por missões”, já que em inglês Mission Economy traz esse sentido. O primeiro, Estado Empreendedor, é muito utilizado no mundo e no Brasil, pois desmonta a farsa da privatização, mostra as bases públicas que permitiram inclusive os avanços privados, e propõe resgatar uma parceria inteligente em vez das simplificações ideológicas do estado mínimo. Prejudicar o interesse público para maximizar os lucros corporativos simplesmente não funciona, e muito menos a narrativa de que o Estado atrapalha o bem que o setor privado poderia trazer. Estado empreendedor, motor essencial da economia.

O Valor de Tudo, de 2018, tem o subtítulo de making and taking in the global economy, que podemos traduzir como “produzir e extrair na economia global”, subtítulo que reflete o essencial do aporte do livro, que é como diversos grupos sociais, empresas privadas, o setor público e os movimentos sociais, contribuem ou geram custos para a economia moderna, nesta era digital e financeirizada. O livro é essencial na medida em que mostra que o lucro já não passa necessariamente por aportes produtivos, e sim por diversos sistemas de apropriação e controle improdutivos ligados à financeirzação. A criação de valor e a apropriação de valor se desassociaram.

A Mission Economy que aqui resenhamos tem uma guinada radicalmente propositiva, e nos interessa em particular nesses tempos em que o Brasil regrediu radicalmente. O exemplo usado por Mazzucato é o da Missão Apolo. Nos anos 1960, com J.F. Kennedy na presidência, os Estados Unidos assistiram atônitos aos russos mandarem para o espaço primeiro um satélite, depois o Iuri Gagarin, até uma cadela, a Laika, com ida e retorno seguros. A reação não foi um projeto governamental, mas uma “missão” nacional, envolvendo o governo como promotor político, bem como centros de pesquisa, universidades, inúmeras empresas dos mais diversos setores. O impressionante sucesso, com um homem na lua, não foi resultado de primazia do governo ou do setor privado, na guerra absurda que hoje enfrentamos, mas uma articulação política, financeira e tecnológica dos mais variados setores da sociedade. Ou seja, a sinergia, confluência de diversas áreas em torno a um objetivo comum, gerou um sucesso impressionante.

Essa ideia, do potencial do que podemos fazer como humanidade ao nos unirmos em torno aos grandes objetivos sociais, é o núcleo do que a autora desenvolve e detalha no livro. Na era da sociedade complexa, de desafios sistêmicos, a colaboração é simplesmente mais eficiente. Não se trata apenas da dimensão econômica, mas da geração de um entusiasmo mobilizador em torno do que queremos atingir. E precisam ser objetivos suficientemente amplos para que possam mobilizar o conjunto da sociedade. Ainda que nos alimentem diariamente com visões de um Bezos, Buffett, Jobs ou outros heróis do sucesso individual, na mística antiga do cowboy solitário, a realidade é que hoje precisamos de sistemas colaborativos e de sinergia organizada, para voltarmos a ter rumos na sociedade. Esperar que os “mercados” consigam equilibrar magicamente as diversas dinâmicas de uma sociedade complexa, que enfrenta desafios sistêmicos, é simplesmente ridículo, ainda que sirva a interesses mais estreitos.

“Este livro adotou a ideia, que considero imensamente poderosa, de usar as missões para atacar os problemas ‘perversos’ com que nos defrontamos hoje. Argumento aqui que o combate a grandes desafios só será exitoso se reimaginarmos o governo como um pré-requisito para a reestruturação do capitalismo, de modo a torná-lo inclusivo, sustentável e inovador.”(196) Enquanto tantos livros descrevem as desgraças da humanidade e os desafios que temos de enfrentar, Mazzucato se concentra no processo decisório correspondente. Isso é fundamental, na medida em que na sociedade de hoje sabemos o que deve ser feito, inclusive com objetivos sistematizados nos ODS, temos as tecnologias, e temos os recursos financeiros necessários. Mas não conseguimos gerar a governança correspondente.
“Primeiro e acima de tudo, isso envolve reinventar o governo para o século XXI – equipando-o com as ferramentas, organização e cultura necessárias para impulsionar a abordagem orientada por missões. Também envolve introduzir a noção de propósito no cerne da governança corporativa, priorizar o valor para os stakeholders em toda a economia e transformar o relacionamento entre os setores público e privado e entre ambos e a sociedade civil, para que trabalhem em simbiose em prol de um objetivo comum. A razão para a ênfase em repensar o governo é simples: apenas o governo tem a capacidade para promover a transformação na escala necessária. O relacionamento entre os agentes econômicos e a sociedade civil revela nossos problemas no nível mais profundo, e é isso que devemos desvendar. ”(196)

Com o domínio das corporações financeiras no mundo atual – só lembrando que a BlackRock administra 10 trilhões de dólares, o equivalente à metade do PIB dos Estados Unidos (21,5 trilhões) – resgatar a sua utilidade social tornou-se essencial: “Como argumentei neste livro, isso envolve enfrentar um dos maiores dilemas do capitalismo moderno: reestruturar os negócios de modo que os lucros privados sejam reinvestidos na economia, em vez de direcionados para objetivos financeirizados de curto prazo.” (198)

A revolução digital também exige novas formas de organização. “Outra área importantíssima são as plataformas digitais. Como gerir as plataformas digitais de modo a fomentar a criação de valor para a maioria dos cidadãos, em vez de apenas gerar lucros privados para uns poucos, é o grande tema da atualidade…Empresas como Amazon e Google detêm enorme poder de mercado. O problema é que elas cada vez mais têm usado esse poder para extrair o que tenho chamado de “rentas algorítmicas” (algorithmic rents)[3] num sistema capitalista moderno que mais parece um “feudalismo digital” – a capacidade de usar algoritmos para manipular o que as pessoas veem e querem.” (189)
Isso envolve uma inversão profunda, tanto nas corporações como nos governos: pensar a economia a nosso serviço. “Grande parte da atual análise econômica tende a focar nas dívidas e nos déficits públicos. Mas uma abordagem orientada por missões traz uma nova maneira de ver as coisas. Fazer a economia trabalhar para os objetivos sociais, em vez de fazer a sociedade trabalhar para a economia, exige reverter a maneira como se avaliam os orçamentos hoje. Devemos começar com a pergunta ‘O que precisa ser feito?’ e, então, passar para a questão de como arcar com os custos.”(162) A abordagem lembra muito a missão “Fome Zero” que articulou tantos programas no Brasil e permitiu grandes avanços.

Não são sonhos, são transformações que teremos de adotar cedo ou tarde, conforme se aprofundam os desastres sociais e ambientais, e se desarticulam as democracias. Mazzucato resume as mudanças necessárias em torno a sete eixos: o conceito de valor centrado na utilidade pública, mercados articulados com os outros atores sociais, formas de organização mais centradas na colaboração, finanças reorientadas para o que é necessário para a sociedade, processos de distribuição que enfrentem a desigualdade, promoção de parcerias para o bem-comum, e participação dos atores envolvidos. (165) Não são regras simplificadas, a autora aprofunda cada um dos pilares, e o resultado é uma visão não de algum sonho no futuro – os vários “ismos” segundo as ideologias – mas medidas viáveis de reorientação em torno às prioridades humanas.

Mariana Mazzucato é hoje uma autora de referência no mundo, pela forma como ultrapassa as eternas discussões sobre teorias econômicas herdadas do passado, e se vincula à corrente que se deu conta de que o mundo mudou, de que o capitalismo funciona de modo diferente da era industrial, de que precisamos de novas regras do jogo. Uma leitura em nenhum momento atolada em economicismo, centrada em medidas concretas para nos tirar do atoleiro. Uma leitura que vale muito a pena, em particular para não-economistas.

Advertência póstuma do filósofo Zygmunt Bauman

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Revista Prosa Verso e Arte – 07/08/2022

Você já reparou que os filmes e romances de ficção científica são classificados com uma frequência cada vez maior nas seções de cinema de terror e de literatura gótica, ou seja, em um futuro tenebroso no qual ninguém gostaria de viver?

Pode parecer algo irrelevante, mas para Zygmunt Bauman, um dos pensadores mais influentes do século XX, é o reflexo de que começamos a buscar a utopia em um passado idealizado, uma vez que o futuro deixou de ser sinônimo de esperança e progresso para se tornar o lugar sobre o qual projetamos nossas apreensões.

O sociólogo e filósofo polonês deixou desenvolvida essa tese da retrotopia (a busca da utopia no passado) em dois escritos, os primeiros traduzidos ao espanhol depois de sua morte, em janeiro, aos 91 anos.

São o ensaio Retrotopia (Retrotopia) e o texto Symptoms in Search of an Object and a Name (Sintomas em Busca de um Objeto e de um Nome) parte de uma obra coletiva sobre o estado da democracia, The Big Regression (O Grande Retrocesso), que chega às livrarias espanholas no dia 27 e reúne nomes como Slavoj Žižek, Nancy Fraser e Eva Illouz.

“O futuro é, em princípio ao menos, moldável, mas o passado é sólido, maciço e inapelavelmente fixo. No entanto, na prática da política da memória futuro e passado intercambiaram suas respectivas atitudes”, aponta.
Bauman fala sobre medos como o de perder o emprego, do multiculturalismo, de que nossos filhos herdem uma vida precária, de que nossas habilidades de trabalho se tornem irrelevantes porque os robôs saberão fazer – melhor e mais barato – o nosso trabalho. Em suma, medo porque tudo o que era sólido agora é “líquido”, usando o adjetivo que popularizou Bauman.

“Existe uma brecha crescente entre o que precisa ser feito e o que pode ser feito, o que realmente importa e o que conta para aqueles que fazem e desfazem, entre o que acontece e o que é desejável”, aponta.

Bauman argumenta que voltamos à tribo, ao seio materno, ao mundo cruel descrito por Hobbes para justificar a necessidade do Leviatã (o Estado forte para evitar a guerra de todos contra todos) e a desigualdade mais gritante, na qual “o ‘outro’ é uma ameaça” e “a solidariedade parece uma espécie de armadilha traiçoeira ao ingênuo, ao incrédulo, ao tolo e ao frívolo”.

“O objetivo já não é conseguir uma sociedade melhor, pois melhorá-la é uma esperança vã sob todos os efeitos, mas melhorar a própria posição individual dentro dessa sociedade tão essencial e definitivamente incorrigível”, lamenta. A filósofa Marina Garcés, professora da Universidade de Zaragoza, elogia a capacidade de Bauman para “assumir o fim do pensamento utópico e suas consequências”. “Ele não pretende nos enganar com novas e falsas promessas de futuro, mas tenta entender o que está acontecendo depois da era das revoluções e suas várias derrotas”, afirma.

Pensador de inspiração marxista, Bauman cita algumas vezes o filósofo alemão em Retrotopia, ataca o chamariz da sociedade de consumo de massa e não renuncia à análise científica das contradições do capitalismo, mas também “recorre a outras ferramentas” para oferecer “uma visão em grande-angular”, explica o catedrático de filosofia da Universidade de Barcelona e deputado socialista Manuel Cruz. “A ideia de que a materialização da utopia foi perdida é um zumbido no pensamento do século XX”, mas “na obra de Bauman há um esforço para reconhecer o novo que traz ‘o novo’”. “Os pensadores que agora consideramos que representaram uma revolução foram recebidos com um ‘isso nós já sabíamos’. É preciso tempo para que a sociedade entenda o que tinham de novidade”, comenta.

Nos dois textos póstumos o filósofo apresenta um desafio e uma –abstrata e pouco desenvolvida– resposta. O desafio é “conceber –pela primeira vez na história humana– uma integração sem separação alguma à qual recorrer”. Até agora, argumenta, o que funcionou é a divisão entre ‘nós’ e ‘eles’, e continuamos empenhados a buscar um ‘eles’, “de preferência no estrangeiro de sempre, inconfundível e irremediavelmente hostil, sempre útil para reforçar identidades, traçar fronteiras e construir muros”. No entanto, essa dicotomia histórica “não se encaixa” com a “emergente ‘situação cosmopolita’”. Qual é, então, a única resposta possível? “A capacidade para dialogar”, conclui Bauman depois de citar de forma elogiosa o papa Francisco.

Garcés se diz “surpresa” tanto pela chamada ao diálogo (“de quem com quem?”, pergunta) quanto pela invocação da figura do Papa. “Acredito que é um pedido de socorro” de um Bauman que “tenta desenhar um cenário para a palavra compartilhada” porque sabe que “já não há soluções parciais para nenhum dos problemas do nosso tempo”. É a advertência final do pensador polonês: “Devemos nos preparar para um longo período que será marcado por mais perguntas do que respostas e por mais problemas do que soluções. (…) Estamos (mais do que nunca antes na história) em uma situação de verdadeiro dilema: ou damos as mãos ou nos juntamos ao cortejo fúnebre do nosso próprio enterro em uma mesma e colossal vala comum”.
ANTIDEPRESSIVOS E CEGUEIRA

A partir de seu posto de professor em Leeds (Inglaterra), Bauman teria podido lançar um olhar complacente ao presente, depois de ter vivido a invasão nazista de seu país, a Segunda Guerra Mundial na frente de batalha, o antissemitismo e os expurgos na Polônia comunista. Em vez disso, sua análise em Retrotopia é taxativa: “É praticamente inevitável que respiremos uma atmosfera de desassossego, confusão e ansiedade e a vida seja qualquer coisa menos agradável, reconfortante e gratificante”. Nesse contexto, os cada vez mais consumidos tranquilizantes e antidepressivos proporcionam alívio, mas também “contribuem para cegar os próprios seres humanos em relação à natureza real do seu padecimento em vez de ajudar a erradicar as raízes do problema”.

Nós do SUS

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Há muito a melhorar na gestão, mas saúde pública também precisará de mais verba

Editorial Folha de São Paulo, 21/08/2022

Houve um tempo em que o único “serviço” que o cidadão poderia esperar do Estado era um exército que protegeria a cidade de invasores. Aos poucos, vieram também uma força policial e algo que com muito boa vontade poderíamos chamar de sistema de Justiça.

A partir do século 18, países mais avançados adicionaram à lista a educação pública e, mais tarde, um sistema de pensões. Foi só depois da Segunda Guerra que veio a explosão de serviços que caracterizam os Estados contemporâneos. E o mais complexo deles é, sem dúvida alguma, a saúde.

O Brasil, num raro destaque positivo, é o único país de renda média do mundo a oferecer um sistema universal de saúde gratuito à sua população. E os desafios do SUS, já imensos antes da pandemia, tornaram-se ainda maiores depois, como mostrou reportagem da série Nós do Brasil, na Folha.

O problema de base é, evidentemente, o subfinanciamento. Embora os gastos públicos e privados do Brasil com saúde sejam até proporcionalmente maiores que de países desenvolvidos, o jogo muda inteiramente quando se consideram apenas despesas de governo.

Em 2019, os desembolsos totais chegaram a 9,6% do Produto Interno Bruto, ante 8,8% na média da OCDE. Já o dispêndio público ficou em 3,8% do PIB, ante 6,5%.

A pandemia escancarou o papel essencial do SUS. Embora nosso desempenho na crise sanitária tenha sido péssimo, muito pior seria sem o sistema de saúde.

A grande disposição com que a população arregaçou as mangas para tomar as primeiras doses da vacina, a despeito da insistente propaganda contrária de Jair Bolsonaro (PL), tem muito a ver com a confiança acumulada em vários anos do programa nacional de imunização, apontado como um dos melhores do mundo.

Seja como for, a pandemia colocou ainda mais pressão sobre o SUS. A demanda pelos serviços, que já era maior do que a oferta, foi reprimida por cerca de dois anos. A chamada Covid longa criou uma nova categoria de usuários; algo parecido vale para a saúde mental.

Embora o sistema esteja sendo mais exigido, é difícil imaginar como suas verbas possam aumentar de forma permanente. O Brasil lida com severa restrição orçamentária, agravada pela recente rodada de gastos eleitorais. Há amplo espaço para melhorias na gestão, mas isso não bastará para equacionar todas as carências.

O melhor caminho é cortar algo dos muitos subsídios e programas ineficientes bancados pelo Estado brasileiro para aumentar os recursos para a saúde pública. Politicamente, trata-se, na maior parte dos casos, de enfrentar grupos de interesse e suas benesses.

Juros altos e crise nas startups, por Luiz Guilherme Piva.

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Há risco inerente, mas investidores desconhecem efetivo potencial

Luiz Guilherme Piva, Economista, mestre (UFMG) e doutor (USP) em ciência política e autor de ‘Ladrilhadores e Semeadores’ (Editora 34) e ‘A Miséria da Economia e da Política’ (Manole)

Folha de São Paulo, 19/08/2022

No Brasil, segundo a ABVCAP (Associação Brasileira de Private Equity e Venture Capital), os investimentos em startups vinham crescendo muito: passaram de R$ 8 bilhões, em 2016, para quase R$ 50 bilhões, em 2021, com o número de aportes anuais saltando de menos de 100 para mais de 300. Só que 2022 está registrando um grande refluxo: no primeiro trimestre foram R$ 6,4 bilhões investidos em 41 aportes —e caindo.

Quem tem (juros reais altos à disposição)… Tem medo (de investir). É uma lição que está nos manuais econômicos com nomes como “preferência pela liquidez”, “custo de oportunidade”, “flight to quality” ou “farinha pouca, meu pirão primeiro”.

Negócios de maior risco, como as startups, sofrem mais para captar em cenários de juros elevados – como o atual. Elas abrigam apostas dos investidores no crescimento futuro e precisam oferecer perspectivas melhores do que outros investimentos.

Trata-se da indústria de “venture capital”, cujos benefícios para as startups são inegáveis: melhoram a governança e a gestão das empresas, viabilizam produtos e serviços que atendem a lacunas do mercado, dão às investidas acesso ao mercado de dívida etc. Há muitos casos de sucesso, recentemente denominados de “unicórnios” (startups que atingem o valor de US$ 1 bilhão antes de abrir capital), com altos retornos aos investidores. Outro benefício é a inovação. Muitas empresas aportam em startups e obtêm ganhos de produtividade e avanços tecnológicos. É a chamada inovação aberta.

Mas, além do risco inerente, existe a assimetria de informações. Investidores desconhecem o efetivo potencial das startups. No mais das vezes, mitigam o risco diversificando a carteira, de modo que perdas em algumas sejam compensadas por ganhos em outras (quem sabe até num unicórnio, não é?). E também (como se ensina em Harvard, Princeton e no interior de Minas: “ganha-se dinheiro é na compra”) rebaixando a avaliação inicial do ativo para assegurar, na saída (ou evento de liquidez; não confundir com cervejada), grandes retornos.

Quando os juros sobem, essa assimetria diminui no pior sentido: o investidor tem certeza de que não vale a pena entrar no negócio. Mesmo sabendo que, por necessidade de recursos agora escassos e por terem sua avaliação ainda mais degradada (os juros altos diminuem seu valor presente), as startups ficam bem baratinhas. É que, além de preferirem o caldo de galinha, eles temem a seleção adversa: empresas ruins que oferecem retornos fantásticos —e, claro, irreais.

Os investidores, neste período recente, têm visto isso ocorrer a um nariz diante de seus palmos vazios (o dinheiro está na renda fixa). Hoje as startups brasileiras têm tido maior dificuldade em captar. Quem tinha que ter fôlego para cerca de seis meses sem aportes está refazendo as contas para ficar na seca até o triplo desse prazo. A consequência imediata é o fechamento de várias delas —cuja mortalidade é alta mesmo em marés mais mansas— e a diminuição das maiores, principalmente na força de trabalho: no primeiro semestre, ao menos 2.000 funcionários de unicórnios (ou quase) foram demitidos, a maior parte em pacotes de 200 a 300 de uma só vez.

Nisso, não se vê inovação nenhuma. Nos manuais econômicos, nas “business schools”, no interior de Minas e nas cervejadas sabe-se que a corda estoura sempre no lado mais fraco.

Mercado Interno

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A economia brasileira apresenta grandes dificuldades de engatar um ciclo de crescimento econômico sustentável com geração de emprego, investimentos produtivos, incremento da renda e fortalecimento do mercado interno, com isso, percebemos que vivemos em ciclos curtos de melhoras imaginárias, com inúmeras promessas e frustrações constantes, além de desesperança, insatisfação e instabilidades.

Para que a sociedade brasileira consiga alcançar o tão almejado desenvolvimento econômico é fundamental a construção de um mercado interno pujante, com estruturas produtivas consolidadas e fortes investimentos produtivos, crescimento do emprego, melhora na renda agregada, estabilidade política, instituições sólidas, tudo isso, contribuem para o fomento da estrutura produtiva.

O desenvolvimento econômico é um processo constante que demanda tempo, planejamento e a construção de pactos sociais e políticos, exigindo empenho e dedicação de todos os atores institucionais, criando novos consensos para a reconstrução industrial, com investimentos em capital humano com melhoras consideráveis na educação, na pesquisa e no desenvolvimento científico e tecnológico.

Para a construção de um mercado interno pujante e dinâmico é fundamental a adoção de um novo modelo econômico, priorizando os investimentos produtivos em detrimento dos investimentos especulativos. O desenvolvimento do mercado interno como motor do crescimento econômico exige uma alteração radical da estrutura tributária nacional, acabando com as isenções fiscais e tributárias indiscriminadas, sem critérios claros e geradores de privilégios de poucos grupos econômicos, adotando uma tributação progressiva, tributando lucros e dividendos e canalizando estes recursos para um novo modelo de construção coletiva, priorizando o combate das desigualdades que perpassam a sociedade brasileira e contribuem para perpetuar os péssimos indicadores socioeconômicos.

Poucas nações do mundo possuem mercados internos pujantes e capacidades de alavancar os investimentos produtivos, criando espaços de crescimento impulsionados por demandas internas. O Brasil possui mais de 200 milhões de pessoas sedentos de consumo e de dignidade, precisamos construir um projeto de nação que inclua a totalidade da população, garantindo educação de qualidade para os cidadãos, serviços públicos decentes e novas perspectivas para o futuro, melhorando o ambiente institucional, respeitando os direitos humanos e valorizando o meio ambiente.

Ao analisarmos a situação brasileira, percebemos que o mercado nacional carece de dinamismo, o alto desemprego e a elevada informalidade limita o crescimento do mercado interno e criam travas evidentes de recuperação mais efetiva da economia.

Neste ambiente, percebemos o paradoxo crescente da economia nacional, de um lado, poucos grupos econômicos ganham elevadas quantias monetárias, acumulando ganhos substanciais, como demostrado recentemente pelos elevados lucros auferidos pelos bancos nacionais e, de outro lado, o crescimento visível do empobrecimento da população, com incremento de indivíduos vivendo na rua, o crescimento de pessoas sobrevivendo através dos auxílios governamentais, a degradação da renda em decorrência de uma inflação acelerada e da desesperança que fragiliza a sociedade, gerando incertezas e medos constantes.

O mercado interno pode ser um grande motor do crescimento econômico, para isso, faz-se necessário a reconstrução das estruturas sociais e políticas, reduzindo os ganhos elevados de grupos que se apoderaram dos setores governamentais e se comprazem com a perpetuação das desigualdades, auferindo grandes lucros especulativos e poucos retornos concretos para a sociedade, concentrando a renda e centralizando os poderes econômicos e políticos, evitando alterações estruturais, impedindo a adoção de um sistema tributário progressivo e garantindo seus vultosos ganhos centrado no rentismo e no imediatismo.

O crescimento e a consolidação do mercado interno podem garantir novos espaços de desenvolvimento socioeconômico, sem este ativo fundamental, o sonho do desenvolvimento se fará cada vez mais distante e nos afastará do verdadeiro conceito de civilização.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Comportamental, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 17/08/2022.

Entrevista: ‘Mesmo depois da corrupção endêmica, instituições brasileiras seguem fortes’, diz Daron Acemoglu

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Referência em economia política e autor de ‘Por que as nações fracassam’ afirma que Bolsonaro é uma ameaça à democracia já consolidada

Por Janaína Figueiredo 09 agosto de 2022 – Jornal O Globo

Autor de “Por que as nações fracassam” e referência em economia política, o economista Daron Acemoglu diz que a academia ainda não entende nem sabe explicar o surgimento do populismo de direita no mundo e que, no Brasil,
Bolsonaro é uma ameaça à democracia já consolidada.

Em seu livro “Por que as nações fracassam”, o senhor insiste na importância de se ter instituições políticas inclusivas. Esse é um elemento central quando se analisa por que alguns países dão certo e outros não?

Sim, absolutamente. Nenhum país nasce com esse tipo de instituições, e o Brasil as teve, as desenvolveu. Essa questão é mais profundamente explorada em nosso livro posterior, “O corredor estreito”, já lançado no Brasil.

Qualquer tipo de boa governança, boas instituições, devem ser equilibradas em relação a diferentes tipos de forças sociais, atores políticos. Numa sociedade controlada por produtores rurais ou industriais o poder político não terá equilíbrio em suas instituições. No Ocidente, países como Inglaterra ou França não nasceram com instituições inclusivas, foi um processo longo e doloroso, eu diria, de uns 500 anos. O movimento trabalhista foi crucial. As conquistas não foram entregues facilmente pelas elites, foi um processo movido pelas demandas dos trabalhadores organizados. Esse era o retrato do PT que tínhamos em mente, o PT original. O que aconteceu, no caso do Brasil, foi que chegaram ao poder muito rápido e, quando chegaram, as instituições que deveriam supervisar o poder não estavam fortes o suficiente. As más tentações estavam lá e, bem, foram engolidos. Nada do que digo os absolve, mas havia muitos grupos de interesse, homens de negócios e operadores políticos que estavam prontos para engoli-los e corrompê-los.

Os erros do PT explicam, em parte, o que aconteceu no Brasil após seus governos?

Absolutamente. Da mesma maneira, eu diria, em relação aos Estados Unidos, porque muitas vezes se foca no narcisismo, audácia, corrupção etc. de Trump, no Partido Republicano aceitando o domínio de Trump, e se esquece que também foi um fracasso dos democratas. Não encararam questões fundamentais sobre igualdade, pobreza, pessoas perdendo seus trabalhos, pessoas que deixaram de se sentir representadas. Acho que temos uma versão diferente da mesma coisa no Brasil. Na Presidência de Dilma Rousseff, o sistema político como um todo, não apenas o PT, esteve envolvido na corrupção. Era necessário reagir, e essa reação aconteceu. Depois da chegada do PT ao governo o Brasil ia bem, não era perfeito, havia problemas, mas o Brasil foi um dos países onde mais rapidamente foi reduzida a desigualdade social, a pobreza. Mas também é verdade que se tornaram muito poderosos muito rápido.

Em comparação com os processos vividos por países como o Reino Unido …

Sim, mas também comparado com outros países como Chile. No Chile também houve melhoras em termos sociais, o país cresceu rapidamente, houve uma transição democrática bem-sucedida, com problemas, claro, mas eu diria que foi uma aterrissagem mais lenta. Mas no Chile você não pode dizer que um único partido acumulou tanto poder.

O que aconteceu no Brasil teve muito a ver com a corrupção, mas também com o surgimento e o fortalecimento de um movimento global de direita?

Claro, está 100% relacionado. Esta é uma das peças de um quebra-cabeças que a Ciência Política Internacional ainda não conseguiu explicar bem. Se olharmos para países como a França, onde Marine Le Pen quase chegou ao poder, Hungria, Turquia, os EUA, vemos poucas coisas em comum. Pense nas Filipinas, ou na Turquia, onde as pessoas se beneficiaram, por exemplo, de acordos comerciais vistos como negativos em países como os EUA. A desigualdade é um problema nestes países, mas não da mesma maneira que é nos EUA. No Brasil, acabamos de falar sobre isso, a desigualdade foi reduzida.

Podemos incluir a Rússia…

Claro, a Rússia também. Então, o que temos em comum entre estes países? Acho que obviamente o fato de que a comunicação tradicional colapsou, as redes sociais fizeram muitas coisas ruins, estaríamos muito melhor sem Facebook, Twitter e outras. Mas não podemos culpar as redes sociais por Trump ou Bolsonaro. Não é apenas isso.

Provavelmente tem também a ver com a globalização, com tudo o que foi prometido às pessoas ao redor do mundo, e com o aumento das aspirações que não se realizaram na realidade. Vimos grandes progressos em países como Chile e Brasil, transições de regimes ditatoriais para democracias, crescimento, mas as aspirações eram maiores, muito mais foi prometido. Falta muito a ser feito, e não houve um entendimento de que este era um trabalho em processo. Ainda existem elites, existe desigualdade, falta de oportunidades para pessoas que não são de certas famílias, tudo isso causa mal-estar pelas aspirações que foram criadas. São processos que as redes sociais tornaram muito mais difíceis de serem entendidos. A comunicação, em geral, ficou mais difícil, e ficou mais difícil para os políticos comunicaram que se trata de processos e temos de trabalhar neles. Teremos eleições presidenciais na Turquia, a situação é um desastre, a economia vai mal, e todos prometem mais populismo e não transmitem a mensagem de que o país levará anos para ser reconstruído.

É interessante ouvir que a academia ainda não sabe explicar exatamente o que estamos vivendo politicamente em países como EUA e Brasil…

Não entendemos ainda o surgimento do populismo de direita, especialmente, ou temos uma reposta sobre o que fazer com o problema. Mas é verdade, também, que identificamos alguns elementos importantes. Por exemplo, temos de tornar a globalização melhor para os trabalhadores, criar redes de proteção social mais fortes, investir em tecnologia para ajudar os trabalhadores e não apenas o capital, e temos de ouvir o que todos têm a dizer. Qualquer que seja a visão das pessoas, temos de ouvi-las com respeito, mesmo que não estejamos de acordo. Algo em que o Partido Democrata dos EUA está falhando, essa é uma grande ameaça.

Na América Latina e em muitos outros países, a ameaça não é mais um golpe militar…

Sim, a ameaça é totalmente diferente. As futuras ameaças à democracia não vestem uniforme militar. Elas virão de pessoas ativas nas redes sociais, enviando mensagens como a de construir grandes países novamente.

Nas próximas eleições, os brasileiros deverão eleger entre opções radicalmente opostas. Imaginou este cenário quando escreveu “Por que as nações fracassam”?

O livro foi publicado em 2012, e escrito em 2010. Ele reflete um clima de otimismo com o mundo democrático naquele momento. Nenhum de nós, os autores, ou outros acadêmicos antecipou que, pouco depois, emergiria Donald Trump, e teríamos um grande momento de populistas de direita, movimentos autoritários, incluindo no Brasil. Para nós, o maior êxito do Partido dos Trabalhadores de Lula foi consolidar a democracia. Não era imaginável ter a volta ao poder de um regime militar. Sabíamos que a corrupção era um problema, mas, apesar disso, a democracia era estável.

O que muitas pessoas não previram foi, até a eleição de Trump, que a maior ameaça não seria militar ou algo similar, mas que viria de pessoas como Bolsonaro e Trump. Eles não são ditadores, são populistas. Como Trump, o presidente Bolsonaro causou um dano às instituições brasileiras, pelo que todos entendemos. Da mesma maneira que penso sobre Trump, um segundo governo de Bolsonaro poderia causar mais dano, porque esse tipo de líderes autoritários e personalistas corroem as instituições formais da democracia.

Em seu livro, o senhor usa como exemplo os governos de Alberto Fujimori (1990-2000) no Peru, vê similares com Trump e Bolsonaro…

Vejo, sim. Mas, ao mesmo tempo, com uma origem de esquerda, poderíamos fazer uma comparação com Hugo Chávez. Ele foi militar, mas não chegou ao poder através de um golpe militar, ele concorreu à Presidência, venceu, e terminou destruindo as instituições venezuelanas. (Nicolás) Maduro está, de fato, atuando em base ao que foi construído por Chávez. Nos EUA, Trump não ficou muito tempo no poder. Na Venezuela, Chávez sim. Voltando à eleição brasileira, algumas pessoas podem ter dúvidas sobre o PT, ou sobre Lula, mas, para mim, está muito claro que se trata de uma ameaça existencial pensar num segundo governo de Bolsonaro.

Recentes tentativas do presidente Bolsonaro de ampliar seu poder sobre a Petrobras levaram analistas a fazer uma comparação com Chávez, que se apropriou da Petróleos da Venezuela (PDVSA).

Absolutamente. Se você olhar para trás, a Venezuela tinha instituições mais fortes do que as do Brasil, uma economia mais moderna do que muitos países da América Latina. Em termos econômicos e institucionais o país estava num nível superior ao de países como Brasil e Argentina. O que aconteceu na Venezuela poderia acontecer em outros países da região. O que a Venezuela nunca viveu foi um momento como o que vive o Brasil hoje, tão decisivo de luta pela democracia.

Atualmente, a oposição venezuelana está profundamente enfraquecida e sem rumo…

Sim, o Brasil tem a chance de evitar chegar a isso. Mesmo depois da corrupção endêmica, as instituições brasileiras continuam fortes, mais fortes do que foram com Chávez ou são com Maduro.

O senhor é otimista?

Bom, temos de ser realistas, mas não quero perder meu otimismo. Não existe nada inevitável sobre democracia. A História da humanidade está cheia de erros, regimes horríveis, sofrimento, mas ainda sou otimista e acho que aprendemos certas lições dessa História. Mas haverá retrocessos. Não acredito num caminho inexorável, nem um fim da História.

África tem muito a ensinar sobre inovação, por Ronaldo Lemos.

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Arrasada por uma guerra civil, Moçambique está em pleno processo de reconquista do tempo perdido

Ronaldo Lemos, Advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro.

Folha de São Paulo, 15/08/2022

Quando se pensa no continente africano nem sempre é comum pensar em inovação. Isso é um erro. Primeiro por conta dos aspectos tradicionais e da diversidade do continente, que sempre foram propícios para experimentação e criatividade.

Recentemente, também pelo fato de haver uma vitalidade enorme apontando para inovações tecnológicas e sociais no continente. Não é por acaso que se fala cada vez mais em afrofuturismo ou de Wakanda.

Moçambique pode facilmente ilustrar esses conceitos. A história do país é cheia de desafios. A começar porque só se tornou independente em 1975. Logo após a independência mergulhou em uma guerra civil, que acabou somente em 1992.
A guerra destruiu mais de mil escolas do país, além de arrasar recursos e infraestrutura, incluindo flora e fauna. Até os elefantes de Moçambique são especialmente agressivos, traumatizados pelo conflito.

No entanto, o país hoje está em pleno processo de reconquista do tempo perdido. É um país demograficamente jovem que tem produzido iniciativas inspiradoras.

Por exemplo, há um ecossistema de inovação e criatividade em curso. A começar pela questão dos pagamentos digitais. Há mais de dez anos é possível transferir dinheiro pelo celular, sem precisar de conta bancária. Mais do que isso, é possível sacar dinheiro nos caixas eletrônicos sem usar cartão, apenas com mensagens de texto. Ou ainda, pagar qualquer compra com o celular, também sem cartão.

Enquanto o Pix no Brasi tem pouco tempo, Moçambique tem um sistema de pagamentos digitais há bem mais tempo e com mais funcionalidades que as implementadas até agora pelo Pix.

Além disso, há uma cena crescente de startups. Por exemplo, o Biscate.com. Trata-se de um site e aplicativo de celular (acessível também por mensagens de texto) que permite aos 14 milhões de trabalhadores informais do país encontrar trabalho eventual.

Em Moçambique há cerca de 1 milhão de empregos formais, insuficientes para ocupar a força de trabalho. Depois do sucesso inicial, o Biscate está agora investindo em organizar cadeias produtivas mais complexas: conectar trabalhadores com habilidades distintas, criando laços mais sólidos entre demanda e oferta.

A indústria cultural também avança. O X-Hub, por exemplo, é uma iniciativa que permite a músicos, produtores audiovisuais e outros profissionais criativos alavancarem seu trabalho, inclusive internacionalmente.

Funcionam com capacitação, internacionalização (traduzem tudo do artista para o português, inglês e francês). Oferecem estúdio de gravação e produção de vídeo. E criam uma rede capaz de profissionalizar a produção local.
Como sempre gosto de lembrar, a cultura é a porta de entrada para a economia do conhecimento. E o X-Hub aposta exatamente nisso.

Mais ao norte do país o Parque Nacional da Gorongosa criou um programa de mestrado aberto a pesquisadores do mundo todo. É uma rara junção de parque nacional, com pesquisa e programa social de apoio às comunidades do entorno. Cheguei inclusive a participar da maratona promovida pelo parque com as comunidades vizinhas, com 2.500 participantes.

Enquanto corria com esforço máximo, fui ultrapassado facilmente por um corredor local que corria de costas. Isso serviu para mim de metáfora.

No continente africano há muita criatividade, ousadia e formas diferentes de fazer as coisas. Mesmo correndo de costas, com tantos desafios, o horizonte é cada vez mais de ultrapassagens.

Já era Achar que inovação acontece só no Vale do Silício

Já é Inovação no continente africano

Já vem A 6ª temporada do Expresso Futuro, que vai mostrar inovação no continente africano (estreia em outubro)

Reindustrialização

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Ao refletirmos sobre o mundo contemporâneo, percebemos o crescimento das incertezas e das instabilidades que impactam todas as nações, gerando preocupações para as organizações, para os indivíduos e todos os grupos sociais. Neste ambiente, centrado nas volatilidades políticas, guerras crescentes, crises econômicas, possíveis pandemias, degradação do meio ambiente, desigualdades em ascensão e dependências externas crescentes, cabe a sociedade reconstruir os laços sociais e econômicos, buscando aproveitar, este momento de incertezas elevadas, reconstruirmos a estrutura industrial, reestruturando a indústria nacional e retomando seu papel no mercado internacional.

A pandemia quebrou várias cadeias produtivas que impactou fortemente os preços de inúmeros produtos comercializados, além disso, a guerra na Ucrânia e as sanções econômicas dos países ocidentais contribuíram negativamente para o crescimento da inflação, se espalhando para todas as regiões, gerando uma queda da renda dos trabalhadores, reduzindo o mercado interno e prejudicando os agentes econômicos que perceberam a queda de vendas e seus ganhos materiais, reduzindo investimentos produtivos e canalizando-os para os mercados financeiros.

Neste ambiente de escassez de insumos e dificuldades crescentes de obtenção de variados produtos que entram na confecção de outras mercadorias, os governos deveriam criar instrumentos diretos e indiretos para reconstruir os setores industriais, atuando como atores centrais, fomentando a indústria, aumentando os investimentos em capital humano, estimulando a ciência nacional, despejando recursos na pesquisa e nas universidades públicas, grande responsável pela pesquisa científica no Brasil, além de criarmos instituições sólidas e consistentes para as transformações que estão moldando a sociedade contemporânea.

A indústria brasileira foi construída no século passado e teve alguma relevância mundial, alcançando mais de 30% do produto interno bruto (PIB) e, atualmente, não passa de 10%. Neste cenário, percebemos a fragilização da indústria nacional, setor dotado de baixa complexidade econômica e, desta forma, estamos caminhando a passos largos para nos tornarmos um país produtor de produtos primários de baixo valor agregado e importador de tecnologias, de máquinas e de equipamentos industrializados de alta sofisticação, gerando pouco emprego qualificado e uma grande quantidade de trabalhadores precarizados, transformando engenheiros, advogados e demais profissionais capacitados em motoristas de aplicativos, num mercado altamente competitivo, com cargas elevadas de trabalho, sem proteção social e salários degradantes.

Um projeto integrado exige que todos os setores da sociedade se empenhem na reindustrialização da economia nacional, utilizando os bancos públicos de fomento para investimentos de longo prazo, garantindo recursos financeiros com taxas de juros atrativas, fomentando a integração entre empresas, fortalecendo os centros de pesquisas e universidades, protegendo os setores produtivos, exigindo retornos constantes e transparências, desenvolvendo a governança organizacional, conquistando mercados internacionais, priorizando seus mercados internos, os investimentos nacionais e garantindo a reconstrução da soberania nacional que, na atualidade, percebemos que essa autonomia está fortemente ameaçada, sem insumos, sem lideranças e dependendo de nações que priorizam seus interesses imediatos.

O projeto de reindustrialização pode contribuir ativamente para que produzamos internamente produtos que importamos, diminuindo a dependência externa, gerando empregos de qualidade e estimulando a educação, a ciência e a tecnologia que sempre foram negligenciadas e percebemos quanto estamos atrasados no cenário científico e tecnológico do mundo.

Embora percebamos que estamos num momento único para a sociedade nacional, a reindustrialização poderia abrir novos horizontes para a sociedade brasileira, retomando as esperanças da população, garantindo a reconstrução de setores industriais que perderam relevância nas décadas anteriores, investindo em capital humano e abrindo espaços para resolvermos, por completo, as dívidas históricas acumuladas pela nação, garantindo empregos decentes, salários dignos, saúde de qualidade e condições dignas para todos os brasileiros.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Brasileira, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 10/08/2022.

O declínio do Ocidente Por Paulo Nogueira Batista Jr

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Por PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.*

A Terra é Redonda – 08/08/2022

O Ocidente não quer a emergência dos outros povos, mas esta virá de qualquer maneira, quer se queira quer não
Proponho, querido e paciente leitor, que conversemos hoje sobre um tema vasto e complexo que adquiriu urgência nos anos recentes, em especial em 2022. Refiro-me, como indica o título deste artigo, ao declínio do Ocidente. Trata-se de uma questão intrincada, que mobiliza afetos, preconceitos, interesses. E é por isso mesmo que ela se mostra fascinante.

O leitor, como eu, certamente gosta de desafios e não quer se restringir a assuntos batidos, onde reina certo consenso. Vamos em frente então.

Primeira pergunta: é fato ou mito essa decadência ocidental? Note-se que ela já foi proclamada muitas vezes. O assunto não deixa de ser batido, portanto. A própria expressão “declínio do Ocidente” foi tema e título de um livro de Oswald Spengler, publicado há pouco mais de cem anos, em 1918.

O século XX não confirmou a previsão de Spengler. O Ocidente se deu até ao luxo de promover duas guerras civis, de escala mundial ou quase, conhecidas europocentricamente como Primeira e Segunda Guerras Mundiais. Foram guerras sem precedentes, sangrentas e custosas. E nem por isso o Ocidente perdeu a hegemonia planetária. Sobrava poder. A verdade é que a resiliência ocidental foi maior do que imaginavam detratores e adversários.

As formas de dominação se modificaram, mas o século XX terminou sem que o domínio fosse de fato superado. O eixo do poder passou de um lado para o outro do Atlântico Norte, mas se manteve em mãos ocidentais. Até aumentou na reta final do século, com a surpreendente desintegração do bloco soviético e até mesmo da própria União Soviética.

Foram muitos os livros e ensaios publicados na esteira de Spengler ao longo do século passado. A frustração dessas previsões de decadência levou os ideólogos do Ocidente a se referir depreciativamente a uma suposta escola “declinista”, mais motivada por ideologias ou desejos do que por avaliações objetivas. E havia, claro, um elemento fortíssimo de desejo nessas previsões.

Afinal, leitor, a hegemonia de europeus e seus descendentes norte-americanos vinha sendo duradoura e nada benevolente, para dizer o mínimo. Suscitou assim antipatia profunda e generalizada nos povos colonizados ou dominados, com ecos nos segmentos humanistas das próprias sociedades mais desenvolvidas. Humano, humano demais que os tropeços do Ocidente sejam recebidos com satisfação urbi et orbi.

Nada é para sempre. E o domínio do Ocidente sobre o resto do mundo já leva mais de duzentos anos. Começou, como se sabe, com a revolução industrial iniciada na Inglaterra no final do século XVIII. Consolidou-se no século XIX e persistiu, como mencionei, ao longo do século XX. Teve seu Indian summer depois do colapso soviético.

Agora parece claro, entretanto, que o século XXI não será mais um século de domínio inconteste do Ocidente. Ao contrário, os sinais de declínio estão por toda parte. Em termos demográficos, econômicos, culturais, políticos. Os “declinistas” terão enfim razão? Há muitas indicações de que agora sim.

Cuidado, entretanto. De um modo geral, o declínio ocidental é relativo, não absoluto. Em algumas áreas, o declínio pode, sim, ser absoluto, por exemplo na cultural, onde o retrocesso parece acentuado. Mas o que ocorre de uma maneira geral é perda de peso relativo vis-à-vis do resto do mundo, em especial da Ásia emergente, a China à frente. O declínio é mais acentuado para a Europa, mas se sente também nos Estados Unidos.

A perda relativa não deixa de ser sentida como real, dolorosamente real. Afinal, o ser humano é tão deficiente, constituído de tão pobre e imperfeita maneira que chega a ver na ascensão do outro uma ameaça, um prejuízo para si.

A mera ascensão pacífica já desencadeia os piores sentimentos e receios. No caso dos europeus e norte-americanos esse lamentável traço humano se vê agravado pelo hábito arraigado de dois séculos de predomínio global.

Os brancos dos dois lados do Atlântico Norte não se acostumam, simplesmente não se acostumam a ver povos antes dominados – asiáticos, latino-americanos, africanos – querendo emergir, ser ouvidos e participar das decisões internacionais. Ainda que essas pretensões dos emergentes sejam modestas, cautelosas, até tímidas às vezes.

Habituados a ditar, ensinar, pregar, os brancos não conseguem dialogar e negociar com o que para eles é uma massa ignara e até repugnante.

Mas a emergência dos outros povos vem de qualquer maneira, quer se queira quer não. Vai acontecendo em termos populacionais, econômicos e políticos. Aos ocidentais resta conformar-se ou espernear. Até agora preferiram espernear. Mais do que espernear, infelizmente. Reagem com violência e provocações à inevitável formação de um mundo multipolar. Em última análise, são essas reações que explicam a guerra na Ucrânia e as tensões crescentes com a China. A mais recente provocação foi a visita de Nancy Pelosi a Taiwan.

A que dará lugar o fim da hegemonia do Ocidente? A julgar pelas tendências recentes, o que virá não é a substituição dos Estados Unidos pela China, ou do Atlântico Norte pela Ásia. A China dificilmente terá no mundo a hegemonia que a Europa e os Estados Unidos já tiveram um dia. Por motivos históricos e intrigas ocidentais, os chineses não comandam a confiança da maioria dos seus vizinhos. Japão, Índia, Vietnã, por exemplo, têm diferenças importantes com a China e não aceitam a sua hegemonia. Os chineses dificilmente conseguirão estabelecer uma zona de influência sólida, mesmo no Leste da Ásia, o que dizer em outras regiões. Uma observação semelhante pode se fazer sobre a Rússia e a Índia, que têm de qualquer maneira peso bem inferior ao da China.

O cenário que vai se configurando desde o início deste século é de um mundo multipolar, fragmentado, sem governança e regras aceitas globalmente. As entidades globais existentes, ONU, FMI, Banco Mundial, OMC etc., continuarão a ter sua importância, mas com influência declinante, tanto mais que os ocidentais se recusam a reformá-las para refletir plenamente a realidade do século XXI. No lugar de ou em substituição parcial a essas instituições multilaterais de alcance mundial ou quase mundial, surgiram e surgirão instituições novas, criadas por países emergentes em busca de mais espaço no plano internacional.

Essa multipolarização do mundo é interessante para os países em desenvolvimento, pois abre oportunidades e pode facilitar a consolidação da sua autonomia nacional. Por outro lado, a fragmentação do mundo multipolar também é muito perigosa, como estamos vendo. Com esses perigos seremos todos obrigados a lidar, sem nostalgias inúteis por situações de concentração de poder que não mais voltarão.

E o Brasil nisso tudo? Bem. Superadas nossas desventuras recentes, temos muito a fazer, por nós e por outros países. Ao nosso imenso Brasil cabe, acredito, um papel especial: trazer ao mundo uma palavra de solidariedade, cooperação, paz e amor.

Mas isso já é assunto para outras e mais ousadas divagações especulativas.

*Paulo Nogueira Batista Jr. é titular da cátedra Celso Furtado do Colégio de Altos Estudos da UFRJ. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai. Autor, entre outros livros, de O Brasil não cabe no quintal de ninguém (LeYa).
Versão ampliada de artigo publicado na revista Carta capital, em 5 de agosto de 2022.

Cotas podem ajudar a resgatar o mérito, enquanto excluem os medíocres, por M. França

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Ações afirmativas são apenas uma forma emergencial de tentar diminuir a perda de talentos

Michael França, Ciclista, doutor em teoria econômica pela Universidade de São Paulo; foi pesquisador visitante na Universidade Columbia e é pesquisador do Insper.

Folha de São Paulo, 09/08/2022

A história da humanidade é marcada pelo domínio de alguns grupos sobre os demais, e tal fato assumiu diferentes configurações ao longo do tempo. Em um passado não muito distante, a aristocracia representava um tipo de organização sociopolítica em que a origem familiar ditava o modo de vida das pessoas. Uma pequena parcela da população herdava automaticamente um conjunto de privilégios simplesmente pelo fato de ter nascido em determinada família.

Depois de algumas revoluções, em vários cantos do mundo, os nobres foram retirados de suas cadeiras cativas. Instalou-se gradativamente o ideal de que a ascensão social deveria se dar por meio de esforço e talento. Essa concepção permitiu ampliar as oportunidades de progresso para um conjunto maior da população, e diversos avanços socioeconômicos foram obtidos. Porém, ao mesmo tempo, milhares ficaram para trás.

Os bem-sucedidos de uma geração começaram a transmitir significativas vantagens para seus descendentes. A origem familiar passou, novamente, a ter um amplo papel na determinação dos resultados alcançados pelos indivíduos. Mas, diferentemente do passado, em que era comum pessoas despreparadas assumirem cargos relevantes devido apenas ao privilégio hereditário, atualmente as famílias com melhores condições financeiras investem pesadamente na formação de seus filhos.

Isso não quer dizer que todos se tornarão pessoas brilhantes ou, ao menos, competentes. O talento não surge espontaneamente, mas costuma ser reflexo de uma combinação bem orquestrada entre os esforços individuais e os investimentos corretos realizados pela família e sociedade.

Nesse âmbito, sabe-se que a falta de empenho não tem classe social. Entretanto, mesmo nos casos dos filhos da elite que não se esforçam, os altos investimento realizados por seus pais ajudarão no desenvolvimento de um currículo com credenciais para o mercado de trabalho. Além disso, em certas situações, a rede de contatos e o patrimônio herdado ou construído por seus pais tendem a permitir que aqueles filhos medianos mantenham o status familiar.

Esse cenário contribui para alimentar a profunda crise de legitimidade em relação ao mérito. As posições de maior prestígio social são marcadas pela alta dominância daqueles que nasceram em famílias ricas. Grande parte da disputa por esses espaços acaba se limitando aos filhos da elite, enquanto ao resto da população cabe participar de uma competição muito desigual com aqueles que herdaram consideráveis vantagens.

Nesse contexto, as ações afirmativas, sendo as cotas uma delas, podem ser pensadas como uma forma de procurar colocar para competir indivíduos com trajetórias de vida parecidas e, assim, contribuir para que os “vencedores” tenham maior legitimidade em suas conquistas. Dependendo de como esse tipo de intervenção é desenhada, também representa um meio de selecionar os melhores entre aqueles que tiveram investimentos semelhantes e, assim, diminuir a enorme perda de talentos em classes sociais desfavorecidas.

As ações afirmativas tendem a ampliar as chances de as minorias atingirem determinado objetivo. Isso pode se refletir em uma mudança nas aspirações sociais daqueles que foram historicamente excluídos e, consequentemente, fazer com que um conjunto maior dos desfavorecidos se empenhe ainda mais.

No caso dos favorecidos, aumenta-se a pressão por maior esforço, visto que agora os medíocres podem ficar de fora. As cotas nas universidades são um exemplo disso. Caso um filho da elite não tenha sido bem-sucedido no vestibular competindo com aqueles que tiveram um conjunto de investimento semelhante, talvez ele não tenha se esforçado o suficiente ou, simplesmente, não seja talentoso.

A formação de capital humano para a inovação no Brasil, por Flávio Bartman

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Orientada a fornecer diplomas, universidade precisa se integrar à economia

Flavio Bartmann, Engenheiro mecânico (ITA) e doutor pela Universidade de Princeton, é professor na Universidade Columbia e na NYU Stern School of Business

Folha de São Paulo, 09/08/2022

Uma posição popular nos meios acadêmicos é a de que uma educação superior de altíssima qualidade seria uma condição “sine qua non” para o desenvolvimento; sem um ensino universitário da mais alta qualidade, voltado para ciência e inovação, o país continuaria na sua atual situação. O exemplo seria o papel importante que as grandes universidades nos Estados Unidos e na Europa têm na inovação.

Essa é uma leitura errada da evidência histórica. Os Estados Unidos já eram, em 1900, a maior potência industrial, enquanto o papel principal de Harvard, Princeton e Yale era dar um verniz cultural para os filhos da classe privilegiada. Quase todos os avanços científicos e tecnológicos importantes da época, relatividade e mecânica quântica e o desenvolvimento do motor a jato, por exemplo, foram realizados na Europa. As universidades americanas só se tornaram as melhores do mundo depois da guerra, após se beneficiarem enormemente dos grandes projetos tecnológicos realizados a partir de 1940, do Projeto Manhattan, da corrida espacial, da internet e outros, e do grande influxo de cientistas e intelectuais vindos da Europa.

Um processo semelhante ocorre na China, que se tornou uma superpotência econômica, mas que segue enviando centenas de milhares de estudantes aos EUA, à Europa e à Austrália, reconhecendo que suas universidades ainda não estão, em geral, no mesmo nível.

Esses exemplos não são, é claro, evidência de que as universidades devam simplesmente reagir às demandas do sistema produtivo. Como centros de investigação e pesquisa, as universidades, energizadas por aquelas demandas, irão adiante, abrirão novos caminhos. O sistema produtivo nunca demandou o laser, a energia nuclear ou os relógios atômicos que permitiram o desenvolvimento do GPS.

O que é necessário para inovação, portanto, é um processo de realimentação intenso, entre a economia e o governo, por um lado, e a universidade por outro, nas duas direções. Exemplos disso estão por toda a parte; um, particularmente importante, tem a ver com o desenvolvimento dos computadores digitais. A ideia foi uma consequência do trabalho de Alan Turing em lógica na década de 1930; o Eniac, o primeiro computador digital programável, foi usado para o cálculo das trajetórias de cargas de artilharia. Outras aplicações da computação digital precipitaram avanços tecnológicos importantes, como o transistor e os circuitos impressos, que permitiram uma grande melhoria na performance dos computadores, abrindo muitas oportunidades para aplicações comerciais.

Foi exatamente para facilitar esse processo que Vannevar Bush, no seu extraordinário relatório “Science, the Endless Frontier”, escrito a pedido de Franklin Roosevelt em 1944-45, propôs uma estrutura de pesquisa e desenvolvimento, ancorada nas universidades e nos laboratórios nacionais, com o objetivo de preservar a superioridade científica e tecnológica dos EUA, assegurando a sua hegemonia geopolítica. A implementação dessa proposta como uma política nacional levou à criação da National Science Foundation, em 1949, de 18 laboratórios nacionais e de um rico sistema universitário integrado à dinâmica socioeconômica norte-americana.

Essa integração da universidade no processo econômico não ocorreu no Brasil, onde a universidade ainda está culturalmente orientada para oferecer diplomas, credenciais, não para oferecer uma formação que ajude a apontar soluções para os complexos problemas da sociedade contemporânea.

O caminho para um Brasil mais próspero, justo, democrático e ambientalmente saudável requer um investimento acelerado em infraestrutura e, simultaneamente, a expansão e valorização de um ensino e pesquisa de alta qualidade nas nossas universidades. Precisamos retomar o crescimento econômico, com uma série de projetos e empreendimentos, envolvendo governos e a iniciativa privada, projetos que iriam se beneficiar muito da participação de uma universidade moderna.

Qual legado escravocrata cabe aos brancos?

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‘O Pacto da Branquitude’ explica como a escravidão é associada às vantagens da população branca

ANELISE GONÇALVES – FOLHA DE SÃO PAULO, 06/08/2022

A história da sociedade brasileira é inseparável da escravidão. Muito se fala sobre as consequências sofridas pela população negra, mas qual legado cabe aos brancos? Isto é o que Cida Bento busca responder em seu livro “O Pacto da Branquitude”.

Doutora em psicologia pela USP (Universidade de São Paulo) e colunista da Folha, a autora faz um apanhado do conhecimento adquirido ao longo de suas pesquisas no mestrado e no doutorado, de suas experiências profissionais na área de recursos humanos e de suas experiências pessoais.

Ela ressalta, nos dez capítulos, algo nítido que parece ser esquecido pelo Brasil: a escravidão e o racismo beneficiaram e continuam beneficiando pessoas brancas nas mais distintas esferas sociais.

Para construir seu argumento, Cida mobiliza em primeiro lugar a história. A autora afirma que antes do estabelecimento das rotas de comércio de escravos no contexto da colonização europeia, tanto a África quanto a Ásia eram regiões relativamente ricas e produtivas —diferentemente da Europa.

A chegada dos europeus e a dinâmica comercial estabelecida teve um impacto negativo nesses continentes, não só pela extração de recursos, mas também pela destruição das estruturas econômicas e sociais que existiam.

Com o trabalho duro sendo transferido para as colônias, países europeus experimentavam um período de desenvolvimento econômico. Isso beneficiava não somente as famílias ricas, que participavam diretamente da extração de riquezas, mas também as classes mais pobres (e brancas).

Segundo Cida, a noção de branquitude nasceu justamente nesse processo de colonização europeu. Conceitualmente, diz respeito à ideia de que a raça branca seria o padrão, e tudo o que foge dela seria o diferente, o “outro” do eu branco supostamente universal.

O pacto da branquitude, por sua vez, consiste nos acordos feitos para manter pessoas brancas em situação de privilégio e, ao mesmo tempo, higienizadas de todo o processo histórico e violento que o construiu.
Essa higienização se daria por justificar como uma questão de mérito os privilégios que pessoas brancas têm hoje nos âmbitos econômico, político e social. E não como fruto de centenas de anos de exploração de negros escravizados. Um exemplo é que a maioria de cargos de liderança são ocupados por pessoas brancas.

No caso do Brasil, país que sustenta o vergonhoso título de ser o que mais tempo permitiu a escravidão, as consequências desse processo se mesclam a praticamente todas as clivagens sociais, sejam elas de gênero ou classe.

Um exemplo dessa herança maldita é o trabalho doméstico, um resquício da dinâmica colonial que ainda funciona como sustento fundamental sobretudo para mulheres negras e pobres. O racismo se manifesta não apenas na cor e na renda, mas também nas práticas que envolvem a relação trabalhadora-empregador, ainda permeadas por práticas de submissão, desprezo e mesmo assédio.

Segundo um levantamento do Made/USP (Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades, da Universidade de São Paulo), os 705 mil homens brancos que fazem parte do 1% mais ricos do país têm renda maior que a de todas as 33 milhões de mulheres negras do Brasil.

Em março deste ano, a Folha mostrou que mudanças trabalhistas e culturais estão colocando em xeque a existência de cômodos específicos para empregados domésticos. No entanto, a autora afirma que a classe média e alta desaprova a formalização desse tipo de serviço e que ainda há muito a ser feito.

O livro trata sobre como os brancos pobres foram beneficiados pela escravidão no passado e nos dias atuais. Por mais que não participassem diretamente da extração das riquezas das colônias, eram beneficiados pelo desenvolvimento econômico que vinha delas. Além disso, o trabalho pesado era transferido para as colônias.

Os brancos pobres hoje seriam beneficiados pela narrativa da branquitude, que os favorece por serem mais propícios a serem escolhidos em entrevistas de emprego, por exemplo, por sua aparência.

Já a população negra não tem como ignorar a violência que permeia esse pacto. Cida relata no livro como sofreu, assim como seu pai, sua mãe e os sete irmãos, inúmeros episódios de racismo em seu cotidiano, seja na escola e no trabalho.

Ela conta que, quando trabalhava como recrutadora, selecionou uma vez duas mulheres negras para uma vaga de secretária. O cliente que oferecia a vaga respondeu com uma bronca.

Esses casos vão além da discriminação direta, e assumem também a forma do desconforto branco com a presença de negros com status hierárquico semelhante no ambiente corporativo. Aqui, a branquitude se revela para além do preconceito: ela é também uma forma de assegurar a soberania de um grupo, o branco. Eis o pacto.

Essa ideia é levada ao extremo —mas não ao absurdo, tendo em vista sua materialidade cotidiana— no longa “Medida Provisória”, primeiro filme dirigido por Lázaro Ramos. Na obra, o desconforto com a presença de negros é tão grande que o governo cria o projeto “Resgate-se Já”, em que paga esta parte da população para voltar para a África.

Ao mesclar as experiências pessoais com a argumentação histórica, Cida tira o racismo do campo teórico ou pessoal e trata dele como processo —em outras palavras, engrenagem estrutural que organiza a sociedade e molda individualidades.

“Pacto da Branquitude” é incisivo. Parte de uma premissa que parece ser esquecida, devolvendo a cor aos brancos e apontando as vantagens e desvantagens de cada parcela da população.

O livro ousa ao mostrar uma face brasileira que não queremos e não gostamos de ver, mas que é essencial caso queiramos avançar como sociedade.

O PACTO DA BRANQUITUDE
Autor Cida Bento; Editora Companhia das Letras; Preço R$ 39,90

Dificuldades fiscais

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Vivemos momentos de grandes desafios para a sociedade brasileira, recuperação lenta na economia e no sistema produtivo, instabilidades políticas e discussões eleitorais desnecessárias, além de grandes inquietações sociais, com crescente número de pessoas vivendo nas ruas, com violência crescente e sem esperanças.

Neste cenário, os analistas se mostram preocupados com as questões fiscais do Estado, as alterações intempestivas do arcabouço fiscal, gastos preocupantes, investimentos sem planejamento e orçamentos secretos e sem transparência.

Além deste cenário, destacamos os custos elevados dos preços, a inflação corrói o poder de compra da população, contribuindo para a concentração da renda em prol dos donos do capital em detrimento dos trabalhadores, neste ambiente, muitos se assustam com as dificuldades e as limitações do crescimento econômico, comemorando espasmos de melhoras num ambiente de incertezas e instabilidades.

No front externo, a possível recessão nos Estados Unidos tende a gerar preocupações para a economia brasileira, levando as autoridades monetárias norte-americanas a um incremento nas taxas de juros, atraindo recursos externos e desvalorizando o câmbio e gerando pressões crescentes nos preços que, posteriormente, pode culminar em mais juros internos, crédito mais caro, menos recursos disponíveis e uma lenta recuperação da estrutura econômica e produtiva, com graves impactos sociais.

Depois da guerra entre a Ucrânia e a Rússia e da visão belicista dos “líderes” ocidentais, os preços dos alimentos, dos combustíveis e da energia explodiram no mercado internacional, gerando desequilíbrios estruturais que impactam fortemente sobre para todas as nações. Neste cenário, os grandes prejudicados são os grupos mais fragilizados, com retração da renda, diminuição do consumo e aumento do desemprego.

Neste ambiente, os governos buscam novas formas de reduzir os impactos negativos para suas comunidades, buscando formas de diminuir os preços dos alimentos e dos combustíveis, usando a criatividade e a ousadia como forma de políticas públicas, reduzindo impostos e aumentando os subsídios, na maioria das vezes são medidas temporárias, mas geram desequilíbrios fiscais.

Neste momento de grandes desafios, como o que estamos vivendo, as sociedades precisam reconstruir os instrumentos fiscais e monetários para reduzir as desigualdades construídas desde os primórdios desta nação. Estas medidas não podem ser vistas como punitivas com relação a grupos específicos da sociedade, muito pelo contrário, devem ser vistas como instrumentos de redução dos desequilíbrios econômicos e das desigualdades sociais que perpassam a sociedade e tendem a levar o país a conflitos fratricidas que se mostram mais claramente nas violências contemporâneas, como as chacinas, os discursos de ódios, os arbítrios, as milícias e o crescimento de grupos armados, que nascem e se desenvolvem a partir da omissão e da incompetência do Estado.

As políticas fiscais devem ser vistas como um instrumento de racionalização das estruturas sociais e econômicas, tributando progressivamente os agentes econômicos e utilizando os recursos para estimular a melhora econômica, fomentando os investimentos produtivos, aperfeiçoando e diversificando a sociedade, garantindo empregos de qualidade, capacitando e qualificando a mão de obra, consolidando melhorias sociais substanciais para a comunidade, fortalecendo o mercado interno e fomentando o desenvolvimento econômico.

O desenvolvimento econômico prescinde de um mercado interno sólido e consistente, salários dignos, oportunidade para todos os setores, emprego qualificado e a busca crescente da tão sonhada cidadania. A caminhada é árdua e atribulada, mas passa pela redução dos spreads bancários, redução do custo do dinheiro, taxação pesada dos ganhos financeiros, controle do câmbio, renda universal e consolidação da agricultura familiar. Ao postergarmos estas medidas, os fantasmas do subdesenvolvimento e da desigualdade estarão sempre nos acompanhando na nossa caminhada pelo desenvolvimento.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Comportamental, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 03/08/2022.

Falhamos como país, porque suportamos o insuportável, por Naná De Luca

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Tudo de mais brilhante no legado das gerações anteriores à minha parece estar se desmanchando no ar

NANÁ DE LUCA – FOLHA DE SÃO PAULO, 02/08/2022

SÃO PAULO

Ando ponderando se o poeta Arthur Rimbaud estava correto quando escreveu que o insuportável é saber que nada, de fato, é insuportável. Será mesmo? O quão insuportável o insuportável precisa ser para que, enfim, o impulso de seguir em frente não se justifique mais?

No Brasil de sempre, mas em especial neste dos últimos anos, a realidade impõe o impossível como regra. É o céu de São Paulo escurecido às 15h pelo fogo na Amazônia, o que parece ter sido há uma vida, mas são três anos. É Genivaldo asfixiado, porque dirigia sem capacete. É o refrão paralisante: “E daí? Quão insuportável o insuportável deve ser e para quantos? Para quem? Em quantos lugares e horários diferentes?

Essas perguntas fixaram-se em mim, em definitivo, no dia 21 de setembro de 2019. Era um domingo e eu era o plantonista das 7h da manhã. Ágatha Felix, 8, foi baleada nas costas, na Penha, zona Norte do Rio, e morreu na madrugada de sábado. Nunca esqueci aquela manhã, muito menos esqueci Ágatha. Nunca esqueci seu avô em prantos, a fantasia de Mulher Maravilha, a versão da Polícia Militar incompatível com o que diziam as testemunhas.

Tudo era insuportável. Mas suportei, porque suportamos. Como neste país se suporta, por hábito histórico-macabro, a morte de crianças com balas nas costas ou na cabeça.

Como se suporta as mortes de 678.578 mil pessoas em uma pandemia, quando era claro o caminho para que este número fosse tão menor e, o cemitério, tão mais vazio. Como se suporta que 33 milhões dos nossos passem fome todos os dias. Como se suporta o assassinato de Bruno Pereira e Dom Phillips e todas as omissões institucionais. Como se suporta um governo que trabalha ativamente para destruir tudo de melhor que construímos nas últimas três décadas, pautados no espírito, ou ao menos na intenção, de sermos hoje melhores do que nosso passado permitiu. Este esforço de fundar, enfim, um Brasil que, se não um lugar fantástico, ao menos garanta dignidade a todos. O mínimo.

Tudo de mais brilhante no legado das gerações anteriores à minha, sinto, parece estar se desmanchando no ar, escorrendo entre os dedos. Falhamos —nossos avós, nossos pais, mães e nós mesmos. Porque suportamos esta sub-realidade, que para ficar ruim deve melhorar muito.

Aceitamos que generais de terno e gravata brinquem de governar nossa democracia. Nós os tememos, como nossa história bem dita que devemos temer. Mas basta. Chega um tempo, neste segundo semestre de 2022, quando não podemos mais aceitar viver com um longo passado pela frente. Não deixemos para nossos filhos e netos a responsabilidade de acertar as contas com o Brasil. Nem de suportar o insuportável.

‘Nova classe C’ perdeu terreno e ficou para trás, diz Marcelo Neri

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Segundo o diretor da FGV Social, os fatores de ascensão desse público nos anos 2000 foram revertidos

Thiago Bethônico – Folha de São Paulo, 02/08/2022

Um dos principais especialistas no fenômeno que ficou conhecido como ascensão da classe C, o economista Marcelo Neri diz que a classe média de hoje tem um novo perfil em relação aos governos petistas: ela é mais sofrida.

Segundo o diretor da FGV Social, o quadro socioeconômico que alavancou esse público nos anos 2000 era composto por três fatores principais: avanço da economia; crescimento da renda acima do PIB (Produto Interno Bruto) e redução contínua da desigualdade.

No entanto, todos esses efeitos duraram até 2014 e foram revertidos. “A desigualdade aumentou, o crescimento caiu e invertemos essa equação”, diz Neri, em entrevista à Folha.

Na visão dele, o conceito de classe média atualmente está mais próximo da classe média tradicional, que ascendeu no início da década de 1970. Nesse período, que ficou conhecido como milagre econômico, o Brasil teve altas taxas de crescimento, mas com uma escalada da desigualdade.

“Talvez tenhamos perdido aquele elemento de nova classe média, dos primeiros [a acessar certos itens de consumo]. Eu diria que hoje é uma tendência mais de conservadorismo, uma apologia da época do milagre econômico”, afirma.

Para Neri, outras mudanças de perfil também são perceptíveis. A carteira de trabalho, que ele considera o grande símbolo da classe média dos governos Lula, já não se encaixa mais no contexto de hoje.

“Acho que esse é um tempo que já foi. Estamos mais época de empreendedorismo, uberização, não é mais a carteira assinada.”

Existe hoje uma nova classe média no Brasil, um novo perfil? Temos falado muito de polarização, muitas vezes no sentido político, mas polarização é o oposto de classe média. Quer dizer, os extremos estão crescendo em detrimento do meio, que é por definição onde está a classe média, seja a nova classe média —mais ligada a uma classe C— ou uma classe média tradicional.

Mas, obviamente, existe esse grupo. Houve um episódio em 2020, auge do auxílio emergencial, em que vimos pessoas das classes A e B caindo, por conta do isolamento social, e pessoas das classes D e E subindo. Mas foi algo que durou pouco.

Talvez vivamos um processo parecido com essa concessão do auxílio de R$ 600, mas nada que seja muito permanente. Essa é a preocupação.

O que surpreendeu daquele movimento da nova classe média [dos governos petistas] é que persistiu durante um tempo. Sempre teve muita instabilidade, mas durou do fim da recessão de 2003 até 2014. Foi um processo de crescimento contínuo e baseado em três partes.

Uma parte é o próprio crescimento da economia, crescimento do PIB, na época do boom de commodities. Outro foi um crescimento da renda das pessoas acima do crescimento do PIB. Além disso, uma redução contínua da desigualdade.

Mas todos os efeitos duraram até 2014 e foram revertidos. A desigualdade aumentou, o crescimento caiu e invertemos essa equação. A renda das pessoas passou a crescer menos que o PIB. Então, existe essa classe média mas, nos últimos anos, ela é sofrida.

O que muda no perfil de consumo dessa classe média mais sofrida? Existem dois tipos de classe média. Uma é a classe média americana, o padrão europeu, que figura no imaginário das pessoas mundo afora. Aquela que tinha dois carros, dois cachorros e dois filhos. Mas esse é um padrão de países ricos.

Há também a chamada classe C, que é mais associada à nova classe média, que é uma classe média brasileira e num certo sentido global, porque a distribuição de renda brasileira —a partir da qual nós calculamos a classe média— é surpreendentemente próxima da média global.

Agora, de 2015 em diante, o Brasil teve um desempenho bem pior. Certamente não se comportou como um país emergente, então perdemos terreno.

Houve esse achatamento, em função da grande recessão. O aumento da desigualdade na renda do trabalho foi contínuo por 17 trimestres consecutivos —um recorde de permanência.

Hoje em dia, quando se fala em classe média, talvez estejamos falando mais de uma classe média tradicional e menos dessa classe C.

A classe C hoje é mais enxuta do que era nos anos 2000 e 2010? Sim. Isso é um ponto importante. Não é que desfizemos totalmente os ganhos que existiram. Basicamente vivemos uma década perdida. Se olharmos, por exemplo, a desigualdade de renda do trabalho —que é motor importante de mudanças, por ser mais estrutural— nós estamos na mesma média de renda que tínhamos em 2012.

Tem se falado agora em redução de desemprego, aumento de carteiras assinadas —que antigamente era o símbolo dessa nova classe média. Isso de fato está acontecendo e são notícias boas.

Mas, quando olhamos a média de renda per capita do trabalho, que é uma espécie de resumo da ópera trabalhista, nós não só estamos num nível tão ruim quanto 2012, como não estamos tendo um bom desempenho nos últimos trimestres.
O efeito da inflação tem sido mais forte. As pessoas têm perdido rendimento, tem havido uma certa precarização ao mesmo tempo em que há esse ganho de ocupação.

O senhor falou sobre uma classe B que caiu para classe C durante a pandemia. Até onde isso é relevante na comparação com aquela nova classe média dos anos 2000? Aquilo foi um processo contínuo. [Naquele período] A classe média tradicional, passando pela B e chegando na A, vinha crescendo. Talvez tenha sido a que, percentualmente, cresceu mais.

Apesar da desigualdade ter diminuído, foi um período de tendências contínuas, mudanças sobre mudanças. Foi um ciclo virtuoso.

No processo de queda da classe B, temos segmentos mais ligados ao setor externo, como ramo de commodities. Por exemplo, nós fizemos estudo sobre alta renda, e se destacou o município de Nova Lima —na periferia de Belo Horizonte— que é a capital da mineração. Onde há a maior concentração entre os municípios dessa classe alta.

Então é importante distinguir. Essa classe alta perdeu, muito por causa do isolamento social. Também não teve auxílio emergencial, que ajudou as classes mais baixas.
Esse episódio acho que é interessante de recuperar, pois podemos estar vivendo algo semelhante hoje, com esse auxílio de R$ 600.

Olhando as estimativas de pobreza, logo no começo da pandemia havia 64,5 milhões de pobres. No auge do auxílio caiu para 42 milhões. Esses 23 milhões de pessoas subiram. No entanto, seis meses depois, em janeiro de 2021, voltamos a ter 67 milhões de pobres. Foi uma bate-volta.

No fundo, a classe C cresceu por duas forças na pandemia. De um lado, a perda do topo, porque a classe alta também perdeu. E por um impulso na base, em função do auxílio emergencial.

O senhor diria que a parcela de pessoas que caíram da classe B para a classe C é hoje maior do que durante os governos do PT? Foi algo muito concentrado. Isso também depende do lugar. O crescimento da nova classe média foi muito forte no Nordeste, onde havia uma velha pobreza que virou nova classe média em alguma medida.

Pernambucano foi onde a pobreza mais aumentou nos últimos dois anos. Cresceu 8,14 pontos percentuais. Se olharmos no governo Lula, foram 17 pontos percentuais de queda de pobreza. De pessoas que subiram. Se considerarmos 2014, em vez de 2010, a queda foi de 25 pontos percentuais.

Nos oito anos de governo Fernando Henrique Cardoso, a pobreza caiu 8 pontos percentuais —que é mais ou menos o que perdemos agora na pandemia.

O que fez toda a diferença foi o fato de ser um período longo, de crescimento sobre crescimento. Os três fatores macro por trás disso são: crescimento do PIB, crescimento da renda acima do PIB e, no topo disso, uma redução de desigualdade contínua, que durou 13, 14 anos seguidos. Vinha antes do governo Lula e continuou até 2014.

Em geral, na maioria dos países emergentes, o crescimento era positivo, mas a desigualdade subia. No caso brasileiro a desigualdade caiu, como caiu na América Latina. Só que a renda média das pessoas aqui no Brasil subiu acima do PIB. Isso levou a um crescimento do potencial de consumo.

A carteira de trabalho era o grande símbolo dessa nova classe média, e acho que esse é um tempo que já foi. Estamos mais numa época de empreendedorismo, uberização, não é mais a carteira assinada.

Outro ponto importante da nova classe média é a existência dos primeiros da família que conseguiram acessar certos itens de consumo —como colocar o filho numa escola privada ou contratar um plano de saúde privado.

Hoje, mesmo que haja uma volta do crescimento, não teremos os primeiros [consumidores]. Os primeiros não esquecem. Tem um efeito mais marcante na trajetória, que depois fica refém desses picos de consumo do passado.

Quem come carne uma vez por semana hoje vai estar mais satisfeito se não comia carne antes, do que se ele comia carne três vezes por semana.

Existe hoje uma parcela da classe C que não viveu uma escassez. O que isso muda? Não ter vivido [a escassez], como é o caso das novas gerações, ou já ter experimentado no passado, faz com que a pessoa se ressinta mais. Os sociólogos falam que um pico prévio de consumo é um motivo de infelicidade presente. Assim como o efeito da “grama do vizinho ser mais verde”.

Talvez o maior concorrente do Bolsonaro hoje, para fazer o Auxílio Brasil de R$ 600, seja o próprio Bolsonaro em 2020, quando ele deu o Auxílio Emergencial. Fica prisioneiro dessa situação.

No auge do programa havia 67 milhões de beneficiários. Um terço da população recebia. Na passagem, algumas pessoas perderam.

O senhor falou de alguns símbolos da classe média daquele período, como a carteira assinada. Qual é o símbolo da atual classe média? Talvez tenhamos perdido aquele elemento de nova classe média, dos primeiros [a acessar certos itens de consumo]. Eu diria que hoje é uma tendência mais de conservadorismo, uma apologia da época do Milagre Econômico.

A nova classe média surgiu nesse período de boom de commodities, com redução de desigualdade, crescimento de emprego formal etc. A classe média tradicional, que são as classes A e B, em boa medida surgiu na época do Milagre, quando [a economia] crescia, mas com aumento da desigualdade.

Talvez o nosso conceito de classe média hoje seja mais de uma classe média tradicional, dessa que ascendeu lá atrás, e menos de uma classe média pioneira, que consumiu pela primeira vez certos bens e serviços.

E muitos desses bens e serviços são importantes. Um plano de previdência, um plano de saúde, escola privada para os filhos… São elementos que permitem a ascensão social. Não era uma busca do consumo, mas uma obtenção de capacidade de geração de renda.

Marcelo Neri, 59
Economista, Marcelo Neri é diretor do FGV Social e fundador do Centro de Políticas Sociais da FGV. Foi ministro-chefe da SAE (Secretaria de Assuntos Estratégicos), da Presidência da República, e presidente do Ipea. É doutor em economia pela Universidade de Princeton (EUA), mestre e bacharel em economia pela PUC-Rio (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro). Também é professor no doutorado, no mestrado e na graduação da EPGE (Escola Brasileira de Economia e Finanças), da FGV, no Rio de Janeiro.