O desmonte da globalização, por Ram Mahidhara

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Grandes empresas voltarão a buscar fornecedores regionais

RAM MAHIDHARA, Ex-executivo sênior da International Finance Corporation (IFC/Banco Mundial) e cofundador e COO (diretor de operações) da arara.io

Folha de São Paulo, 03/04/2022

A crise de abastecimento de produtos provocada pela pandemia e agora a ameaça de corte do gás europeu e insumos vindos da Ucrânia estão colocando em marcha um rearranjo global das cadeias de suprimento.

Trata-se de um processo de reversão da chamada globalização, que na última década tornou a China a base de fabricação do mundo, com empresas terceirizando uma grande parte de seus insumos para lá e, em menor escala, para outras partes da Ásia.

A competitividade de custos e os ganhos de eficiência oferecidos pela mudança para a China significaram que muitos itens, anteriormente fabricados nos EUA, na Europa e na América Latina, ou mesmo em países como a Índia, se transferiram para o gigante asiático. Os produtos farmacêuticos e eletrônicos são os melhores exemplos disso.

A Covid-19 expôs o risco dessa concentração e dependência excessivas. Com o fechamento da China, seguido por desacelerações na expedição, transporte e logística, empresas em todo o mundo foram atingidas. O desabastecimento de insumos básicos para enfrentar a pandemia deixou evidente a necessidade de deslocamento geográfico da produção mundial.

A guerra vai catalisar esse quadro. O conflito na Ucrânia traz, agora, a questão do deslocamento estratégico, com ênfase maior no inventário e aumento do estoque de bens essenciais no curto e médio prazo. As empresas vão aproximar geográfica e estrategicamente suas cadeias de abastecimento, seja no mesmo país, ou, pelo menos, dentro do mesmo continente.

É seguro colocar todos os nossos ovos em uma única cesta, mesmo que este país seja o fornecedor mais barato? Ou é estrategicamente melhor termos alternativas? Todas essas são questões com as quais as empresas estão se defrontando neste momento. Aquelas que diversificaram seus suprimentos provavelmente estão se saindo melhor no cenário atual.

Isso destaca a importância de monitorar a própria cadeia de abastecimento para todos os tipos de riscos, particularmente os riscos de ESG (“Environmental, Social and corporate Governance”).

O Brasil tem uma oportunidade neste cenário. Enquanto as empresas norte-americanas e europeias procuram diversificar suas cadeias de abastecimento, o país, com alguma notável experiência em indústrias selecionadas (serviços de petróleo e gás, fabricação de automóveis, tecnologia aeronáutica etc.), pode se posicionar como escolha mais estável e segura para as multinacionais. Sem contar que o Brasil é a 12ª maior economia do mundo e tem sua própria demanda interna.

As empresas brasileiras também devem olhar para suas cadeias de abastecimento e buscar alternativas mais próximas de casa. É claro que, devido aos tremendos avanços que a China obteve na indústria, levará tempo e recursos para competir com a velocidade, a eficiência e os preços dos fabricantes de lá —mas isso pode ser feito. A indústria brasileira precisa identificar essas oportunidades competitivas. Mesmo que seja um pouco mais caro produzir no Brasil, trata-se de uma alternativa sólida por motivos estratégicos: o país oferece mais estabilidade e capacidade produtiva em comparação a muitas outras nações nesta nova e frágil ordem global.

A pior equipe econômica da história, por Rodrigo Zeidan.

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Danos da administração de Paulo Guedes vão durar décadas

Rodrigo Zeidan, Professor da New York University Shanghai (China) e da Fundação Dom Cabral. É doutor em economia pela UFRJ.

Folha de São Paulo, 02/04/2022

Qual o papel de uma equipe econômica? Implementar boas políticas de crescimento e distribuição de renda, aumentar a credibilidade interna e externamente, melhorar o ambiente de negócios e gerenciar expectativas para cultivar investimentos. E, no meio de uma pandemia, salvar a população.

O saldo, que vejo, da equipe econômica de Paulo Guedes é inequívoco. Ele capitaneia a pior equipe econômica da história brasileira, e conseguiu uma façanha que deveria ser impossível: nos fazer ter saudades de Guido Mantega e Zélia Cardoso de Mello.

Os danos da administração de Paulo Guedes, Sachsida, e outros, vão durar décadas. E não é exagero. Pessoas não ressuscitam, desmatamento pode nunca ser revertido, armar a população vai gerar milhares de mortes, fome limita o desenvolvimento humano e perdemos pelo menos 0,5% de PIB potencial por pelo menos dez anos.

Não podemos nos esquecer do dia 16 de novembro de 2020, uma semana depois da Pfizer anunciar que a vacina estava próxima. Adolfo Sachsida, crítico do Bolsa Família, apoiador da liberação do porte de armas e do Escola Sem Partido, discípulo de Olavo de Carvalho, e que já jogou nos pobres e miseráveis a culpa pelo déficit da Previdência, veio a público dizer que achava baixíssima a probabilidade de segunda onda. Que o setor de serviços estaria cada vez mais forte. Que estava tranquilo, porque vários estados teriam atingido a imunidade de rebanho.

Ele e a equipe econômica pareciam lutar contra toda e qualquer medida de isolamento social, mesmo com a vacina batendo na porta. O argumento do governo seria de que isso geraria queda do PIB. Mas PIB é meio, não é fim. Foram incapazes de entender o básico sobre um indicador de bem-estar que tem suas limitações. Ele é irrelevante se alguém está a sete palmos abaixo da terra. Não se respira PIB.

E se o objetivo do governo era manter a economia funcionando, ele não foi alcançado. E a razão é simples: recuperação econômica é questão de confiança. Quando os economistas batem cabeça e perdem tempo desmontando programas importantes, só para trazê-los de volta piores e com nomes diferentes, as pessoas param de gastar e as empresas param de investir.

O PIB brasileiro deve crescer somente 0,5% esse ano, no meio de um boom de commodities e explosão de crescimento mundial. Os países ricos devem crescer 3,5% e os países em desenvolvimento, 5%. A América Latina? 3%.

O papel exercido por essa equipe econômica parece ter sido chancelar a destruição institucional do país. O governo atua pelo desmatamento? Guedes minimiza a destruição ambiental. O governo quer dar aumentos para o funcionalismo? A equipe arranja um jeito de manipular a lei do teto. O presidente faz campanha anti-vacina? A equipe econômica corta verbas para compra e distribuição de vacinas.

É bom lembrar que a equipe econômica foi contra o auxílio emergencial e se não fosse o Congresso empurrar goela abaixo teríamos um desastre ainda maior. O que temos depois de três anos do super poderoso ministro da Economia? Um péssimo ambiente de negócios, com economistas se preocupando em taxar ainda mais importações de pessoas físicas.

Uma economia sem perspectivas, com crescimento até 2025 na casa de 1,5%, abaixo do crescimento populacional. Um país com pior distribuição de renda, mais desmatamento, fome, e sem qualquer investimento educacional. Estagflação com mais de 660 mil mortos. Vejo que o governo nos entregou peste, fome e morte. E não creio que já tenha acabado.

Duas facetas do sistema meritocrático, por Cida Bento.

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Ideia assegura os melhores lugares para quem segue o padrão europeu

Cida Bento, Conselheira do CEERT (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades), é doutora em psicologia pela USP.

Folha de São Paulo, 31/03/2022

O “sistema meritocrático”, que muitas vezes é a principal justificativa das instituições para explicar a ausência de pessoas negras nos cargos de liderança, é construído lentamente ao longo da história do país e começa muito antes do período de inserção no mercado de trabalho.

Uma das tantas características do “sistema meritocrático” brasileiro é assegurar os melhores lugares sociais para quem segue o padrão europeu, branco. Mesmo em cidades onde a maioria da população é negra, esse padrão é exigido.

É o que se observa no caso da adolescente RMS, de 13 anos, aluna do Colégio Municipal Dr. João Paim, em São Sebastião do Passé (BA), que foi mandada para casa, sem aviso prévio aos seus responsáveis, porque seu cabelo foi considerado “inchado” e inadequado para que ela assistisse às aulas.

Interpelado por Jaciara, mãe da adolescente, o funcionário da escola sugeriu que a menina alisasse o cabelo, mostrando a foto de uma menina branca com o cabelo liso, como padrão adequado para frequentar as aulas.

Jaciara diz que a filha chegou em casa chorando muito e dizendo que não queria mais estudar no colégio e, no momento de raiva, chegou até a xingar o próprio cabelo. A reação da adolescente mostra o que milhares de crianças, adolescentes e jovens negros vivenciam em escolas inóspitas que lhes causam mal-estar, impactando suas competências afetivo-emocionais, elementos fundamentais para assegurar a aprendizagem.

E o desejo de não mais voltar à escola explicitado pela adolescente revela também uma das facetas da evasão escolar, que atinge muito mais a população negra do que a branca.

Essa situação mostra ainda uma escola que cria ambientes mais acolhedores para um perfil do alunado em detrimento de outros, o que vai se materializar também, futuramente, nas organizações empregadoras.

O CEN (Coletivo de Entidades Negras) acompanha o caso da estudante, buscando assegurar seus direitos, e que os autores dos atos racistas sejam punidos.

O coletivo sinaliza para a discriminação contra signos e símbolos da cultura afro-brasileira, a qual precisa ser debatida, como preconiza a LDB, alterada pela lei 10.639/03. Ou seja, o poder público é fundamental para assegurar uma escola mais equânime, mas o que se observa, infelizmente, é exatamente o contrário.

O Censo Escolar, principal instrumento de coleta de informações da educação básica e base para construção de políticas públicas, por orientar a divisão de recursos entre estados e municípios e a implementação de programas de responsabilidade do Governo Federal, vem sofrendo silenciosas mudanças.

A base de dados sobre gênero, cor e raça dos docentes e do alunado foram alteradas e só aparecem em grandes blocos, impedindo que se amplie os estudos e se aprofunde o conhecimento sobre o impacto de atitudes de escolas como a citada acima, na aprendizagem e evasão escolar.

Ao fazer um comparativo entre as bases de microdados do Censo Escolar de 2020 com a do ano de 2021, uma série de variáveis não está mais disponível.

Não é mais possível acessar os microdados do Censo de 1995 até 2020, apenas o de 2021 e, diferentemente das edições anteriores, os microdados trazem um único arquivo de dados, que não contempla o perfil de professores e gestores (sexo, raça/cor e formação).

Enfim, não se combatem as desigualdades ocultando as informações sobre ela, mas cumprindo a lei e implementando políticas que qualifiquem o ensino e tornem a escola acolhedora para todas as crianças.

Competição global

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Vivemos num momento de grandes transformações geopolíticas e econômicas, neste ambiente de mudanças constantes percebemos movimentações em todas as nações, buscando novos espaços políticos, novas formas de integração econômica, novas tecnologias, novas formas de dinamizar suas sociedades e novas oportunidades que devem definir as estratégias de sobrevivência nas próximas décadas.

Neste ambiente, percebemos o crescimento de um novo conflito econômico e geopolítico que deve moldar o capitalismo contemporâneo, com formas diferentes de organização social, estruturas produtivas e construções políticas. Neste momento, percebemos um conflito entre os Estados Unidos e China, onde cada um dos contendores tem suas armas, além de seus instrumentos de convencimento e de pressão, deste conflito tende a nascer uma nova sociedade, uma nova forma de organização social e novas características produtivas.

O crescimento chinês foi assustador nos últimos 40 anos, de uma sociedade altamente miserável a China se transformou no mais bem sucedido modelo de crescimento econômico, com uma estrutura produtiva moderna, com políticas centradas no Estado Nacional, com sólidas e consistentes estratégias de transformação produtiva, marcadas pelo protecionismo, pelos subsídios crescentes e pelas políticas de compras governamentais que garantiram a venda de produtos produzidos internamente, garantindo fortes estímulos para a geração de empregos, melhora salarial e novos espaços de inclusão social que contribuíram para retirar da pobreza milhões de trabalhadores.

Destacamos ainda, que todos os setores receberam estímulos para competir no mercado internacional, garantindo uma melhoria constante dos setores produtivos, além que adquirir novos mercados globais que angariavam a entrada de moedas conversíveis que contribuíram para o aumento das reservas internacionais. Nos anos 1970, algumas delegações oficiais chinesas visitaram o Brasil para compreender as políticas que estavam sendo implementadas, estas políticas garantiram um forte crescimento econômico e levaram o Brasil a uma posição de destaque no cenário internacional.

A partir dos anos 1980 os chineses colocaram em prática uma política desenvolvimentista fortemente centrada num Estado planejador, mesclando forte intervenção estatal e estímulo a competição externa, além disso, inovou ao adotar políticas de associação de empresas nacionais com grandes conglomerados globais, que garantiram uma forte transferência de tecnologia, utilizando o mercado nacional como um trunfo fundamental para atrair grandes empresas interessadas na exploração do mercado do país asiático.

A ascensão chinesa nos anos 1980 nos mostra que num mercado altamente competitivo e concorrencial, como vivemos na atualidade, é fundamental construirmos uma sólida e consistente estratégia de desenvolvimento econômico. Todos os países que conseguiram se desenvolver econômica e produtivamente construíram, internamente, uma estratégia centrada no planejamento, na construção de metas claras e flexíveis, garantindo investimentos sólidos em educação, em ciência e tecnologia, formando mão de obra capacitada para entender os grandes desafios que estavam sendo desenhados na economia internacional.

Neste ambiente, precisamos repelir ideias entreguistas centradas no pensamento liberal ortodoxo, que privilegia os grandes atores econômicos internacionais, são eles os grandes responsáveis pela difusão destas ideias, que patrocinam os pseudo-intelectuais que aparecem cotidianamente nos meios de comunicação e que contribuem diretamente para esta situação degradante da sociedade brasileira, onde uma grande parte da população vive em condições de indignidade, de exclusão e de degradação moral.

Vivemos numa grande competição internacional, o mundo contemporâneo é marcado por grandes desafios, neste ambiente, precisamos refletir sobre os modelos mais consistentes da sociedade global, o desenvolvimento é uma grande maratona que exige disciplina, planejamento e humildade. Como foi dito anteriormente, o Brasil serviu de exemplo para a China no século passado, está na hora de termos humildade para aprendermos com exemplos mais exitosos.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 30/03/2022.

Viagem ao mundo sem lei dos super-ricos, por Ladislau Dowbor

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“É difícil levar uma pessoa a entender alguma coisa
quando o seu salário depende de não a entender.”
Upton Sinclair

Parasitagem da riqueza social. Paraísos fiscais. Advogados. Políticos “tolerantes”. Um herdeiro que conviveu com o 0,01%, revela como esta “nova classe” multiplica sua riqueza e poder – e quanto sonha viver num mundo sem sociedades e Estados

Ladislau Dowbor – OUTRAS PALAVRAS – 21/03/2022

O caos financeiro mundial e brasileiro que enfrentamos tem um sentido: favorecer os mais ricos. Nos 30 anos do pós-guerra, entre 1945 e 1975, o capitalismo apresentou um razoável equilíbrio entre os lucros dos empresários, a remuneração dos trabalhadores, e as políticas públicas indispensáveis ao desenvolvimento equilibrado. Com Reagan os EUA e Thatcher na Grã-Bretanha, o capitalismo se desloca para um sistema em que os lucros financeiros passam a dominar os processos produtivos. A mudança é profunda, e se baseia em três eixos de mudança.

Primeiro, com a informática e a conectividade planetária, a moeda deixa de ser algo impresso pelo governo e passa a ser um sinal magnético emitido pelos grupos financeiros. O dinheiro imaterial passa a navegar no espaço planetário instantaneamente, passa a ser “liquidez”. Não precisa abrir mala na alfândega. Segundo, o sistema financeiro passa a ser planetário, no chamado high frequency trading, com derivativos, paraísos fiscais, e outros mecanismos de escala global, enquanto os governos, ou seja, a capacidade reguladora financeira dos Estados e dos bancos centrais, estão limitados à escala nacional: os poderes públicos perdem grande parte da sua capacidade reguladora, em particular de poder orientar recursos financeiros em função das necessidades do desenvolvimento.

Terceiro, essas mudanças levaram à formação de um novo setor econômico, a indústria de gestão de ativos (asset management industry), que passou a administrar o gigantesco estoque de fortunas nos espaços privados dos bancos, hedge funds, investidores institucionais, fortunas privadas (family offices), e evidentemente nos paraísos fiscais, visando assegurar o máximo possível de evasão fiscal, de elisão fiscal (no limite da legalidade, aproveitando complexidades jurídicas), de lavagem de dinheiro, de fuga nos casos de conflitos matrimoniais, de compra de políticos e tantas outras portas que abre um sistema internacional descontrolado. Não há governo mundial, e mesmo no plano nacional as leis são frequentemente feitas para tornar legal o que não é legítimo, e muitas vezes escandaloso.

Estamos falando de um estoque de centenas de trilhões de dólares, e de um volume de movimentações incomparavelmente maior. Para ter uma ordem de grandeza, lembremos que o PIB mundial é da ordem de US$90 trilhões. As fortunas do 1% dos mais ricos, segundo o banco Crédit Suisse, é da ordem de US$190 trilhões, enquanto a metade mais pobre da população mundial, 4 bilhões de pessoas, tem apenas US$5,5 trilhões, 1,3% da riqueza. A desigualdade, como sabemos, está explodindo no mundo, essencialmente por meio de ganhos financeiros, explorando, travando a base produtiva em vez de fomentá-la. É o “capitalismo extrativo” tão denunciado por inúmeros economistas e até por pessoas indignadas do próprio “mercado”.

Chuck Collins, que recebeu de herança uma pequena fortuna quando jovem, e que tem, portanto, entrada no mundo dos afortunados, concentrou o estudo The Wealth Hoarders (poderíamos traduzir como guardiões de riqueza) no que aparece mais claramente no subtítulo: “Como bilionários pagam milhões para esconder trilhões.” É importante dizer que não se trata de um panfleto anti-ricos: se trata de um estudo muito sistemático e bem documentado sobre como funciona o grande mundo financeiro que administra e assegura o aumento exponencial do grande dinheiro. Porque os donos de grandes fortunas não correm atrás de mais dinheiro: contratam empresas especializadas, bem remuneradas, que detêm conhecimentos impressionantes sobre as frestas e lacunas nas leis, que países ou territórios são mais corruptíveis, como criar “family offices”, trustes, empresas laranja (shell companies), que políticos são mais acessíveis.

Esses profissionais constituem a tropa de choque do mundo da alta finança, dos UHNW (Ultra High Net-Worth individuals), buscando maximizar os seus rendimentos, assegurar o segredo das transações e minimizar o pagamento de impostos. Estão administrando os interesses não mais dos “capitães da indústria” de outrora, General Motors e semelhantes, mas a rede mundial do 0,01% e do 0,001 dos detentores de riqueza acumulada. De certa forma, é a classe política do mundo financeiro, os que administram a riqueza real dos bilionários.

Para dar uma ordem de grandeza, a BlackRock administra US$10 trilhões, seis vezes o PIB do Brasil. Junto com Vanguard e State Street, três grupos privados administram US$20 trilhões, o equivalente ao PIB dos Estados Unidos, de US$21 trilhões. Biden está batalhando para conseguir liberar 3 trilhões de dólares para os próximos 10 anos.

Olhando o conjunto que formam as grandes fortunas privadas mundiais por um lado, e a máquina de gestão dessas fortunas por outro, constatamos que hoje existe uma oligarquia financeira mundial com poder político e econômico dominante, que deforma tudo o que temos chamado de política e de democracia. Não são bem capitalistas, mais bem constituem uma aristocracia financeira que explora inclusive o capitalismo produtivo. E evidentemente cada um de nós.

As novas tecnologias redimensionaram essas políticas, na medida em que o dinheiro imaterial escapa facilmente aos controles, mas também pelo fato que permitem a micro drenagem do bolso de bilhões de pessoas pelo mundo, por exemplo pela tarifa incluída no que pagamos com o cartão de crédito. Com a sofisticação das plataformas globais, pequenas taxas ou aumentos de preços generalizados no planeta, o dinheiro da base da sociedade, inclusive das empresas privadas, flui para o topo da pirâmide, que não precisa ter contribuição produtiva: mas precisa sim de bons informáticos, advogados, políticos e administradores que constituem, precisamente, os que recebem milhões para esconder trilhões. Collins detalha como funciona a máquina.

No conjunto, apesar das inúmeras tentativas de controle da rede de ilegalidades, descritas em detalhe no livro, o sistema criou vida própria: “Vivemos num sistema crescentemente globalizado, com o capital desvinculado (delinked) dos estados nacionais. Essa “classe capitalista transnacional”, como a descreve William Robinson, está alterando o sistema econômico. Com a evolução do sistema, pessoas ricas e empresas transnacionais estão tentando se tornar apátridas (stateless) e desvinculadas das regras nacionais…Neste sistema, os oligarcas e cleptocratas globais têm mais em comum uns com os outros do que com cidadãos dos seus estados de origem.”(150)

Igualmente significativo é o papel dominante que exerce “o mundo de fala inglesa”, na expressão de Collins: “Os centros econômicos dos Estados Unidos e do Reino Unido são as forças motrizes no sistema global de riqueza escondida. O mundo de fala inglesa carrega uma responsabilidade desproporcional pela criação dessa confusão (this mess) e por manter o sistema – e tem também um tremendo poder para o alterar.”(152)

Um livro pequeno, de leitura simples e transparente, e que acende a luz neste universo obscuro dos que tanto falam do seu “merecimento”, mas se apoiam numa estrutura paralela de poder que não presta contas a ninguém, apenas recebe os seus milhões por serviços prestados. Neste sentido, o livro de Collins converge muito com outros livros que resenhamos, como A Arapuca Estadunidense do Pierucci, ou as Confissões de um Assassino Econômico de John Perkins: mostram o mecanismo interno real, as engrenagens, do universo que temos qualificado de “mercados”, mas que constituem um sistema parasita que drena a renda das famílias, a capacidade de investimento das empresas produtivas, e os recursos públicos que asseguravam as políticas sociais. O resultado é o drama planetário que vivemos: o aquecimento global e outras tragédias ambientais, a desigualdade explosiva, e a paralisia econômica. O dinheiro acumulado pela aristocracia financeira não provém da sua contribuição produtiva, mas da máquina extrativa que hoje se tornou o mecanismo dominante de enriquecimento no planeta.

Identitarismo troca conceitos universais por marcas particulares, diz Roudinesco

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Para historiadora francesa, movimentos emancipatórios derivam em posições hostis à liberdade de expressão

Naná DeLuca, Jornalista da Folha e mestre em letras pela USP

Folha de São Paulo, 27/03/2022

[RESUMO] A historiadora francesa Elisabeth Roudinesco fala sobre como movimentos identitários abriram mão de conceitos mais amplos para privilegiar marcadores particulares.

A historiadora e psicanalista francesa Elisabeth Roudinesco, 77, conhecida por biografar grandes pensadores como Sigmund Freud e Jacques Lacan, diz ter certeza de que “o mundo está se desfazendo para o nascer de outro”. Para ela, isso é bom, mas o percurso errático dessa transformação a preocupa.

Essa inquietação é o objeto do seu mais recente livro, “O Eu Soberano” (Zahar), que busca compreender as “derivas identitárias” —o encerramento sistemático dos sujeitos em identidades fechadas—, que hoje estão no centro do debate público em vários países. Para conduzir sua pesquisa, ela se pergunta: como os movimentos emancipatórios do século 20 se tornaram o que são hoje?

Relendo clássicos do pensamento francófono, como Aimé Césaire, Frantz Fanon, Jacques Derrida e Michel Foucault, ao lado de importantes trabalhos atuais, como os de Judith Butler e Gayatri Spivak, a historiadora explora as mudanças nos conceitos de gênero, raça e identidade para explicar as transformações na militância e na produção acadêmica da esquerda. O livro também discute o identitarismo da extrema direita, baseado no nacionalismo e no ódio. Para Roudinesco, se compreende bem isso no Brasil de Jair Bolsonaro.

Em entrevista à Folha, a historiadora também discute questões sobre o Estado de Direito, a laicidade, o fanatismo religioso e as mudanças linguísticas para apontar que o mundo está mudando, “mas ninguém pode dominar essa transformação”.

Por que a sra. decidiu escrever “O Eu Soberano”? É assunto em voga e um fenômeno que já existe há 30 anos. Os engajamentos identitários e o que chamo de suas derivas começaram após a queda do Muro de Berlim, com a substituição de questões de classe por aquelas da identidade.

O que me interessava era olhar a questão do gênero e da raça. Como chegamos a esse ponto de grande deriva? O que partia de uma boa posição emancipatória —para mulheres, negros e homossexuais— começou a derivar em direção a posições hostis à liberdade de expressão. Em nome dessas reivindicações, hoje se quer proibir textos e destruir estátuas, por exemplo.

Os autores atuais dos quais trato no livro se inspiram em grandes pensadores, como Aimé Césaire, que reivindicou a palavra “negro” de forma positiva, para afirmar uma cultura negra; Franz Fanon, que nunca adotou uma postura identitária, mas foi um anticolonialista refinado; em Edward Said e seu trabalho sobre o olhar do Ocidente para o Oriente; e também em Michel Foucault, Jacques Derrida, Gilles Deleuze e Jacques Lacan.

Mas se inspiram em todos esses intelectuais para projetos que nada têm a ver nem com liberdade nem com emancipação. Quis entender como chegamos a essa deriva e olhar para o identitarismo de extrema direita, que não tem nada de deriva, pois sempre foi a mesma coisa.

Qual foi a recepção do livro na França? O livro foi lançado em um momento de enorme crise de deriva identitária no país, em março de 2021. Não foi minha intenção. Quando comecei a escrever, há três anos, o cenário era outro.

O debate explodiu na França com ataques extremamente reacionários, de um lado, e ultra-esquerdistas, de outro, em um contexto político bastante complicado. Algo que vocês entendem no Brasil, pois têm um identitário de extrema direita no poder, Jair Bolsonaro.

Como a identidade passa a ser central no debate público? A partir da década de 1980, a identidade passa a ser entendida por “eu sou eu, isso é tudo” —o sujeito se define, por exemplo, apenas pela cor de sua pele. Como explico no início do livro, a identidade não é mais “eu sou como um outro” ou “eu sou todo o mundo” —não são uma identidade e um sujeito abertos.

A deriva identitária é se definir unicamente por um marcador particular. Ou seja, abandonar a subjetividade universal e também a subjetividade da diferença. Definir-se unicamente como negro, homossexual, transgênero etc.

Não é uma reivindicação como aquelas ligadas à classe, pois é uma marcação territorial e limitada.

E o pensamento interseccional? A sra. o acha reducionista? De início, é uma excelente ideia. A interseccionalidade já existia em todos os trabalhos contemporâneos por ser um método comparativo. O pensamento interseccional é a convergência de lutas. Não tenho nada contra.

O que acho problemático é a manutenção da palavra “raça”, pois cientificamente não existe raça. Há pigmentações de peles, há culturas, mas não raça. A retomada dessa ideia não é mais como fez Aimé Césaire —”negro sou, negro fico”—, que subverte o estigma racista e reivindica a negritude como cultura. Agora passamos do ponto de reivindicar nossa cultura para reivindicar a raça e marcar uma identidade.

Como explicar a ideia de deriva de maneira mais ampla? Essa ideia de deriva define um pouco nosso mundo. No sentido de Derrida, há a ideia de um velho mundo —das certezas ideológicas, da ordem do patriarcado— que não existe mais.

Essa ordem do mundo foi desfeita.

A deriva da esquerda é a flutuação que parte rumo a um destino, mas termina por chegar em seu ponto contrário. Muito diferente do identitarismo e do nacionalismo da extrema direita, que não deriva nunca, é estático. No caso das derivas à esquerda, há também a criação de um falar obscuro.

Por exemplo? Palavras como racializado, decolonial, generificado, cisgeneridade, todo esse novo vocabulário, sistematizado para criar uma linguagem do pertencimento. Homi Bhabha, traduzido em todo o mundo, creio ser o autor de falar mais obscuro de que trato no livro. Mas também falo de Gayatri Spivak e mesmo de Judith Butler. Essa linguagem é complexa, mas interessante, pois permite dizer absolutamente tudo, incluindo o seu contrário.

O que a sra. acha dessas mudanças na linguagem? Adotei uma posição de nuances. Antigamente, dizia-se sobre uma ministra de Estado, “madame le ministre” [senhora o ministro]. Hoje, se utiliza o artigo feminino. Acho positivo, mas a feminização sistemática de palavras gera casos até ridículos. O mundo está se desfazendo para o nascer de outro, mas ninguém pode dominar essa transformação. É nesse ponto que critico as derivas identitárias à esquerda.

Dominar em que sentido? Há algo que se desfez, simbólica e culturalmente, com a conquista de mais igualdade para mulheres, a descriminalização de homossexuais, toda a questão dos transgêneros emergiu também. Tudo isso é bom. O que critico é a posição militante de querer dominar aquilo que não se controla, como a língua.

Uma vez que algo é incorporado à língua, é impossível controlar. Se tentamos, no fundo criamos novos dogmas e impomos um sistema autoritário. Para o intelectual, é preciso observar e deixar as transformações acontecerem em nossa sociedade e não buscar conquistas militantes.

O que era vital nos grandes autores da década de 1960 — Césaire, Derrida, Foucault, Fanon, Deleuze— é essa característica de pensar profundamente naquilo que se desfazia na sociedade, sem tentar ordená-la. É por isso, inclusive, que foram muito atacados pela extrema direita e conservadores.

Qual é a diferença entre o identitarismo da extrema direita e o da esquerda? O identitarismo da extrema direita é sempre baseado no medo de ser substituído, no nacionalismo e na afirmação arcaica de que pertencemos a um território e a uma identidade fixos. É também o ódio por qualquer outro —imigrante, judeu, árabe, indígena. Esse identitarismo se baseia na ideia de que nascemos com uma identidade que deve ser conservada.

Isso não é comparável às derivas identitárias da esquerda, não há simetria. Embora esses identitarismos coabitem uma mesma época, são processos completamente distintos.

O identitarismo da extrema direita pode explicar a ascensão de políticos como Donald Trump ou Jair Bolsonaro? Com certeza, é o medo de que o mundo mude. Medo do comunismo, dos homossexuais, de que o homem branco se apague.

Algo interessante sobre o identitarismo da extrema direita no Brasil e nos EUA é que, muito diferente do caso da Europa, essas são sociedades miscigenadas. Historicamente, tanto em uma quanto em outra há o medo de que a população “torne-se negra”, o que é ridículo. A miscigenação é algo formidável.

Mas o Brasil é extremamente racista. O racismo é um problema econômico, social, cultural. Evidentemente. Os EUA também. Eu diria que, quanto mais há miscigenação, mais há o medo do outro e, consequentemente, o racismo, porque a miscigenação rompe barreiras imaginárias.

Vejamos o caso de Barack Obama. Ele é miscigenado. Culturalmente, no contexto dos EUA, é muito mais próximo de um Kennedy que de um homem negro da periferia. Obama é um puro produto das melhores universidades americanas, o que mostra que a questão não é a cor, é a cultura.

Para retomar a questão anterior: o que explica que a ascensão de políticos extremistas, ligada ao identitarismo da extrema direita, seja um fenômeno simultâneo em tantos países tão diferentes entre si? O mundo é agora multipolar, em oposição ao mundo bipolar da Guerra Fria. Há uma crise nisso que chamamos de sociedades ocidentais e será preciso encontrar soluções para dividir as riquezas. Não podemos deixar povos inteiros na pobreza, ou o nacionalismo e o populismo continuarão a se reproduzir.

A principal oposição hoje é o mundo da democracia versus o mundo das ditaduras, e a democracia está muito frágil. A França está fragilizada pelo aumento do islamismo radical, uma reivindicação identitária.

Em 1989, Lévi-Strauss afirmou em entrevista à Folha que sentia sua cultura ameaçada pelo islã. Esse sentimento de ameaça permanece na França? Sua crítica não era à religião islâmica, mas à ideia de dominação. Primeiro, é preciso dizer que não se pode atacar muçulmanos, que hoje na Europa ocupam um lugar muito parecido com o que os judeus ocuparam outrora. O que é preciso criticar é o fanatismo religioso, uma deriva identitária.

Na Europa, o islã é uma religião que integramos à nossa sociedade, diferente do Brasil, em que isso não é uma questão. Contudo, no Brasil vocês têm outro perigo, outra forma de fanatismo religioso: o evangélico. Para escapar ao fanatismo, é preciso integrar a religião e os religiosos à laicidade do Estado.

O modelo brasileiro de Estado laico é muito diferente da laicidade francesa. Com certeza, a França tem um modelo único. Mesmo os EUA e a Inglaterra, do ponto de vista francês, não são países laicos. O presidente dos EUA faz seu juramento com a mão sobre a Bíblia. Na Inglaterra, há uma monarquia. Nada parecido com a França, onde cortamos a cabeça do rei e fundamos uma laicidade muito particular.

O modelo de Estado laico francês não é exportável a outros países. Ele deve ser defendido, é parte de nossa tradição. Nesse sentido, sou próxima de Lévi-Strauss. Ele acreditava que não se devia perturbar a estrutura.

Qual é a diferença entre o identitarismo em países colonizados e em países colonizadores? Essa pergunta está no
coração do debate que proponho no livro. Há um movimento que começa a se desenhar, uma guerra da memória. Nos países outrora colonizados, os povos oprimidos reivindicam agora sua própria memória, uma memória da perseguição.

Contudo, não se pode destruir estátuas, censurar a história de um país. A história é complexa. Países colonizados tiveram colaboracionistas, e países colonizadores tiveram anticolonialistas. O que deve ser feito é olhar o passado por todos os lados. É preciso fazer a memória compartilhada, algo que tentamos fazer na França em relação à Argélia. A memória compartilhada é a única solução, ainda que muito complexa.

No Brasil, discute-se o conceito de racismo estrutural. O que a sra. acha desse conceito? Nós o chamamos de racismo sistêmico. Na França, não há racismo sistêmico no nível do Estado. É a lei. Eu não concordo com o posicionamento decolonial que afirma que o racismo seja estrutural ao Estado, pois essa afirmação não é precisa. Não se pode confundir a sociedade civil e o Estado.

Dados apontam que, em 2020, mais de 6.400 brasileiros foram mortos em intervenções policiais. Desses, 79% eram negros. Não faz sentido, então, falar de um racismo estrutural ou sistêmico? Isso é muito distante da realidade francesa, onde se recorre à lei e ela funciona. Se um policial mata alguém, ele é punido pela lei. Nos EUA, idem. O policial que matou George Floyd foi condenado. Nesses casos, eu não acredito que o Estado produza o racismo. Neles, o racismo existe e ele está, também, na polícia.

Mas, no Brasil, está no poder um racista assumido. O Estado de Direito brasileiro é muito frágil. Mais que de democracia, essa é uma questão de Estado de Direito, um Estado neutro que condena a discriminação.

Como superar esse tipo de violência? Pelos livros e pela militância. O combate tem que ser feito pelas ideias, ao menos na Europa.

No Brasil, creio ser uma questão de Estado de Direito. Estive no Brasil quando Dilma Rousseff foi deposta, algo a que me opus fortemente. Para mim, estava claro que isso iria beneficiar a extrema direita. Não há solução fácil ou imediata para o Brasil, mas Bolsonaro não pode continuar.

Por que a extrema direita é tão atraída por movimentos conspiracionistas, como o QAnon? A extrema direita é essencialmente conspiracionista, imagina sempre um complô. Na França, mesmo antes da Revolução de 1789, já existiam conspirações de um complô judeu. O conspiracionismo caracteriza as ditaduras. Vladimir Putin, por exemplo, é um conspiracionista. Ele foi do comunismo para a extrema direita, e o complô é o mesmo: um mal que vem do estrangeiro.

Hoje em dia, o conspiracionismo é ativado maciçamente pelas redes sociais, que são um lixo, sempre terreno fértil para conspirações. Vimos isso com os movimentos antivacina.

Todo conspiracionismo ignora a realidade. Seja o pior dos conspiracionismos, como o antijudeu, que culminou no Holocausto, seja o movimento antivacina, todos se baseiam no medo e no terror de um estrangeiro, de um outro.

E o medo de uma ameaça comunista? Também é um conspiracionismo. A extrema direita teme um comunismo que não existe mais. O que é fascinante é que não é necessária a presença da realidade, nem do objeto do ódio, para que o conspiracionismo floresça. Há, por exemplo, conspirações antissemitas em países onde não há judeus.

É esta a grande característica da extrema direita: ela acredita em conspirações baseadas em coisas que não existem.

Tem-se medo a vida toda do comunismo, que não existe mais. Temem a “grande substituição” por uma outra raça, quando não existem raças. Na França, hoje, temem que haja menos igrejas que mesquitas, mas a explicação é simples: o país se descristianizou. Não há substituição.

O que me causa mais receio é que a extrema direita não é acessível pela razão, pois se baseia no medo e, contra isso, não há pedagogia possível. O conspiracionismo, a meu ver, é uma doença mental.

No Brasil, há um problema sério de violência contra a população trans, com assassinatos brutais. Como combater essa violência sem cair em derivas identitárias? Em primeiro lugar, é preciso combater, evidentemente, como se combate a violência contra a mulher e homossexuais.

No livro, chamo atenção para outro debate, sobre a definição da transgeneridade e da lei. Pela lei francesa, uma pessoa com menos de 15 anos não pode consentir uma relação sexual. Sou favorável a essa lei.

No caso de pessoas trans, sou contra os tratamentos hormonais e cirurgias de redesignação em pessoas com menos de 15 anos pelo mesmo motivo: elas não podem dar o consentimento, mesmo que queiram o tratamento. Depois dos 18 anos, cada um tem o direito de fazer o que quer.

Além disso, eu me questiono sobre outro fenômeno, relacionado ao sexo e ao gênero. É preciso tratar do assunto com humanidade, mas não é possível apagar o sexo em nome do gênero. O que é preciso combater são os excessos.

É perfeitamente normal que alguém tome hormônios e adote um gênero diferente do nascimento, mas erra alguém que diz suprimir a biologia. As duas coisas podem conviver. Não se pode negar o gênero em detrimento do sexo, nem negar o sexo em detrimento do gênero.

A pobreza do liberalismo brasileiro, por Rodrigo Jungmann.

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Nossos liberais não costumam ir muito além de concepções economicistas

Rodrigo Jungmann, Doutor em filosofia pela Universidade da Califórnia, é professor da Universidade Federal de Pernambuco

Folha de São Paulo, 27/03/2022

No último dia de aulas remotas do semestre passado, um aluno me afiançou, muito educado, que gostara bastante das minhas preleções. Avançou a ressalva, no entanto, de que, com todas as vênias, não poderia deixar passar batida a ocasião de assinalar uma certa perplexidade. Causava-lhe espanto que eu houvesse me declarado mais de uma vez um defensor do liberalismo.

A sequência da conversa deixou claro que, por “liberalismo”, o aluno entendia tão só o “neoliberalismo”, uma concepção de ordem econômica que chegou ao poder no fim dos anos 1970 e começo dos 1980 com as vitórias eleitorais de Margaret Thatcher e Ronald Reagan.

Uns cinco ou dez minutos bastaram para que eu fosse capaz de esclarecer-lhe que, por “liberalismo”, tinha em mente a ordem política liberal e que, nos termos da terminologia que me parece mais adequada, um John Maynard Keynes figura comodamente como um liberal de esquerda, ao passo que um Friedrich Hayek deve ser tido na conta de liberal de direita. A diferença entre os dois autores economistas, como é sabido, radica-se numa distinta compreensão do papel ideal do Estado na economia —muito mais abrangente, na concepção de Keynes; tão pouco intrusivo quanto possível, no entender de Hayek.

O aluno pareceu genuinamente surpreso, mas me agradeceu pela resposta e, por assim dizer, me “perdoou”. Que explicação pode ser oferecida para um tamanho mal-entendido? Seria por demais cômodo e evasivo explicar a ocorrência culpando exclusivamente certa esquerda pelas caricaturas simplificadoras tão amiúde associadas ao termo “neoliberalismo”.

O fato é que os liberais brasileiros realmente passam exclusivamente por neoliberais, e que o liberalismo entre nós costuma não ir muito além de concepções economicistas. Meu ponto aqui é que nossos liberais são em grande parte responsáveis eles mesmos por este estado de coisas. E o são em razão do que bem poderia ser chamado de obsessão pela economia.

No momento em que escrevo, tenho diante dos meus olhos uma tradução de “On Liberty”, obra de um liberal por excelência, John Stuart Mill. A tradução é excelente, mas é bem digno de nota o fato de que tenha por título “Da Liberdade Individual e Econômica” (Faro Editorial).

Causa espécie tal escolha, visto que o livro definitivamente tem uma ênfase inteiramente diversa. E certamente não se pode atribuir a Mill uma defesa do chamado Estado mínimo (o pensamento do filósofo britânico é marcado por um acentuado ecletismo, a que não se pode fazer justiça em poucos parágrafos).

Não bastasse essa estreiteza de visão, a pandemia em curso deixou tristemente claro que muitos autonomeados liberais brasileiros não chegam sequer a entender que, se é verdade por um lado que a liberdade preconizada por Mill entrona o indivíduo na posição de soberano absoluto da sua vida privada, daquele âmbito de ações que dizem respeito exclusivamente à sua própria pessoa e que só sobre ela exercem efeitos, não é menos verdade que tal liberdade perde a sua sanção incondicional sempre que pode redundar em ações que causem danos a terceiros.

No domínio propriamente teórico, a situação é ainda mais desoladora. Quantos jovens estudantes da matéria têm ciência de que um erudito da estatura de um José Guilherme Merquior se proclamava orgulhosamente como um liberal social? Ou mesmo do que vem a ser o liberalismo social? Com que frequência se mencionam entre nós autores como T. H. Green, John Hobson ou Leonard Trelawny Hobhouse?

Por fim: a rejeição ao despotismo, o direito à vida, à expressão e à propriedade, o império da lei, a competição regrada de interesses e crenças, os mercados livres, a expansão do rol de atores políticos até o advento do sufrágio universal —tudo isso fez e faz parte da tradição liberal. Como também o fez a noção humboldtiana de “Bildung” e de autocultivo da mente; o perfeccionismo, em suma. E que o Estado bem pode ter um papel fundamental a desempenhar nesse domínio. Mas disso o leitor dificilmente terá ciência lendo os liberais brasileiros.

Quatro fatores parecem explicar a queda do dólar, por Samuel Pessoa.

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Em algum momento, atual valorização deve cessar

Samuel Pessoa, Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e da Julius Baer Family Office (JBFO). É doutor em economia pela USP.

Folha de São Paulo, 26/03/2022

Era esperado para o início deste ano alguma valorização na moeda em razão da votação da lei orçamentária de 2022, em dezembro do ano passado.

Após a emenda constitucional dos precatórios, que abriu R$ 100 bilhões no Orçamento de 2022, a votação da lei orçamentária estabelecia um tamanho para o rombo fiscal.

A descompressão ocorreu, mas muito mais intensa do que qualquer pessoa imaginava. Outros fatores contribuíram.
Dois fatores principais explicam o fortalecimento do real, que na sexta-feira (25) fechou a R$ 4,74 por dólar.

O primeiro foi a retomada de um mecanismo de compensação entre o real e o preço dos commodities. Desde a flutuação do câmbio, no início de 1999, sempre que as commodities no mercado internacional ficam mais caras, o real se valoriza, e vice-versa.

Esse mecanismo equilibrador existe, pois somos um grande exportador de matérias-primas. Sempre que as commodities encarecem no mercado internacional, ficamos mais ricos, e, consequentemente, nossa moeda se valoriza, e vice-versa.

Entre maio de 2020 e novembro de 2021, esse balanço deixou de existir. Quando a epidemia bateu, o preço das commodities despencou —houve semana em que o preço do petróleo chegou a ficar negativo, pois se cobrava para armazenar— e nossa moeda desvalorizou-se de R$ 4,3 para até R$ 5,8, em maio de 2020.

Quando ocorreu a recuperação muito forte da economia mundial, os preços das commodities subiram muito. Dobraram em relação ao ponto mais baixo observado em abril de 2020. Penso que o aumento da percepção de risco, em razão do impacto da epidemia sobre os gastos além do teto do governo, neutralizou o efeito gangorra entre o real e o preço das commodities. Em vez de voltar para R$ 4 por dólar, nossa moeda ficou oscilando em torno de R$ 5,5. Essa neutralização explica uma parte importante do choque inflacionário por aqui: se o câmbio tivesse se comportado de forma habitual, parte do efeito inflacionário da elevação dos preços das commodities seria compensada pela valorização do real.

Desde dezembro de 2021, o efeito gangorra voltou a funcionar, e parte da valorização da moeda resulta da subida dos preços das commodities. As moedas de outras economias exportadoras de commodities têm se valorizado também.

Mas parece haver um terceiro fator contribuindo para valorizar a nossa moeda. A guerra na Europa em uma região, o Leste Europeu, com diversos países emergentes melhorou a percepção de risco relativa da América Latina. Nesse “concurso de feiura”, ficamos um pouco melhor.

Finamente, há sinais de que a elevação da taxa de juros contribui para o movimento da moeda.

A ação conjunta desses quatro fatores —retirar o bode da lei orçamentária de 2022 da sala, a volta da gangorra preço das matérias-primas e câmbio, a melhora relativa da América Latina em razão da guerra e o maior diferencial de juros— parece explicar o movimento da moeda, que saiu de R$ 5,74 em 21 de dezembro último para R$ 4,74 na sexta-feira passada. Incrível valorização de R$ 1 por dólar.

Muito difícil construir cenário para o câmbio. Minha avaliação é que a atual valorização em algum momento cessará e, ao longo do processo eleitoral, viveremos muita volatilidade, com o real se desvalorizando um pouco.

No fim do ano, com a retomada pelo novo governo de uma trajetória de ajuste fiscal estrutural, devemos voltar a uma lenta trajetória de fortalecimento de nossa moeda.

Como se não houvesse amanhã, por Oscar Vilhena Vieira.

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O governo federal colocou em prática a estratégia de subverter o sistema brasileiro de proteção ambiental por meio de ‘reformas infralegais’

Oscar Vilhena Vieira, Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.

Folha de São Paulo – 26/03/2022

A Constituição de 1988 assegurou a todos o “direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado… impondo ao Poder Público e à coletividade, o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”, antecipando de forma premonitória as ameaças impostas pela crise climática que hoje constitui um dos principais desafios para a humanidade.

Em atendimento a esse verdadeiro pacto intergeracional estabelecido pelo artigo 225 da Constituição Federal, o Brasil adotou em 2004 um Plano de Ação para Prevenção e Controle de Desmatamento na Amazônia Legal, que foi consolidado pela lei 12.187, de 2009. A implementação desse plano contribuiu de maneira efetiva para a redução de 83% do desmatamento na Amazônia Legal entre 2004 e 2012, contrariando interesses de grileiros, madeireiros, garimpeiros ilegais e de setores envolvidos em projetos agrícolas insustentáveis.

Incapaz de alterar a Constituição e as leis de proteção ambiental, para atender sua base de apoio, o governo federal colocou em prática a estratégia — explicada por Ricardo Salles na escatológica reunião ministerial de 22 de abril de 2020 — de subverter o sistema brasileiro de proteção ambiental, por meio de “reformas infralegais”, como se não houvesse amanhã.

Combinada com estrangulamento orçamentário, nomeação de pessoas inaptas e atos parainstitucionais que estimulam o desmatamento, o infralegalismo autoritário de Bolsonaro vem permitindo ao seu governo amesquinhar a ação de agências de proteção ambiental como Ibama, ICMBio, Inpe e mesmo a Funai.

De 2018 para cá, houve uma queda de 82,7% na imposição de embargos a atividades de desmatamento; assim como uma redução de 80,7% nas apreensões realizadas pelo Ibama. No mesmo sentido, mais de 5.000 autuações por infrações ambientais correm risco de prescrever em decorrência de deliberada omissão governo.

O resultado desse plano macabro e inconstitucional é a impunidade e o aumento do desmatamento. A estratégia do infralegalismo autoritário, aplicada ao campo ambiental, contribuiu para um aumento de 76% no desmatamento na Amazônia Legal em 2021, se comparado a 2018. O desmatamento em terras indígenas (TI) e nas unidades de conservação (UC) cresceu respectivamente 138% e 130% nos mesmos três anos (Prodes/Inpe). O índice de emissões causadoras de emergência climática superou três vezes a meta estabelecida pela Política Nacional de Mudança Climática.

O Supremo Tribunal Federal, que vem assumindo um papel fundamental na defesa das instituições democráticas e na proteção do direito à vida e à saúde da população durante o período Bolsonaro, terá nos próximos dias uma oportunidade única de interromper essa espiral perversa de devastação ambiental.

Não se trata de interferência indevida do Supremo em esfera de competência do Executivo, mas de mero exercício da missão reservada ao Supremo de proteger a Constituição de atos e omissões que a afrontem. Ao Supremo não se requer a criação de uma política ambiental, mas apenas que faça cumprir aquilo que foi estabelecido pela Constituição e pelas leis.

Mais do que a preservação das florestas, do regime de chuvas, da pujança do agronegócio ou da preservação de nossa matriz limpa de energia —que dependem de nosso regime de águas—, o que está em jogo nesse julgamento é o bem-estar de nossos filhos e netos e, no limite, a própria sobrevivência das futuras gerações.

Tem dinheiro sobrando no Tesouro?, por Marcos Mendes.

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Ilusão de cofre cheio e governabilidade corroída podem terminar em crise institucional

Marcos Mendes, Pesquisador associado do Insper, é autor de ‘Por que É Difícil Fazer Reformas Econômicas no Brasil?’

Folha de São Paulo – 25/03/2022

A arrecadação do governo federal tem batido recordes, e isso leva os políticos a achar que há dinheiro sobrando. Nada mais enganoso.

A previsão do Ministério da Economia é de um déficit de R$ 67 bilhões (0,7% do PIB) em 2022. Para que a dívida pública pare de subir, precisamos, em um cenário muito otimista, de um superávit de, pelo menos, 1,5% do PIB. Isso significa um ajuste fiscal de, no mínimo, 2,2 pontos percentuais do PIB (1,5+0,7) ou R$ 212 bilhões.

Esse ajuste é necessário, embora não suficiente, para a economia ter chances de voltar a crescer.

As decisões políticas, contudo, seguem na contramão. As reduções de impostos já implementadas têm custo anual aproximado de R$ 40 bilhões. Há propostas de aumento de gastos com alta probabilidade de aprovação que, em uma conta conservadora, somam R$ 30 bilhões por ano, o que não inclui o custo da eventual criação de um fundo de estabilização de preços de combustíveis, aprovado no Senado, mas travado na Câmara. Se aprovado, esse fundo será uma conta em aberto, de custo elevado, como argumentei em coluna anterior.

A dissonância entre a frágil situação fiscal e a sensação de dinheiro sobrando decorre do aumento dos preços das commodities, com os quais a receita tributária federal é fortemente correlacionada.

Quando sobem os preços das commodities exportadas pelo Brasil, lucram as empresas ligadas ao setor, pagando mais impostos, royalties e, no caso de estatais, dividendos. Há, também, impacto inflacionário, pelo aumento do preço daqueles bens no mercado interno, que se transfere rapidamente à arrecadação do governo.

Dados da Receita para os 12 meses encerrados em janeiro mostram que, entre os setores econômicos que mais aumentaram o pagamento de impostos, predominam os ligados à exportação de commodities: minerais metálicos (261% de aumento), petróleo e gás (193%), agropecuária (100%). O aumento médio da arrecadação foi de 22%.

Em relatório divulgado na terça (22), o Ministério da Economia mostra que, na comparação com os valores que constam do Orçamento, a expectativa de arrecadação com royalties, dividendos e bônus de assinatura ligados à indústria do petróleo aumentou 50%, representando R$ 60 bilhões a mais.

Esse é o típico aumento de receita que está fora do controle do governo. Se o preço das commodities despencar no mercado internacional, a arrecadação tributária cairá junto. Se usarmos esse ganho temporário de receita para conceder benefícios fiscais e aumentos de gastos duradouros, quando a maré das commodities virar, nossa delicada situação fiscal se agravará ainda mais.

Foi o que aconteceu entre 2004 e 2012: houve um longo ciclo positivo de preços de commodities, e o governo expandiu despesas e benefícios fiscais. Com a queda dos preços das nossas exportações, a arrecadação caiu, mas as despesas continuaram altas e os benefícios fiscais se perpetuaram. Abriu-se grande déficit primário, o Brasil perdeu o grau de investimento, e ingressamos na recessão de 2014.

Parece que rumamos, de novo, na mesma direção. O que tem segurado a expansão de despesas é o teto de gastos. Embora ferido pelas diversas flexibilizações da regra, ele ainda está sendo capaz de segurar muitas pressões.

Por outro lado, a captura do Orçamento e da coordenação política do governo pelo centrão, somado às pretensões eleitorais do presidente, e a infiltração de interesses privados nos ministérios têm criado espaço para todo tipo de gasto e benefício fiscal paroquial e populista. Vetos presidenciais a leis que propõem mais gastos caem como moscas, atropelando cotidianamente a Lei de Responsabilidade.

Isso faz antever novas pressões contra o teto. Se houver novas flexibilizações, ou até mesmo a sua revogação por um novo presidente simultaneamente a uma queda dos preços das commodities, a deterioração fiscal se acentuará.
Uma nova crise fiscal, em um contexto de economia que não cresce há anos, governabilidade comprometida, orçamento capturado e polarização política, coloca no radar o risco de crise institucional.

Guerra de Putin exige reação econômica global coordenada, por Martin Wolf.

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Países terão que usar seus recursos fiscais para cuidar dos refugiados e compensar o impacto do aumento de preços dos alimentos sobre os mais pobres

Martin Wolf, Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.

Folha de São Paulo, 23/03/2022

O ataque de Vladimir Putin à Ucrânia vai refazer nosso mundo. Como isso acontecerá permanece indefinido. Tanto o resultado da guerra quanto, mais ainda, suas ramificações mais amplas, incluindo aquelas para a economia global, são geralmente desconhecidos. Mas alguns pontos já são muito evidentes. Vindo apenas dois anos após o início da pandemia, este é mais um choque econômico, catastrófico para a Ucrânia, ruim para a Rússia e significativo para o resto da Europa e grande parte do mundo.

Como de costume, o impacto dos refugiados é principalmente local. A Polônia já abriga a segunda maior população de refugiados do mundo, depois da Turquia. Os refugiados também estão chegando a outros países do leste europeu. Virão mais. Muitos também desejarão ficar perto de sua terra natal, esperando retornar em breve. Eles precisam ser alimentados e alojados.

No entanto, as ramificações vão muito além da Europa oriental ou mesmo da Europa como um todo, como mostra uma excelente perspectiva econômica provisória da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico). A Rússia e a Ucrânia representam apenas 2% da produção global e uma parcela semelhante do comércio mundial. Os estoques de investimento estrangeiro direto na Rússia e os da Rússia em outros lugares também representam apenas 1% a 1,5% do total global. O papel mais amplo desses países nas finanças globais também é irrelevante. No entanto, eles são importantes para a economia mundial, de qualquer modo, principalmente porque são grandes fornecedores de commodities essenciais, sobretudo cereais, fertilizantes, gás, petróleo e metais vitais, cujos preços nos mercados mundiais dispararam.

A OCDE estima que esse choque reduzirá a produção mundial este ano em 1,1 ponto percentual abaixo do que teria sido. O impacto nos Estados Unidos será de apenas 0,9 ponto percentual, mas na zona do euro será de 1,4 ponto. O impacto comparável sobre a inflação será de mais 2,5 pontos percentuais para o mundo, mais 2 pontos para a zona do euro e mais 1,4 ponto percentual para os EUA.

O aumento dos preços da energia e dos alimentos reduzirá a renda real dos consumidores muito mais do que essas perdas do Produto Interno Bruto. As receitas reais dos países importadores líquidos de energia e alimentos também serão mais afetadas do que apenas o seu PIB. Também é provável que as estimativas da OCDE sejam muito otimistas.

Isso dependerá, entre outras coisas, da duração dessa guerra maligna e da possível disseminação de sanções para a China ou de embargos às importações de energia para a Europa.

Esses impactos diretos esperados na produção são muito menores do que os da Covid: em 2020, a produção mundial acabou cerca de 6 pontos percentuais abaixo da tendência. Mas uma recuperação total da Covid não havia ocorrido antes da chegada desse novo choque, que prejudicou as relações internacionais, aumentou as preocupações com a segurança nacional e minou a legitimidade da globalização. Esta tragédia provavelmente projetará longas sombras.

Uma razão disso é seu impacto sobre a inflação e as expectativas inflacionárias. O Federal Reserve (banco central dos EUA) tornou-se mais agressivo. Mas ainda acredita em “desinflação imaculada” –a capacidade de conter a inflação sem muito, ou nenhum, aumento do desemprego. O Banco Central Europeu também enfrenta um salto da inflação, ao qual será obrigado a responder. Na prática, o aperto provavelmente prejudicará a atividade e os empregos mais do que se espera, em parte devido à fragilidade financeira.

De modo mais fundamental, o aparecimento de divisões geopolíticas entre o Ocidente, de um lado, e Rússia e China, de outro, colocará em risco a globalização. As autocracias tentarão reduzir sua dependência das moedas e dos mercados financeiros ocidentais. Tanto elas quanto o Ocidente tentarão reduzir sua dependência do comércio com os adversários. As cadeias de suprimentos serão encurtadas e regionalizadas. No entanto, observe que a dependência da Europa em partes da Ucrânia já era regional.

A política econômica tem relevância apenas limitada em tempo de guerra. Não pode salvar os que estão sendo atacados, embora possa tentar punir ou dissuadir os responsáveis. Mas pode e deve responder às consequências. A política monetária deve continuar sendo dirigida para o controle da inflação e das expectativas inflacionárias, por mais desagradável que isso possa parecer.

É possível e necessário, entretanto, que os países apliquem seus recursos fiscais para cuidar dos refugiados e compensar o impacto dos preços mais altos da energia e dos alimentos sobre os mais vulneráveis. Estes últimos incluem muitos países em desenvolvimento, especialmente importadores líquidos de energia e alimentos. Eles exigirão apoio substancial em curto prazo. Os direitos de saque especiais criados no ano passado poderão agora ser usados para esses fins. Os países de alta renda não precisam deles e deveriam doá-los ou pelo menos emprestá-los aos países mais necessitados.

A resposta a esta tragédia terá de ser muito mais do que de curto prazo. Assim como a Covid nos obriga a planejar como lidar com futuras pandemias, essa guerra deve nos forçar a pensar mais sobre segurança em um mundo mais hostil do que a maioria de nós previa ou pelo menos esperava. A segurança energética será reforçada por uma mudança ainda mais rápida para as energias renováveis. Isso não é mais algo apenas ligado ao clima. Em curto prazo, a diversificação das fontes de combustíveis fósseis também será essencial.

Mais uma vez, está claro que o Ocidente e especialmente a Europa terão que fazer um grande e coordenado aumento de sua capacidade de defesa coletiva. Isso vai custar caro. Os europeus têm recursos para serem mais independentes estrategicamente. Eles devem usá-los. Enquanto a direita isolacionista continuar tão poderosa nos EUA, isso não será apenas correto, mas sábio.

Por último, mas não menos importante, a Rússia deve permanecer um pária enquanto esse regime vil sobreviver. Mas também teremos que conceber uma nova relação com a China. Devemos continuar cooperando. No entanto, não podemos mais contar com esse gigante em ascensão para bens essenciais. Estamos em um novo mundo. A dissociação econômica agora certamente se tornará profunda e irreversível. Não vejo como evitar isso.

Momento da virada democrática, por Ilona Szabó de Carvalho.

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Estamos exaustos, mas precisamos ser resilientes para enfrentar os próximos meses

Ilona Szabó de Carvalho, Empreendedora cívica, mestre em estudos internacionais pela Universidade de Uppsala (Suécia). É autora de “Segurança Pública para Virar o Jogo”.

Folha de São Paulo, 23/03/2022

Neste ano de 2022 estamos diante de uma batalha civilizacional. Já se foram mais de três anos de um desgoverno que dispensa apresentações. Finalmente voltaremos às urnas. Há muita coisa em jogo, a começar por nossa jovem democracia. Estamos exaustos, mas precisamos ser resilientes para enfrentar os próximos meses.
Desde 2019, o Instituto Igarapé monitora veículos da imprensa e identifica os ataques ao espaço cívico, classificando os episódios de abuso de poder, violação de direitos, intimidação e assédio, dentre outras táticas usadas por líderes populistas-autoritários para minar a democracia. As reações das instituições do Estado e da sociedade civil também são registradas.

E para melhor nos preparar para o que ainda está por vir, organizamos uma retrospectiva da situação do espaço cívico no ano de 2021. Começo com uma boa notícia: mesmo diante de ofensivas antidemocráticas diárias estamos resistindo. Se por um lado mapeamos 1.551 ameaças ao espaço cívico, por outro, foram 1.349 respostas institucionais e 750 ações de resistência da sociedade. Portanto, há esperança.

Porém, ao longo de 2021, as ameaças se diversificaram e se tornaram mais graves, o que deixou ainda mais claro o objetivo de seus perpetradores: centralizar o poder, alienar a população e silenciar a oposição. O avanço no aparelhamento de órgãos-chave contribuiu para o enfraquecimento de áreas vitais como educação, meio ambiente, cultura, saúde e direitos humanos. Ao todo, foram 240 casos de abuso de poder identificados.

Por sua vez, o assédio institucional e a perseguição de servidores não alinhados cegamente ao governo agravaram o desmonte de políticas públicas. A aplicação abusiva da Lei de Segurança Nacional expôs o uso ilegítimo do aparato policial e judicial para silenciar vozes dissidentes por meio de prisões, intimações e investigações arbitrárias.

Os 325 casos contabilizados de intimidação e assédio restringiram a liberdade de expressão de jornalistas, ativistas, pesquisadores, dentre outros. Em certos casos, as agressões verbais escalaram para a violência física.

Para driblar o sistema de freios e contrapesos republicano, o governo usou e abusou de atos infralegais: consolidou-se a era do “governar por decretos”. Foram 308 decretos em 2021, muitos deles invadindo a competência do Congresso para legislar, como é o caso dos decretos sobre armas de fogo —que enfraquecem o pacto democrático em que cidadãos confiam ao Estado a sua segurança e o monopólio responsável do uso da força.

Além disso, foram identificados 142 casos de jogo duro constitucional —uso indevido de prerrogativas institucionais, forçando os limites da legalidade para obter ganhos pessoais ou para grupos políticos. Essas táticas vieram acompanhadas da escalada do discurso autoritário. O episódio do desfile de blindados, por mais caricato que tenha sido, e as manifestações de 7 de setembro foram, possivelmente, prenúncios de atos antidemocráticos que ainda estão por vir.

Nesse contexto, também ganharam palanque campanhas de descredibilização da ciência e do sistema eleitoral. Por um lado, a retórica autoritária e enganosa foi ecoada por uma onda de fake news e desinformação —412 casos—, que, somando-se à gestão irresponsável da pandemia, impactou sobremaneira a população indígena, quilombola, negra e de baixa renda —principais alvos dos 145 casos de violação de direitos civis e políticos.

E, por outro, as alegações sem provas de fraude nas eleições contribuíram para minar a confiança da população nas instituições e preparar o terreno para os ataques planejados para, no mínimo, gerar dúvida e confusão nas eleições.
Em outubro temos a chance de corrigir o rumo e voltar a trilhar o caminho da consolidação democrática. É mais que chegada a hora de virar esse jogo.

Trabalho por app pode estar empurrando pessoas para a direita, diz antropóloga

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Rosana Pinheiro-Machado recebeu uma das bolsas mais prestigiosas do mundo para coordenar pesquisa

FERNANDA CANOFRE – FOLHA DE SÃO PAULO, 21/03/2022

PORTO ALEGRE

Em países emergentes como Brasil, Índia e Filipinas, trabalhadores de plataformas como Uber e vendedores de Instagram encontraram nas redes sociais um meio de sobrevivência, mas também um ambiente fértil da extrema-direita, alinhada à ascensão dos governos atuais desses países.

Para a antropóloga brasileira Rosana Pinheiro Machado, a relação entre a inserção no mercado de trabalho desses grupos sociais e o posicionamento político de direita não são coincidência.

É possível que a própria estrutura das plataformas — seu formato altamente individualizado e focado no mérito — estejam exacerbando tendências políticas hiperliberais, argumenta.

Essa é a hipótese central de um trabalho de pesquisa que será coordenado por Pinheiro-Machado, professora da Universidade de Bath (Reino Unido).

A antropóloga foi laureada com um financiamento no valor aproximado de 2 milhões de euros (cerca de R$ 11 milhões) pelo European Research Council (da União Europeia), uma das bolsas mais prestigiosas do mundo, anunciado nesta quinta-feira (17). O trabalho deve começar em maio e tem previsão de duração de cinco anos.

Com trabalho de anos na periferia de Porto Alegre, buscando entender a identificação de trabalhadores do chamado precariado, que viveram o incentivo ao consumo dos anos de governos petistas, com as ideias do presidente Jair Bolsonaro (PL), Rosana conversou com a Folha sobre as questões do novo mundo do trabalho.

A pesquisa busca entender as contradições de países com economias emergentes, com classes sociais que apresentam tendência a apoiar autoritários. Como se chegou a essa hipótese? Quando a gente olha para a teoria de populismo, a gente tem uma deficiência que é tentar entender pelo ponto de vista do trabalhador precarizado, [fenômenos como] Donald Trump e o Brexit. Só que a relação do mundo do trabalho em países que tiveram crises depois de 2017 e países em crescimento é diferente.

É muito diferente ter aquele trabalhador estereótipo do voto do Trump, o cara que perdeu emprego na indústria, perdeu o estado de bem-estar social, e populações como na Índia, onde 80% da população rural sempre esteve na informalidade, ou mesmo no Brasil. O sentimento político é bastante diferente.

O que tem em comum entre esses três países é que todos foram considerados grandes futuras potências democráticas, todos fizeram, em cascata, uma virada autoritária, com algumas coisas em comum, próprias das contradições desses modelos.

Você tem milhões de pessoas saindo da linha da pobreza, que passaram a viver a plataformização do trabalho —não só do Uber, mas Facebook, WhatsApp, Instagram, Telegram. Pessoas que, no sentido mais amplo possível, usam alguma plataforma digital para empreender.

Esse trabalhador precarizado, aspirante a camada média, se alinha com o autoritário. A hipótese do projeto é entender até que ponto as próprias plataformas não estão exacerbando esse processo pela própria estrutura, altamente individualizada, focada no mérito, hiperliberal por essência.

Isso pode ter profundo impacto na democracia global, onde tiver plataformização. São milhões de pessoas trabalhando 20 horas por dia, no celular, recebendo conteúdo. E por ter impacto também no mundo do trabalho: massas de trabalhadores que entram num sistema de ilusão, acreditando que vão se aposentar com Bitcoins.

Tem outro aspecto que é entender quem são os influencers [influenciadores], porque entre esse trabalhador precarizado e o político populista tem um mundo de mediadores.

Que evidências existem nessa direção no Brasil, por exemplo? Quando Bolsonaro fala o oposto do “fique em casa”, que era comércio aberto, o que toda a esquerda pensa? Que ele é um genocida, e fica sem entender como uma parte da população segue gostando dele. Mas é uma parte da população que está totalmente alinhada a um projeto hiperindividualista: esse trabalhador se faz por si próprio, ele não precisa de política de Estado, ele odeia o que chama de “coitadismo”.

Muitos desses populistas têm uma mensagem direta focada na produção do inimigo interno, que é o mau trabalhador, o vagabundo, e valorizando a figura do trabalhador que vence por si próprio, que não precisa do Estado. Todo pensamento progressista vai em outra direção, pensando no Estado como provedor do bem-estar social e de direitos. Bolsonaro fala para muitos desses trabalhadores quando promove comércio aberto, uma autogestão da pandemia, que é o oposto de uma gestão coletiva.

Qual o impacto político dessa plataformização do trabalho? Essa é a maior pergunta do projeto. Toda a literatura de plataformização e política está mais alinhada em entender o fenômeno de resistência, as possibilidades de sindicalização, só que é uma possibilidade muito pequena da política das plataformas.

Grande parte desses trabalhadores não necessariamente são bolsonaristas, mas estão muito vinculados a um grau individualista e conservador, mais alinhado ao campo da direita e à despolitização do que à resistência. Nós estamos argumentando que, tão importante quanto olhar para a mobilização, é entender o que nas próprias plataformas está desmobilizando.

A nossa hipótese inicial é que, conforme vai se plataformizando, uma grande parte vai caindo na malha da extrema-direita.

Ainda não se sabe o impacto político disso nessas pessoas que estão empreendendo do seu celular 20 horas por dia. A gente tem que lembrar que elas estão entrando em lugares que não são só econômicos, mas permeados de valores políticos. Não se tem noção do que isso vai resultar daqui alguns anos em termos de subjetividade política.

A pessoa está horas trabalhando e recebendo todo tipo de informação em um lugar onde a extrema-direita tem hegemonia total, a esquerda não passa nem perto. É muito além do gabinete do ódio, eles têm um ecossistema político. Esse trabalhador está muito mais exposto a essas redes que são super empreendedoras, “faça você mesmo”, “contra vagabundo”.

Influencers, gamers, pastores pops, caras que ajudam a investir e são seguidos por milhões de pessoas, é tudo muito alinhado ao bolsonarismo. Tem um aspecto também de entender a renovação do bolsonarismo para além do Bolsonaro, como esses grupos conservadores e hiper liberais continuam recrutando membros das classes populares.

Tem todo um universo de pessoas muito mais sofisticado do que aquela fake news tosca que a gente combatia. Um ambiente muito mais persuasivo, sutil e poderoso, que é o sonho de uma ilusão de um estilo de vida.

Movimentos como o dos entregadores fascistas estão na contramão? Como eles se encaixam nesse cenário? Eles estão na contramão no sentido positivo. São um movimento quantitativamente pequeno, mas que tem papel muito importante se souberem usar as redes, criar canais de comunicação, inclusive, internacionais. Existem movimentos similares nas Filipinas, de diversos tipos, não só antifascistas, mas outras formas de cooperativas.

O mundo da resistência é muito diverso, mas está na contramão de uma avalanche dessa fase do neoliberalismo que é a destruição de tudo. Por enquanto, estamos sendo engolfados por essa lógica de profunda individualização desse trabalhador que é explorado e ao mesmo tempo quer explorar.

O apoio a governos autoritários cresceu em medida proporcional à parcela da população que passou a ter acesso à internet em países emergentes? Há uma coincidência do acesso à internet e alinhamento com a extrema-direita, mas é porque a extrema-direita, no mundo todo, se organizou com as redes sociais, não dá para saber até que ponto isso é uma conexão direta.

A gente tem, no mundo pós-pandêmico, um nível de conectividade maior e um nível de plataformização jamais visto na stória. E a gente precisa responder qual a consequência política disso, porque é um movimento que veio para ficar.

Os camelôs de Porto Alegre, que eu estudei a vida toda, durante a pandemia, foram para o Instagram. Hoje em dia, todo mundo tem celular, é caro, é difícil fazer uma aula online, mas todo mundo consegue fazer um perfil no Instagram. Estamos falando sobre o trabalhador precarizado, não sobre extrema pobreza.

Boa parte dessa pesquisa começou com uma curiosidade que eu tinha, em grupos públicos bolsonaristas, boa parte desse cluster era de grupos de vendas no WhatsApp —grupos de vendas em geral, que não eram políticos, mas onde mais circulava material bolsonarista. A gente vai olhar todas as entradas possíveis no processo.

Essa classe do chamado precariado teria força para mudar a dinâmica do capitalismo, no sentido de conseguir maior proteção social e direitos, como os movimentos de trabalhadores do século 20? Acredito que sim. O mundo todo está se precarizando, inclusive, países desenvolvidos, e não tem saída política que não seja de transformação do capitalismo via camadas precarizadas, que são grande parte da população.

Ou a gente vai entrar num buraco onde todo mundo acredita que é cada um por si, mais ou menos como está, ou a gente vai ter que ver um processo de transformação, como a renda básica universal, em que todo mundo tem o mínimo de dignidade para sobreviver. Além de movimentos, que são pequenos ainda, mas que acredito que por sua internacionalização podem mostrar que é possível ter outros modelos de trabalho.

Você afirma que é importante também entender as reações emocionais nesse contexto. As teorias do populismo sempre estão tentando entender quem é esse trabalhador que se fala em termos de nostalgia, ressentimento, ódio, porque perdeu emprego, direitos.

Eles não estão só com sentimento de raiva, também tem que entender como essas pessoas criam projetos de ilusão, quais são as aspirações dessas pessoas, quais os sonhos, como elas se iludem e o que a extrema-direita tenta entregar a elas.

Estamos num pico, no Brasil, com todo mundo tentando empreender online, o que não é sustentável, e vai ter uma onda de muita desilusão. O que o campo democrático tem a oferecer para esse mundo da desilusão? Esse mundo de pessoas empreendendo online selvagemente é muito novo.

Como vocês devem conduzir o trabalho de campo? É um desenho de pesquisa ambicioso. São três etnografias de 14 meses cada, simultâneas, uma em cada país. As cidades ainda vão ser definidas, por enquanto está previsto Rio, Manila e Nova Déli. Meses de imersão, acompanhando as vidas dessas pessoas diariamente, um pesquisador em cada país.

A gente vai criar o banco de dados para poder acompanhar o processo de plataformização desse trabalhador, e ver todas as interações com políticos, influencers e com esse mundo da extrema-direita. Ao longo de cinco anos, vamos ver a tendência de como ele começa a interagir com o material político. A nossa hipótese é que a plataformização leva muitos desses trabalhadores à extrema-direita, e que existem muitos caminhos e razões para isso.

Vamos criar esse banco de dados a partir de trabalhadores de quem a gente tem contexto. A gente vai formar também um léxico para poder fazer a captura, ver qual o sentimento, os sonhos, a revolta deles. A gente quer ouvir também quem ainda não é convertido, que fica longe da política.

Rosana Pinheiro-Machado, 42
Nascida em Porto Alegre, formada em Ciências Sociais e doutora em Antropologia pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Atualmente é professora do Departamento de Ciências Políticas e Sociais da Universidade de Bath (Inglaterra). É autora de “Amanhã vai ser maior” (Planeta, 2019).

O fim da hiperglobalização, por Ricardo Abramovay

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A Terra é Redonda – 18/03/2022

A ideia de uma comunidade global regendo todas as interações do planeta e abolindo interesses geopolíticos regionais ruiu

A ciência econômica, tal como ela se consolidou desde o final do Século XIX, afastou de seu horizonte intelectual e cultural a discussão sobre os valores ético-normativos que regem a maneira como as sociedades humanas usam os recursos materiais, energéticos e bióticos dos quais dependem. Este afastamento se radicalizou com o domínio daquilo que um número cada vez maior de economistas vem denunciando como o ultraliberalismo que marcou a disciplina, sobretudo a partir de meados dos anos 1970.

A ideia central desta vertente era que os mercados tinham uma inteligência necessariamente superior à de qualquer planejador. Esta presunção não se referia apenas ao Estado, mas ao próprio setor privado. Quem deveria ditar a forma de as empresas se organizarem não era sua direção e sim os mercados e, especialmente, os mercados financeiros. Os acionistas e os investidores deveriam ter a palavra final, expressa em números, no valor das ações e dos ativos das empresas.

As decisões empresariais seriam, por esta visão, permanentemente submetidas ao escrutínio descentralizado não de uma burocracia administrativa com interesses próprios, mas sim de uma instância sobre a qual ninguém tem controle.

A organização empresarial do século XXI extirparia, assim, o parasitismo das administrações convencionais, seria mais leve, operaria em rede e ganharia agilidade para aproveitar as oportunidades, propiciando assim maior crescimento econômico. Neil Fligstein, um dos autores mais importantes da sociologia econômica contemporânea descreveu este processo num livro fundamental publicado em 2001.

Esta ficção, que se impôs globalmente desde meados dos anos 1970, começou a desabar com a crise de 2008, mas ainda sobreviveu com impressionante arrogância, até o início da pandemia. A invasão da Ucrânia fincou definitivamente os pregos em seu caixão. A ideia de que os interesses dos indivíduos e os das empresas poderiam se exprimir numa espécie de comunidade global, onde a inovação e a eficiência seriam condições necessárias e suficientes para ampliar a riqueza, promovendo então a convergência entre os países e a abolição de interesses geopolíticos regionais, esta ideia ruiu. E com ela, ruiu igualmente outra crença ingênua, a de que a democracia resulta da capacidade de as sociedades respeitarem os mercados e prosperarem a partir deste respeito.

Dani Rodrik, professor da John F. Kennedy School of Government da Universidade de Harvard em entrevista a Daniel Rittner, no Valor Econômico, exprime bem esta ideia: “A hiperglobalização, diz Rodrik, foi um mundo no qual presumimos que preocupações geopolíticas e de segurança poderiam não apenas ser administradas, mas enfraquecidas ou até eliminadas graças à integração econômica e financeira”. A China, por exemplo, se aproximaria do Ocidente e ficaria mais democrática, graças ao poder da integração econômica, dos mercados.

Esta ilusão é igualmente denunciada por Timothy Snyder, historiador da Universidade de Yale e autor de The Road do Unfreedom no que ele chama de “política da inevitabilidade, um sentimento de que o futuro consiste em mais do próprio presente, que as leis do progresso são conhecidas…que a natureza trouxe o mercado, que trouxe a democracia, que trouxe a felicidade”.

O desabamento deste mundo e a decomposição dos mitos em que ele se apoia traz duas consequências fundamentais para o futuro das sociedades contemporâneas. Em primeiro lugar, como a pandemia já havia mostrado, a aposta na eficiência das cadeias globais de valor para a provisão dos bens e serviços necessários ao crescimento econômico, pertence ao passado. Os blocos regionais serão fortalecidos e a dependência com relação a circuitos longos será colocada sob suspeita. A geopolítica, mais que a economia, terá papel decisivo nas relações comerciais e, de forma geral, nas relações internacionais. É claro que este horizonte inspira medo, sobretudo diante da ameaça real de que os conflitos de interesse descambem para a agressão nuclear.

Mas há uma segunda consequência que, de certa forma, se contrapõe à primeira. O desabamento do que Tymothy Snyder chamou de política da inevitabilidade, do vínculo mágico entre mercado, democracia e felicidade este desabamento recoloca a discussão sobre valores ético-normativos no cerne tanto da teoria como das decisões econômicas. Aumenta de maneira impressionante a pressão para que as iniciativas das empresas e as infraestruturas planejadas pelos governos sejam norteadas não mais pela ambição geral e abstrata de promover o crescimento econômico e sim pela urgência de levar adiante o tríplice combate à crise climática, à erosão da biodiversidade e ao avanço das desigualdades.

Oferecer bens e serviços demandados pelos diferentes mercados será cada vez menos suficiente para legitimar a licença social para operar das empresas. A União Europeia já decidiu que não mais comprará commodities vindas de áreas desmatadas a partir de dezembro de 2020. A declaração de trinta e quatro organizações brasileiras que pertencem ao Observatório do Clima, propondo que as restrições europeias se apliquem não só à Amazônia, mas também ao Cerrado, à Caatinga, ao Pantanal e ao Pampa é uma importante indicação sobre a incontornável presença de valores ético-normativos (no caso, a urgência em se garantir os serviços ecossistêmicos dos quais todos dependemos) no interior dos mercados.

Outro exemplo na mesma direção e que se contrapõe à ideia de que possa existir um mecanismo automático, descentralizado capaz de assegurar um vínculo construtivo entre economia, democracia e prosperidade, vem do Banco Central Europeu que acaba de divulgar um relatório mostrando que nenhum dos 109 bancos por ele supervisionados tinha um nível satisfatório de transparência com relação às mudanças climáticas: “um montão de barulho branco e nada de substância real”, diz o relatório do BCE. Apenas 15% dos bancos divulgam dados sobre as emissões das companhias por eles financiadas.

A vantagem do fim da hiperglobalização é que ela vai exigir dos cidadãos, dos consumidores, das empresas, das organizações da sociedade civil e dos governos que todas, absolutamente todas as suas decisões sejam tomadas com base em valores ético-normativos. E como estes valores não são, felizmente, unânimes, está aberto o caminho pelo qual democracia e vida econômica poderão passar por uma construtiva fertilização recíproca. É nosso maior e fascinante desafio depois que o fanatismo fundamentalista for afastado do Planalto e da Esplanada dos Ministérios.

*Ricardo Abramovay é professor titular sênior do Instituto de Energia e Ambiente da USP. Autor, entre outros livros, de Amazônia: por uma economia do conhecimento da natureza (Elefante/Terceira Via).

Estagflação, preço do petróleo escalando e dólar questionado: anos 2020, ou anos 1970?

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A Terra é redonda – 20/03/2022

Por LEDA MARIA PAULANI*

Não é apenas a névoa da guerra que impede se vejam as coisas com clareza

Nos corredores da faculdade não se fala de outra coisa: o mundo em estagflação e a ascensão meteórica dos preços do petróleo. Para completar, especulações frequentes em torno da capacidade do dólar americano de continuar a desempenhar o papel de meio de pagamento internacional.

Uma cena desse tipo poderia estar expressando o estado das artes da economia mundial hoje, mas se passa quase cinquenta anos atrás. Eu a presenciei, nos corredores da FEA-USP, nos primeiros anos de minha graduação em Economia. Dado o caráter cíclico do processo de crescimento capitalista, poderíamos ficar tentados a pensar que se trata de fato do retorno a uma situação substantivamente similar àquela experimentada décadas atrás. Não poderia haver engano maior.

Por trás da estagflação dos anos 1970, havia quase três décadas de estupendo crescimento econômico, espraiado por praticamente todo o globo. Por trás da estagflação de agora, quatro décadas do regime de baixo crescimento inaugurado pela difusão das práticas neoliberais no início dos anos 1980, além de uma colossal crise financeira há década e meia.

Por trás do questionamento do dólar, tínhamos o esgotamento do sistema de Bretton Woods e do padrão dólar-ouro, arranjo que começava a pesar demais para a economia americana. Por trás das dúvidas atuais, várias décadas do exorbitante privilégio detido pelos EUA de emitir uma moeda inconversível demandada pelo mundo todo, apanágio só posto em xeque agora pelas escaramuças da geopolítica.

Por trás da impressionante elevação dos preços do petróleo, estava a própria desvalorização da moeda americana, consequência da desvinculação entre dólar e ouro operada por Nixon e que reduzira abruptamente, em termos reais, os preços da commodity (para não mencionar as conjecturas de que a formação da Opep, que viabilizou o choque de preços, teria sido estimulada pelos próprios americanos para atormentar a vida de Alemanha e Japão, que davam então uma surra na indústria americana e eram bem mais dependentes que os EUA das importações do produto).

Por trás do crescimento de agora, uma indústria de petróleo e de energia desestruturada e desorganizada pela pandemia, inclusive logisticamente, situação agravada sobremaneira com o aumento da tensão na Europa e com o início do conflito entre Rússia e Ucrânia (para não falar dos crescentes problemas ambientais).

Isto posto, cabe perguntar o que se pode esperar desse novo capítulo da história do capitalismo, que parece, mas não é, um remake (indesejado e de mau gosto) de uma velha película. Nos desdobramentos daqueles buliçosos anos 1970, tivemos aquilo que o economista francês François Chesnais chama de “levante neoliberal”, com a difusão, mundo afora, dos preceitos do livre mercado: a demonização do Estado e dos serviços públicos, as políticas de austeridade, a intensa abertura financeira, a prescrição generalizada para privatizar o que quer que fosse que o
Estado ainda produzisse, etc.

Mas o final dos anos 1970 trouxe também aquilo que Conceição Tavares denominou, numa expressão feliz, de “diplomacia do dólar forte”, a saber, o choque de juros provocado por Paul Volcker, então presidente do FED. A brutal elevação da taxa básica americana aspirou a riqueza financeira do mundo, fazendo desaparecer da noite para o dia a especulação em torno da “fragilidade” do dólar e de sua condição de se manter como dinheiro mundial.

Os desdobramentos que se podem esperar da situação hoje vivenciada são muito diferentes e mesmo opostos. Por mais que isso não seja explicitamente dito, é evidente que o coronavírus colocou de novo o Estado no centro da arena, pois não se combate uma pandemia senão de forma coletiva, com políticas públicas, saúde pública, orientações preventivas, campanhas de vacinação. Além disso, em inúmeros países, o Estado foi chamado em socorro de parte substantiva da população, para que as quarentenas pudessem ser respeitadas. Por fim, a eclosão de um conflito militar aberto dentro do continente europeu parece jogar por terra de vez o conto da carochinha de que a globalização e o livre fluxo de capitais levariam o desenvolvimento a todos, irmanando nos mesmos interesses, sob a batuta do capital, todas as nações. Como esperar o fortalecimento do discurso e da prática neoliberais depois desse terremoto?

Com relação ao dólar, ainda que o governo americano mantenha em mãos as mesmas armas que antes, o ambiente não é dos mais favoráveis a uma nova rodada de diplomacia do dólar forte. Em meio à estagnação mundial agravada pela incerteza produzida pela guerra, adotar tal prática significaria dar um tiro no pé, pois seria o mesmo que adotar uma política de enfraquecimento planejado da economia real americana, já muito pressionada, principalmente no campo tecnológico, pela gigante China.

Ademais, do ponto de vista de sua hegemonia, não parece haver resultado bom para os EUA neste imbroglio europeu.

Se, por um milagre qualquer, se consegue impor uma derrota militar a Vladimir Putin, é evidente que isto vai aproximar o grande país da Europa do colosso chinês (que já vinha se aproximando, aliás, independentemente do resultado da guerra), o que não parece nada bom para a continuidade do domínio americano, incluindo-se aí o poderio do dólar. Se, como é mais razoável presumir, Putin se sustenta e consegue alguma concessão do bloco Otan/EUA, então vai se tornar explícita a derrota americana em seu papel de liderança mundial, com consequências similares no que tange à arena econômica e monetária.

Considerados todos esses elementos, não há como esperar um grande fortalecimento da moeda americana no próximo período. Ao contrário, tudo parece jogar do lado oposto. Mas será que se pode então simplesmente considerar que se trata aí da inversão pura e simples do que aconteceu nos desdobramentos da crise dos anos 1970, ontem demonização do Estado, hoje revigoramento do Estado, ontem fortalecimento do dólar, hoje enfraquecimento do dólar?

A análise seria bem mais fácil se assim fosse, mas o mundo não é tão simples. Entre um e outro ponto do tempo, uma crise de sobreacumulação sistêmica irresolvida se agravou sobremaneira. Assim, mesmo com a multiplicação e a proliferação mundo afora de expedientes espoliativos e cortes aos direitos de trabalhadores, não foi possível impedir, ao final da primeira década do novo século, a eclosão de uma crise financeira internacional de dimensão só comparável ao sismo de 1929-30. A forma de reagir à crise por parte dos Estados centrais só fez aprofundar as contradições que estão na base do sistema, pois implicou a continuidade do crescimento profundamente desequilibrado entre riqueza real e riqueza financeira que o caracteriza pelo menos desde os anos 1980.

A brutal elevação da desigualdade intra e inter países e a financeirização de tudo são apenas as expressões mais visíveis desses movimentos tectônicos da acumulação. Eis o pano de fundo sob o qual se deve analisar as consequências dos eventos de hoje. Sendo assim, uma série de outras variáveis precisam entrar em cena se quisermos falar do futuro do dólar e dos Estados nacionais. É preciso lembrar aí sobretudo o domínio inconteste das formas sociais capitalistas produzido por quatro décadas de desenfreada pregação neoliberal, auxiliada pelo empurrão decisivo da mídia corporativa em todo o globo.

Se Karl Marx estava certo ao chamar a atenção para o fetiche da mercadoria e ao indicar o capital financeiro como a forma acabada desse fetiche, o mundo talvez experimente atualmente a forma de existência mais adequada a esses conceitos que já se teve oportunidade de experimentar. Nunca o mundo foi tão visto como hoje pelos olhos da forma mercadoria, nunca a transformação do capital numa coisa que parece autogerar seu próprio crescimento foi um processo tão difundido. Assim, não é apenas a névoa da guerra que pode impedir que se vejam as coisas com clareza.

As brumas produzidas pela supremacia da mercadoria capital podem ser ainda mais oclusivas.

*Leda Maria Paulani é professora titular (e sênior) da FEA-USP. Autora, entre outros livros, de Modernidade e discurso econômico (Boitempo)

Rússia impõe também a guerra do cereal, por Mathias Alencastro.

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Moscou usa diplomacia do trigo para tentar unir o sul global

Mathias Alencastro, Pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, ensina relações internacionais na UFABC

Folha de São Paulo, 21/03/2022

A batalha sangrenta pelo controle de Mariupol ocupou as manchetes da imprensa internacional na última semana.
Face ao fracasso da sua estratégica inicial, que passava pela captura rápida e triunfal de Kiev, o Exército russo concentrou os seus esforços na ocupação da cidade portuária de 400 mil habitantes. Ela é porta de entrada para o mar de Azov, um dos dois pontos de acesso do comércio marítimo da Ucrânia, o quinto maior exportador mundial de trigo em 2019.

Se a indústria de petróleo e gás é a face mais visível da economia da guerra, porque ela organiza as relações entre a Rússia e o Atlântico Norte, a outra, o agronegócio, importa talvez ainda mais para
o futuro do sul global.

Rússia e Ucrânia voltaram a ser potências globais do agronegócio nos últimos 20 anos, depois de recuperarem a infraestrutura deixada em ruínas nos anos 1990.

Juntas, elas correspondem a um terço da exportação global de cereais. Para a Rússia, controlar o mar de Azov e os portos ucranianos do mar Negro a colocaria no comando de cerca de 30% da produção de trigo mundial e fortaleceria a sua posição na África e no Oriente Médio.

Em árabe egípcio, o pão é sinônimo de “vida”, e a região do mar Negro é a base da alimentação da bacia do Mediterrâneo desde a Grécia antiga. Mas, na África do Norte e Subsaariana, pelo menos desde 2011 o pão também é sinônimo de política.

A Primeira Árabe, ou a onda de protestos que derrubou regimes e desencadeou guerras civis, teve, na sua origem, a inflação dos preços dos produtos alimentares.

Se nos petro-Estados de Argélia, Nigéria e Angola o aumento do preço de grãos pode ser compensado pelo crescimento da renda de petróleo e de gás, todos os outros regimes dependem da Rússia para a sua sobrevivência política.

Analisando os votos na ONU, já é possível constatar que a questão alimentar pesa no cálculo dos países do sul global na hora de se posicionarem sobre a guerra. Junto com a batalha da informação, que a Rússia está vencendo fora dos países ocidentais, a diplomacia do trigo está dividindo a comunidade internacional.

Resta saber se a estratégia russa vai resistir à devastação causada pela guerra.

Por enquanto, a tensão comercial gira em torno dos milhões de toneladas de trigo que estão bloqueados nos portos do mar Negro. Mas é o impacto do conflito na capacidade produtiva ucraniana que vai determinar o preço dos bens alimentares para os próximos anos e décadas.

Com a sua “operação especial”, a Rússia transformou os agricultores em refugiados ou soldados. Seus tanques estão devastando as plantações e seus mísseis destruindo a infraestrutura. Não seria a primeira vez que o setor agrícola ucraniano seria sacrificado.

O Holodomor foi uma fome politicamente organizada por Stálin, que esfomeou propositadamente os ucranianos em 1932-33 para alimentar a força de trabalho soviética em outras latitudes e regiões. Anos depois, a operação Barbarossa, de 1941, tinha como principal motivação a conquista das regiões produtoras de cereais da Rússia pela Alemanha nazista.

Estaríamos assistindo a uma repetição da história, mas desta vez com 8 bilhões de espectadores-consumidores.

Martin Wolf: ‘Democracias e autocracias passarão a entrar em conflito’

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Em entrevista, o comentarista-chefe de economia do jornal Financial Times avalia ser inevitável uma divisão do mundo em dois blocos

Entrevista com Martin Wolf, comentarista-chefe de economia do ‘Financial Times’

Luciana Dyniewicz, O Estado de S.Paulo – 20/03/2022

A globalização atingiu seu pico e começa, agora, a regredir, sobretudo com o impacto da guerra entre a Rússia e a Ucrânia, avalia o comentarista-chefe de economia do jornal Financial Times, Martin Wolf. Diante desse cenário, é inevitável que o mundo se divida em dois blocos – um liderado por Europa e EUA e outro, por China e Rússia. “Começamos a nos mover para uma era de conflitos geopolíticos entre democracias e autocracias. E isso pode durar bastante tempo.”

Para Wolf, o Brasil deverá ser um dos menos afetados por esse novo panorama. “Pelo tamanho e por suas exportações, o País será capaz de continuar comercializando com ambos os lados.” O comentarista diz ainda que o destino do Brasil depende apenas das decisões feitas por sua população e diz se preocupar com as opções de candidatos à Presidência. “Gostaria de ver um líder mais jovem, competente, que diz a verdade aos brasileiros e tenta uni-los para usar o imenso potencial que o Brasil tem.”

A seguir, os principais trechos da entrevista.

Comparação com anos 70
É razoável imaginar que o choque energético e seu impacto econômico serão um pouco menores, porque a intensidade do uso do petróleo diminuiu. Parece improvável que a inflação suba tanto quanto naquela época. Mas temos um novo elemento: a alta no preço dos alimentos. Assim, para países importadores de alimentos e de energia, pode ser pior do que nos anos 1970. Não está claro quanto tempo esse choque inflacionário vai durar, e não sabemos qual será o impacto financeiro.

Na última vez, países como o Brasil foram incentivados a tomar emprestado dinheiro para gerenciar o problema do preço do petróleo. Isso levou à crise da dívida dos anos 80. Não estamos vendo nada disso por enquanto. Devo adicionar que essa guerra é mais preocupante do que qualquer coisa que aconteceu nos anos 70. Para mim, o uso de armas nucleares parece mais perigoso agora. De qualquer modo, tenho certeza de que veremos mudanças geopolíticas e geoeconômicas decorrentes da guerra nos próximos 10 ou 15 anos que agora não conseguimos antecipar.

Estagflação
O mais óbvio para mudar essa tendência de estagflação é reverter a alta do preço da energia e dos alimentos, que já vínhamos vendo e que se acelerou na guerra. Para isso, a guerra teria de acabar e as sanções teriam de ser retiradas. Além disso, as restrições na produção de energia, que já existiam antes da guerra, teriam de ser superadas. Isso teria de incluir a aceitação, pelos europeus, da dependência do gás e do petróleo russos indefinidamente. Acho que nada disso é provável. Para mim, parece claro que a estagflação – a combinação de crescimento fraco, se não recessão, com inflação alta – durará pelo menos dois anos. E tem uma boa probabilidade, devido a uma segunda rodada de efeitos, que se prolongue mais.

Globalização
A abertura da economia em todo o mundo, isto é, a tendência para o comércio crescer mais rápido que o PIB mundial, foi uma força poderosa entre 1980 e a crise de 2008. A maior parte dos países foi afetada por isso em um grau significativo. O Brasil, pouco, mas, na Ásia, a globalização foi incrível. Desde 2008, nós não ‘desglobalizamos’, mas o comércio internacional deixou de crescer mais rápido do que o PIB global. Isso aconteceu em parte porque o ritmo de crescimento das importações chinesas diminuiu, mas também porque a globalização das redes de fornecimento atingiu um grau meio exaustivo, dado que a política de liberação do comércio meio que parou. O último grande evento da liberação do comércio global foi a entrada da China na OMC há 21 anos. Aí, é claro, a crise de 2008 desacelerou a globalização financeira. Houve um enorme aumento da detenção transfronteiriça de ativos financeiros. O investimento estrangeiro direto continuou, mas não cresceu como antes. Isso em parte por causa do choque da crise financeira e, em parte, nos últimos sete anos, porque cresceu a tensão entre o Ocidente e a China.

A China é o principal ator no processo de globalização, e a relação comércio internacional e PIB da China está diminuindo desde 2008, porque negócios, pessoas e governos estão se tornando mais desconfiados uns dos outros. A disposição para se envolver no comércio internacional e criar cadeias internacionais de suprimentos, principalmente na China, diminuiu. Finalmente, tivemos a covid, que também foi um choque para as cadeias de fornecimento. Já bem antes da guerra, o processo de globalização está mais lento, se não parado. Se você considerar tudo isso, atingimos o pico da globalização, e isso está diminuindo. Agora temos a guerra. Guerras aumentam a ideia de que precisamos de autonomia estratégica e de estar assegurados de redes de fornecimentos.

Rússia e China
A Rússia não é um país muito importante economicamente, exceto pelas commodities. Mas a China tem apoiado a Rússia. Isso está tornando europeus e americanos mais hostis do que antes. A maior mudança será na Europa, porque os americanos já eram hostis. Na Europa, vinha havendo um comprometimento para a abertura de fronteiras. Os europeus acreditam que o comércio internacional seja uma base para a paz. Os alemães, principalmente, acreditavam que o comércio com a China era lucrativo e geopoliticamente frutífero, assim como eram suas crenças com a Rússia em relação à energia. Isso começou a ser questionado no último ano.

Os europeus estão mais preocupados com a propriedade chinesa de negócios europeus e a propriedade intelectual chinesa. A agressão russa, os consequentes embargos e a indicação dos chineses de que o apoio à Rússia é inevitável vão deixar a Europa desconfiada em relação à China. Esse processo está reforçando os laços entre os EUA e a Europa, fortalecendo a Otan. Não vejo uma harmonia ocidental tão grande desde o começo dos anos 80. Por isso, acho que haverá uma ‘desglobalização’ entre os países ocidentais e a Rússia e a China. Haverá dois blocos emergindo, um ocidental-central e outro de países próximos à China e à Rússia. Os outros países terão de decidir como vão manter relações comerciais. A maioria vai querer uma boa relação com ambos. O Brasil vai querer isso por razões comerciais, preservando sua autonomia. Vai ser uma confusão. Mas começamos a nos mover para uma era de conflitos geopolíticos entre democracias e autocracias. E isso pode durar bastante tempo e ser muito profundo.

Brasil
O Brasil deve ser uma das economias menos afetadas por esse cenário. É um país grande, que está longe dos atores principais. O país mais próximo é os EUA, e os EUA não vão interferir diretamente no Brasil. A China também não.

Pelo tamanho e por suas exportações, o País será capaz de continuar comercializando relativamente livre com ambos os lados. O Brasil nunca se tornou um país muito globalizado, sua economia industrial tem sido pouco dinâmica e pouco integrada. Minha visão sempre foi a de que 90% do que determina o sucesso do Brasil são as decisões feitas pelos brasileiros: a qualidade de seus líderes.

Há, porém, alguns perigos que o Brasil tem de evitar. O setor financeiro pode ficar instável. As empresas não devem se endividar em dólar. O Brasil precisa preservar a estabilidade monetária, não permitir que se escorregue para a inflação. O País tem ido bem nessa área, mas não sei quanto isso vai durar com o populismo. E, claro, o Brasil precisa de uma liderança melhor. Não acho que exista dúvida em relação a isso e me preocupo com os candidatos à Presidência.

Futuro governo
Esperaria que um novo governo Lula fosse melhor do que um novo governo Bolsonaro, que acho que é o pior que um governo consegue ser. Bom, claramente pode ser ainda pior, como um governo Putin. Nos primeiros anos do Lula, acreditei que ele estava fazendo basicamente tudo certo. Acho que as pessoas ficaram muito confiantes em relação a isso. E ele não fez o suficiente. Não tenho a mesma esperança que tinha por Lula há 20 anos. Gostaria de ver um líder jovem, com as ideias certas, competente, que diz a verdade aos brasileiros e tenta uni-los para usar o imenso potencial que o Brasil tem.

Brasil praticamente legaliza corrupção, diz executivo da Transparência Internacional.

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Chefe da ONG no Brasil vê desmanche de políticas pós-Lava Jato e questiona ampliação do fundão eleitoral para R$ 5 bilhões

Felipe Bachtold – Folha de São Paulo, 20/03/2022

A elevação do financiamento público aos partidos e o afrouxamento de controles sobre eles geram uma situação de corrupção “quase legalizada” no país, afirma o chefe no Brasil da Transparência Internacional, Bruno Brandão.

O braço brasileiro da ONG divulgou no último dia 9 um documento pedindo que organismos estrangeiros pressionem para que o país reveja o que chama de retrocessos institucionais, frisando a questão anticorrupção.

O documento cita, por exemplo, a ampliação do fundo eleitoral público deste ano para R$ 5 bilhões e a falta de transparência nos gastos e de mecanismos de prestação de contas.

No ano passado, a reformulação da Lei de Improbidade Administrativa, aprovada no Congresso, estabeleceu que os partidos não podem mais ser processados com base nessa legislação. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), tentou ainda fazer uma megarreforma no Código Eleitoral, que foi travada no Senado.

Brandão é crítico da abordagem ao tema da corrupção dada pelas três principais candidaturas à Presidência neste ano. Diz que a pauta está obstruída e “intoxicada por disputas narrativas e de interesses”.

Sobre o ex-juiz e pré-candidato Sérgio Moro (Podemos), diz que ele hoje se restringe ao falar de sua experiência pessoal, sem propostas concretas de políticas públicas.

O relatório da entidade, de 37 páginas, critica os três Poderes e menciona a anulação de casos da Lava Jato por causa do alegado elo com crimes eleitorais e uma série de medidas do governo Jair Bolsonaro (PL), como o pagamento das emendas de relator a parlamentares.

Quais as chances de o Brasil sofrer de fato retaliações internacionais por causa das questões citadas no relatório? Não é uma possibilidade: já está sofrendo. Em 2020, em medida sem precedentes, o grupo de trabalho antissuborno da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) criou um subgrupo para monitorar a situação do Brasil [em relação ao enfrentamento da corrupção]. Na próxima reunião plenária, em junho, entregará um relatório sobre esse monitoramento. Pode ter impactos muito relevantes do ponto de vista da inserção internacional do país.

Algumas das medidas questionadas [na OCDE] são fruto de um debate acalorado nos últimos anos sobre abusos da Lava Jato. É o caso da Lei de Abuso de autoridade e a reformulação da Lei de Improbidade. A Lava Jato não mostrou a necessidade de freio de arrumação em pontos em que ocorreram abusos? Certamente essa experiência trouxe lições importantes de vários aspectos que deveriam ser corrigidos. O próprio modelo de forças-tarefas [de investigação] é institucionalmente frágil. Haveria muito o que aprimorar. O que vimos não foi uma correção de erros, foi um desmanche.

A força-tarefa da Amazônia estava fazendo um trabalho importantíssimo e também foi desmantelada.
Vemos isso em uma escala assustadora. São marcos legais que o país levou décadas para construir.

Existe uma ideia disseminada de que o clamor anticorrupção de anos atrás gerou o enfraquecimento da política e consequentemente as crises institucionais de hoje. Como o sr. vê? Um sistema político baseado na corrupção sistêmica, de financiamento ilícito de campanha, distorce a representação democrática. Torna o sistema político uma ferramenta de atuação em prol de interesses de grupos privados. O resultado é um quadro de país campeão mundial da desigualdade social.

Sobre os efeitos da Lava Jato, o setor privado se adaptou rapidamente. Identificou uma mudança no ambiente de risco, das novas leis, e transformou suas práticas. Pouquíssimas empresas tinham sistemas de conformidade.
Óbvio que ainda há muito a avançar, mas houve uma transformação, o que não ocorreu no sistema político, que parece que não aprendeu nada.

Ou aprendeu a lição equivocada, de como se tornar mais imune à aplicação da lei. Os partidos não mudaram suas práticas, a democracia interna, de transparência. Ao contrário: passaram leis que reduziram ainda mais os controles sobre a utilização de recursos públicos pelos partidos.

Ampliaram enormemente o financiamento público [de campanhas]. Ele reagiu a toda a essa experiência da Lava Jato criando mecanismos para que se blindasse disso tudo, quase que legalizando a corrupção. É uma corrupção institucionalizada, por meio da explosão [da quantidade] de recursos públicos e da redução absurda dos mecanismos de controle.

Em 2018, a corrupção foi o grande tema da eleição, o que não deve se repetir neste ano. Qual foi o saldo, não só na figura do presidente, mas das bancadas, governadores eleitos na onda? País nenhum do mundo verdadeiramente avançou na luta anticorrupção apenas na via penal. É um processo muito mais amplo de transformação das relações entre o Estado, a sociedade e o setor privado. É fundamentalmente um processo de construção de cidadania.

Isso nunca esteve no debate, nas propostas desses grupos que se aproveitaram da indignação com a corrupção. Foram incapazes de promover um debate sério sobre reformas, sobre políticas públicas.

E quais as perspectivas para esse debate na eleição de 2022? Será muito mais olhando para o passado do que para o futuro. Será uma disputa de acusações, de narrativas sobre o que aconteceu em anos passados. Com muito pouco espaço para uma discussão de reconstrução de marcos legais e institucionais.

Vemos um revisionismo, em uma disputa de interpretações do passado.

A candidatura do PT poderia valorizar o seu histórico. Foi muito por crédito de seus governos que o Brasil fortaleceu mecanismos institucionais para o combate à corrupção. Hoje, as propostas vão no sentido de questionar esse próprio legado e adotar medidas de menor independência das instituições.

O governo Bolsonaro não tem nada mais do que uma retórica populista e autoritária para esse e outros grandes temas. Seu legado foi um desmanche sem precedentes da capacidade do país de enfrentar a corrupção.

As propostas desse grupo da Lava Jato são extremamente baseadas na experiência limitada desses atores no campo do enfrentamento penal do problema. E com pouquíssimas referências naquilo que é mais relevante: a construção institucional e de políticas públicas.

A atuação política do ex-juiz Moro, destacando seu papel no Judiciário, não prejudica a credibilidade do trabalho feito, já que politiza a questão? O primeiro movimento [dele] de participar de um governo com as credenciais de Bolsonaro, explicitamente autoritário e antidemocrático, já foi algo que prejudicou muito o legado dos feitos como juiz.

Não é bom para o sistema político e nem para o sistema judicial que exista a migração tão abrupta do Judiciário.

A própria Transparência Internacional defende medidas que impõem quarentena para diversas autoridades que almejem cargo no Supremo Tribunal Federal ou para entrar no sistema político.

O problema é que essa discussão é feita no Brasil a partir de interesses de ocasião para inviabilizar uma determinada candidatura, não pensando no modelo institucional.

O sr. considera que havia motivação política nas autoridades da operação desde o começo do trabalho? Não acredito que houvesse motivação originária. São agentes que dedicaram suas vidas a essa causa. Experimentaram a realidade do
nosso sistema de impunidade.

A operação parece ter feito cálculos políticos em alguns de seus movimentos porque as defesas eram políticas. E isso acabou levando a grandes erros e excessos.

O contra-ataque para destruição do legado da operação empurra também nesse salto dos agentes para o sistema político.

É muito prejudicial para o nosso sistema judiciário porque abre uma imensa brecha para questionamentos e deteriora a credibilidade, a independência das atuações.

A Transparência Internacional questiona no relatório a interferência do governo na Polícia Federal. O diretor-geral

já foi trocado pelo presidente quatro vezes. Houve queda na produtividade? Na chegada ao poder de forças populistas autoritárias, o que primeiro fazem é capturar as instituições de controle porque são limitadoras do governante. Bolsonaro seguiu à risca o roteiro de captura do Estado.

Isso tem um impacto gigantesco para o enfrentamento da corrupção.

Muito mais grave é o controle político de um braço armado do governo federal, que pode fazer ameaças muito além,
para nosso regime democrático.

O sr. se refere à possibilidade de se tornar, digamos, uma “polícia política”? É grande a preocupação que temos hoje, não só em relação à Polícia Federal, mas a outros órgãos, que ultrapassaram o patamar de blindagem de aliados e alcançaram o patamar muito mais grave, e perigoso, de perseguição de adversários.

Sempre houve disputa de espaços dentro das instituições, mas hoje se observa de maneira explícita um movimento de retaliações contra agentes que tentam confrontar interesses. Perdem suas funções, cargos, são expostos a sindicâncias. Isso assumiu um grau alarmante.

[Há] atuação de inteligência clandestina, ilegal, que monitora membros da oposição, vozes críticas na sociedade. O grande risco que temos é a utilização desse aparato de inteligência, de espionagem, sem controle no contexto eleitoral. Pode ser o pior cenário que tenhamos que nos preocupar.

É preocupante a utilização cada vez mais disseminada de instrumentos de vigilância digital, sem os marcos adequados de controle democrático. A legislação brasileira é muito falha para o controle dessas ferramentas. Permite a aquisição sigilosa delas. Não se sabe o que hoje está em posse das Polícias Civis, do Ministério Público nos estados. Não se tem um inventário do que é utilizado como ferramenta de monitoramento, vigilância e espionagem pelo Estado brasileiro.

Na série de reportagens chamada Vaza Jato [sobre diálogos de procuradores no aplicativo Telegram], um site publicou reportagem afirmando que havia uma aliança da Transparência Internacional com o então procurador Deltan Dallagnol.

O sr. faz algum reparo em relação ao contato que havia com ele? A Transparência Internacional tem diálogo e cooperação com os órgãos anticorrupção do Ministério Público em mais de cem países. Seria impensável que não tivesse com o Ministério Público brasileiro no contexto da Lava Jato. Assinamos um acordo de cooperação formal com o Ministério Público Federal para capacitação técnica, campanhas contra a corrupção, pelo controle social.

O foco da atuação da Transparência Internacional no contexto da Lava Jato foi na formulação de propostas de reformas, de políticas públicas, que levamos à discussão da sociedade. Não temos contato hoje porque são pré-candidatos.

BRUNO BRANDÃO, 39
Economista, é diretor-executivo da Transparência Internacional no Brasil desde 2016. É mestre em gestão pública pela Universidade de York e em relações internacionais pelo Instituto Barcelona de Estudos Internacionais

A quase irrelevância da ONU, por Oded Grajew.

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Na prática, organização é dirigida pelos cinco países que têm poder de veto

Oded Grajew, Idealizador do Fórum Social Mundial, é presidente emérito do Instituto Ethos e conselheiro do programa Cidades Sustentáveis e da Rede Nossa São Paulo

Folha de São Paulo, 17/03/2022

No último dia 28 de fevereiro, reportagem publicada nesta Folha trazia o título: “Embora sem ações efetivas contra a guerra na Ucrânia, ONU ainda é relevante, dizem analistas”.
Será? A Organização das Nações Unidas foi criada em 1945, logo após a 2ª Guerra Mundial, para “preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra, unir forças para manter a paz e a segurança internacionais e promover o progresso econômico e social de todos os povos” (trechos do preâmbulo da Carta da ONU).
Por que as Nações Unidas têm falhado tanto no cumprimento de sua missão? Vejamos.

Os órgãos principais da ONU são a Assembleia-Geral (AG), que reúne todos os países membros, e o Conselho de Segurança (CS), composto por 15 membros, dos quais 5 são permanentes: China, Reino Unido, França, Rússia e Estados Unidos. Cada um dos membros permanentes tem direito de vetar qualquer resolução do CS. Por ironia, os cinco países encarregados de manter a paz no mundo têm os maiores orçamentos militares e são os maiores fabricantes de armas do planeta.

O CS é, de longe, o órgão mais poderoso da ONU. É o conselho que recomenda à Assembleia-Geral admissão de novos membros e suspensão ou expulsão de integrantes. O secretário-geral da ONU é indicado pela AG mediante recomendação do CS.

Quando é de interesse de qualquer membro permanente do CS, até a Carta da ONU é desrespeitada. O artigo 27 do documento determina que, nas decisões do Conselho de Segurança, o país que estiver envolvido nas resoluções não poderia votar. A Rússia, contudo, votou contra a resolução que condenava sua invasão à Rússia e a derrubou por ter direito a veto.

As decisões que têm efeitos jurídicos e práticos cabem apenas ao CS. Na prática, a ONU é dirigida por cinco países onde cada um, por seu direito a veto, tem o poder de aprovar ou rejeitar qualquer ação ou medida proposta por outros países ou até pela maioria das nações. Tal governança paralisa e torna a ONU quase insignificante no cenário internacional.

Digo “quase” porque a ONU tem o potencial, por suas estruturas, conhecimentos acumulados e qualidade dos seus integrantes, de ser um ator relevante na governança global. Criou agências e instituições, elaborou propostas e convenções em muitas áreas. Tem um orçamento para 2022 de US$ 3,12 bilhões.

Entretanto seria necessário rever a sua Carta para torná-la uma organização democrática, ganhando legitimidade e legalidade para implementar suas decisões. Basta aplicar o artigo 109, que determina a instalação de uma grande conferência, para reexaminá-la. É uma grande oportunidade. Mesmo que as resoluções desta conferência (e qualquer mudança na Carta) tivessem, novamente, que ser aprovadas pelo CS, a força política das decisões barraria qualquer resistência às mudanças.

O mundo, mais do que nunca, precisa de uma ONU relevante, capaz de cumprir a sua missão, sua própria razão de existir.

O desmanche da Petrobras, e como pará-lo, por Antônio Martins.

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Um feixe de políticas esdrúxulas está desmembrando e inviabilizando a empresa pública que mais pode contribuir com a reconstrução do Brasil. O PPI, que fez os combustíveis dispararem, é a ponta de um iceberg. Vamos examiná-lo a fundo

Antonio Martins é editor de Outras Palavras

Outras Palavras – 15/03/2022

Talvez nada expresse tão bem o declínio da política institucional brasileira como a ausência de um debate real sobre os preços dos combustíveis e a Petrobras. As consequências do mega-aumento da última semana estão explodindo em toda parte. Em São Paulo, um botijão de gás chegava a ser vendido, no sábado, por R$ 150 – o que equivale a dois dias e sete horas de trabalho, dos que ganham salário mínimo. Quem foi a uma feira livre no fim de semana deu-se conta de que os preços subiram entre 10% e 20% e a relação entre a alta e a gasolina estava na boca de todos, nas barracas. Mas você não encontrará, nos jornais brasileiros ou na agenda de debates do Parlamento – nem agora, nem no momento de sua implantação — o mínimo sinal de um exame efetivo a respeito da política de Preço de Paridade de Importação, o PPI, que determina estes reajustes.

Ela está relacionada a outro assunto desaparecido: o desmonte da Petrobras. Vamos examiná-lo explorando a fundo quatro movimentos aparentemente esdrúxulos e fora de qualquer lógica, inclusive a empresarial e as “de mercado”.

São eles: a) os preços estratosféricos dos combustíveis; b) os lucros descomunais de nossa estatal petroleira; c) a transferência da quase totalidade destes lucros para os acionistas privados, especialmente fundos internacionais; d) como resultado final, a redução drástica dos investimentos da empresa e o abandono, por ela (na contramão do que fazem todas as suas congêneres), das atividades econômicas que podem garantir seu futuro. A essência do neoliberalismo, no plano político, é naturalizar as decisões, apresentando-as como “as únicas possíveis”. “Não há alternativas”, ensinou Margaret Thatcher. Nosso breve estudo tentará demonstrar o contrário.

* * *

Adotado em outubro de 2016, quando Michel Temer governava e Brasil e Pedro Parente dirigia a Petrobras, (PPI – preço de paridade de importação – elevou os preços dos combustíveis entre 71,5% (botijão do gás de cozinha) e 73,67% (diesel), desde então1. Os índices são 2,3 vezes maiores que a alta da inflação no período (30,87%), medida pelo IBGE. Apesar desta enorme disparidade, o PPI parece ter se tornado uma espécie de vaca sagrada. Bolsonaro afirma não ter poderes para alterá-lo. Nenhum dos projetos em tramitação no Congresso, sobre preços de combustíveis, o questiona (o PL 1.472/2021, aprovado pelo Senado em 11/3, chega a incorporá-lo em lei. O economista Nelson Barbosa, visto pela mídia como voz influente entre os conselheiros econômicos de Lula, julga sua lógica correta.

Este aparente consenso baseia-se num conceito ilusório e num truque retórico. Afirma-se a existência de um “preço internacional dos combustíveis”. E sustenta-se que contrariá-lo significaria oferecer “subsídios” – ou seja, levar o conjunto da sociedade a pagar por produtos que, além de mais consumidos pelos mais ricos, contribuem para o colapso climático. Diante da elevação internacional das cotações de petróleo, na sequência da guerra na Ucrânia, o país deveria, ainda que contrariado, resignar-se.

Ocorre que “preço internacional dos combustíveis” é uma ficção. Há, é claro, um preço de mercado para as compras e vendas internacionais de petróleo bruto. Mas esta tabela demonstra que os preços internos dos derivados praticados por cada país têm enorme variação entre si. Ainda que excluídos Venezuela, Irã e Líbia (onde as cotações são irrisórias), a gasolina, por exemplo, oscila entre US$ 0,13 [R$ 0,63] por litro e US$ 2,831 [R$ 14,43]. Ou seja, a variação se dá numa escala de 1 para 23. É óbvio, portanto, que não existe nem sombra de um preço “natural” para os combustíveis.

Um exame mais atento da tabela permite enxergar, grosso modo, dois padrões. Os países que dependem do petróleo importado – em especial os localizados na Europa – cobram caro pelos derivados. É o caso, por exemplo, da Suécia (US$ 2,294 ou R$ 11,69, por litro da gasolina), Alemanha (US$ 2,183 ou R$ 11,13), Itália (US$ 2,116 ou R$ 10,79), França (US$ 2,095 ou R$ 10,68), ou Espanha (US$ 1,90 ou R$ 9,69). Os Estados Unidos, que produzem e consomem muito, estão numa espécie de meio-caminho (US$ 1,178, ou R$ 5,70). Vale notar que, em todos estes países, embora mais alto nominalmente, o preço do combustível é muito inferior ao brasileiro, se ponderado o poder aquisitivo de cada sociedade2.

Mas nos países que exportam ou são autossuficientes em petróleo, as cotações são totalmente distintas. É o caso de Angola (US$ 0,337 ou R$ 1,71), Rússia (US$ 0,373 ou R$ 1,90), Nigéria (US$ 0,40 ou R$ 2,04), Malásia (US$ 0,491 ou R$ 2,50 ) Iraque (US$ 0,514 ou R$ 2,62 ), ou Colômbia (US$ 0,624 ou R$ 3,18)3.

Em que grupo está o Brasil? A descoberta das jazidas do pré-sal produziu, a partir de 2013, um grande salto da produção – de 2 para 2,9 milhões de barris por dia, em apenas oito anos. Mas esta formação geológica, onde estão algumas das descobertas petrolíferas mais importantes das últimas duas décadas, pode conter, segundo estudos independentes, 176 bilhões de barris ou mais – o que colocaria o país na condição de dono da terceira maior reserva do mundo. Graças a ela, nos tornamos, a partir de 2014, importantes exportadores de petróleo: vendemos 1,3 milhão de barris por dia, em 2021.

E há duas condições especiais. A primeira é a abundância incomum do pré-sal, de onde vêm cerca de 70% do petróleo brasileiro. Um dos campos, o de Búzios, tornou-se o maior do mundo em águas profundas. Só dele foram extraídos 674 mil barris num único dia de junho de 2020 – mais que toda a produção da Índia, ou do Egito. A previsão é chegar, em alguns anos, a 2 milhões de barris de petróleo ultraleve, o de melhor qualidade.

A segunda condição é a excelência tecnológica e capacidade de inovação da Petrobrás, reconhecida por seguidos prêmios internacionais. Em Búzios, por exemplo, a extração teve de vencer uma lâmina d’água de 1.900 metros. Graças a estes dois fatores, o petróleo é retirado a preços extraordinariamente baixos: entre US$ 5 e US$ 6 por barril no pré-sal – contra mais de US$ 40 do petróleo extraído por fragmentação rochosa (fracking) nos Estados Unidos.

Com base nestes fatos, o vice-presidente da Associação dos Engenheiros da Petrobras (Aepet), Felipe Coutinho, estimou, em novembro do ano passado, a gigantesca diferença entre os preços de produção do petróleo brasileiro e os impostos à sociedade pelo PPI. Coutinho notou que o preço médio de extração (lifiting) subia, após o acréscimo dos impostos e custos de frete, a US$ 20,16 o barril. Somando-se refino, chegava-se a, no máximo, US$ 27 o barril.

Sabendo que este equivale a 159 litros e que a cotação do dólar, à época, era semelhante à de hoje (R$ 5,10), chegava-se ao custo médio, nas refinarias da Petrobras, de R$ 0,90 por litro de derivado de petróleo. Com o aumento do último dia 10, a companhia passou a cobrar, dos distribuidores, R$ 3,86 pela gasolina e R$ 4,51 pelo diesel. Sua margem de ganho atingiu, respectivamente 328% e 401%.

* * *

Fica claro, por estes números, como é absurda e interesseira a ideia de que é preciso subsidiar os combustíveis, para reduzir o preço final pago pela população. Basta anular o PPI e adotar uma política de preços que leve em conta fatores como o poder aquisitivo dos brasileiros, o controle da inflação, a necessidade de desestimular o transporte individual e transferir recursos para a transição energética e, obviamente, o justo lucro da Petrobras.

Os preços baixarão de modo expressivo, sem que a sociedade tenha de dispender, para isso, um único centavo.
Mas quais seriam, então, os objetivos do PPI? Ele expressaria um desejo sádico do ministro Paulo Guedes, de obrigar 14 milhões de famílias a voltar no tempo e a cozinhar com lenha? Ou de impor novas perdas a categorias já submetidas a trabalho exaustivo – como os motoristas de aplicativos e os caminhoneiros?

Nos próximos capítulos, veremos que não. O PPI é a ponta de lança de um conjunto de políticas aparentemente disparatadas – mas necessárias, em seu conjunto, para eliminar o caráter de empresa pública da Petrobras. O efeito mais imediato é desnacionalizar o refino de petróleo. Os preços abusivos estimulam, desde já, empresas estrangeiras a importar combustíveis (o que é totalmente desnecessário). Mais adiante, viabilizarão a venda das refinarias brasileiras, já alardeada pela direção da estatal e iniciada, com a venda da RLAN baiana ao fundo Mubadala Capital, do emirado de Abu Dhabi.

Os objetivos a longo prazo são ainda mais graves e também estão sendo executados. Se perder seu caráter de empresa pública – se continuar afastando-se de atividades essenciais à sociedade, como a petroquímica, a produção de fertilizantes, a distribuição de combustíveis, a pesquisa científica, o estímulo à indústria nacional ou a transição energética — a Petrobras perderá, mais que a viabilidade econômica, o sentido de existir. A descoberta do pré-sal terá sido, para a empresa, a maldição que a destruiu. E, como veremos à frente, o Brasil terá se privado das imensas possibilidades que a riqueza petroleira oferece para a reconstrução nacional.

Eliminar esta brecha – matando a Petrobras – é um objetivo que Jair Bolsonaro já explicitou. Para alcançá-lo, precisa de Paulo Guedes, da aristocracia financeira e… do PPI. Aqui está um calcanhar-de-Aquiles: a derrota do bolsonarismo pode salvar a Petrobras. Mas a defesa da empresa pública, do que ela foi e principalmente do que pode vir a ser, é parte essencial da disputa decisiva que o Brasil viverá este ano. A ela se dedica esta série de textos

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1 Em outubro de 2016, o botijão custava R$ 69,21; a gasolina, R$ 4,458 e o diesel, R$ 3,76. A Agência Nacional de Petróleo ainda não divulgou os valores médios dos combustíveis, no varejo, após o mega-aumento. Para o cálculo, utilizamos os valores anteriores, acrescidos dos percentuais de reajuste nas refinarias determinado em 10/3 pela Petrobras.
2 A rende per capita dos norte-americanos é 5,95 vezes maior que a dos brasileiros. A dos suecos, 5,27 vezes maior; a dos alemães, 4,49 vezes; a dos franceses, 3,91 vezes; a dos italianos, 3,25 vezes; e a dos espanhóis, 2,87 vezes.
3Há uma única exceção, entre os grandes exportadores: a Noruega, em que os derivados estão dentro do padrão europeu devido ao uso consciente – e maciço – da riqueza petrolífera para financiar a transição energética.