Moratória para as dívidas das famílias, não para os precatórios, por Carlos Vainer.

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Credores privilegiados nunca deixam de receber a ‘bolsa banqueiro’

Folha de São Paulo, 03/11/2021

Carlos Vainer Professor titular do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da UFRJ

Está nos dicionários: prorrogação, adiamento ou parcelamento de uma dívida se chama moratória, seja decretada unilateralmente ou de acordo entre credores e devedores. Logo, a PEC dos precatórios tem nome: moratória.

Esta moratória pública viria se juntar a uma infinidade de dívidas não honradas pelo Estado brasileiro —em primeiro lugar, a dívida social, que torna fictícios os direitos constitucionais à saúde, educação, assistência social, moradia, meio ambiente equilibrado; em segundo lugar, a dívida com as universidades, a ciência e a cultura. As moratórias dessas dívidas foram decretadas unilateralmente pelos governos.

O calote social tem valores incalculáveis, mas suas consequências são mensuráveis: avanço da miséria, 100 milhões de brasileiros em situação de insegurança alimentar, redução da expectativa de vida, recuo da vacinação infantil, degradação da escola pública…

O calote universitário, científico, tecnológico e cultural se expressa na degradação de nossos laboratórios e universidades, no sucateamento de nossos equipamentos culturais e na desmontagem de políticas de apoio aos agentes que promovem a cultura enquanto bem público.

Há, porém, uma dívida privilegiada, a única que os analistas designam pomposa e respeitosamente de dívida pública, sempre honrada de maneira escrupulosa: aquela de que são credores os detentores de Títulos do Tesouro. Apenas em 2020, o montante executado com os juros da dívida pública federal foi de R$ 347 bilhões (R$ 515 bilhões, segundo cálculos da Auditoria Cidadã da Dívida), quase 10% (ou mais) do dispêndio total da União (R$ 3,535 trilhões).

Comparados a estes valores, tanto os R$ 600 milhões surrupiados do CNPq quanto os R$ 90 bilhões dos precatórios são ninharia.

Quem são estes privilegiados credores que nunca deixam de receber? Mais de 50% são instituições financeiras, fundos de investimento e seguradoras; 25% são fundos de previdência e 12% são estrangeiros. É a “bolsa banqueiro”.

Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor, realizada pela Confederação Nacional do Comércio, informa o que acontece do outro lado da sociedade: em setembro de 2021, foi alcançado o recorde de famílias endividadas.

São hoje 74%. O número de famílias com pagamentos atrasados atingiu 25% do total. A situação é pior para as famílias mais pobres, com renda de até 10 salários mínimos: são 75% as endividadas e 28% as inadimplentes.

Enfrentando desemprego e subemprego, redução da renda e inflação crescente, muitas famílias comprometem 30% de tudo o que ganham com o pagamento de dívidas.

A decantada democratização dos cartões de crédito, do crédito ao consumidor e do crédito consignado mostra sua face perversa: a submissão de cidadãos e cidadãs a uma verdadeira escravidão por dívida, já que trabalham para pagar dívidas. E nem interessa aos credores que paguem a dívida, mas que se endividem e paguem os juros —pelo resto de suas vidas.

No momento em que a dupla. Guedes-Bolsonaro vai ao Congresso para validar a moratória dos precatórios, é chegada a hora de que este mesmo Congresso alivie a carga da dívida que submete dezenas de milhões de brasileiros e brasileiras.

Uma medida bastante simples seria a moratória, pelo prazo de 24 meses, de todas as dívidas inferiores a R$ 50 mil e, no caso das dívidas contraídas para aquisição de imóvel, de todas aquelas inferiores a R$ 150 mil. Seria um ônus pequeno para aqueles rentistas que acumulam muitas dezenas de milhões de reais com juros da dívida pública. Por outro lado, teria impacto muito positivo sobre as condições de vida de milhões, e, como efeito derivado, provocaria aumento da demanda, favorecendo a retomada da economia produtiva em detrimento da economia dos rentistas financeiros. Nada mais justo.

Pandemia, Desigualdade e Concentração de Renda: Consideração sobre Brasil e o Mundo Contemporâneo

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O artigo foi escrito pelo professor Ary Ramos da Silva Júnior, em quatro mãos com a professora Deise Marques da Silva Ramos, foi escrito para o segundo volume do livro “Tecnologias Aplicadas ao Agronegócio” (no prelo), organizado pelos professores da Faculdade de Tecnologia de Rio Preto.

O abraço do dragão: As relações comerciais entre Brasil e China num ambiente de competição e interdependência na economia globalizada.

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O artigo foi escrito pelo economista e Professor Universitário Ary Ramos da Silva Júnior tem por objetivo analisar o crescimento do comércio internacional entre Brasil e China, num período de quarenta anos a China se transformou no grande parceiro comercial brasileiro, aumentando as exportações de produtos primários para o país asiático e aumentando a dependência das importações de produtos industrializados… Este artigo faz parte do livro “Tecnologia Aplicada ao Agronegócio – Volume I, Editora Virtual Books, 2020.

Globalização, Trabalho, Emprego e Tecnologia: As Transformações no mundo do Trabalho e os impactos sobre a sociedade contemporânea

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O Artigo do professor Ary Ramos da Silva Júnior, foi publicado a quatro mãos com a professor Amilton do Prado, em homenagem aos 50 anos do curso de Administração do Centro Universitário de Rio Preto (Unirp), na coletânea “Administração e Contemporaneidade: Desafios Atuais e Possibilidades Futuras”, Editora Virtual Books, 2021.

Identidade e Formação Profissional: Revisitando Competências Essenciais e o Currículo do Administrador.

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O Artigo do professor Ary Ramos da Silva Júnior, foi publicado a quatro mãos com a professora Rosa Maria Furlani, em homenagem aos 50 anos do curso de Administração do Centro Universitário de Rio Preto (Unirp), na coletânea “Administração e Contemporaneidade: Desafios Atuais e Possibilidades Futuras”, Editora Virtual Books, 2021.

‘Desenvolvimento’ predatório na Amazônia, por Márcia Castro.

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Historicamente, a região passou por ciclos econômicos de exploração de recursos

Marcia Castro Professora de demografia e chefe do Departamento de Saúde Global e População da Escola de Saúde Pública de Harvard

Folha de São Paulo, 01/11/2021

A 26ª conferência das Nações Unidas sobre mudanças climáticas, COP26, acontece entre os dias 31 de outubro e 12 de novembro. O Brasil, que criou um Comitê Interministerial sobre Mudança do Clima e Crescimento Verde dias antes do início da COP 26, participa do evento sem a presença do presidente Bolsonaro.

Apresentará a meta de reduzir emissões de gases poluentes em 37% até 2025, em 43% até 2030 e atingir neutralidade de carbono em 2050. A forma como essa meta será cumprida não foi detalhada. E defendê-la como crível na COP26 será impossível, tendo em vista o acelerado aumento nas taxas de desmatamento e emissão de gases poluentes.

Ou seja, a proposta a ser apresentada não condiz com ações e desempenhos recentes, nem tão pouco com o discurso de “passar a boiada”.

Esse cenário atual não é novo. É, de fato, uma continuidade de um modelo de desenvolvimento para a Amazônia, que se baseia na exploração de recursos naturais, sem levar em conta a população local, suas necessidades, sua cultura, seu conhecimento de como viver na floresta sem a destruir.

Historicamente, a Amazônia passou por ciclos econômicos de exploração de recursos. Dois ciclos da borracha foram importantes: entre 1879 e 1912, quando cerca de 120 mil nordestinos migraram para a Amazônia após a grande seca de 1877-79, e durante a Segunda Guerra Mundial, quando os “soldados da borracha” migraram para a Amazônia para trabalhar na extração da seringa.

Em ambos, as condições sanitárias não eram adequadas, e a assistência pós-ciclo praticamente inexistente.
Entretanto, um dos mais perversos ciclos econômicos ocorreu durante a ditadura militar. A linguagem da estratégia do governo deixava claro o objetivo de exploração de recursos naturais e o total descaso com a população local. Mensagens como “integrar para não entregar”, “terra sem homens para homens sem terra” e “chega de lendas, vamos faturar” surgem nessa época.

Esse modelo distorcido de desenvolvimento deixou um rastro de destruição ambiental, violação de direitos humanos, exploração ilegal em terras indígenas e áreas de reserva florestal, e aumento expressivo da transmissão de malária.

Além disso, a riqueza que saiu da Amazônia não beneficiou a população local, e a região concentra os piores índices nacionais de desigualdade de renda, de acesso a infraestrutura (água e esgoto), e de distribuição de serviços e recursos humanos de saúde, dentre outros.

A perpetuação de um modelo predatório de desenvolvimento cria profundas cicatrizes na estrutura social e ambiental da Amazônia. Acima de tudo, esse modelo ignora que a maior riqueza da Amazônia está na floresta preservada e nos conhecimentos locais.

A floresta preservada é fundamental para o equilíbrio climático, e a continuidade do desmatamento em larga escala pode reduzir as chuvas e resultar em condições de calor extremo no Brasil.

Já o conhecimento local é a chave de um desenvolvimento sustentável, e práticas locais de extração de recursos sem agressão a floresta que já existem precisam ser reconhecidas, apoiadas e expandidas, assim como novas práticas devem ser incentivadas.

A mudança desse modelo predatório requer comprometimento político com uma agenda ambiental construtiva e inclusiva; um comprometimento com a verdade, a ciência, a história, a cultura, e com o povo.

Se em 1992 o Brasil sediou a Rio 92 e assumiu um protagonismo internacional no debate ambiental, em 2021, lamentavelmente, o país chega desacreditado na COP 26.

Pátria (dif)amada Brasil.

O vírus capitalista do cansaço incessante, por Byung-Chul Han.

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Depressão e esgotamento, que transbordam na pandemia, são sintomas de profunda crise de liberdade. Encontros, que revigoram a vida, sucumbem. Descarnados, somos reduzidos a nós mesmos — bem ao gosto neoliberal

Byung-Chul Han – OUTRASPALAVRAS – 13/05/2021

A covid-19 é um espelho que reflete em nós as crises da nossa sociedade. Ela torna os sintomas patológicos — que já existiam antes da pandemia — mais visíveis. Um desses sintomas é o cansaço. Todos nós, de um jeito ou de outro, nos sentimos muito cansados. É um cansaço fundamental que nos acompanha o tempo todo e em todo lugar, como nossas próprias sombras. Durante a pandemia, temos nos sentido ainda mais cansados. A ociosidade, que o lockdown nos impõe, nos faz ficar mais cansados. Algumas pessoas afirmam que é possível descobrirmos a beleza do lazer, e que a vida pode desacelerar. Na verdade, o tempo durante a pandemia não é governado por lazer ou desaceleração, mas por cansaço e depressão.

Por que nos sentimos tão cansados? Hoje, o cansaço parece ser um fenômeno global. Dez anos atrás, publiquei um livro, A Sociedade do Cansaço, no qual eu descrevia o cansaço como uma doença que aflige a sociedade neoliberal das realizações. O cansaço que experimentamos durante a pandemia me fez pensar no assunto novamente. O trabalho, por mais difícil que seja, não provoca um cansaço fundamental. Podemos estar exaustos depois do trabalho, mas esse cansaço não é o mesmo que o cansaço fundamental. O trabalho, em determinado ponto, acaba. A compulsão de realização à qual nos sujeitamos vai para além desse ponto. Está conosco nas horas de lazer, nos atormenta até durante o sono e, muitas vezes, nos faz passar noites sem dormir. Não é possível recuperar-se da compulsão de realização. É essa pressão interna, especificamente, que nos cansa. Portanto, há uma diferença entre cansaço e exaustão. O tipo certo de exaustão pode até nos livrar do cansaço.

Distúrbios psicológicos como a depressão ou o esgotamento (burnout) são sintomas de uma profunda crise de liberdade. São um sinal patológico, e indicam que a liberdade de hoje muitas vezes acaba virando compulsão. Achamos que somos livres. Mas, na verdade, nós nos exploramos intensamente até colapsar. Nos realizamos e nos otimizamos até a morte. A lógica traiçoeira da conquista nos obriga a nos anteciparmos permanentemente. Sempre que conquistamos algo, na sequência, já queremos conquistar mais, ou seja, queremos estar mais uma vez à frente de nós mesmos. Mas, obviamente, é impossível você mesmo se ultrapassar. Essa lógica absurda acaba levando a um colapso. O sujeito realizador acredita que é livre, quando na verdade é um escravo. É um escravo absoluto na medida em que se explora voluntariamente, mesmo sem a presença de um senhor.

A sociedade neoliberal da realização torna essa exploração possível mesmo quando não há dominação. A sociedade disciplinar, com seus mandamentos e proibições, que Michel Foucault expôs em seu livro Vigiar e Punir, não descreve essa sociedade da realização atual. A sociedade da realização explora a própria liberdade. E a auto exploração é mais eficiente do que a exploração comandada por outros, porque ela anda de mãos dadas com um sentimento de liberdade. Kafka expressou com grande clareza o paradoxo da liberdade do escravo que acredita ser o senhor. Em um de seus aforismos, ele escreve: “O animal arranca o chicote de seu dono e se chicoteia para tornar-se seu próprio amo, sem saber que isso não passa de uma fantasia produzida por um novo nó na chicotada do amo”. Essa autoflagelação permanente nos deixa cansados e, em última análise, deprimidos. Em certo aspecto, o neoliberalismo se baseia na autoflagelação.

O mais sinistro sobre a covid-19 é que aqueles que pegam a doença sofrem exatamente de cansaço e esgotamento extremos. A doença parece simular um cansaço fundamental. E há cada vez mais relatos de pacientes que se recuperaram, mas que continuam sofrendo de sintomas graves a longo prazo, entre eles, a “síndrome da fadiga crônica”. Uma expressão que descreve isso muito bem é: “as baterias não carregam mais”. As pessoas afetadas não são mais capazes de trabalhar e ter algum desempenho. Elas precisam fazer um esforço até para servir-se de um copo d’água. Ao caminhar, precisam fazer paradas frequentes para recuperar o fôlego. Sentem-se mortos-vivos. Um paciente relata: “A sensação é como se você tivesse o celular com apenas 4% de bateria, e você realmente só tem esse 4% para o dia inteiro e não pode recarregá-lo”.

Mas o vírus não cansa apenas as pessoas que têm ou tiveram covid. Agora, ele gera cansaço até nas pessoas saudáveis. Em seu livro Pandemic! Covid-19 Shakes the World (“Pandemia! A covid-19 sacode o mundo”), Slavoj Žižek dedica um capítulo inteiro à pergunta: “Por que estamos cansados o tempo todo?” Claramente, Žižek também sente que a pandemia nos deixou cansados. Neste capítulo, o autor discorda da ideia do meu livro, A Sociedade do Cansaço, argumentando que a exploração por terceiros não foi substituída pela auto exploração, foi apenas transferida para países do Terceiro Mundo. Concordo com Žižek que esta transferência ocorreu. A Sociedade do Cansaço refere-se principalmente às sociedades neoliberais ocidentais e não à situação do operário chinês. Mas, com ajuda das mídias sociais, a forma de vida neoliberal também vem se expandindo pelo Terceiro Mundo. A ascensão do egoísmo, da atomização e do narcisismo na sociedade é um fenômeno global. As mídias sociais fazem de todos nós produtores, empreendedores cujas vidas são o negócio. Globalizam a cultura do ego que corrói a comunidade, corrói tudo o que é social. Nós nos produzimos e nos colocamos em exposição permanente. Essa autoprodução, essa contínua “exibição em vitrine” do ego, nos deixa cansados e deprimidos. Žižek não aborda este cansaço fundamental, que é característico dos nossos tempos e que foi agravado pela pandemia.

Žižek surge numa passagem de seu livro pandêmico para aquecer a tese da auto exploração, escrevendo: “Elas [pessoas que trabalham em casa] poderão ter ainda mais tempo para ‘explorar a nós mesmos’ [sic]”. Durante a pandemia, o campo de trabalho neoliberal ganhou um novo nome: home office. Trabalhar em casa é mais cansativo do que trabalhar no escritório.

No entanto, isso não pode ser explicado em termos de aumento da auto exploração. O que é cansativo é a solidão envolvida, o interminável sentar-se de pijama na frente do computador. Somos confrontados com nós mesmos, compelidos constantemente a meditar e especular sobre nós mesmos. Em conclusão, o cansaço fundamental é um tipo de cansaço do ego. O escritório doméstico intensifica isso, envolvendo-nos ainda mais profundamente conosco. Fazem falta outras pessoas, que poderiam distrair-nos do nosso ego. Cansamos por falta de contato social, de abraços, de toque corporal. Em condições de quarentena, começamos a perceber que talvez as outras pessoas não sejam o “inferno”, como escreveu Sartre em Sem Saída, mas a cura. O vírus também acelera o desaparecimento do outro, como descrevi em A Expulsão do Outro.

A ausência do ritual é outra razão para o cansaço induzido pelo home office. Em nome da flexibilidade, estamos perdendo as estruturas e arquiteturas temporais fixas que estabilizam e revigoram a vida. A ausência de ritmo, em particular, intensifica a depressão. O ritual gera comunidade mesmo sem necessidade de comunicação, enquanto que hoje prevalece a comunicação sem comunidade. Mesmo aqueles rituais que ainda mantínhamos, como jogos de futebol, shows e idas a restaurantes, ao teatro ou ao cinema, foram cancelados. Sem rituais de encontro ou comemoração, somos jogados às profundezas de nós mesmos. Ser capazes de cumprimentar pessoas cordialmente é que nos torna seres, e não um simples peso. O distanciamento social desmonta a vida social. Isso nos cansa. As outras pessoas são reduzidas a potenciais portadoras do vírus, das quais devemos manter uma distância física. O vírus amplifica nossas crises atuais. Está destruindo a comunidade, que já estava em crise. Isso afasta uns dos outros. Isso nos torna ainda mais solitários do que já éramos nesta era de mídia social que reduz o social e nos isola.

A cultura foi a primeira coisa a ser abandonada durante o lockdown. O que é a cultura? Ela gera comunidade! Sem ela, não passamos de animais apenas querendo sobreviver. Não é a economia, mas sobretudo a cultura, a chamada vida comunitária, que precisa se recuperar desta crise o mais rápido possível.

As constantes reuniões de Zoom também nos deixam cansados. Elas nos transformam em zumbis do Zoom. Nos obrigam a nos olharmos permanentemente no espelho. Olhar para o próprio rosto na tela é cansativo. Somos continuamente confrontados com nossos próprios rostos. Ironicamente, o vírus apareceu justamente nos tempos da selfie, moda que pode ser explicada como decorrente do narcisismo de nossa sociedade. O vírus intensifica esse narcisismo. Durante a pandemia, todos nós somos constantemente confrontados com nossos próprios rostos; produzimos uma espécie de selfie sem fim na frente de nossas telas. Isso nos cansa.

O narcisismo do Zoom produz efeitos colaterais peculiares. Ele levou a um boom nas cirurgias estéticas. Imagens distorcidas ou borradas na tela levam as pessoas ao desespero, enquanto se a resolução da tela for boa, de repente detectamos rugas, calvície, manchas hepáticas, bolsas nos olhos e outras imperfeições da pele pouco atraentes.

Desde o início da pandemia, as pesquisas no Google por cirurgia estética dispararam. Durante o bloqueio, os cirurgiões plásticos foram inundados com perguntas de clientes que buscavam melhorar sua aparência cansada. Fala-se até de uma “dismorfia do Zoom”. O espelho digital incentiva essa dismorfia (a preocupação exagerada com supostas falhas na aparência física). O vírus leva ao limite o frenesi de otimização, que já nos dominava antes da pandemia.

Também, aqui, o vírus é um espelho da nossa sociedade. E no caso da dismorfia do Zoom, o espelho é real! Cresce em nós o puro desespero com nossa aparência. A dismorfia do Zoom, essa preocupação patológica com nossos egos, também nos cansa.

A pandemia também revelou os efeitos colaterais negativos da digitalização. A comunicação digital é muito unilateral e atenuada: não há olhares, não há corpos. Falta a presença física do outro. A pandemia faz com que essa forma de comunicação, essencialmente desumana, se torne a norma. A comunicação digital nos deixa muito, muito cansados. É uma comunicação sem ressonância, uma comunicação sem felicidade. Em uma reunião do Zoom, não podemos, por razões técnicas, nos olhar nos olhos. Tudo o que fazemos é olhar para a tela. A ausência do olhar do outro nos cansa. Esperançosamente, a pandemia nos fará perceber que a presença física de outra pessoa é algo que traz felicidade, que a linguagem implica experiência física, que um diálogo bem-sucedido pressupõe corpos, que somos criaturas físicas. Os rituais que temos perdido durante a pandemia também implicam em experiência física. Eles representam formas de comunicação física que criam comunidade e, portanto, trazem felicidade. Acima de tudo, eles nos afastam de nossos egos. Na situação atual, o ritual seria um antídoto para o cansaço fundamental. O aspecto físico também é inerente à comunidade como tal. A digitalização enfraquece a coesão da comunidade na medida em que tem o efeito de desencarnar. O vírus nos afasta do corpo.

A obsessão com a saúde já era galopante antes da pandemia. Agora, estamos basicamente preocupados com a sobrevivência, como se estivéssemos em um estado de guerra permanente. Na batalha pela sobrevivência, a questão de uma vida boa não entra em jogo. Apelamos a todas as forças da vida, só para prolongar a vida a qualquer custo. Com a pandemia, esta batalha feroz pela sobrevivência sofre uma escalada viral. O vírus transforma o mundo em uma enfermaria de quarentena, na qual a vida é congelada para nossa sobrevivência.

Hoje, a saúde passou a ser o principal objetivo da humanidade. A sociedade de sobrevivência perdeu o sentido da boa vida. Até o prazer é sacrificado no altar da saúde, que se torna um fim em si. Nietzsche já a chamava de nova deusa. A proibição ao cigarro também expressa a mania pela sobrevivência. O prazer tem que dar lugar à sobrevivência. O prolongamento da vida torna-se o valor mais alto. No interesse da sobrevivência, sacrificamos voluntariamente tudo o que torna a vida digna de ser vivida.

A razão exige que, mesmo em pandemia, não sacrifiquemos todos os aspectos da vida. É tarefa da política garantir que a vida não se reduza a uma vida plana, nua e crua, à mera sobrevivência. Eu sou católico. Gosto de frequentar igrejas, especialmente nestes tempos estranhos. No ano passado, no Natal, participei de uma Missa do Galo que aconteceu apesar da pandemia. Isso me deixou feliz. Infelizmente, não havia incenso, coisa que eu amo muito. Eu me perguntei: será que há também uma proibição estrita dos incensos durante a pandemia? Por quê? Ao sair da igreja, estendi a mão para a bacia de água benta, como de costume, e tomei um susto ao perceber que ela estava vazia. Do lado dela, foi colocado um frasco de desinfetante.

Corona blues é o nome que os coreanos deram à depressão que se espalha durante a pandemia. Em quarentena e sem interação social, a depressão se aprofunda. A depressão é a verdadeira pandemia. A Sociedade do Cansaço partiu do seguinte diagnóstico:

Em breve teremos vacinas suficientes para vencer o vírus. Mas não haverá vacinas contra a pandemia da depressão.

A depressão também é um sintoma da sociedade do burnout. O sujeito da realização sofre de burnout no momento em que ele não é mais capaz de “ser capaz”. Ele não consegue atender à sua demanda autoimposta para ser produtivo e realizar metas, propósitos. Não ser mais capaz de “ser capaz” leva à auto-recriminação destrutiva e à autoagressão.

O sujeito da realização trava uma guerra contra si mesmo e morre nela. A vitória nessa guerra contra si mesmo é chamada de esgotamento.

Vários milhares de pessoas cometem suicídio todos os anos na Coreia do Sul. A principal causa é a depressão. Em 2018, cerca de 700 crianças em idade escolar tentaram se suicidar. A mídia fala até em um “massacre silencioso”. Em contraste, até agora apenas 1.700 pessoas morreram de covid-19 na Coreia do Sul. A altíssima taxa de suicídio é simplesmente aceita como um efeito colateral da sociedade da realização. Nenhuma medida significativa foi adotada para reduzir essa taxa. A pandemia intensificou o problema do suicídio — na Coreia do Sul, a taxa de suicídio aumentou rapidamente desde seu início. O vírus, aparentemente, também agrava a depressão. Mas em todo o mundo não se presta atenção suficiente às consequências psicológicas da pandemia. As pessoas foram reduzidas à existência biológica. Todos ouvem apenas os virologistas, que assumiram autoridade absoluta na hora de interpretar a situação.

A maior crise causada pela pandemia é o fato de que a vida, sozinha, tenha virado um valor absoluto.

O vírus da covid-19 desgasta nossa sociedade já esgotada, aprofundando as linhas das falhas sociais patológicas.

Isso nos leva a um cansaço coletivo. O coronavírus também poderia ser chamado de vírus do cansaço. Mas o vírus também é uma crise no sentido grego de krisis, o que significa um ponto de inflexão. Pois também pode nos permitir reverter nosso destino e fugir de nossa angústia. Ela apela, com urgência: mude de vida! Mas só conseguiremos fazer isso se revisarmos radicalmente nossa sociedade, se conseguirmos encontrar uma nova forma de vida imune ao vírus do cansaço.

Valorizado durante a pandemia, SUS ainda precisa de mais atenção, por Armínio Fraga.

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Para especialista, o sistema brasileiro é subfinanciado e investir em saúde pública não tem sido uma prioridade

Entrevista Armínio Fraga

Ocimara Balmant, O Estado de S.Paulo – 30/10/2021

Nos próximos 20 a 30 anos, o Brasil terá de aumentar em três ou quatro pontos do PIB o seu investimento em saúde. A projeção está no primeiro estudo do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (Ieps). O órgão foi fundado recentemente pelo economista Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central, com o objetivo de contribuir para o aprimoramento das políticas públicas do setor de saúde no Brasil.
“Temos um sistema de saúde subfinanciado. O que se percebe é que a saúde pública não tem sido prioridade: quanto e como gastar não aparecem no debate público sobre o que fazer com o nosso dinheiro”, afirma o especialista, que participou do Summit Saúde 2021 com a palestra Caminhos para o Sistema de Saúde.

Na entrevista a seguir, Fraga aborda financiamento e desigualdade no SUS e aponta alguns caminhos para a melhoria do sistema de saúde brasileiro.

O Brasil gasta 9% do PIB em saúde, o que é similar aos gastos do Reino Unido, que tem um sistema universal e gratuito como o SUS. O problema aqui é a divisão entre recursos destinados para a saúde privada e a pública, não é mesmo?
Sim. O curioso e surpreendente é que, no Brasil, a divisão é única no mundo: 4% em saúde pública e 5% em saúde privada. Isso surpreende porque o gasto público cobre três quartos da população e 5% do PIB vão para um quarto da população. É uma situação esdrúxula e permite uma afirmação de que nosso sistema de saúde é subfinanciado. Eu tenho defendido a ideia de uma grande revisão dos gastos do Estado. Isso requer uma reflexão política: nossos representantes precisam sair do varejo da política e olhar para o grande mapa, para um crescimento sustentável e inclusivo.

A projeção de um estudo realizado pelo Ieps é que, entre os próximos 20 e 30 anos, será preciso aumentar de três a quatro pontos do PIB no investimento em saúde. Quais os fatores que levam a essa projeção e qual o caminho para aumentar esse porcentual?
Os fatores principais são o crescimento da renda e da curva demográfica. As pessoas com mais renda vão querer cuidar mais da saúde – seja diretamente, com gasto privado, ou indiretamente, por meio do Estado. Os sistemas de saúde vão ter de resolver isso. Nos sistemas que não são universais, as pessoas vão ter de gastar mais do orçamento familiar. No sistema público, a carga tributária destinada à saúde vai ter de aumentar. No Brasil, isso é um desafio, porque a nossa situação fiscal é muito fragilizada e o que se percebe é que a saúde pública não tem sido prioridade – quanto e como gastar não aparece no debate público sobre o que fazer com o nosso dinheiro.

Durante a pandemia, os mais pobres foram os mais atingidos. Isso mostra como o modelo do SUS também contém distorções importantes. Qual o caminho para atingir equidade?
É preciso pensar nas desigualdades no plural – como as regionais e as raciais – e cuidar de todas elas, dentro do que seria uma política pública de médio e longo prazo. O Brasil tem alguma tradição de fazer isso. Na área da educação, o Fundeb é um excelente modelo. É um fundo que tem uma forma de transferir recursos para as unidades mais carentes da Federação. Isso pode fazer parte de uma evolução na área da saúde.

Quando se discute o SUS, surge aquela velha dicotomia entre precisar de mais recursos ou de uma melhor gestão. Precisamos dos dois, não é mesmo?
Sim. Os números sugerem que faltam recursos; e o bom senso, a observação e muitos estudos sugerem que há espaço para mais gestão. Devemos atacar nas duas frentes; um ataque completo. O SUS está longe de ser perfeito, mas muita coisa boa aconteceu e as estatísticas mostram isso. O programa Saúde da Família é o maior do mundo e os dados mostram como ele fez cair a mortalidade infantil. Mas temos desafios importantes. A população sofre com filas, demora. Tanto que os planos de saúde são o sonho de grande parte da população.

Tem também a questão da incorporação tecnológica – telemedicina, robótica… A área da saúde tem sido impactada com a chegada das novas tecnologias e, ao mesmo tempo, no SUS, ainda temos problemas como a ausência de prontuários eletrônicos e muitas unidades Brasil afora nem acesso à internet têm.
O prontuário eletrônico é muito básico, tem de vir acoplado a um sistema de identidade digital, que precisa se inspirar nos modelos abertos, mas que protegem a privacidade das pessoas, como acontece na Estônia e na Índia. Vejo espaço para uma verdadeira revolução nessa área. A história da saúde das pessoas precisa estar toda arquivada de modo que, se há um problema, você tem acesso ao histórico que permite uma resposta médica adequada. Além disso, esses milhões de dados podem servir para estudos, para uso em inteligência artificial. Sou muito otimista quanto ao uso da tecnologia.

O senhor afirma que o gasto com saúde tem de ser visto como investimento, até porque pessoas com mais saúde são mais produtivas. Como fazer isso virar uma política de Estado?
Isso começa nas grandes decisões orçamentárias do Estado, em seus três níveis. A saúde claramente merece um grau elevado de prioridade. O que você não pode dizer é que tudo é prioritário. Você precisa botar na mesa e ver o que é grande. O Brasil gasta muito com Previdência, folha de pagamentos do setor público, subsídios que não fazem o menor sentido. E a saúde pública ficou para trás, a despeito dos profissionais da área. Hoje, a Previdência representa 13% do PIB, enquanto são apenas 4 ou 5% para saúde e educação públicas. Alguma coisa não está certa. Quando você diz “sim” para alguma coisa, você está dizendo “não” para outra; e precisa entender o que é. O orçamento público precisa ser desenhado para o que a sociedade decidiu que deseja, que é um sistema de saúde público e universal.

Vivendo momentos sombrios

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A pandemia acelerou as transformações sociais, econômicas, culturais e políticas na sociedade contemporânea, neste momento todos os países estão buscando a reconstrução de suas coletividades, a recuperação de suas estruturas produtivas, já que vivemos num momento de destruição generalizada. Neste ambiente, vivemos num cenário de instabilidades, que geram medos, rancores e ressentimentos crescentes que desestruturam os relacionamentos sociais, as desavenças, os conflitos e as violências em todos os indivíduos, dinamizando problemas emocionais, sentimentais e psicológicos.

Vivemos momentos sombrios, o individualismo, destacado por filósofos e sociólogos proeminentes, reina em todas as sociedades e se faz, cada vez mais intenso, com seus impactos cada vez mais assustadores. Nesta sociedade, o indivíduo está no centro das organizações sociais, o coletivo e a coletividade perderam espaço, criando desesperanças e preocupações crescentes, motivando perguntas constrangedoras, tais como: para onde caminha a humanidade?

Substituímos as conversas e as discussões saudáveis, os embates de ideias e pensamentos, sempre respeitosas, por embates cercados na agressão, no ressentimento e nas ofensas, que humilham e desestruturam as relações sociais mais efetivas e criam constrangimentos nos relacionamentos, gerando mal-estar, distanciamentos e esfriamentos sociais.

Vivemos em uma sociedade em que as pessoas se sentem no direito de utilizar as redes sociais para degradar outras pessoas, dando opinião sobre os relacionamentos alheios, os sentimentos e interesses sentimentais, como se vivêssemos em um verdadeiro reality show, onde todos estão sendo espiados, onde sua privacidade está a mostra, onde os seres humanos se expõem em sua integridade. Estes programas de televisão se espalharam para todas as sociedades, desde os países mais desenvolvidos até as regiões mais paupérrimas do mundo, demonstrando que os seres humanos gostam de saber sobre as privacidades alheias, suas fofocas e das desavenças, dando ibope, audiência e grandes lucros aos produtores e as empresas que associam a estes produtos comerciais. Somos seres humanos pobres e degradados pelos interesses imediatos do lucro, da acumulação e da realidade externa, da aparência e nos esquecemos dos interiores, das suas reflexões e de nossos crescimentos. Quando paramos para observar nossas dores e sentimentos mais íntimos que pululam nos nossos interiores, percebemos que grande parte dessa estrutura está degradada, podre e putrefatos.

Estamos numa sociedade marcada pelas dores e degradações geradas pela pandemia, estamos sentindo na pele as dores, as mortes, as brutalidades e estamos deixando de refletir sobre os motivos destas destruições e, muito pior, estamos naturalizando a morte e banalizando os sentimentos dos seres humanos e, infelizmente, estamos deixando de sermos seres humanos, o resultado é a destruição que estamos presenciando. A pandemia desnudou as pobrezas da alma humana, enquanto países desenvolvidos conseguiram vacinar a grande maioria da sociedade, os países pobres conseguiram vacinar apenas uma parte desta população, com isso, os valores dos seres se mostram mais evidentes, quem tem recursos podem vacinar enquanto os que não possuem recursos estão expostos ao vírus, a inanição e da miséria.

Vivemos numa sociedade que destrói e promove a degradação do meio ambiente, direcionamos a produção e transformamos tudo e todos os seres humanos em verdadeiras mercadorias. Compramos e satisfazemos todos os nossos desejos em todas as esquinas, compramos produtos produzidos em todas as partes do mundo e compramos prazeres materiais, satisfação sexual e produtos sofisticados e nos deliciamos com as vantagens que são garantidas com as riquezas materiais e nos esquecemos que vivemos num planeta que está no limite, os sinais da degradação estão em todos os lugares, o clima esta sendo transformado, os rios, os mares e os oceanos estão passando por mudanças na temperatura, impactando sobre os animais aquáticos, nas vegetações e no curso dos rios, colocando em xeque a convivência pacífica entre nações, coletividades e grupos sociais, econômicos e culturais.

Vivendo momentos de crescimento de desigualdades variadas, de um lado percebemos que os grandes bilionários aumentam suas fortunas a todos os momentos, seus lazeres não se restringem apenas ao planeta Terra e, sendo dotados de fortunas incalculáveis, se aventuram nos prazeres de outros planetas, se esquecendo que uma grande parte da humanidade passa fome, indivíduos corrompidos pelas dores construídas pela miséria e pela degradação. Neste ambiente, usam suas estratégias de marketing para canalizar as sobras de suas fortunas para criar instituições ou fundações para perpetuar seus nomes e massagear seus egos, com isso, serem vistos como cases de eficiência nos cursos de gestão ou de administração, com isso, passam pela vida sem sentirem os verdadeiros sentimentos do crescimento espiritual, se atrelando aos mais ilusórios valores materiais, da posse e da prosperidade monetária.

Vivemos numa sociedade que propagandeia a importância da educação e do conhecimento científico e, infelizmente, deixamos a míngua grandes vultos da ciência nacional. Formamos profissionais de alta complexidade que exigem bilhões e mais bilhões de recursos escassos da sociedade, no treinamento e na formação destes indivíduos e não conseguimos absorver estes profissionais e os entregamos de bandeja para outras nações. Somos uma nação atrasada e pagamos um alto preço pela ignorância, colhemos as escolhas anteriores e rumamos para uma degradação consentida por uma elite constituída por lunáticos e alienados.

Vivemos numa sociedade caracterizada por uma pequena elite intelectual, ou pseudo intelectual, que se arvora na defesa dos descalabros em curso, fechando os olhos para a destruição das universidades públicas, dos centros de pesquisas, a degradação dos setores ligados ao serviço público, sem projetos para o país renomeamos políticas pública exitosas para ganhar louros eleitorais, por isso, percebemos os pendores ideológicos de uma elite atrasada e reacionária, se associando ao verdadeiro vendaval que assola a sociedade nacional. Quando acordarmos para este descalabro na conjuntura nacional, perceberemos que, mais uma vez, deixamos passar as oportunidades de sermos uma nação desenvolvida, sem miséria, sem fome e sem degradação de grupos sociais, somos uma nação caracterizada pelas perdas de oportunidades.

Vivemos numa sociedade onde encontramos uma pequena parte da sociedade ganhando salários e adicionais elevados em detrimento de uma parte substancial da população, criamos inúmeras camadas de cidadania, uma centrada em direitos, transferências milionárias, subsídios elevados, prestígios políticos e imunidades generalizadas e, ao mesmo tempo, outros grupos sociais precisam, que para sobreviver, chafurdarem nos lixos das coletividades em busca de sobras dos banquetes dos grupos mais afortunados. Uma sociedade, infelizmente, em quase duzentos anos de independência, vivemos numa nação inacabada, devastada pela ignorância e pelos interesses imediatistas de uma elite que explora e se compraz com a exploração, degrada a população, escraviza as classes trabalhadores, paga salários escorchantes e rechaça os verdadeiros valores da sociedade nacional.

Nas últimas décadas percebemos o crescimento de uma guerra contra o Estado Nacional, desde os anos 1970/1980 estes conflitos se materializaram na sociedade global, nesta ideologia, o Estado deve ser visto como o grande responsável por essa situação de descalabro das nações. No Brasil, esse conflito se mostra cada vez mais presente, com isso, percebemos que nossas “elites” estão atirando no alvo errado e, com isso, contribuiremos para perpetuar a degradação da sociedade e do atraso institucional. Sem encararmos de frente os problemas e os privilégios que assolam a sociedade nacional, rumaremos para um caos generalizado, sem Estado Nacional caminharemos rapidamente para a degradação e para a destruição, cujos impactos perturbadores e preocupantes, diante disso, reflitamos sobre a nossa sociedade, afinal, estamos vivendo momentos sombrios.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Especialista em Economia Brasileira Contemporânea, Mestre e Doutor em Sociologia/Unesp. Professor do Centro Universitário de Rio Preto e Professor das Fatecs de Catanduva, Jaboticabal e Barretos.

População e políticos perderam a paciência com fracasso das promessas farialimers, por Nelson Barbosa.

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População e políticos perderam a paciência com fracasso das promessas farialimers
Brasil permaneceu estagnado entre 2017 e 2019 e, depois do choque da Covid, voltará à estagnação em 2022

Nelson Barbosa Professor da FGV e da UnB, ex-ministro da Fazenda e do Planejamento (2015-2016). É doutor em economia pela New School for Social Research.

Folha de São Paulo, 29/10/2021

O debate macroeconômico brasileiro virou papo de maluco, com vários analistas defendendo recessão por arrocho fiscal para evitar recessão por arrocho monetário.

Especificamente, os defensores do teto Temer de gasto dizem que a decisão do ministro Paulo Guedes (Economia) em gastar mais R$ 90 bilhões em 2022 causará recessão, devido ao aumento da Selic (a taxa básica de juros) necessário para combater a depreciação cambial e seu impacto na inflação.

Para nossos fiscalistas do “morra quem morrer”, o governo federal deveria cortar seu gasto primário, de 18,9% do PIB (Produto Interno Bruto) em 2021, para 17,5% do PIB em 2022. Uma contração fiscal de 1,4 ponto do PIB, em uma economia com alto desemprego, aumento da pobreza e risco de recessão para… Não pode rir… Ajudar os mais pobres!

O que nossos fiscalistas de planilha esqueceram de dizer é que, para manter o atual teto de gastos, o governo teria que cortar ainda mais os recursos de investimento, saúde e educação, além de diminuir o valor do auxílio emergencial e tirar mais de 10 milhões de pessoas do programa de transferência de renda do governo.

Entre receber auxílio emergencial ou nada em 2022, é racional que essa entidade chamada “eleitor” prefira receber a transferência adicional do governo, mesmo que sob risco de mais juro e inflação, pois até agora todas as projeções de melhora social feitas pelo “mercado” deram errado.

Estamos completando cinco anos de promessas farialimers de que “era só tirar a Dilma”, de que o paraíso estava logo ali, desde que os mais pobres aceitassem um pouco de sacrifício, uma rodada de reformas de redução do papel do Estado na proteção social.

Houve várias reformas, na Previdência, no mercado de trabalho, nas concessões e no preço de combustível, e ainda assim o Brasil não decolou. O Brasil permaneceu estagnado entre 2017 e 2019 e, depois do choque da Covid, voltará à estagnação em 2022.

Diante do fracasso da agenda de política econômica de Temer e Bolsonaro, que nada mais é do que o projeto tucano de um “Brasil para poucos”, é natural que a população brasileira e nossa classe política percam a paciência com o discurso financista.

O problema é que só perder a paciência não resolve. Para sair do buraco em que os tucanos, Temer e Bolsonaro nos meteram é preciso ter nova proposta de política econômica com duração de mais de um ano.

O governo Bolsonaro fez certo em furar o teto de gasto em 2022, mas para que isso não tivesse impacto desfavorável no câmbio e na inflação, também é necessário garantir que o gasto adicional será bem aplicado, bem como apresentar nova regra fiscal para 2023 em diante. Como Bolsonaro não fez a segunda e terceira partes, houve reação exagerada dos mercados financeiros à mudança fiscal.

Para ser construtivo, o governo ainda pode resolver a situação com duas medidas. Primeiro, sinalizar claramente qual e onde será o gasto adicional de 2022, pois as estimativas atuais variam de R$ 85 a R$ 135 bilhões, em coisas meritórias como Bolsa Família e duvidosas como emendas de relator. Segundo, mudar permanentemente a regra do teto de gasto, criando novo limite fiscal para a despesa primária, com permissão para crescimento real de gastos essenciais em investimento, saúde e educação, mesmo que seja com emissão de dívida no curto prazo (dois anos), a ser financiado com tributação mais progressiva no médio prazo (quatro a oito anos).

Sei que a proposta acima é pedir demais à atual equipe econômica, mas quem sabe alguém no Congresso resolve intervir no governo e fazer o que é certo, como ocorreu em 2020. Ainda dá tempo de diminuir o estrago.

Pochmann: É necessária nova abolição

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Márcio Pochman, Outras Palavras, 25/10/2021

No século XIX, os homens mais ricos do Brasil eram traficantes de escravos. Economia chafurdava na infâmia e no atraso, mas alguns faziam fortuna. Rentismo ocupa hoje o mesmo lugar. País precisa asfixiá-lo, para voltar a ter esperança

No século XIX, o perfil dos principais ricos no Brasil estava associado ao tráfico negreiro. Os casos de José Francisco dos Santos (Zé Alfaiate), Joaquim Pereira Marinho e Joaquim Ferreira dos Santos exemplificavam o quanto o comércio escravista era altamente lucrativo, permitindo que figurassem na cúpula da riqueza do Brasil imperial (1822-1889).

Isso porque somente o Brasil respondeu por quase 40% do total dos 12,5 milhões de traficados da África sob a denominação de escravidão moderna. Navios de bandeira inicialmente portuguesa e, posteriormente, brasileira realizaram mais de nove mil viagens para traficar africanos entre 1530 e 1850, sendo que cerca de 50% delas foram realizadas apenas durante a primeira metade do século XIX, para trazer 2,3 milhões de escravos (47% do total de africanos trazidos se considerados os 320 anos).

O negócio financeiro obtido pelos empreendedores escravagistas foi o responsável pela formação de muitas fortunas que, após o fim do tráfico negreiro (1850), foram reinvestidas em atividades produtivas. Tanto assim que o Produto Interno Bruto por habitante, que havia crescido 0,2% como média anual entre 1820 e 1850, foi de 0,4% ao ano, em média, no período de 1850 a 1888.

Neste início do século 21, o perfil dos principais ricos no Brasil se encontra associado ao rentismo. Entre os dez mais ricos do país, cinco deles estão atuando diretamente no mercado financeiro, como banqueiros ou como gestores de fundos de investimentos.

Em plena pandemia do coronavírus, mesmo quando o fluxo de riqueza nacional encolheu 4,1%, o Brasil registrou o surgimento de mais 42 novos bilionários, cujas fortunas aumentaram em 34 bilhões de dólares.

Não bastasse isso, constata-se que dos 200 maiores grupos econômicos do país agregados em quatro grandes setores, somente o segmento de finanças apresentou elevação de 27,1% no lucro líquido em 2020, enquanto o setor de serviços teve o lucro líquido negativo em 34,8%, a indústria teve um declínio de 7,8% e o comércio teve -6,8%. Com tamanha discrepância de desempenho, os bancos (setor de finanças) aumentaram a sua fatia no total do lucro líquido consolidado entre os 200 maiores grupos econômicos do país, passando de 38% para 49%.

Como os bancos não produzem riqueza, pois operam como pedágio de quem produz, aumenta a escassez dos recursos disponíveis para viabilizar o consumo e, sobretudo, o investimento. Essa distorção permite que os empreendedores do dinheiro deixem de servir à economia real para servirem a si mesmos, apropriando-se de parcelas crescentes do excedente econômico.

No país do rentismo, os recursos disponíveis de famílias e unidades produtivas são drenados para o improdutivismo que se alimenta do endividamento generalizado. Estranhamente, num país de economia enfraquecida como a brasileira, grande parte das fortunas se descolou da natureza econômica, para expressar relações de poder político.

De um lado, o poder da estrutura de competição nos mercados exercido por muito poucos (oligopólios e monopólios) termina por reduzir a eficiência econômica, conforme revela a própria concentração bancária no Brasil. De outro lado, o poder do financiamento eleitoral permite obter expressiva bancada parlamentar que impede a tributação sobre lucros e favorece as desonerações ao rentismo.

Os privilégios atuais dos empreendedores do rentismo ganham ainda maior vigor com o financiamento da mídia a garantir presença contínua como porta-vozes do dinheiro e colunistas na imprensa comercial para defender a legitimidade da riqueza rentista. É isso que permite que a riqueza continue a crescer, mesmo em situações de crise, com a queda das atividades na economia real.

Assim como o fim do tráfico negreiro desde 1850 permitiu desovar maiores recursos disponíveis para o financiamento da economia real, a asfixia do rentismo permitiria liberar a volta do desenvolvimento nacional. Para isso, uma nova maioria política seria necessária, pois do contrário, dificilmente será possível encontrar outras atividades econômicas tão lucrativas como o setor de finanças.

Dilemas

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Vivemos um momento de grandes dilemas, incertezas e instabilidades, cujos impactos sobre toda a sociedade são elevados. A riqueza cresce rapidamente dentro dos grupos mais afortunados, enquanto percebemos o incremento da fome, da miséria e da indignidade. Neste momento, precisamos de soluções políticas imediatas, lideranças consistentes e a atuação efetiva dos grupos mais engajados da coletividade.

A sociedade brasileira passa por um momento de desolação e de desânimo, as decisões são difíceis, exigindo maturidade política e a construção de um consenso entre as chamadas elites intelectuais, econômicas e políticas, sem estas decisões, o país estará condenado a viver a situação descrita pelo relatório da OCDE, que diz que o padrão de vida dos brasileiros deverá ficar estagnado pelos próximos 40 anos.

A pandemia nos mostrou uma situação social dramática, os indicadores são preocupantes e, ao mesmo tempo, percebemos que, os países desenvolvidos estão repensando a atuação dos Estados Nacionais e fortalecendo suas políticas públicas para melhorar as condições da sociedade, enquanto isso, no Brasil estamos insistindo em reformas chamadas estruturais que pioram e degradam as condições sociais, aumentam a concentração da renda, reduzindo a proteção do cidadão, aumentando a precarização dos trabalhadores, reduzindo os espaços de solidariedade e construindo uma sociedade cada vez mais centrada no individualismo, no imediatismo, no rancor, no ódio e no ressentimento.

Neste momento, os países ditos civilizados perceberam a importância das políticas públicas, incrementando as políticas sociais com o intuito de melhorar as condições da população, ainda mais num período de pandemia que matou milhões de pessoas na sociedade global. Nestes países os investimentos em ciência e tecnologia crescem de forma acelerada, perceberam a centralidade da pesquisa, ainda mesmo numa pandemia, infelizmente tomamos outros rumos, reduzindo os investimentos científicos, degradando as universidades públicas e estimulamos a fuga de cérebros financiados pelo próprio Estado.

No Brasil, a sociedade pós-pandemia precisa repensar o contrato social, aumentando os recursos para investimentos na saúde, no fortalecimento do SUS, nas universidades públicas, nas pesquisas científicas e no ensino público, além de infraestruturas centrais para capacitar a população para um ambiente altamente concorrencial que se faz presente na sociedade contemporânea, sem essas reflexões o futuro tende a ser assustador.

Neste momento, o Estado prescinde de recursos para construírem políticas públicas visando a redução das desigualdades de renda, o incremento da fome e da desesperança que assolam a sociedade brasileira. Neste cenário, a sociedade está envolta em grandes dilemas que devem impactar os próximos anos, exigindo forte organização política e liderança, visando um ambiente mais propício para vislumbrar espaços de crescimento econômico.

Neste momento precisamos de políticas mais ousadas, planejamento e escolhas estratégicas que impactam sobre todos os grupos sociais. O incremento da inflação está levando o Banco Central a aumentar os juros, contraindo os recursos monetários e diminuindo os investimentos produtivos, postergando a recuperação econômica e criando um ambiente de incertezas e prejuízos sociais, além da falência de empresas e setores econômicos. A aceleração dos preços cria novos dilemas econômicos, juros altos para diminuir a inflação prejudica a recuperação e piora o cenário econômico, além de reduzir os investimentos produtivos, a geração de emprego, criando um verdadeiro caldeirão de pressões políticas e sociais, como estamos percebendo na conjuntura atual.

Neste ambiente, precisamos proteger os mais fragilizados, para isso, necessitamos reconstruir espaços políticos, reduzindo isenções fiscais, taxando grupos menos tributados que contribuem para a perpetuação da degradação social brasileira. Neste momento, percebemos a importância de lideranças conscientes e capacitadas para construirmos novos caminhos num mundo marcado por incertezas e por instabilidades.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 27/10/2021.

Um banqueiro e dois golpes, por Cristina Serra.

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A fala de André Esteves desnuda o país refém de meia dúzia de espertalhões

Cristina Serra é paraense, jornalista e escritora. É autora dos livros “Tragédia em Mariana – a história do maior desastre ambiental do Brasil” e “A Mata Atlântica e o Mico-Leão-Dourado – uma história de conservação”.

Folha de São Paulo, 26/10/2021

O portal de notícias Brasil 247 publicou o áudio de animada conversa entre o banqueiro André Esteves e um grupo de clientes. É uma aula sobre os donos do poder no Brasil, entrecortada por risadas típicas de quem está ganhando muito dinheiro, ainda que o país esteja uma desgraça.

O banqueiro faz questão de exibir sua influência junto às mais altas instâncias do poder político, com uma mistura de cinismo e boçalidade envernizada, própria de quem se acha educado só porque sabe usar os talheres. Esteves jacta-se de seu prestígio junto ao presidente da Câmara, Arthur Lira. Gaba-se do acesso ao presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, a ponto de este tê-lo consultado sobre o nível da taxa de juros, atitude que é um escândalo de relações carnais entre o público e o privado.

Vangloria-se de ter influenciado a decisão do STF favorável à independência do Banco Central, informando ter conversado com alguns ministros antes do julgamento. Só não revelou quais. E expõe o motivo de tanto empenho. Se Lula for eleito, “vamos ter dois anos de Roberto Campos”. Esteves considera que Bolsonaro, se “ficar calado” e trouxer “tranquilidade institucional para o establishment empresarial”, será o “favorito” em 2022.

Em tortuosa análise sobre o Brasil, Esteves compara o impeachment de Dilma Rousseff ao golpe de 1964: “Dia 31 de março de 64 não teve nenhum tiro, ninguém foi preso, as crianças foram pra escola, o mercado funcionou. Foi [como] o impeachment da Dilma, com simbolismos, linguagens, personagens da época, mas a melhor analogia é o impeachment da Dilma”.

A comparação é um insulto aos milhares de presos, perseguidos, torturados e assassinados na ditadura, mas o raciocínio de Esteves faz sentido ao aproximar (talvez sem querer) as duas datas infames: 1964 e 2016 foram golpes.

A conversa desinibida do banqueiro desnuda, de maneira explícita, um país refém de meia dúzia de espertalhões do mercado financeiro.

‘A agenda de Bolsonaro não é a agenda de bolsonaristas’, diz cientista política

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Temas como acesso às armas têm pouco consenso entre eleitores do presidente, aponta pesquisa

Carolina de Paula, cientista política – O Estado de São Paulo, 23/10/2021

RIO – Tanto os eleitores de Jair Bolsonaro em 2018 que permanecem fiéis ao líder como aqueles que já desistiram de segui-lo têm pouco consenso entre si em relação ao que acreditam. O combate à chamada ideologia de gênero e o repúdio à corrupção reúnem mais apoios no grupo que levou o ex-capitão ao Planalto, mas são exceções, diz a cientista política Carolina de Paula, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ).

Em entrevista ao Estadão, ela explica que, na pesquisa qualitativa “Bolsonarismo no Brasil”, pontos do ideário bolsonarista não foram consensuais e às vezes ficaram minoritários ou foram repudiados pelos seguidores do presidente. Foi o caso do apoio ao retorno da ditadura, mencionado por poucos pesquisados. E da postura de Bolsonaro sobre a pandemia, que espantou apoiadores.

“Acho que o conservadorismo (no Brasil) é muito menor do que a gente imaginava”, diz Carolina de Paula. “No sentido de que o conservadorismo conseguiu penetrar, faz parte da cultura brasileira, mas é muito menor.”

Para detectar os valores dos eleitores de Bolsonaro – os fiéis e os arrependidos – os pesquisadores montaram 24 grupos focais mistos de homens e mulheres. Os participantes se reuniram online, em média por uma hora e quinze minutos. Ficavam nas cidades de São Paulo, Rio, Recife, Goiânia, Belém e Curitiba. A amostra seguiu o perfil bolsonarista indicado por pesquisas quantitativas. Foram usados dois filtros: religião (evangélico ou não evangélico) e arrependimento de voto.

O estudo foi feito pelo Laboratório de Estudos de Mídia e Esfera Pública (Lemep) do IESP-UERJ. Teve apoio do Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa (IREE). Também são autores do trabalho os pesquisadores
João Feres Júnior, Walfrido Jorge Warde Júnior e Rafael Valim.

Abaixo, os principais trechos da entrevista com Carolina de Paula.

Como os problemas do governo Bolsonaro impactam os bolsonaristas?
A pesquisa não tinha foco eleitoral, tinha foco em valores, mas a gente sabe que o voto econômico é importante.
Então, a economia com certeza vai ter um peso muito grande nas eleições. A pesquisa mostra que ela repercute mesmo entre os mais fiéis. Vários temas que a gente discute não colam. Mas a questão econômica pega, atinge esse eleitor.
Com certeza, o ponto central do Bolsonaro vai ser a agenda econômica.

Quer dizer, a questão econômica consegue ultrapassar essa blindagem que o Bolsonaro teria junto a essas pessoas?
Sim. Eles percebem que há uma crise, um problema. Então, eles identificam a crise, identificam o problema, a realidade dessas pessoas, os parentes perdendo emprego. Mas identificam que é muito decorrência da ação dos governadores e prefeitos, que fecharam a cidade, o Estado. Então, existe também isso. O Bolsonaro seria isento, nesse sentido, porque queria manter a economia, queria manter aberto. Esse eleitor que a gente entrevistou, esse mais fiel, reproduz muitas das narrativas que o Bolsonaro tentou emplacar, e conseguiu emplacar com sucesso, para esse público muito específico. A gente vê esse público, ele é significativo, mas é pequeno para dar sustentação eleitoral para o Bolsonaro.

A pesquisa focou valores que norteariam os bolsonaristas. Quais seriam os mais fortes?
Quando a gente fala em família, em casamento entre pessoas do mesmo sexo, isso não é consenso. Mas quando a gente fala em família, educação das crianças… Isso sim é um dos valores mais fortes. A corrupção também é uma pauta forte para esse público e que motivou muito o voto em 2018. Quando a gente fez (a pesquisa), não tinha estourado a questão da CPI (da Covid). O que a gente percebe? Para alguns, essa agenda da corrupção foi diminuindo. São aquelas pessoas que deixaram de votar no Bolsonaro e estão aí à procura de um novo nome para 2022. Esses temas são os que mais têm consenso. Por exemplo, na questão do aumento da posse e porte de armas, existe uma tendência maior de ser contra esse aumento, que é uma agenda do Bolsonaro, mas não é uma agenda do eleitor do Bolsonaro. É uma agenda de um público muito restrito.

Parte dos bolsonaristas desiludidos dá sinal de que pode votar no Lula. Por que?
Eles não encontram um nome alternativo. São, inclusive, pessoas que nunca votaram no PT e dizem que se for agora Bolsonaro e Lula, votam no Lula. Porque é aquela ideia de comparação. Eles não gostam de nenhum dos dois. Se tivesse outro nome seria o que eles gostariam. Especialmente nesse público dos arrependidos. É um público muito ligado à agenda da corrupção, que gosta da Operação Lava Jato, fica triste por ela ter acabado. A ideia é tirar o Bolsonaro.

Os arrependidos diferem muito dos bolsonaristas fiéis?
O que a gente percebe é que esses arrependidos têm um perfil mais assim de uma escolaridade um pouco mais alta, e era aquele público que estava motivado, gostava muito, do Sérgio Moro. Digamos assim, era aquele eleitor mais lavajatista. Mas se a gente tivesse de dizer, seria este perfil de escolaridade maior, que é interessado por política e tem a agenda de corrupção muito forte.

Foi possível identificar um episódio decisivo para separar os bolsonaristas fiéis dos arrependidos?
Teve dois episódios, a coisa (saída do governo) do Moro e a covid. Covid com certeza também é definitiva para a rejeição dele (Bolsonaro) e para esse público ficar muito frustrado. A gente percebe que são pessoas que o rejeitam e não vão voltar a votar, independente do que for. E a questão da covid bateu muito. As pessoas veem como desrespeito aos mortos. Então, esse público ficou muito frustrado, muito irritado com a postura do Bolsonaro. E essa coisa mais geral, do modo dele se comportar. Eles achavam que Bolsonaro sendo eleito iria mudar o discurso, entrar na liturgia do cargo, falar de um modo mais adequado para um presidente. Então, isso incomodou desde lá de trás.

Chegou a ser mostrado aos grupos o vídeo com Bolsonaro falando “E daí” sobre a covid?
A gente mostrou um parecido, que é aquele da gripezinha. E aquele outro em que ele fala assim: “Não sei por que essa pressa, que as pessoas têm com a questão da vacina”. Ele meio que dizendo: as coisas são assim, são devagar mesmo, vacina demora muito para ser feita, não sei por que as pessoas estão com essa ansiedade. Por isso que a gente identifica que, dentro deste perfil dos arrependidos, é o que eles falam assim: “Nossa, isso foi um absurdo, uma irresponsabilidade muito grande. Agora, o que a gente vê entre os fiéis? O que eles avaliam? Que Bolsonaro estava sendo cuidadoso com as pessoas, quando ele falava que demora tempo. E as pessoas repetem, é interessante que elas repetem o mesmo discurso que ele está fazendo no vídeo. “As pesquisas mostram que as vacinas levam quatro anos, então essa vacina aí está sendo muito rápida.” As pessoas repetem muito o que ele diz. É um comportamento que ele reforça nas lives, a gente percebe a repetição da narrativa dele, no vídeo instantâneo, que a gente mostrou, e o no próprio discurso imediato delas tem essa repetição.

Pelo que surgiu na pesquisa, dá para tentar projetar como vai ser o discurso do Bolsonaro em 2022?
Eu acredito que a questão da corrupção é uma bandeira bem arriscada para ele retomar. Quando a gente olha para as pesquisas quantitativas (é) bem diferente de 2018. Quando a gente perguntava “Qual é o principal problema do Brasil?”, em 2018 era a corrupção, estava no topo; hoje em dia não é. Está lá em terceiro, quarto lugar. Acredito que a questão do PT ainda deva voltar, porque ainda aparece nesses grupos de apoio. O PT é visto como o mal do Brasil e tudo o mais. Então, o antipetismo ainda deve reverberar nessa eleição. Mas a agenda da corrupção deve ficar mais escondida.

Isso é suficiente para repetir o quadro da eleição de 2018 no ano que vem?
A gente está vendo que não. Tanto que as pesquisas mostram que ele (Bolsonaro) vai ter dificuldade. Então ele precisa ou expandir o eleitorado dele, com esse novo programa (de transferência de renda), porque ele chegou a ter o público, conseguiu entrar naquele público do Nordeste, com renda até um salário mínimo. Ele teve um período de crescimento dentro desse eleitorado, quando teve o primeiro auxílio mais alto, com valor lá de R$ 600 a R$ 1.200. Então, ele vai precisar expandir o eleitorado dele. Esse mesmo eleitorado que ele teve em 2018, a gente viu que ele já perdeu. Esses arrependidos não voltam, pelo que a gente vê na qualitativa, a votar nele.

Como se resumem as conclusões da pesquisa?
Acho que o conservadorismo é muito menor do que a gente imaginava. No sentido de que o conservadorismo conseguiu penetrar, faz parte da cultura brasileira, a gente sabe, mas é muito menor. O Bolsonaro não trouxe essa coisa, não inventou um novo conservadorismo. E ele aproveitou muito da questão contextual. Digamos, ele conseguiu capturar o espírito de 2018, da melhor forma, quando a gente trata da motivação do voto. Ele soube trazer para ele o antipetismo. E ele era uma pessoa muito desconhecida, né? Então agora, quando os eleitores começam a passar por esse momento de crise, começam a avaliá-lo, dizendo que ele não era a pessoa ideal. E outra: a questão da corrupção volta a aparecer como um problema do Brasil mesmo. Então a gente vê esse público, por exemplo, que desistiu de apoiar o Bolsonaro, ele acredita que realmente a agenda da corrupção vai ficar para sempre aí no Brasil. É muito difícil de resolver. Então, ele dá um choque de realidade nessas pessoas que tinham uma esperança. Ele traz essa realidade que o jogo político, a corrupção, faz parte também da política. As pessoas passam a valorizar temas que estavam fora da agenda em 2018. Por exemplo, a questão da saúde, que é o tema do momento e que vai guiar a eleição, junto com a economia.

Auxílio Brasil é um retrocesso que corrói rede de proteção social, por Denise De Sordi.

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Versão piorada do Bolsa Família, programa responsabiliza pessoas pela pobreza

Folha de São Paulo, 24/10/2021

Denise De Sordi Historiadora, pesquisadora do programa de pós-doutorado do Departamento de Sociologia da USP
[resumo] Pesquisadora argumenta que o Auxílio Brasil, programa de transferência de renda proposto pelo governo Bolsonaro, é um retrocesso que desmancha a rede de proteção social articulada pelo Bolsa Família nos últimos anos, uma vez que moraliza o debate sobre desigualdade, legitimando a ideia de que os trabalhadores empobrecidos são responsáveis pela pobreza, ao mesmo tempo em que isenta as políticas governamentais em relação ao quadro atual

No dia 9 de agosto de 2021, a Medida Provisória (MP) 1.061 instituiu o Programa Auxílio Brasil e anunciou o fim do Programa Bolsa Família.

As implicações ligadas a esse fato não se resumem aos cambaleantes experimentos em torno do valor da transferência de dinheiro às famílias atendidas pelo novo programa. Com o objetivo de enxugar o custo social, o Auxílio Brasil é a síntese dos esforços pelo colapso da rede de proteção social brasileira.

Fincada nas ações do Sistema Único de Assistência Social (Suas), a rede de proteção social, que vinha sendo sistematicamente paralisada, agora atinge o ponto de ruptura.

São inúmeros os exemplos de esforços empreendidos desde o início de 2019 para que isso fosse possível — os mais simbólicos são a desativação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), o desincentivo dos programas de produção de alimentos pela agricultura familiar, o desmantelamento dos conselhos gestores dos programas sociais e o completo desmanche do Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico).

Com o Auxílio Brasil, isso se concretiza na medida em que programas e conselhos citados acima foram transformados em meros instrumentos técnicos de gestão e de fiscalização das famílias atendidas. Rompeu-se a cadeia de ações que articula as políticas públicas sociais e transferiu-se a responsabilidade do Estado para o “incentivo ao esforço individual”, tal como previsto no artigo 1º da MP.

Resumir a discussão dos programas sociais ao dinheiro que será transferido às famílias de trabalhadores é esquecer que a saída do Brasil do Mapa da Fome, em 2014, e a existência de alguma expectativa de mobilidade social só foram possíveis mediante a articulação de programas que sustentavam a rede de proteção social brasileira, de forma relacionada com políticas sociais consistentes, como a valorização do salário mínimo e a geração de empregos formais.

O alerta é claro: o retorno do país ao Mapa da Fome está relacionado ao colapso da rede de proteção social e à diminuição das políticas sociais. Não há “esforço individual” suficiente em meio ao desemprego, à carestia e à pobreza provocados sistematicamente por escolhas político-econômicas que minam o acesso aos direitos sociais.

O Bolsa Família só atingiu o êxito amplamente conhecido por todos nós porque esteve articulado a uma série de ações que o apoiavam no objetivo de minorar a pobreza e a extrema pobreza. A virada que o Auxílio Brasil representa para o horizonte social de agora e dos próximos anos é brusca e violenta.

Os resultados já são evidentes nas filas que compõem o “garimpo dos ossos” nas portas de supermercados e açougues, no aumento de furtos famélicos e nos despejos de famílias inteiras de trabalhadores, jogadas para viver nas ruas.

Em meio a este cenário, o Auxílio Brasil evoca a ideia de promoção da “emancipação cidadã” — evidentemente, uma ideia vazia, sem sustentação prática, porque se fia no caminho das ações individuais como expressão da autorresponsabilização pelas baixas rendas, intuindo a compreensão de que a pobreza independe de ações e escolhas políticas governamentais.

O Auxílio Brasil é um retrocesso em todos os sentidos, pois (re) moraliza a discussão sobre a pobreza, reduzindo-a a uma dimensão da vida em sociedade que aparece individualizada, e traz de volta para a cena pública de ações socioassistenciais a possibilidade de transferência indireta de renda, o que significa o retorno dos programas de “vales” gás, leite e cestas básicas.

A resposta à pergunta sobre quem o retorno dos vales vai beneficiar ainda está em aberto, mas para termos um vislumbre de seus efeitos basta lembrar que esta era uma prática comum em fins dos anos 1980 e ao longo de 1990, sempre conectada a escândalos de desvios de verbas e falta de controle da qualidade dos itens distribuídos.

A gestão centralizada do Bolsa Família buscou combater esses problemas, atribuindo funções e metas específicas aos Estados e municípios para que a transferência de renda com condicionalidades pudesse ocorrer.

No Auxílio Brasil, as condicionalidades referentes à saúde e à educação, antes existentes no Bolsa Família com função de porta de acesso a esses direitos sociais, agora servem ao intuito de punir imediatamente as famílias atendidas.

No Bolsa Família, fatores como frequência escolar de crianças e adolescentes, vacinação e acompanhamento nutricional pelo SUS eram condições para o recebimento do benefício.

Caso a família deixasse de cumprir algumas dessas condições, havia a possibilidade de acompanhamento por meio de serviços socioassistenciais, que buscavam entender as causas do não cumprimento e evitar desligamentos punitivos do programa.

Já o Auxílio Brasil parece ser uma versão piorada, pois desconsidera a integração das ações socioassistenciais para a promoção de algum tipo de horizonte de cidadania, de tal modo que o acompanhamento das famílias parece incerto no novo programa.

Outra novidade apresentada pelo Auxílio Brasil quanto a este novo formato de condicionalidades: o beneficiário que participar de um curso de educação financeira poderá solicitar um empréstimo consignado de até 30% do valor que recebe, com o desconto direto no pagamento dos benefícios.

Pairam, contudo, incertezas a respeito desse ponto. Não há previsões sobre como, por quem, ou onde esse tipo de curso seria oferecido, o que inviabilizaria a própria possibilidade de consignação.

Soma-se a isso outro elemento um pouco mais imperceptível, mas que gera danos na forma como interpretamos a pobreza: uma certa percepção moral de que os sujeitos empobrecidos vivenciam essa condição material por não saberem gerir seus parcos orçamentos domésticos.

A ideia de fundo é que os trabalhadores empobrecidos poderão sair da pobreza se forem educados sobre finanças, desconsiderando a conjuntura econômica e política do país na manutenção do quadro atual. Em resumo, no Auxílio Brasil as condicionalidades estão esvaziadas de seu conteúdo e propósito sociais.

Não se pode esquecer também da importância da previsão de consignação na definição do valor do benefício. Há um elemento de retirada da autonomia das famílias no uso do dinheiro que reverte o intuito do acesso à rede bancária, que também foi amplamente beneficiada pelo processo de monetização do Bolsa Família.

O verniz de responsabilidade fiscal atribuído pela indefinição do valor do benefício atrelado ao teto de gastos falseia o fato de que o próprio teto não permite a ampliação do programa.

Esse é um terreno que vem sendo preparado desde os primeiros cortes mediados por “pentes finos” nos beneficiários, ainda em 2016. O engodo é que encerrar o Bolsa Família é também uma oportunidade de concretizar o enxugamento do “custo social”, colocando em seu lugar um programa que está fincado em areia movediça.

Não se trata apenas de irresponsabilidade governamental, mas de um projeto de sociedade restrita e financeirizada, ao custo do desemprego, da pobreza e da fome. Há certo consenso em torno da compreensão de que o sucesso do Bolsa Família adveio do fato de que provocou a conciliação entre interesses inconciliáveis: os dos trabalhadores empobrecidos e os dos setores econômicos dominantes.

Nesse processo, contudo, não houve alteração nas formas pelas quais compreendemos, enquanto sociedade, os fatores que geram a pobreza. Avançamos socialmente, mas sem discutir os mecanismos que permitem o avanço subterrâneo do desemprego, da pobreza e da fome.

O Auxílio Brasil está fincado nessa brecha. Mais do que uma disputa pela quantidade de dinheiro a ser transferida às famílias, esse programa impulsiona o rompimento do acordo social que existia até pelo menos 2016, o qual interpretava a pobreza como uma questão política e coletiva. Com o Auxílio Brasil, promove-se e legitima-se a compreensão de que a autorresponsabilização pela pobreza é a saída, quando não é.

Chamemos os atos pelos nomes que lhes foram atribuídos: o Auxílio Brasil não é um “novo Bolsa Família”. Em realidade, não poderia estar mais longe dos objetivos desse programa que havia estabilizado uma ponte para nossa passagem por cima do abismo social brasileiro.

O nome do novo programa é Auxílio Brasil — e ele é responsável por desmanchar a rede de proteção social e queimar essa ponte.

Os vilões da inflação, por Gilberto Maringoni e Giorgio Schutte.

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Alta da gasolina expõe o retrocesso da Petrobras

Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte Professores associados de Relações Internacionais da UFABC e pesquisadores do Observatório da Política Externa e da Inserção Internacional do Brasil (Opeb)

Folha de São Paulo -24/10/2021

Por que os preços de derivados de petróleo —em especial a gasolina, o gás de cozinha e o diesel— não param de subir a ponto de hoje metade da população brasileira ter de recorrer à lenha para cozinhar?

O fenômeno se acentuou a partir de outubro de 2016, após a derrubada do governo Dilma Rousseff (PT). Foi neste mês que a Petrobras, então presidida por Pedro Parente, decidiu adotar a política de preços de paridade de importação (PPI). A alegação era a necessidade de se acompanhar os preços internacionais, apesar de o Brasil ter se tornado autossuficiente em petróleo. Por que isso aconteceu?

Há duas ordens de causas. A primeira é que a recuperação econômica em curso aumenta a demanda por energia em todo o mundo. O sintoma mais claro está no preço do petróleo, que dobrou em um ano, passando da marca dos US$ 80 o barril. Com o câmbio nas alturas, a variação por si só tornaria os montantes impagáveis em reais. Mas há um segundo fator, que resulta das opções privatistas dos dois últimos governos brasileiros. Trata-se da perda de capacidade de refino doméstica e dos interesses dos acionistas privados.

O parque de refino brasileiro foi construído basicamente pela Petrobras entre as décadas de 1950 e 1970 com o objetivo de produzir derivados, em grande medida, a partir do óleo importado para um mercado interno em expansão. O Brasil se tornou autossuficiente em refino em 1980 e, até o início do novo século, não houve expansão da capacidade instalada.

Diante da perspectiva de crescimento da demanda, o governo Lula (PT) planejou quatro novas refinarias. Apenas parte de uma entrou em operação, a de Abreu e Lima, em Pernambuco, em 2014. Essa diretriz foi abandonada depois de 2016.

Segundo dados da ANP (Agência Nacional do Petróleo), em 2020 refinamos 647 milhões de barris, volume ligeiramente inferior ao que realizávamos em 2007, com 652 milhões de barris! Para fazer frente ao crescimento da demanda, o país voltou a depender de importação de derivados, que praticamente dobrou em 15 anos.

Embora o Estado siga detendo mais de 50% do capital votante da Petrobras, o que lhe garante proeminência em sua direção, a composição do capital social é distinta. O poder público detém 36,75% das ações, e 63,25% estão nas mãos do “mercado”. Essa fatia recebe a maior parte dos dividendos da companhia. Seus interesses se unem aos dos importadores de derivados para seguir as cotações internacionais.

A lógica de preços de paridade de importação expressa tais interesses. Para atendê-los, aplicou-se uma política deliberada de aumentar a capacidade ociosa das refinarias, mesmo com demanda elevada, favorecendo importadores.

O resultado é a transformação da companhia em exportadora de óleo cru e importadora de derivados, fazendo-a funcionar como fundo de especulação financeira. Acreditar que a privatização das refinarias resultará na construção de novas unidades equivale a fazer listinhas para o Papai Noel.

É preciso colocar o problema da alta dos preços em perspectiva ampla. Além de resolver o déficit na capacidade de refino, é preciso que o Estado volte a tornar a Petrobras uma empresa a serviço do desenvolvimento e do bem-estar da população.

Como chegamos a esse ponto? por Oscar Vilhena Vieira.

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Desprezo pelos direitos humanos é a receita certa para o fracasso

Oscar Vilhena Vieira Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.

Folha de São Paulo, 23/10/2021

Acusado de deliberadamente “causar pandemia, mediante a propagação de germes patogênico”, além de diversos outros delitos, que resultaram na morte milhares de pessoas, Bolsonaro emerge da CPI como uma figura destituída de qualquer capacidade de expressar empatia pelo povo que governa. O sofrimento, a dor e mesmo as mortes não foram capazes de provocar no presidente, ainda que por mero cinismo, nenhum sinal de compaixão – “todo mundo morre um dia”; “e daí?”; menos ainda foram suficientes para induzi-lo a atos concretos voltados a mitigar a pandemia, concluiu o relatório.

A questão que se coloca é como chegamos até aqui? Como uma parcela substantiva do eleitorado, que certamente não é formada por uma maioria de pessoas destituídas de senso moral, foi capaz de se identificar com uma figura que passou a vida a repudiar e desprezar a dignidade e os direitos das pessoas? Como confiaram em alguém obcecado pela violência, pelas armas, pela destruição do meio ambiente e da cultura; um defensor intransigente de uma liberdade absoluta de discriminar, ofender e excluir mulheres, negros, indígenas e gays; um político empenhado por décadas em demonizar todos aqueles que se contrapõem às suas ideias, como ficou registrado na recente e infame imputação de pedofilia dirigida a ex-ministros de direitos humanos?

Certamente a ascensão de Bolsonaro é resultante de graves fatores de natureza política e econômica, que convulsionaram a vida dos brasileiros nos últimos anos, gerando muito ressentimento e desconfiança em relação a políticos tradicionais. A escolha de Bolsonaro, no entanto, só foi possível porque uma parcela significativa do eleitorado, que se apresenta como liberal ou democrata, aceitou se juntar a uma outra parcela minoritária do eleitorado, que jamais escondeu o seu repúdio à democracia e aos direitos humanos.

Isso indica um preocupante descompromisso de amplos setores de nossa sociedade com o imperativo político, jurídico e moral, inerente à gramática dos direitos humanos e da democracia liberal, de que todas as pessoas têm igual valor, devendo ser tratadas dignamente.

As desigualdades estruturais e persistentes, de natureza social, econômica e racial, certamente têm contribuído para que o respeito recíproco à dignidade, que deveria cimentar uma sociedade democrática, não tenha se consolidado entre nós. Nesse sentido, ainda que muitos não cheguem a dar de ombros à morte ou o sofrimento alheio –ou mesmo repudiem o comportamento tosco do presidente–, o fato é que assumiram o risco de instalar no poder e apoiar alguém que jamais escondeu seu desprezo por esses princípios civilizatórios. Os resultados estão aí.

Como salientaram os redatores da Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1948, “o desprezo e o desrespeito aos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da humanidade”. Assim como as vacinas, os direitos humanos constituem um instrumento imprescindível para evitar catástrofes que com frequência ameaçam a vida e o bem-estar das pessoas, no dizer do grande jurista argentino Carlos Santigo Nino. Quando são negligenciados, estamos automaticamente fomentando desastres, como o vivenciado pela sociedade brasileira neste período.

O desastre pandêmico, devidamente registrado pela CPI, não é, portanto, apenas um inelutável infortúnio sanitário, mas o resultado necessário de uma escolha política inconsequente, pautada por um profundo desprezo à dignidade humana.

Aumento da pobreza e da fome produz alto número de moradores de rua, por Drauzio Varella.

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Não é possível ficar de braços cruzados diante dessa infâmia, à espera inútil de governantes incompetentes

Dráuzio Varella Médico cancerologista, autor de “Estação Carandiru”.

Folha de São Paulo, 21/10/2021

Aos domingos pela manhã, costumo correr pelas ruas centrais de São Paulo. Com a cidade vazia àquela hora, o trajeto é sempre o mesmo: sigo pela Maria Antônia, Consolação, praça da República, Barão de Itapetininga, Viaduto do Chá, rua Direita e praça da Sé.

Quem vê a praça da Sé de hoje, marco zero da cidade, não acredita que por ali circulavam homens de terno e gravata e mulheres com vestido e bolsa. Às 7h da manhã, a praça é um formigueiro de homens e até mulheres e crianças.

Alguns dispõem do conforto de barracas do tipo iglu que garantem a eles um mínimo de proteção e privacidade, outros não têm alternativa senão acomodar-se em colchões de espuma esburacados e encardidos que alguém jogou fora ou em pedaços de papelão que um dia foram caixas. Enquanto começa a movimentação dos madrugadores, os notívagos dormem a sono solto empacotados em cobertores ordinários.

Como o hábito de passar por ali no mesmo horário é antigo, acompanho há anos o crescimento do número de moradores da praça. Posso lhes garantir, sem medo de exagerar, que pelo menos quadruplicou nos últimos dois ou três anos. Anos atrás, só havia homens, boa parte dos quais dependentes de álcool, crack ou com transtornos psiquiátricos; agora, são famílias inteiras.

Há uma semana, o jornalista Fernando Canzian comentou, nesta Folha, uma pesquisa realizada pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, a Rede Penssar. Tomo a liberdade de ressaltar os seguintes dados citados no texto: “Quase 20 milhões de brasileiros, um Chile, declaram passar 24 horas ou mais sem ter o que comer, em alguns dias. Mais 24,5 milhões não têm certeza de como se alimentarão no dia a dia, e já reduziram a quantidade e a qualidade do que comem. Outros 74 milhões vivem com medo de passar por essa situação”.

Não é preciso pós-graduação em matemática para concluir que 112 milhões, pouco mais da metade dos brasileiros, vive em estado de insegurança alimentar — leve, moderada ou grave. Nesse contingente, de 2014 para cá, o rendimento real per capita proveniente do trabalho caiu cerca de 30%.

No século passado, quando as secas assolavam o Nordestes, o povo do interior resistia à fome até bater o desespero, juntar a família e meia dúzia de pertences e sair pelas estradas poeirentas para buscar auxilio no povoado mais próximo. Os velhos e as crianças eram os que mais penavam, muitos ficavam pelo caminho ao lado de uma cruz de madeira.

Os bem aventurados que conseguiam chegar a São Paulo construíam barracos com teto de zinco, na periferia inchada e despreparada para recebê-los.

No internato e na residência médica no Hospital das Clínicas, meus colegas e eu recebíamos crianças desidratadas que vinham com diarreia e vômitos, resultantes da miséria, da falta de higiene e
de saneamento básico.

Nos plantões do pronto socorro de pediatria fazia parte da rotina perdermos dois ou três pacientes, num turno de 12 horas. Na enfermaria, tínhamos uma ala para desnutridos, crianças magrinhas, com as costelas à mostra, que eram internadas para tomar café da manhã, almoçar e jantar todos os dias. Em contraste com elas, os desnutridos farináceos, alimentados à base de farinha, gordinhos, com os cabelos ralos e descorados como os das espigas de milho.

Essa realidade parecia ter ficado 50 anos atrás, nenhum de nós imaginava revivê-la. Ninguém esperava ver a fome assolar as cidades mais ricas do país, em pleno século 21.

Aceitamos a desigualdade social entre nós com a mesma naturalidade com que nossos antepassados conviviam com a escravidão. Eles, também, achavam que o mundo era cruel e que a economia não teria como sobreviver sem a mão de obra escrava. Envergonhada de “tanto horror perante os céus”, um
dia a sociedade decretou o fim da escravidão e liberou os negros para irem atrás da sobrevivência por conta própria.

Acabar com a desigualdade brasileira por decreto não será possível, mas com a fome, sim. Um país que deixa 20 milhões de cidadãos passarem um dia inteiro sem ter o que comer não pode ser considerado civilizado.

Não é possível ver uma sociedade no estágio de desenvolvimento que atingimos de braços cruzados diante dessa infâmia, à espera inútil de que governantes incompetentes como os nossos encontrem
solução para uma tragédia dessas dimensões.

Tempestade Perfeita, de César Calejon.

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O livro Tempestade Perfeita, escrito pelo jornalista César Calejon nos traz muitos elementos para compreender a sociedade brasileira, uma leitura fundamental para refletirmos sobre o Brasil contemporâneo, as dificuldades e os desafios, afinal estamos vivendo uma verdadeira tempestade perfeita.

Desgoverno de Bolsonaro destrói o melhor do Bolsa Família, por Campello e Brandão.

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Programa ganha nova versão sem regras claras, sob silêncio dos arautos da austeridade

Folha de São Paulo, 19/10/2021

Tereza Campello Economista, doutora por notório saber em saúde pública, pesquisadora associada à Universidade de Nottingham e ex-ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (governo Dilma)

Sandra Brandão Economista, mestre em Economia pela Unicamp

Em 20 de outubro de 2021, o Programa Bolsa Família completaria 18 anos. Se fosse um cidadão, estaria alcançando a maioridade. No entanto, apesar de sua trajetória de sucesso e do reconhecimento internacional que angariou, confirmados por dezenas de milhares de estudos realizados ao redor do mundo, sendo mais de 19,6 mil no Brasil (Plataforma Lattes, outubro 2021), não haverá motivos para celebrar.

De forma autoritária, desrespeitando a legislação e ferindo as melhores práticas sobre políticas públicas, Bolsonaro aniquilou o Bolsa Família. O programa foi extinto sem qualquer estudo técnico que desse suporte ao ato ou embasasse a opção pelo mal desenhado e insustentável programa que pretende substituí-lo.

Em seus 18 anos de existência, o Bolsa Família foi continuamente aprimorado, incorporando críticas e sugestões. Com base em dados e evidências, foi possível avançar e descartar questionamentos sobre seus impactos, parte expressiva dos quais originada na carga de ódio, preconceito e racismo que atinge diariamente os pobres no Brasil.

Hoje, temos dados que mostram que o Bolsa Família não desestimula o trabalho, do que é exemplo recente estudo do Banco Mundial, nem incentiva o aumento da natalidade.

Temos fartos resultados sobre impactos surpreendentes em saúde, que vão desde redução de 58% da mortalidade infantil causada por desnutrição e do déficit de estatura das crianças até efeitos não esperados, como controle e detecção precoce de tuberculose e hanseníase.

Há menos de um mês, um estudo inovador, com mais de 6 milhões de indivíduos, mostrou que o Bolsa Família reduziu em 16% a mortalidade de crianças de 1 a 4 anos, entre 2006 a 2015. Em famílias com mães negras e em municípios pobres, a redução foi ainda maior, chegando a 26% e 28%, respectivamente.

Frente aos muitos resultados de sucesso do Bolsa Família, e diante do aumento dos níveis de pobreza e fome no Brasil, o mais razoável, prudente e eficaz seria ampliar os valores do benefício e o público atendido. Isto poderia ser feito de forma simples e segura, sem os riscos envolvidos em mudanças abruptas, mal planejadas e feitas no afogadilho às vésperas da eleição.

Mas é claro que não podemos esperar prudência e apego aos bons princípios da administração pública em qualquer medida do governo Bolsonaro.

Nestes três anos e meio de (des)governo, houve dez anúncios sobre o fim do Bolsa Família. E a Medida Provisória 1.061 não contém propostas que resultem de debates amadurecidos no governo e com a sociedade. Ao contrário, ela não disfarça seus objetivos exclusivamente eleitorais. Ela destrói exatamente as características que tornaram o Bolsa Família o maior, melhor e mais eficiente programa de transferência condicionada de renda do mundo, pois:

(1) cria um conjunto de 9 tipos de benefícios diferentes, tornando mais oneroso e complexo o programa;

(2) opta por centrar a atuação do Estado no aplicativo, abandonando o Cadastro Único como ferramenta de identificação e inclusão, base para uma atuação integral de combate à pobreza, com oferta de bens e serviços públicos;

(3) desqualifica o processo humanizado de abordagem e acolhimento garantido no Sistema Único de Assistência Social, o SUAS;

(4) centraliza todo o processo no governo federal, secundarizando a cooperação federativa.

A proposta enviada pelo governo Bolsonaro, além de frágil tecnicamente, é ainda ilegal. Estabelece um novo programa, sem definir o valor da linha de pobreza nem o valor dos benefícios, criando uma despesa continuada sem que se saiba o montante dela. Não previu, na proposta de lei orçamentária, receitas para fazer frente aos gastos com o programa.

Como mostra o debate em torno do aumento do IOF e da postergação do pagamento de precatórios, para criar um artificio que permita aumentar suas chances eleitorais, Bolsonaro destruiu um programa bem sucedido de 18 anos e feriu a Lei de Responsabilidade Fiscal.

Apesar disto, os arautos da austeridade fiscal e da eficiência administrativa estão em silêncio.

Quanto vai custar o novo programa? Quais os critérios de inclusão das famílias? Quais estudos justificam adotar nove tipos diferentes de benefícios? Quais os impactos esperados com o novo programa? Nada disto está claro.

Um programa com 18 anos de existência, com custo fiscal baixo e impactos inquestionáveis está sendo extinto e, em seu lugar, propõe-se a incerteza. Há um crime em curso contra os pobres do Brasil, e o silêncio é ensurdecedor.

Cabe reconhecer, contudo, que, mesmo em seus últimos momentos, o Bolsa Família dá mais uma contribuição, mostrando que, quando questões eleitorais entram em cena, a ciência, as boas práticas, a eficácia e eficiência do Estado não são assim tão relevantes para uma parcela dos especialistas e dos economistas, sempre tão críticos em relação a programas em benefício dos mais pobres. Difícil escolha.