Autora de ‘Como a China escapou da terapia de choque’ descreve como Pequim tomou direção oposta à da Rússia pós-soviética

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Em entrevista ao GLOBO, economista Isabella Weber diz que não existe um ‘modelo chinês’ a ser transplantado, mas que outros países podem tirar lições da experiência da potência asiática

André Duchiade

O Globo – 18/07/2021

Na década de 1980, um dos grandes debates entre os líderes chineses que sucederam Mao Tsé-tung era como reformar a economia e gerar crescimento. A China deveria adotar uma terapia de choque que destruísse o funcionamento da economia socialista, ou poderia usar mecanismos da economia planificada para assim criar um mercado?

Como essa discussão se desenrolou e conduziu a uma política diferente da seguida pelas ex-repúblicas soviéticas e o Leste Europeu é o tema de um dos livros mais comentados no campo da economia deste ano: “How China Escaped Shock Therapy” (“Como a China escapou da terapia de choque”).

Sua autora, a professora de Economia Isabella Weber, da Universidade de Massachusetts em Amherst, ainda se surpreende com o sucesso de sua obra de estreia, uma das indicações de leitura do Financial Times. Em entrevista ao GLOBO, ela fala sobre a economia chinesa ontem e hoje, e sobre o que Pequim aprendeu com o Brasil.

No livro, várias vezes a senhora afirma que o caminho seguido pela China não era inevitável. Qual foi a principal diferença da transição chinesa para uma economia de mercado em comparação a outros países socialistas?

A comparação com a Rússia, que seguiu uma política de terapia de choque, é o que mais chama a atenção. As circunstâncias políticas eram muito diferentes entre os países, claro, mas as políticas econômicas foram drasticamente distintas. Após a implementação da terapia de choque, a Rússia passou por um período de recessão mais prolongado do que os EUA na década de 1930. Isso também desencadeou em uma crise social muito profunda. Em contraste, na China, embora também tenha havido tensões sociais e desigualdades, em vez de uma recessão profunda e hiperinflação, houve um crescimento muito rápido, descrito como sem precedentes em ritmo e escala na História moderna. E, no lugar da hiperinflação, houve uma estabilidade geral de preços.

O que era a terapia de choque, exatamente?

Trata-se de um pacote de políticas específico, que deveria ser composto por quatro elementos: primeiro, a liberalização de preços o mais rápido possível, combinada com a austeridade macroeconômica. A liberalização dos preços deveria provocar um choque no sistema e levá-lo a um novo estágio. A austeridade macroeconômica, por sua vez, visava estabilizar o nível geral de preços. Essas medidas deveriam ser seguidas por privatizações e liberalização comercial. O elemento de choque, de fato, era a liberalização de preços da noite para o dia, o chamado Big Bang. A terapia de choque é uma doutrina de transição, que assume que a economia está mudando de equilíbrio.

Por que a China buscou um caminho diferente?
A China escapou da terapia de choque antes que ela fosse adotada na Europa Oriental ou na Rússia, antes de suas consequências serem conhecidas. Por que não a adotaram? Por terem à disposição uma abordagem alternativa para a reforma, o chamado sistema de duas vias. Este sistema se desenvolveu a partir das reformas agrícolas e depois foi transferido para a economia industrial urbana. Em vez de dar um choque no sistema, o governo chinês manteve relações de comando que eram características da economia planificada. Ao lado disso, permitiu também que as unidades produzissem acima do planejado, para o mercado. À medida que começaram a produzir para o mercado, as próprias unidades de produção mudaram a sua lógica de operação.

As duas abordagens, a chinesa e a de choque, tiveram algum papel nos resultados políticos posteriores?
Sim. Na Rússia, o desmonte do Estado comunista era considerado uma condição indispensável para a adoção da terapia de choque. Portanto, não é que a terapia de choque tenha ocasionado a transição política, e sim que transição política provocou a terapia de choque. Já os chineses chegaram perto de adotar a mesma doutrina, mas, sempre que quase o fizeram, recuaram. Em última análise, o compromisso com a estabilidade social e política e com o monopólio de poder do Partido Comunista era tão forte que parecia perigoso demais. Isso aconteceu porque o Partido Comunista continuava no poder, e sua liderança ainda era influenciada por pessoas que eram da primeira geração revolucionária. A primazia do Estado comunista era fundamental.

Podemos especular sobre quais teriam sido seus efeitos?
Não é inconcebível que a terapia de choque na China tivesse desencadeado um caos econômico tão dramático que poderia ter induzido uma transição política. É uma questão aberta o que teria acontecido politicamente, mas poderia ter havido consequências políticas de alcance muito amplo.

A senhora também discute como os reformistas buscam inspiração em outros lugares, inclusive com o Brasil…

No final dos anos 1980, o problema da inflação começou a ser bastante grave na China. Discutia-se muito se seria possível alcançar a industrialização sem inflação, ou se ela poderia ser administrada. As experiências latino-americanas se tornaram assim muito relevantes para Pequim. Na época, o milagre brasileiro já estava há muito encerrado, mas as conquistas da industrialização ainda estavam aí. Então, quando a delegação chinesa visitou o Brasil, impressionou-se muito, com a modernidade de Brasília, com o número de carros, os padrões de vida e assim por diante. Portanto, a China estava olhando para o Brasil em termos de seu nível de desenvolvimento. Ao mesmo tempo, tentou aprender com a experiência inflacionária brasileira para evitar algumas das dificuldades.

E quais foram os aprendizados?
Há uma grande controvérsia de quais foram exatamente as implicações dessas aulas brasileiras. Alguns dizem que uma delegação voltou do Brasil em 1988 e disse que a inflação é inevitável no processo de desenvolvimento, e, portanto, não deveriam se preocupar muito com isso. Mas, a meu ver, voltaram do Brasil e disseram: sim, eles disseram que a inflação é inevitável. Mas isso não quer dizer que não temos que nos preocupar com isso, e, sim que devemos administrá-la com muito cuidado.

Em suas palestras e entrevistas, a senhora jamais afirma que a China ofereça uma alternativa real de modelo econômico. Por quê?

O modelo da China foi desenvolvido de uma forma gradual, sempre levando as circunstâncias históricas específicas locais extremamente a sério, e introduzindo lições de outros países a partir de reflexões sobre quais eram as condições nesses outros países. Portanto, se levarmos essa lógica a sério, não acho que podemos agora pegar o modelo chinês como um todo e apenas transplantá-lo para outro contexto. Mas isso não significa que não haja lições da experiência de desenvolvimento chinesa que possam ser adaptadas.

E que lições seriam essas?
Uma grande lição no contexto do declínio do neoliberalismo é, claro, um papel muito mais ativista do Estado, que envolve a participação do Estado em mercados específicos, o que é totalmente contra a lógica da economia neoliberal, onde você quer ter preços livres e ajustáveis. No caso das recentes iniciativas de investimento público nos Estados Unidos, penso que haja pessoas estudando cuidadosamente a prática chinesa, e, em seguida, tirando suas próprias lições, como os próprios chineses fizeram. Por outro lado, o rápido aumento do sucesso econômico da China ajudou a legitimar a política industrial, o investimento público e um papel mais ativista do Estado dentro dos EUA.

Quais especificidades do período que a senhora estudou permitiram ao governo se mobilizar durante a pandemia?
Passou-se muito tempo entre os anos 1980 e 2020. Mas um elemento-chave que veio junto com a não adoção da terapia de choque é que o Estado manteve um envolvimento bastante direto nos chamados patamares de comando da Economia, ele continua a ter um forte envolvimento nos principais setores econômicos. O Estado também continua na parte crucial do abastecimento de alimentos, e, em particular, de grãos, com políticas que são notavelmente semelhantes a algumas políticas tradicionais chinesas. Existem enormes reservas estatais e um sistema comercial estatal, que participam do mercado sempre que há fortes flutuações de alimentos básicos. Isso permitiu o tipo de enorme quarentena que o Estado chinês impôs nas primeiras semanas da pandemia, quando era importante ter um sistema de abastecimento de alimentos que permitisse às pessoas ficarem em casa.

Quais perigos a senhora entende haver nesse contexto de extrema rivalidade entre Estados Unidos e China?
Essa enorme tensão geopolítica é provavelmente o maior risco atual não só para a economia chinesa, mas para o mundo como um todo. Há enormes desafios que só podem ser enfrentados pelas maiores economias do mundo em colaboração, como percebemos na pandemia, e também é o caso da mudança do clima. Em vez disso, há uma competição cada vez mais acirrada, que parece ser suspensa para cooperação em raríssimos casos. Vejo esse como o maior desafio mesmo para a economia chinesa.

E quais outros desafios você identifica?
A reorientação da economia chinesa para um modelo mais voltado para a demanda doméstica, o que, é claro, assumiu uma nova urgência no contexto de tensões crescentes em torno da guerra comercial. Outro grande desafio é a contínua dependência tecnológica em áreas-chave, como semicondutores. Além disso, há, claro, todo o desafio de como reestruturar a economia para um modelo mais verde e mais sustentável. E isso tem implicações mundiais, pois, como sabemos, a China tem sido a oficina do mundo, e tem feito todos os negócios sujos para o resto do mundo.

Os desafios da educação pós-pandemia, por Mozart Neves Ramos.

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Escola deve transformar base conteudista em aprendizados essenciais

Mozart Neves Ramos, Membro do Conselho da Mind Lab e titular da Cátedra Sérgio Henrique Ferreira de Estudos Avançados da USP (Ribeirão Preto); ex-secretário da Educação de Pernambuco

Folha de São Paulo, 10/04/2022

Desde o fechamento das escolas em razão da pandemia de Covid-19, há dois anos, e à medida que o número de casos da doença crescia país afora, toda a comunidade escolar passou por inúmeros percalços. Reflexos disso são sentidos até hoje, mesmo com a vacinação avançada, inclusive entre crianças, e as aulas presenciais retomadas em todas as regiões do Brasil.

Consenso entre especialistas, a demora em reabrir as escolas comprometeu ainda mais a qualidade do ensino. O relatório “Resposta Educacional à Pandemia de Covid-19 no Brasil”, conduzido pelo Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), mostrou que as escolas brasileiras passaram cerca de 279 dias fechadas no primeiro ano de pandemia.

Esse cenário provocou um grande retrocesso educacional aferido pelos níveis de proficiência escolar nas redes públicas e privadas. Os resultados recentes do Saresp (Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do Estado de São Paulo) revelaram que um estudante da rede estadual paulista terminou o ensino médio em 2021 com uma defasagem de quase seis anos em matemática e, em língua portuguesa, quatro.

O que mais preocupa é que estamos falando da primeira rede escolar a oferecer atividades de ensino remoto e uma das primeiras a retomar as aulas presenciais. Ainda assim podemos ver grandes perdas em todas as etapas escolares.

As primeiras avaliações também mostram que o impacto foi mais acentuado nas crianças em fase de alfabetização ou concluindo o último ano do ensino fundamental. Ainda de acordo com os dados do Saresp, as crianças concluintes desta etapa tiveram um retrocesso em matemática equivalente aos resultados de 2013. Para se ter uma ideia mais tangível, 61,6% dos estudantes do quinto ano não sabem resolver uma simples questão de subtração como esta: “uma construtora encomendou 10 mil parafusos a uma loja, que possuía apenas 3.825 em estoque. Quantos itens são necessários para completar a encomenda?”. Em língua portuguesa, a situação é igualmente grave. Um aluno do quinto ano em 2021 apresenta uma proficiência de um estudante do terceiro. Se isto ocorre em São Paulo, é ainda mais preocupante quando nos deparamos com o restante do país.

Ainda em 2020, segundo o Censo Escolar, 2.449 municípios não tiveram nenhuma aula ao vivo. E apenas 417 cidades tiveram estrutura suficiente para oferecer aulas online de maneira satisfatória. O censo mostrou também que a internet está disponível em 89,4% das escolas da rede federal, 74,1% nas da rede estadual e em apenas 39,8% nas municipais. Para além desses problemas estruturais, ficou nítida também a defasagem de habilidades socioemocionais de alunos e professores, já que o convívio entre pares sempre foi importante para cultivarmos respeito e empatia.

Por outro lado, entendo que o cenário pós-pandemia pode ser também uma janela de oportunidade para mudar nossa maneira de ensinar e aprender. É hora de inovar com base em dados e evidências. É necessário que a escola passe por uma metamorfose, que transforme sua base conteudista em aprendizados essenciais para a vida atual e futura dos estudantes, que os prepare de maneira autônoma para fazer escolhas em seus projetos de vida. Para isso, temos a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) como uma bússola efetiva, que vai nos orientar quanto às demandas reais dos alunos.

Se ficarmos presos ao retrovisor, o desastre será inevitável. Mas, se tivermos a coragem de olhar para onde aponta o farol e fazer as mudanças necessárias, talvez a educação brasileira tenha chances. Para isso, devemos buscar o que este país tem de melhor, pois sou daqueles que entendem que o Brasil pode aprender com o Brasil. Precisamos de líderes educacionais, capazes de romper com o atual status quo —e isso, infelizmente, está nos faltando.

São as entranhas brasileiras, por Jânio de Freitas.

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Demonstrações que Bolsonaro deveria ser investigado com rigor não cessam

Jânio de Freitas, Jornalista.

Folha de São Paulo, 10/04/2022

Nenhum presidente legítimo, desde o fim da ditadura de Getúlio em 1945 —e passando sem respirar sobre a ditadura militar – deu tantos motivos para ser investigado com rigor, exonerado por impeachment e processado, nem contou com tamanha proteção e tolerância a seus indícios criminais, quanto Jair Bolsonaro. Também na história entre o nascer da República e o da era getulista inexiste algo semelhante à atualidade. Não há polícia, não há Judiciário, não há Congresso, não há Ministério Público, não há lei que submeta Bolsonaro ao devido.

As demonstrações não cessam. Dão a medida da degradação que as instituições, o sistema operativo do país e a sociedade em geral, sem jamais terem chegado a padrões aceitáveis, sofrem nos últimos anos. E aceitam, apesar de muitos momentos dessa queda serem vergonhosos para tudo e todos no país.

Nessa devastação, Bolsonaro infiltrou dois guarda-costas no Supremo Tribunal Federal. Um deles, André Mendonça, que se passa por cristão, na pressa de sua tarefa não respeita nem a vida. Ainda ao início do julgamento, no STF, do pacotaço relativo aos indígenas, Mendonça já iniciou seu empenho em salvá-lo da necessária derrubada.

São projetos destinados a trazer a etapa definitiva ao histórico extermínio dos indígenas. O pedido de vista com que Mendonça interrompeu o julgamento inicial, “para estudar melhor” a questão, é a primeira parte da técnica que impede a decisão do tribunal. Como o STF deixou de exigir prazo para os seus alegados estudiosos, daí resultando paralisações de dezenas de anos, isso tem significado especial no caso anti-indígena: o governo argumentará, para as situações de exploração criminosa de terras indígenas, que a questão está sub judice. E milicianos do garimpo, desmatadores, contrabandistas e fazendeiros invasores continuarão a exterminar os povos originários desta terra.

Muito pouco se fala desse julgamento. Tanto faz, no país sem vitalidade e sem moral para defender-se, exangue e comatoso. Em outro exemplo de indecência vergonhosa, nada aconteceu à Advocacia-Geral da União por sua defesa a uma das mais comprometedoras omissões de Bolsonaro. Aquela em que, avisado por um deputado federal e um servidor público de canalhices financeiras com vacinas no Ministério da Saúde, nem ao menos avisou a polícia. “Denunciar atos ilegais à Polícia Federal não faz parte dos deveres do presidente da República”, é a defesa.

A folha corrida da AGU é imprópria para leitura. Mas, com toda certeza, não contém algo mais descarado e idiota do que a defesa da preservação criminosa de Bolsonaro a saqueadores dos cofres públicos. Era provável que a denúncia nada produzisse, sendo o bando integrado pela máfia de pastores, ex-PMs da milícia e outros marginais, todos do bolsonarismo. Nem por isso o descaso geral com esse assunto se justifica. Como também fora esquecido, não à toa, o fuzilamento de Adriano da Nóbrega, o capitão miliciano ligado a Bolsonaro e família, a Fabrício Queiroz, às “rachadinhas” e funcionários fantasmas de Flávio, de Carlos e do próprio Bolsonaro. E ligado a informações, inclusive, sobre a morte de Marielle Franco.

Silêncio até que o repórter Ítalo Nogueira trouxesse agora, na Folha, duas revelações: a irmã de Adriano disse, em telefonema gravado, que ele soube de uma conversa no Planalto para assassiná-lo. Trecho que a Polícia Civil do Rio escondeu do relatório de suas, vá lá, investigações. O Ministério Público e o Judiciário estaduais e o Superior Tribunal de Justiça não ficam em melhor posição, nesse caso, do que a polícia. São partes, no episódio de implicações gravíssimas, de uma cumplicidade que mereceria, ela mesma, inquérito e processo criminais. O STJ determinou até a anulação das provas no inquérito das “rachadinhas”, que, entre outros indícios, incluía Adriano da Nóbrega.

Desdobrados nas suas entranhas, os casos aí citados revelariam mais sobre o Brasil nestes tempos militares de Bolsonaro do que tudo o mais já dito a respeito. Mas não se vislumbra quem ou que instituição os estriparia.

O sono dos motoristas de aplicativo, por Juliano Spyer.

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Quem tem contas chegando e filhos para alimentar ou tem insônia na cama, ou dorme no volante de exaustão

Juliano Spyer, Antropólogo, pesquisador do Cecons/UFRJ, autor de Povo de Deus (Geração 2020) e criador do Observatório Evangélico.

Folha de São Paulo, 09/04/2022

Um anônimo dividiu os holofotes na semana passada com a bofetada de Will Smith em Chris Rock durante a premiação do Oscar. Kaique Reis é o motorista que admitiu corajosamente ter cochilado no volante e, assim, causado a batida envolvendo o ex-BBB Rodrigo Mussi.

O acidente me dá a oportunidade de compartilhar algumas conclusões sobre a condição desses trabalhadores. Escrevo como antropólogo que estuda desigualdade no Brasil e que, por vício profissional, há muitos anos entrevista informalmente –para passar o tempo durante os traslados– motoristas de aplicativo. Aqui estão os itens mais importantes:

1. Antes da pandemia, muitos motoristas expressavam sua gratidão pela oportunidade aberta pelos aplicativos de transporte, que, para eles, representavam uma fonte de renda quando outras não estavam disponíveis, e também algo para fazer diferente de ficar em casa flertando com a depressão. Alguns motoristas, os mais pobres, pediram demissão de seus trabalhos CLT apostando nas vantagens do empreendedorismo para ampliar seus rendimentos pelo próprio esforço. Hoje o mesmo trabalho é comparado recorrentemente a uma forma de exploração a que a pessoa se submete pela ausência de outros meios de sustento.

2. Antes da pandemia e agora, os motoristas explicam que esse trabalho só é rentável quando a pessoa dedica a ele muitas horas por dia e muitos dias por semana. A vantagem financeira vem da multiplicação do baixo rendimento por corrida pelas muitas corridas –em torno de 30– feitas ao longo do dia.

3. Nos últimos anos, a crise econômica, os aumentos do preço dos combustíveis, a pandemia, que reduziu muito a circulação de pessoas nas cidades, as taxas altas pagas aos aplicativos e reajustes de preço praticados inferiores à inflação corroeram a renda desses motoristas.

4. Por causa dessas condições, uma parte dessa força de trabalho abandonou a atividade, reduzindo a disponibilidade do serviço, enquanto outras aprendem “hacks” em tutoriais na internet para selecionar as corridas que pagam melhor ou circular apenas nas áreas mais lucrativas da cidade.

5. Como outros tantos brasileiros pobres e/ou precarizados, muitos motoristas de aplicativo fizeram malabarismos com empréstimos e cartões de crédito durante a pandemia para sobreviver, assumindo o ônus de ficar com o nome sujo na praça. Pois os carros usados nesse serviço devem ser relativamente novos, os motoristas sem outras alternativas de renda, com o nome sujo e endividados, recorrem a serviços de locação.

Você mesmo pode averiguar isso perguntando a motoristas nas próximas vezes que utilizar esse serviço.

Em resumo, o motorista hoje entra no carro para trabalhar em dívida, tendo que cobrir o custo da gasolina e do carro, e só para quando ultrapassa esse valor e alcança uma meta de rendimento. Geralmente o tempo de expediente mínimo é de 12 horas dirigindo.

Não sei detalhes sobre o caso de Kaique Reis, o motorista que levava o ex-BBB Mussi. Mas, tendo como referência o panorama apresentado acima, a responsabilidade por acidentes nesses casos parecem ter menos a ver com escolhas individuais do que com as exigências de uma rotina desumana de trabalho. O motorista tem a alternativa de ficar com insônia pensando nas dívidas na cama ou dirigir até a exaustão para tentar quitá-las.

Uma solução fácil aqui seria responsabilizar as empresas de aplicativos, seguindo uma argumentação da luta de classes e da exploração do trabalho. Mas esses motoristas provavelmente estariam ainda mais vulneráveis sem essa chance para se manterem ativos em um contexto de crise acentuada pela desaceleração econômica que a pandemia produziu.

Conversei com motoristas de aplicativo sobre o caso. Eles reconhecem que, racionalmente, é responsabilidade de quem dirige saber quando precisa descansar. Ao mesmo tempo, entendem e se identificam com os prováveis dilemas do colega, que é o mesmo deles: estar desempregado e precisar trabalhar.

Eles sentem pelo provável destino de Kaique: porque ele levava um passageiro famoso, por ter admitido candidamente seu erro em frente a câmeras de TV e pela publicidade ruim que o acidente causou, ele deve retornar ao anonimato responsabilizado pela dívida pelo carro destruído e desligado do aplicativo, portanto, sem ter seu ganha pão.

Até quantos anos uma pessoa pode viver? por Drauzio Varella.

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Para que mais indivíduos cruzem a faixa dos cem anos, serão necessárias soluções para doenças como câncer e Alzheimer

Drauzio Varella, Médico cancerologista, autor de “Estação Carandiru”.

Folha de São Paulo, 06/04/2022

Ao morrer, em 1997, a francesa Jeanne Calment tinha 122 anos e cinco meses. É considerada a pessoa mais longeva de quantas viveu. Sua competidora mais próxima foi Sarah Knauss que morreu em 1999, com 119 anos.

No início do século 20, a expectativa média de vida nos países mais ricos da Europa mal chegava aos 40 anos. Quando o século acabou estava perto dos 80. O mesmo fenômeno se repetirá na passagem para 2100?

Em 1825, o demógrafo britânico Benjamin Gompertz enunciou a “lei da mortalidade”, segundo a qual ao redor dos 30 anos de idade o risco de morrer começa a aumentar de forma exponencial, até um horizonte em que o risco final alcança 100%.

O limite de duração da existência humana divide os pesquisadores em dois grupos: os que julgam estarmos nas imediações do teto e os que defendem não haver evidências de que exista essa limitação.

Em janeiro deste ano, a Nature trouxe uma discussão sobre esse tema. Tomo a liberdade de resumir a opinião de alguns especialistas ouvidos pela revista.

Um estudo conduzido entre italianos com 105 anos ou mais pelo grupo de Elizabetta Barbi, da Universidade Sapienza, de Roma, mostrou que a curva de Gompertz atinge um platô nessa idade, isto é, para de aumentar exponencialmente.

Embora estável, a taxa de mortalidade a partir dos 105 é alta: 50% a cada ano que passa.

Você, leitor otimista, pode interpretar esse dado com boa vontade. Se a cada ano morrem 50%, a outra metade sobrevive sem que seja possível estabelecer um limite claro para a duração da vida.

Uma análise matemática de Caleb Finch, da Southern California University, calculou que esse limite seria de 120 anos. A estimativa é compatível com o recorde estabelecido por Jeanne Calment.

Progressos capazes de estender a expectativa média de vida da população aumentam as chances de alguns privilegiados alcançarem idades extremas. A mortalidade infantil e os acidentes, por exemplo, impedem que uma pessoa com genética favorável complete cem anos.

A expectativa média de vida na Suécia e no Japão tem aumentado três meses por ano, desde 1840. Esse aumento persistirá? A julgar pelos dados obtidos no Reino Unido e nos Estados Unidos, não, já que neles a expectativa média cresceu pouco nos últimos dez anos. Foi encurtada pelas mortes prematuras por abuso de álcool, drogas ilícitas, suicídios, obesidade e transtornos psiquiátricos.

Em 2020, a ONU estimou em 573 mil os centenários do mundo. Esse número é 20 vezes maior do que o de 50 anos atrás.

Em 1946, as 30 pessoas mais longevas do mundo tinham em média 99 anos. Em 2016, essa média atingiu os 109 anos.

Continuará a crescer nesse ritmo?

É provável que não. Hoje, os que ultrapassam cem anos chegam a tal idade em maior número e em melhores condições de saúde. Mas nesse grupo a expectativa de vida remanescente tem se mantido a mesma nos últimos 80 anos.

Você, leitora inconformada, poderá argumentar: se a expectativa média de vida duplicou no decorrer do século passado, por que não poderei viver 150 anos?

Vamos deixar claro dois conceitos. A expectativa média de vida se refere à média de anos vividos por determinada população. Essa expectativa no Brasil, em 1940, não passava de 45 anos, enquanto em 2019 atingia 76, ganho obtido às custas da redução da mortalidade infantil e das mortes na infância e na juventude —graças às vacinas, ao soro caseiro, aos antibióticos, as melhores condições de higiene e à assistência médica.

A longevidade só leva em conta o grupo que viveu mais tempo em determinado grupo populacional.

Considere o caso das mulheres japonesas. É a maior expectativa média de vida na Terra: 87 anos. Como esse número se refere à média, o número das que passam dos cem anos é maior do que o de brasileiras ou de moçambicanas, mas isso não impede que uma moçambicana quebre o recorde mundial de longevidade.

Mesmo que não exista um limite fisiológico formal para a duração da vida, cruzar as fronteiras atuais da longevidade vai requerer grandes avanços nas ciências médicas.

Não se tratará apenas de reduzir a mortalidade infantil e evitar as mortes precoces, mas de encontrar soluções para doenças cardiovasculares, reumatológicas, câncer, diabetes e ainda ter que lidar com degenerações neurológicas, como a doença de Alzheimer.

Você quer viver muito, não quer? Eu também, mas não a qualquer preço.

À margem da lei, por Oscar Vilhena Vieira.

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A qualidade do Estado de Direito no Brasil vem caindo nos últimos três ano

Oscar Vilhena Vieira, Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.

Folha de São Paulo, 08/04/2022

O Brasil vive às turras com a lei desde sua origem. A ideia de que pessoas e instituições devam se conduzir em conformidade com regras gerais —aplicadas sem qualquer distinção— e de que todos são sujeitos de iguais direitos, jamais conseguiu superar os enormes obstáculos levantados por uma sociedade estruturada em torno da desigualdade, da discriminação, dos privilégios e das exclusões. Daí a incompletude de nosso governo das leis.

A consequência mais imediata da fragilidade da lei no Brasil é a submissão de enormes contingentes da população à violência e ao arbítrio, que brutaliza a vida cotidiana dos mais pobres, mas também cria mal-estar os mais afluentes. A consequência mais difusa dessa incompletude é que o país não consegue consolidar uma trajetória de desenvolvimento. Onde não há lei prevalece o oportunismo e a rapinagem, em detrimento da cooperação, do planejamento, do investimento de longo prazo, da boa governança democrática.

A qualidade do Estado de Direito no Brasil vem caindo nos últimos três anos. O Brasil se encontra no bloco dos países que mais declinaram na América Latina, conforme aponta o último “Rule of Law Index”. Essa deterioração não chega a surpreender, em face da hostilidade do presente governo —e das múltiplas forças autoritárias, milicianas e liberticidas que o apoiam— ao governo das leis.

A espessura desse declínio pode ser percebida em múltiplas esferas. Particularmente grave é o crescimento do crime organizado na região amazônica, associado não apenas ao controle das rotas de tráfico, mas também ao garimpo ilegal, ao desmatamento e à grilagem. As taxas de homicídios em cidades pequenas e médias na Amazônia superam hoje a média nacional (“Cartografias das Violências na Região Amazônica”, produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2022). O desmonte dos órgãos e mecanismo de controle e aplicação da lei, além de um claro incentivo a práticas ilegais, tem colocado em risco nosso principal ativo estratégico, sob o olhar cúmplice daqueles que sustentam o presente governo.

A deterioração também é clara no âmbito da corrupção, seja pela institucionalização do orçamento secreto, que azeita as relações do parlamento com o Executivo, seja pela fragilização de instituições como a Controladoria Geral da União e a Polícia Federal.

Não se deve negligenciar também o fortalecimento do milicianismo e do tráfico em muitas regiões do país. Estima-se que mais de 60% do território do Rio de Janeiro estejam sob o controle dessas forças, o que tem contribuído para um dramático declínio econômico do estado, além de perdas humanas inestimáveis.

O Brasil não superará os seus inúmeros desafios no campo do desenvolvimento econômico, do controle da corrupção política, da preservação ambiental, da qualificação de seus jovens ou da pacificação social e controle do crime sem enfrentar a questão da integridade do Estado de Direito. A sua deterioração nos lança num caminho perigoso.

É surpreendente que muitas pessoas que compõem setores do empresariado, das classes armadas, de grupos religiosos e mesmo do estamento jurídico não se deem conta da estratégia deliberada de erosão da lei e da ordem patrocinada por esse governo. À margem da lei só há o crime.

Homenageio com esse artigo o ilustre jurista e brasileiro Dalmo de Abreu Dallari, que jamais se acovardou face àqueles que afrontaram o Estado de Direto.

O futuro do dólar

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Vivemos num momento de grandes transformações na sociedade internacional, a globalização aumentou a competição entre pessoas, empresas e nações numa busca insana por aumento de produtividade, de retornos financeiros e novos modelos de negócios, levando a sociedade global a novas formas de desigualdades e exclusões sociais, novas pandemias e conflitos militares, com mortes e destruições em massa, não apenas na Europa, mas em inúmeras regiões da sociedade mundial.

Nas últimas décadas percebemos alterações em todas as áreas e setores, o mundo do trabalho se transforma rapidamente exigindo novas qualificações e capacitações cujas escolas se mostram incapazes de acompanhar estas atualizações, gerando levas de trabalhadores sem empregos e, muito pior, neste momento percebemos a descartabilidade dos trabalhadores, que mesmo capacitados não conseguem acompanhar as mudanças das tecnologias que crescem de forma acelerada, gerando bolsões de desigualdades e exclusões sociais.

Neste momento, percebemos que as transformações no ambiente econômico estão alterando os modelos monetários e os padrões financeiros, o dólar que se transformou na moeda mundial desde a segunda guerra mundial, responsável por grande parte das transações internacionais, vem perdendo poder e sua hegemonia tende a perder espaço no mercado global.

O poderio do dólar sempre contribuiu diretamente para sustentar o poder dos Estados Unidos no ambiente global, garantindo ao país a capacidade de manter durante décadas grandes déficits nas suas contas externas, sendo que era o país responsável pela emissão da moeda que embalava as transações financeiras internacionais.

Como as transações internacionais eram feitas com a moeda norte-americana, todas as nações deveriam acumular reservas internacionais em dólares, garantindo indiretamente forte poder na economia global e fortalecendo o poder no ambiente externo. Vivemos momentos de medos e apreensões, ao refletirmos sobre o conflito militar na Ucrânia percebemos que muitas nações passaram a se preocupar com suas reservas externas em dólares, desde que o governo dos EUA, como forma de fragilizar a economia russa e reduzir a sua ofensiva militar, confiscou suas reservas internacionais em moedas norte-americanas depositadas nos bancos ocidentais, com esta política muitos países que possuem dólares depositados em bancos ocidentais passaram a se preocupar com a adoção de sanções como esta, gerando desconfiança, incertezas e fortes preocupações dos mercados globais.

Estas medidas extremadas adotadas pelo governo norte-americano estão levando países a repensarem a moeda dos Estados Unidos como o padrão monetário do comércio internacional, abrindo espaço para que alguns países estudem a comercialização de seus produtos com suas moedas. A assinatura de acordos entre países que comercializam petróleo, além de países exportadores de produtos primários como a Arábia Saudita, Irã, Índia, China, Rússia, dentre outros, podem inaugurar novos espaços de comércio, diminuindo o poderio do dólar, abrindo espaço para novas moedas no cenário internacional, fortalecendo as trocas regionais e aumentando as fragilidades, cada vez mais evidentes, da economia dos Estados Unidos.

As movimentações em curso no cenário financeiro internacional acontecem rapidamente, mas o poderio dos Estados Unidos permanecerá nos próximos anos, mesmo assim, percebemos o crescimento de novos modelos monetários e financeiros, que tendem a gerar novos desafios para as autoridades monetárias, como o crescimento das criptomoedas, as bitcoins e o crescimento de startups financeiras que tendem a crescer e a ganhar relevância no cenário financeiro internacional.

O mundo está em polvorosa, as estruturas que sustentam o modelo econômico global estão desmoronando, o dólar tende a perder espaço, nascem novas hegemonias financeiras e industriais e outras nações, como o Brasil, se perdem em discussões desnecessárias, postergando nossa recuperação e perpetuando nossa insignificância.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 06/04/2022.

O desmonte da globalização, por Ram Mahidhara

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Grandes empresas voltarão a buscar fornecedores regionais

RAM MAHIDHARA, Ex-executivo sênior da International Finance Corporation (IFC/Banco Mundial) e cofundador e COO (diretor de operações) da arara.io

Folha de São Paulo, 03/04/2022

A crise de abastecimento de produtos provocada pela pandemia e agora a ameaça de corte do gás europeu e insumos vindos da Ucrânia estão colocando em marcha um rearranjo global das cadeias de suprimento.

Trata-se de um processo de reversão da chamada globalização, que na última década tornou a China a base de fabricação do mundo, com empresas terceirizando uma grande parte de seus insumos para lá e, em menor escala, para outras partes da Ásia.

A competitividade de custos e os ganhos de eficiência oferecidos pela mudança para a China significaram que muitos itens, anteriormente fabricados nos EUA, na Europa e na América Latina, ou mesmo em países como a Índia, se transferiram para o gigante asiático. Os produtos farmacêuticos e eletrônicos são os melhores exemplos disso.

A Covid-19 expôs o risco dessa concentração e dependência excessivas. Com o fechamento da China, seguido por desacelerações na expedição, transporte e logística, empresas em todo o mundo foram atingidas. O desabastecimento de insumos básicos para enfrentar a pandemia deixou evidente a necessidade de deslocamento geográfico da produção mundial.

A guerra vai catalisar esse quadro. O conflito na Ucrânia traz, agora, a questão do deslocamento estratégico, com ênfase maior no inventário e aumento do estoque de bens essenciais no curto e médio prazo. As empresas vão aproximar geográfica e estrategicamente suas cadeias de abastecimento, seja no mesmo país, ou, pelo menos, dentro do mesmo continente.

É seguro colocar todos os nossos ovos em uma única cesta, mesmo que este país seja o fornecedor mais barato? Ou é estrategicamente melhor termos alternativas? Todas essas são questões com as quais as empresas estão se defrontando neste momento. Aquelas que diversificaram seus suprimentos provavelmente estão se saindo melhor no cenário atual.

Isso destaca a importância de monitorar a própria cadeia de abastecimento para todos os tipos de riscos, particularmente os riscos de ESG (“Environmental, Social and corporate Governance”).

O Brasil tem uma oportunidade neste cenário. Enquanto as empresas norte-americanas e europeias procuram diversificar suas cadeias de abastecimento, o país, com alguma notável experiência em indústrias selecionadas (serviços de petróleo e gás, fabricação de automóveis, tecnologia aeronáutica etc.), pode se posicionar como escolha mais estável e segura para as multinacionais. Sem contar que o Brasil é a 12ª maior economia do mundo e tem sua própria demanda interna.

As empresas brasileiras também devem olhar para suas cadeias de abastecimento e buscar alternativas mais próximas de casa. É claro que, devido aos tremendos avanços que a China obteve na indústria, levará tempo e recursos para competir com a velocidade, a eficiência e os preços dos fabricantes de lá —mas isso pode ser feito. A indústria brasileira precisa identificar essas oportunidades competitivas. Mesmo que seja um pouco mais caro produzir no Brasil, trata-se de uma alternativa sólida por motivos estratégicos: o país oferece mais estabilidade e capacidade produtiva em comparação a muitas outras nações nesta nova e frágil ordem global.

A pior equipe econômica da história, por Rodrigo Zeidan.

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Danos da administração de Paulo Guedes vão durar décadas

Rodrigo Zeidan, Professor da New York University Shanghai (China) e da Fundação Dom Cabral. É doutor em economia pela UFRJ.

Folha de São Paulo, 02/04/2022

Qual o papel de uma equipe econômica? Implementar boas políticas de crescimento e distribuição de renda, aumentar a credibilidade interna e externamente, melhorar o ambiente de negócios e gerenciar expectativas para cultivar investimentos. E, no meio de uma pandemia, salvar a população.

O saldo, que vejo, da equipe econômica de Paulo Guedes é inequívoco. Ele capitaneia a pior equipe econômica da história brasileira, e conseguiu uma façanha que deveria ser impossível: nos fazer ter saudades de Guido Mantega e Zélia Cardoso de Mello.

Os danos da administração de Paulo Guedes, Sachsida, e outros, vão durar décadas. E não é exagero. Pessoas não ressuscitam, desmatamento pode nunca ser revertido, armar a população vai gerar milhares de mortes, fome limita o desenvolvimento humano e perdemos pelo menos 0,5% de PIB potencial por pelo menos dez anos.

Não podemos nos esquecer do dia 16 de novembro de 2020, uma semana depois da Pfizer anunciar que a vacina estava próxima. Adolfo Sachsida, crítico do Bolsa Família, apoiador da liberação do porte de armas e do Escola Sem Partido, discípulo de Olavo de Carvalho, e que já jogou nos pobres e miseráveis a culpa pelo déficit da Previdência, veio a público dizer que achava baixíssima a probabilidade de segunda onda. Que o setor de serviços estaria cada vez mais forte. Que estava tranquilo, porque vários estados teriam atingido a imunidade de rebanho.

Ele e a equipe econômica pareciam lutar contra toda e qualquer medida de isolamento social, mesmo com a vacina batendo na porta. O argumento do governo seria de que isso geraria queda do PIB. Mas PIB é meio, não é fim. Foram incapazes de entender o básico sobre um indicador de bem-estar que tem suas limitações. Ele é irrelevante se alguém está a sete palmos abaixo da terra. Não se respira PIB.

E se o objetivo do governo era manter a economia funcionando, ele não foi alcançado. E a razão é simples: recuperação econômica é questão de confiança. Quando os economistas batem cabeça e perdem tempo desmontando programas importantes, só para trazê-los de volta piores e com nomes diferentes, as pessoas param de gastar e as empresas param de investir.

O PIB brasileiro deve crescer somente 0,5% esse ano, no meio de um boom de commodities e explosão de crescimento mundial. Os países ricos devem crescer 3,5% e os países em desenvolvimento, 5%. A América Latina? 3%.

O papel exercido por essa equipe econômica parece ter sido chancelar a destruição institucional do país. O governo atua pelo desmatamento? Guedes minimiza a destruição ambiental. O governo quer dar aumentos para o funcionalismo? A equipe arranja um jeito de manipular a lei do teto. O presidente faz campanha anti-vacina? A equipe econômica corta verbas para compra e distribuição de vacinas.

É bom lembrar que a equipe econômica foi contra o auxílio emergencial e se não fosse o Congresso empurrar goela abaixo teríamos um desastre ainda maior. O que temos depois de três anos do super poderoso ministro da Economia? Um péssimo ambiente de negócios, com economistas se preocupando em taxar ainda mais importações de pessoas físicas.

Uma economia sem perspectivas, com crescimento até 2025 na casa de 1,5%, abaixo do crescimento populacional. Um país com pior distribuição de renda, mais desmatamento, fome, e sem qualquer investimento educacional. Estagflação com mais de 660 mil mortos. Vejo que o governo nos entregou peste, fome e morte. E não creio que já tenha acabado.

Duas facetas do sistema meritocrático, por Cida Bento.

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Ideia assegura os melhores lugares para quem segue o padrão europeu

Cida Bento, Conselheira do CEERT (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades), é doutora em psicologia pela USP.

Folha de São Paulo, 31/03/2022

O “sistema meritocrático”, que muitas vezes é a principal justificativa das instituições para explicar a ausência de pessoas negras nos cargos de liderança, é construído lentamente ao longo da história do país e começa muito antes do período de inserção no mercado de trabalho.

Uma das tantas características do “sistema meritocrático” brasileiro é assegurar os melhores lugares sociais para quem segue o padrão europeu, branco. Mesmo em cidades onde a maioria da população é negra, esse padrão é exigido.

É o que se observa no caso da adolescente RMS, de 13 anos, aluna do Colégio Municipal Dr. João Paim, em São Sebastião do Passé (BA), que foi mandada para casa, sem aviso prévio aos seus responsáveis, porque seu cabelo foi considerado “inchado” e inadequado para que ela assistisse às aulas.

Interpelado por Jaciara, mãe da adolescente, o funcionário da escola sugeriu que a menina alisasse o cabelo, mostrando a foto de uma menina branca com o cabelo liso, como padrão adequado para frequentar as aulas.

Jaciara diz que a filha chegou em casa chorando muito e dizendo que não queria mais estudar no colégio e, no momento de raiva, chegou até a xingar o próprio cabelo. A reação da adolescente mostra o que milhares de crianças, adolescentes e jovens negros vivenciam em escolas inóspitas que lhes causam mal-estar, impactando suas competências afetivo-emocionais, elementos fundamentais para assegurar a aprendizagem.

E o desejo de não mais voltar à escola explicitado pela adolescente revela também uma das facetas da evasão escolar, que atinge muito mais a população negra do que a branca.

Essa situação mostra ainda uma escola que cria ambientes mais acolhedores para um perfil do alunado em detrimento de outros, o que vai se materializar também, futuramente, nas organizações empregadoras.

O CEN (Coletivo de Entidades Negras) acompanha o caso da estudante, buscando assegurar seus direitos, e que os autores dos atos racistas sejam punidos.

O coletivo sinaliza para a discriminação contra signos e símbolos da cultura afro-brasileira, a qual precisa ser debatida, como preconiza a LDB, alterada pela lei 10.639/03. Ou seja, o poder público é fundamental para assegurar uma escola mais equânime, mas o que se observa, infelizmente, é exatamente o contrário.

O Censo Escolar, principal instrumento de coleta de informações da educação básica e base para construção de políticas públicas, por orientar a divisão de recursos entre estados e municípios e a implementação de programas de responsabilidade do Governo Federal, vem sofrendo silenciosas mudanças.

A base de dados sobre gênero, cor e raça dos docentes e do alunado foram alteradas e só aparecem em grandes blocos, impedindo que se amplie os estudos e se aprofunde o conhecimento sobre o impacto de atitudes de escolas como a citada acima, na aprendizagem e evasão escolar.

Ao fazer um comparativo entre as bases de microdados do Censo Escolar de 2020 com a do ano de 2021, uma série de variáveis não está mais disponível.

Não é mais possível acessar os microdados do Censo de 1995 até 2020, apenas o de 2021 e, diferentemente das edições anteriores, os microdados trazem um único arquivo de dados, que não contempla o perfil de professores e gestores (sexo, raça/cor e formação).

Enfim, não se combatem as desigualdades ocultando as informações sobre ela, mas cumprindo a lei e implementando políticas que qualifiquem o ensino e tornem a escola acolhedora para todas as crianças.

Competição global

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Vivemos num momento de grandes transformações geopolíticas e econômicas, neste ambiente de mudanças constantes percebemos movimentações em todas as nações, buscando novos espaços políticos, novas formas de integração econômica, novas tecnologias, novas formas de dinamizar suas sociedades e novas oportunidades que devem definir as estratégias de sobrevivência nas próximas décadas.

Neste ambiente, percebemos o crescimento de um novo conflito econômico e geopolítico que deve moldar o capitalismo contemporâneo, com formas diferentes de organização social, estruturas produtivas e construções políticas. Neste momento, percebemos um conflito entre os Estados Unidos e China, onde cada um dos contendores tem suas armas, além de seus instrumentos de convencimento e de pressão, deste conflito tende a nascer uma nova sociedade, uma nova forma de organização social e novas características produtivas.

O crescimento chinês foi assustador nos últimos 40 anos, de uma sociedade altamente miserável a China se transformou no mais bem sucedido modelo de crescimento econômico, com uma estrutura produtiva moderna, com políticas centradas no Estado Nacional, com sólidas e consistentes estratégias de transformação produtiva, marcadas pelo protecionismo, pelos subsídios crescentes e pelas políticas de compras governamentais que garantiram a venda de produtos produzidos internamente, garantindo fortes estímulos para a geração de empregos, melhora salarial e novos espaços de inclusão social que contribuíram para retirar da pobreza milhões de trabalhadores.

Destacamos ainda, que todos os setores receberam estímulos para competir no mercado internacional, garantindo uma melhoria constante dos setores produtivos, além que adquirir novos mercados globais que angariavam a entrada de moedas conversíveis que contribuíram para o aumento das reservas internacionais. Nos anos 1970, algumas delegações oficiais chinesas visitaram o Brasil para compreender as políticas que estavam sendo implementadas, estas políticas garantiram um forte crescimento econômico e levaram o Brasil a uma posição de destaque no cenário internacional.

A partir dos anos 1980 os chineses colocaram em prática uma política desenvolvimentista fortemente centrada num Estado planejador, mesclando forte intervenção estatal e estímulo a competição externa, além disso, inovou ao adotar políticas de associação de empresas nacionais com grandes conglomerados globais, que garantiram uma forte transferência de tecnologia, utilizando o mercado nacional como um trunfo fundamental para atrair grandes empresas interessadas na exploração do mercado do país asiático.

A ascensão chinesa nos anos 1980 nos mostra que num mercado altamente competitivo e concorrencial, como vivemos na atualidade, é fundamental construirmos uma sólida e consistente estratégia de desenvolvimento econômico. Todos os países que conseguiram se desenvolver econômica e produtivamente construíram, internamente, uma estratégia centrada no planejamento, na construção de metas claras e flexíveis, garantindo investimentos sólidos em educação, em ciência e tecnologia, formando mão de obra capacitada para entender os grandes desafios que estavam sendo desenhados na economia internacional.

Neste ambiente, precisamos repelir ideias entreguistas centradas no pensamento liberal ortodoxo, que privilegia os grandes atores econômicos internacionais, são eles os grandes responsáveis pela difusão destas ideias, que patrocinam os pseudo-intelectuais que aparecem cotidianamente nos meios de comunicação e que contribuem diretamente para esta situação degradante da sociedade brasileira, onde uma grande parte da população vive em condições de indignidade, de exclusão e de degradação moral.

Vivemos numa grande competição internacional, o mundo contemporâneo é marcado por grandes desafios, neste ambiente, precisamos refletir sobre os modelos mais consistentes da sociedade global, o desenvolvimento é uma grande maratona que exige disciplina, planejamento e humildade. Como foi dito anteriormente, o Brasil serviu de exemplo para a China no século passado, está na hora de termos humildade para aprendermos com exemplos mais exitosos.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 30/03/2022.

Viagem ao mundo sem lei dos super-ricos, por Ladislau Dowbor

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“É difícil levar uma pessoa a entender alguma coisa
quando o seu salário depende de não a entender.”
Upton Sinclair

Parasitagem da riqueza social. Paraísos fiscais. Advogados. Políticos “tolerantes”. Um herdeiro que conviveu com o 0,01%, revela como esta “nova classe” multiplica sua riqueza e poder – e quanto sonha viver num mundo sem sociedades e Estados

Ladislau Dowbor – OUTRAS PALAVRAS – 21/03/2022

O caos financeiro mundial e brasileiro que enfrentamos tem um sentido: favorecer os mais ricos. Nos 30 anos do pós-guerra, entre 1945 e 1975, o capitalismo apresentou um razoável equilíbrio entre os lucros dos empresários, a remuneração dos trabalhadores, e as políticas públicas indispensáveis ao desenvolvimento equilibrado. Com Reagan os EUA e Thatcher na Grã-Bretanha, o capitalismo se desloca para um sistema em que os lucros financeiros passam a dominar os processos produtivos. A mudança é profunda, e se baseia em três eixos de mudança.

Primeiro, com a informática e a conectividade planetária, a moeda deixa de ser algo impresso pelo governo e passa a ser um sinal magnético emitido pelos grupos financeiros. O dinheiro imaterial passa a navegar no espaço planetário instantaneamente, passa a ser “liquidez”. Não precisa abrir mala na alfândega. Segundo, o sistema financeiro passa a ser planetário, no chamado high frequency trading, com derivativos, paraísos fiscais, e outros mecanismos de escala global, enquanto os governos, ou seja, a capacidade reguladora financeira dos Estados e dos bancos centrais, estão limitados à escala nacional: os poderes públicos perdem grande parte da sua capacidade reguladora, em particular de poder orientar recursos financeiros em função das necessidades do desenvolvimento.

Terceiro, essas mudanças levaram à formação de um novo setor econômico, a indústria de gestão de ativos (asset management industry), que passou a administrar o gigantesco estoque de fortunas nos espaços privados dos bancos, hedge funds, investidores institucionais, fortunas privadas (family offices), e evidentemente nos paraísos fiscais, visando assegurar o máximo possível de evasão fiscal, de elisão fiscal (no limite da legalidade, aproveitando complexidades jurídicas), de lavagem de dinheiro, de fuga nos casos de conflitos matrimoniais, de compra de políticos e tantas outras portas que abre um sistema internacional descontrolado. Não há governo mundial, e mesmo no plano nacional as leis são frequentemente feitas para tornar legal o que não é legítimo, e muitas vezes escandaloso.

Estamos falando de um estoque de centenas de trilhões de dólares, e de um volume de movimentações incomparavelmente maior. Para ter uma ordem de grandeza, lembremos que o PIB mundial é da ordem de US$90 trilhões. As fortunas do 1% dos mais ricos, segundo o banco Crédit Suisse, é da ordem de US$190 trilhões, enquanto a metade mais pobre da população mundial, 4 bilhões de pessoas, tem apenas US$5,5 trilhões, 1,3% da riqueza. A desigualdade, como sabemos, está explodindo no mundo, essencialmente por meio de ganhos financeiros, explorando, travando a base produtiva em vez de fomentá-la. É o “capitalismo extrativo” tão denunciado por inúmeros economistas e até por pessoas indignadas do próprio “mercado”.

Chuck Collins, que recebeu de herança uma pequena fortuna quando jovem, e que tem, portanto, entrada no mundo dos afortunados, concentrou o estudo The Wealth Hoarders (poderíamos traduzir como guardiões de riqueza) no que aparece mais claramente no subtítulo: “Como bilionários pagam milhões para esconder trilhões.” É importante dizer que não se trata de um panfleto anti-ricos: se trata de um estudo muito sistemático e bem documentado sobre como funciona o grande mundo financeiro que administra e assegura o aumento exponencial do grande dinheiro. Porque os donos de grandes fortunas não correm atrás de mais dinheiro: contratam empresas especializadas, bem remuneradas, que detêm conhecimentos impressionantes sobre as frestas e lacunas nas leis, que países ou territórios são mais corruptíveis, como criar “family offices”, trustes, empresas laranja (shell companies), que políticos são mais acessíveis.

Esses profissionais constituem a tropa de choque do mundo da alta finança, dos UHNW (Ultra High Net-Worth individuals), buscando maximizar os seus rendimentos, assegurar o segredo das transações e minimizar o pagamento de impostos. Estão administrando os interesses não mais dos “capitães da indústria” de outrora, General Motors e semelhantes, mas a rede mundial do 0,01% e do 0,001 dos detentores de riqueza acumulada. De certa forma, é a classe política do mundo financeiro, os que administram a riqueza real dos bilionários.

Para dar uma ordem de grandeza, a BlackRock administra US$10 trilhões, seis vezes o PIB do Brasil. Junto com Vanguard e State Street, três grupos privados administram US$20 trilhões, o equivalente ao PIB dos Estados Unidos, de US$21 trilhões. Biden está batalhando para conseguir liberar 3 trilhões de dólares para os próximos 10 anos.

Olhando o conjunto que formam as grandes fortunas privadas mundiais por um lado, e a máquina de gestão dessas fortunas por outro, constatamos que hoje existe uma oligarquia financeira mundial com poder político e econômico dominante, que deforma tudo o que temos chamado de política e de democracia. Não são bem capitalistas, mais bem constituem uma aristocracia financeira que explora inclusive o capitalismo produtivo. E evidentemente cada um de nós.

As novas tecnologias redimensionaram essas políticas, na medida em que o dinheiro imaterial escapa facilmente aos controles, mas também pelo fato que permitem a micro drenagem do bolso de bilhões de pessoas pelo mundo, por exemplo pela tarifa incluída no que pagamos com o cartão de crédito. Com a sofisticação das plataformas globais, pequenas taxas ou aumentos de preços generalizados no planeta, o dinheiro da base da sociedade, inclusive das empresas privadas, flui para o topo da pirâmide, que não precisa ter contribuição produtiva: mas precisa sim de bons informáticos, advogados, políticos e administradores que constituem, precisamente, os que recebem milhões para esconder trilhões. Collins detalha como funciona a máquina.

No conjunto, apesar das inúmeras tentativas de controle da rede de ilegalidades, descritas em detalhe no livro, o sistema criou vida própria: “Vivemos num sistema crescentemente globalizado, com o capital desvinculado (delinked) dos estados nacionais. Essa “classe capitalista transnacional”, como a descreve William Robinson, está alterando o sistema econômico. Com a evolução do sistema, pessoas ricas e empresas transnacionais estão tentando se tornar apátridas (stateless) e desvinculadas das regras nacionais…Neste sistema, os oligarcas e cleptocratas globais têm mais em comum uns com os outros do que com cidadãos dos seus estados de origem.”(150)

Igualmente significativo é o papel dominante que exerce “o mundo de fala inglesa”, na expressão de Collins: “Os centros econômicos dos Estados Unidos e do Reino Unido são as forças motrizes no sistema global de riqueza escondida. O mundo de fala inglesa carrega uma responsabilidade desproporcional pela criação dessa confusão (this mess) e por manter o sistema – e tem também um tremendo poder para o alterar.”(152)

Um livro pequeno, de leitura simples e transparente, e que acende a luz neste universo obscuro dos que tanto falam do seu “merecimento”, mas se apoiam numa estrutura paralela de poder que não presta contas a ninguém, apenas recebe os seus milhões por serviços prestados. Neste sentido, o livro de Collins converge muito com outros livros que resenhamos, como A Arapuca Estadunidense do Pierucci, ou as Confissões de um Assassino Econômico de John Perkins: mostram o mecanismo interno real, as engrenagens, do universo que temos qualificado de “mercados”, mas que constituem um sistema parasita que drena a renda das famílias, a capacidade de investimento das empresas produtivas, e os recursos públicos que asseguravam as políticas sociais. O resultado é o drama planetário que vivemos: o aquecimento global e outras tragédias ambientais, a desigualdade explosiva, e a paralisia econômica. O dinheiro acumulado pela aristocracia financeira não provém da sua contribuição produtiva, mas da máquina extrativa que hoje se tornou o mecanismo dominante de enriquecimento no planeta.

Identitarismo troca conceitos universais por marcas particulares, diz Roudinesco

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Para historiadora francesa, movimentos emancipatórios derivam em posições hostis à liberdade de expressão

Naná DeLuca, Jornalista da Folha e mestre em letras pela USP

Folha de São Paulo, 27/03/2022

[RESUMO] A historiadora francesa Elisabeth Roudinesco fala sobre como movimentos identitários abriram mão de conceitos mais amplos para privilegiar marcadores particulares.

A historiadora e psicanalista francesa Elisabeth Roudinesco, 77, conhecida por biografar grandes pensadores como Sigmund Freud e Jacques Lacan, diz ter certeza de que “o mundo está se desfazendo para o nascer de outro”. Para ela, isso é bom, mas o percurso errático dessa transformação a preocupa.

Essa inquietação é o objeto do seu mais recente livro, “O Eu Soberano” (Zahar), que busca compreender as “derivas identitárias” —o encerramento sistemático dos sujeitos em identidades fechadas—, que hoje estão no centro do debate público em vários países. Para conduzir sua pesquisa, ela se pergunta: como os movimentos emancipatórios do século 20 se tornaram o que são hoje?

Relendo clássicos do pensamento francófono, como Aimé Césaire, Frantz Fanon, Jacques Derrida e Michel Foucault, ao lado de importantes trabalhos atuais, como os de Judith Butler e Gayatri Spivak, a historiadora explora as mudanças nos conceitos de gênero, raça e identidade para explicar as transformações na militância e na produção acadêmica da esquerda. O livro também discute o identitarismo da extrema direita, baseado no nacionalismo e no ódio. Para Roudinesco, se compreende bem isso no Brasil de Jair Bolsonaro.

Em entrevista à Folha, a historiadora também discute questões sobre o Estado de Direito, a laicidade, o fanatismo religioso e as mudanças linguísticas para apontar que o mundo está mudando, “mas ninguém pode dominar essa transformação”.

Por que a sra. decidiu escrever “O Eu Soberano”? É assunto em voga e um fenômeno que já existe há 30 anos. Os engajamentos identitários e o que chamo de suas derivas começaram após a queda do Muro de Berlim, com a substituição de questões de classe por aquelas da identidade.

O que me interessava era olhar a questão do gênero e da raça. Como chegamos a esse ponto de grande deriva? O que partia de uma boa posição emancipatória —para mulheres, negros e homossexuais— começou a derivar em direção a posições hostis à liberdade de expressão. Em nome dessas reivindicações, hoje se quer proibir textos e destruir estátuas, por exemplo.

Os autores atuais dos quais trato no livro se inspiram em grandes pensadores, como Aimé Césaire, que reivindicou a palavra “negro” de forma positiva, para afirmar uma cultura negra; Franz Fanon, que nunca adotou uma postura identitária, mas foi um anticolonialista refinado; em Edward Said e seu trabalho sobre o olhar do Ocidente para o Oriente; e também em Michel Foucault, Jacques Derrida, Gilles Deleuze e Jacques Lacan.

Mas se inspiram em todos esses intelectuais para projetos que nada têm a ver nem com liberdade nem com emancipação. Quis entender como chegamos a essa deriva e olhar para o identitarismo de extrema direita, que não tem nada de deriva, pois sempre foi a mesma coisa.

Qual foi a recepção do livro na França? O livro foi lançado em um momento de enorme crise de deriva identitária no país, em março de 2021. Não foi minha intenção. Quando comecei a escrever, há três anos, o cenário era outro.

O debate explodiu na França com ataques extremamente reacionários, de um lado, e ultra-esquerdistas, de outro, em um contexto político bastante complicado. Algo que vocês entendem no Brasil, pois têm um identitário de extrema direita no poder, Jair Bolsonaro.

Como a identidade passa a ser central no debate público? A partir da década de 1980, a identidade passa a ser entendida por “eu sou eu, isso é tudo” —o sujeito se define, por exemplo, apenas pela cor de sua pele. Como explico no início do livro, a identidade não é mais “eu sou como um outro” ou “eu sou todo o mundo” —não são uma identidade e um sujeito abertos.

A deriva identitária é se definir unicamente por um marcador particular. Ou seja, abandonar a subjetividade universal e também a subjetividade da diferença. Definir-se unicamente como negro, homossexual, transgênero etc.

Não é uma reivindicação como aquelas ligadas à classe, pois é uma marcação territorial e limitada.

E o pensamento interseccional? A sra. o acha reducionista? De início, é uma excelente ideia. A interseccionalidade já existia em todos os trabalhos contemporâneos por ser um método comparativo. O pensamento interseccional é a convergência de lutas. Não tenho nada contra.

O que acho problemático é a manutenção da palavra “raça”, pois cientificamente não existe raça. Há pigmentações de peles, há culturas, mas não raça. A retomada dessa ideia não é mais como fez Aimé Césaire —”negro sou, negro fico”—, que subverte o estigma racista e reivindica a negritude como cultura. Agora passamos do ponto de reivindicar nossa cultura para reivindicar a raça e marcar uma identidade.

Como explicar a ideia de deriva de maneira mais ampla? Essa ideia de deriva define um pouco nosso mundo. No sentido de Derrida, há a ideia de um velho mundo —das certezas ideológicas, da ordem do patriarcado— que não existe mais.

Essa ordem do mundo foi desfeita.

A deriva da esquerda é a flutuação que parte rumo a um destino, mas termina por chegar em seu ponto contrário. Muito diferente do identitarismo e do nacionalismo da extrema direita, que não deriva nunca, é estático. No caso das derivas à esquerda, há também a criação de um falar obscuro.

Por exemplo? Palavras como racializado, decolonial, generificado, cisgeneridade, todo esse novo vocabulário, sistematizado para criar uma linguagem do pertencimento. Homi Bhabha, traduzido em todo o mundo, creio ser o autor de falar mais obscuro de que trato no livro. Mas também falo de Gayatri Spivak e mesmo de Judith Butler. Essa linguagem é complexa, mas interessante, pois permite dizer absolutamente tudo, incluindo o seu contrário.

O que a sra. acha dessas mudanças na linguagem? Adotei uma posição de nuances. Antigamente, dizia-se sobre uma ministra de Estado, “madame le ministre” [senhora o ministro]. Hoje, se utiliza o artigo feminino. Acho positivo, mas a feminização sistemática de palavras gera casos até ridículos. O mundo está se desfazendo para o nascer de outro, mas ninguém pode dominar essa transformação. É nesse ponto que critico as derivas identitárias à esquerda.

Dominar em que sentido? Há algo que se desfez, simbólica e culturalmente, com a conquista de mais igualdade para mulheres, a descriminalização de homossexuais, toda a questão dos transgêneros emergiu também. Tudo isso é bom. O que critico é a posição militante de querer dominar aquilo que não se controla, como a língua.

Uma vez que algo é incorporado à língua, é impossível controlar. Se tentamos, no fundo criamos novos dogmas e impomos um sistema autoritário. Para o intelectual, é preciso observar e deixar as transformações acontecerem em nossa sociedade e não buscar conquistas militantes.

O que era vital nos grandes autores da década de 1960 — Césaire, Derrida, Foucault, Fanon, Deleuze— é essa característica de pensar profundamente naquilo que se desfazia na sociedade, sem tentar ordená-la. É por isso, inclusive, que foram muito atacados pela extrema direita e conservadores.

Qual é a diferença entre o identitarismo da extrema direita e o da esquerda? O identitarismo da extrema direita é sempre baseado no medo de ser substituído, no nacionalismo e na afirmação arcaica de que pertencemos a um território e a uma identidade fixos. É também o ódio por qualquer outro —imigrante, judeu, árabe, indígena. Esse identitarismo se baseia na ideia de que nascemos com uma identidade que deve ser conservada.

Isso não é comparável às derivas identitárias da esquerda, não há simetria. Embora esses identitarismos coabitem uma mesma época, são processos completamente distintos.

O identitarismo da extrema direita pode explicar a ascensão de políticos como Donald Trump ou Jair Bolsonaro? Com certeza, é o medo de que o mundo mude. Medo do comunismo, dos homossexuais, de que o homem branco se apague.

Algo interessante sobre o identitarismo da extrema direita no Brasil e nos EUA é que, muito diferente do caso da Europa, essas são sociedades miscigenadas. Historicamente, tanto em uma quanto em outra há o medo de que a população “torne-se negra”, o que é ridículo. A miscigenação é algo formidável.

Mas o Brasil é extremamente racista. O racismo é um problema econômico, social, cultural. Evidentemente. Os EUA também. Eu diria que, quanto mais há miscigenação, mais há o medo do outro e, consequentemente, o racismo, porque a miscigenação rompe barreiras imaginárias.

Vejamos o caso de Barack Obama. Ele é miscigenado. Culturalmente, no contexto dos EUA, é muito mais próximo de um Kennedy que de um homem negro da periferia. Obama é um puro produto das melhores universidades americanas, o que mostra que a questão não é a cor, é a cultura.

Para retomar a questão anterior: o que explica que a ascensão de políticos extremistas, ligada ao identitarismo da extrema direita, seja um fenômeno simultâneo em tantos países tão diferentes entre si? O mundo é agora multipolar, em oposição ao mundo bipolar da Guerra Fria. Há uma crise nisso que chamamos de sociedades ocidentais e será preciso encontrar soluções para dividir as riquezas. Não podemos deixar povos inteiros na pobreza, ou o nacionalismo e o populismo continuarão a se reproduzir.

A principal oposição hoje é o mundo da democracia versus o mundo das ditaduras, e a democracia está muito frágil. A França está fragilizada pelo aumento do islamismo radical, uma reivindicação identitária.

Em 1989, Lévi-Strauss afirmou em entrevista à Folha que sentia sua cultura ameaçada pelo islã. Esse sentimento de ameaça permanece na França? Sua crítica não era à religião islâmica, mas à ideia de dominação. Primeiro, é preciso dizer que não se pode atacar muçulmanos, que hoje na Europa ocupam um lugar muito parecido com o que os judeus ocuparam outrora. O que é preciso criticar é o fanatismo religioso, uma deriva identitária.

Na Europa, o islã é uma religião que integramos à nossa sociedade, diferente do Brasil, em que isso não é uma questão. Contudo, no Brasil vocês têm outro perigo, outra forma de fanatismo religioso: o evangélico. Para escapar ao fanatismo, é preciso integrar a religião e os religiosos à laicidade do Estado.

O modelo brasileiro de Estado laico é muito diferente da laicidade francesa. Com certeza, a França tem um modelo único. Mesmo os EUA e a Inglaterra, do ponto de vista francês, não são países laicos. O presidente dos EUA faz seu juramento com a mão sobre a Bíblia. Na Inglaterra, há uma monarquia. Nada parecido com a França, onde cortamos a cabeça do rei e fundamos uma laicidade muito particular.

O modelo de Estado laico francês não é exportável a outros países. Ele deve ser defendido, é parte de nossa tradição. Nesse sentido, sou próxima de Lévi-Strauss. Ele acreditava que não se devia perturbar a estrutura.

Qual é a diferença entre o identitarismo em países colonizados e em países colonizadores? Essa pergunta está no
coração do debate que proponho no livro. Há um movimento que começa a se desenhar, uma guerra da memória. Nos países outrora colonizados, os povos oprimidos reivindicam agora sua própria memória, uma memória da perseguição.

Contudo, não se pode destruir estátuas, censurar a história de um país. A história é complexa. Países colonizados tiveram colaboracionistas, e países colonizadores tiveram anticolonialistas. O que deve ser feito é olhar o passado por todos os lados. É preciso fazer a memória compartilhada, algo que tentamos fazer na França em relação à Argélia. A memória compartilhada é a única solução, ainda que muito complexa.

No Brasil, discute-se o conceito de racismo estrutural. O que a sra. acha desse conceito? Nós o chamamos de racismo sistêmico. Na França, não há racismo sistêmico no nível do Estado. É a lei. Eu não concordo com o posicionamento decolonial que afirma que o racismo seja estrutural ao Estado, pois essa afirmação não é precisa. Não se pode confundir a sociedade civil e o Estado.

Dados apontam que, em 2020, mais de 6.400 brasileiros foram mortos em intervenções policiais. Desses, 79% eram negros. Não faz sentido, então, falar de um racismo estrutural ou sistêmico? Isso é muito distante da realidade francesa, onde se recorre à lei e ela funciona. Se um policial mata alguém, ele é punido pela lei. Nos EUA, idem. O policial que matou George Floyd foi condenado. Nesses casos, eu não acredito que o Estado produza o racismo. Neles, o racismo existe e ele está, também, na polícia.

Mas, no Brasil, está no poder um racista assumido. O Estado de Direito brasileiro é muito frágil. Mais que de democracia, essa é uma questão de Estado de Direito, um Estado neutro que condena a discriminação.

Como superar esse tipo de violência? Pelos livros e pela militância. O combate tem que ser feito pelas ideias, ao menos na Europa.

No Brasil, creio ser uma questão de Estado de Direito. Estive no Brasil quando Dilma Rousseff foi deposta, algo a que me opus fortemente. Para mim, estava claro que isso iria beneficiar a extrema direita. Não há solução fácil ou imediata para o Brasil, mas Bolsonaro não pode continuar.

Por que a extrema direita é tão atraída por movimentos conspiracionistas, como o QAnon? A extrema direita é essencialmente conspiracionista, imagina sempre um complô. Na França, mesmo antes da Revolução de 1789, já existiam conspirações de um complô judeu. O conspiracionismo caracteriza as ditaduras. Vladimir Putin, por exemplo, é um conspiracionista. Ele foi do comunismo para a extrema direita, e o complô é o mesmo: um mal que vem do estrangeiro.

Hoje em dia, o conspiracionismo é ativado maciçamente pelas redes sociais, que são um lixo, sempre terreno fértil para conspirações. Vimos isso com os movimentos antivacina.

Todo conspiracionismo ignora a realidade. Seja o pior dos conspiracionismos, como o antijudeu, que culminou no Holocausto, seja o movimento antivacina, todos se baseiam no medo e no terror de um estrangeiro, de um outro.

E o medo de uma ameaça comunista? Também é um conspiracionismo. A extrema direita teme um comunismo que não existe mais. O que é fascinante é que não é necessária a presença da realidade, nem do objeto do ódio, para que o conspiracionismo floresça. Há, por exemplo, conspirações antissemitas em países onde não há judeus.

É esta a grande característica da extrema direita: ela acredita em conspirações baseadas em coisas que não existem.

Tem-se medo a vida toda do comunismo, que não existe mais. Temem a “grande substituição” por uma outra raça, quando não existem raças. Na França, hoje, temem que haja menos igrejas que mesquitas, mas a explicação é simples: o país se descristianizou. Não há substituição.

O que me causa mais receio é que a extrema direita não é acessível pela razão, pois se baseia no medo e, contra isso, não há pedagogia possível. O conspiracionismo, a meu ver, é uma doença mental.

No Brasil, há um problema sério de violência contra a população trans, com assassinatos brutais. Como combater essa violência sem cair em derivas identitárias? Em primeiro lugar, é preciso combater, evidentemente, como se combate a violência contra a mulher e homossexuais.

No livro, chamo atenção para outro debate, sobre a definição da transgeneridade e da lei. Pela lei francesa, uma pessoa com menos de 15 anos não pode consentir uma relação sexual. Sou favorável a essa lei.

No caso de pessoas trans, sou contra os tratamentos hormonais e cirurgias de redesignação em pessoas com menos de 15 anos pelo mesmo motivo: elas não podem dar o consentimento, mesmo que queiram o tratamento. Depois dos 18 anos, cada um tem o direito de fazer o que quer.

Além disso, eu me questiono sobre outro fenômeno, relacionado ao sexo e ao gênero. É preciso tratar do assunto com humanidade, mas não é possível apagar o sexo em nome do gênero. O que é preciso combater são os excessos.

É perfeitamente normal que alguém tome hormônios e adote um gênero diferente do nascimento, mas erra alguém que diz suprimir a biologia. As duas coisas podem conviver. Não se pode negar o gênero em detrimento do sexo, nem negar o sexo em detrimento do gênero.

A pobreza do liberalismo brasileiro, por Rodrigo Jungmann.

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Nossos liberais não costumam ir muito além de concepções economicistas

Rodrigo Jungmann, Doutor em filosofia pela Universidade da Califórnia, é professor da Universidade Federal de Pernambuco

Folha de São Paulo, 27/03/2022

No último dia de aulas remotas do semestre passado, um aluno me afiançou, muito educado, que gostara bastante das minhas preleções. Avançou a ressalva, no entanto, de que, com todas as vênias, não poderia deixar passar batida a ocasião de assinalar uma certa perplexidade. Causava-lhe espanto que eu houvesse me declarado mais de uma vez um defensor do liberalismo.

A sequência da conversa deixou claro que, por “liberalismo”, o aluno entendia tão só o “neoliberalismo”, uma concepção de ordem econômica que chegou ao poder no fim dos anos 1970 e começo dos 1980 com as vitórias eleitorais de Margaret Thatcher e Ronald Reagan.

Uns cinco ou dez minutos bastaram para que eu fosse capaz de esclarecer-lhe que, por “liberalismo”, tinha em mente a ordem política liberal e que, nos termos da terminologia que me parece mais adequada, um John Maynard Keynes figura comodamente como um liberal de esquerda, ao passo que um Friedrich Hayek deve ser tido na conta de liberal de direita. A diferença entre os dois autores economistas, como é sabido, radica-se numa distinta compreensão do papel ideal do Estado na economia —muito mais abrangente, na concepção de Keynes; tão pouco intrusivo quanto possível, no entender de Hayek.

O aluno pareceu genuinamente surpreso, mas me agradeceu pela resposta e, por assim dizer, me “perdoou”. Que explicação pode ser oferecida para um tamanho mal-entendido? Seria por demais cômodo e evasivo explicar a ocorrência culpando exclusivamente certa esquerda pelas caricaturas simplificadoras tão amiúde associadas ao termo “neoliberalismo”.

O fato é que os liberais brasileiros realmente passam exclusivamente por neoliberais, e que o liberalismo entre nós costuma não ir muito além de concepções economicistas. Meu ponto aqui é que nossos liberais são em grande parte responsáveis eles mesmos por este estado de coisas. E o são em razão do que bem poderia ser chamado de obsessão pela economia.

No momento em que escrevo, tenho diante dos meus olhos uma tradução de “On Liberty”, obra de um liberal por excelência, John Stuart Mill. A tradução é excelente, mas é bem digno de nota o fato de que tenha por título “Da Liberdade Individual e Econômica” (Faro Editorial).

Causa espécie tal escolha, visto que o livro definitivamente tem uma ênfase inteiramente diversa. E certamente não se pode atribuir a Mill uma defesa do chamado Estado mínimo (o pensamento do filósofo britânico é marcado por um acentuado ecletismo, a que não se pode fazer justiça em poucos parágrafos).

Não bastasse essa estreiteza de visão, a pandemia em curso deixou tristemente claro que muitos autonomeados liberais brasileiros não chegam sequer a entender que, se é verdade por um lado que a liberdade preconizada por Mill entrona o indivíduo na posição de soberano absoluto da sua vida privada, daquele âmbito de ações que dizem respeito exclusivamente à sua própria pessoa e que só sobre ela exercem efeitos, não é menos verdade que tal liberdade perde a sua sanção incondicional sempre que pode redundar em ações que causem danos a terceiros.

No domínio propriamente teórico, a situação é ainda mais desoladora. Quantos jovens estudantes da matéria têm ciência de que um erudito da estatura de um José Guilherme Merquior se proclamava orgulhosamente como um liberal social? Ou mesmo do que vem a ser o liberalismo social? Com que frequência se mencionam entre nós autores como T. H. Green, John Hobson ou Leonard Trelawny Hobhouse?

Por fim: a rejeição ao despotismo, o direito à vida, à expressão e à propriedade, o império da lei, a competição regrada de interesses e crenças, os mercados livres, a expansão do rol de atores políticos até o advento do sufrágio universal —tudo isso fez e faz parte da tradição liberal. Como também o fez a noção humboldtiana de “Bildung” e de autocultivo da mente; o perfeccionismo, em suma. E que o Estado bem pode ter um papel fundamental a desempenhar nesse domínio. Mas disso o leitor dificilmente terá ciência lendo os liberais brasileiros.

Quatro fatores parecem explicar a queda do dólar, por Samuel Pessoa.

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Em algum momento, atual valorização deve cessar

Samuel Pessoa, Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e da Julius Baer Family Office (JBFO). É doutor em economia pela USP.

Folha de São Paulo, 26/03/2022

Era esperado para o início deste ano alguma valorização na moeda em razão da votação da lei orçamentária de 2022, em dezembro do ano passado.

Após a emenda constitucional dos precatórios, que abriu R$ 100 bilhões no Orçamento de 2022, a votação da lei orçamentária estabelecia um tamanho para o rombo fiscal.

A descompressão ocorreu, mas muito mais intensa do que qualquer pessoa imaginava. Outros fatores contribuíram.
Dois fatores principais explicam o fortalecimento do real, que na sexta-feira (25) fechou a R$ 4,74 por dólar.

O primeiro foi a retomada de um mecanismo de compensação entre o real e o preço dos commodities. Desde a flutuação do câmbio, no início de 1999, sempre que as commodities no mercado internacional ficam mais caras, o real se valoriza, e vice-versa.

Esse mecanismo equilibrador existe, pois somos um grande exportador de matérias-primas. Sempre que as commodities encarecem no mercado internacional, ficamos mais ricos, e, consequentemente, nossa moeda se valoriza, e vice-versa.

Entre maio de 2020 e novembro de 2021, esse balanço deixou de existir. Quando a epidemia bateu, o preço das commodities despencou —houve semana em que o preço do petróleo chegou a ficar negativo, pois se cobrava para armazenar— e nossa moeda desvalorizou-se de R$ 4,3 para até R$ 5,8, em maio de 2020.

Quando ocorreu a recuperação muito forte da economia mundial, os preços das commodities subiram muito. Dobraram em relação ao ponto mais baixo observado em abril de 2020. Penso que o aumento da percepção de risco, em razão do impacto da epidemia sobre os gastos além do teto do governo, neutralizou o efeito gangorra entre o real e o preço das commodities. Em vez de voltar para R$ 4 por dólar, nossa moeda ficou oscilando em torno de R$ 5,5. Essa neutralização explica uma parte importante do choque inflacionário por aqui: se o câmbio tivesse se comportado de forma habitual, parte do efeito inflacionário da elevação dos preços das commodities seria compensada pela valorização do real.

Desde dezembro de 2021, o efeito gangorra voltou a funcionar, e parte da valorização da moeda resulta da subida dos preços das commodities. As moedas de outras economias exportadoras de commodities têm se valorizado também.

Mas parece haver um terceiro fator contribuindo para valorizar a nossa moeda. A guerra na Europa em uma região, o Leste Europeu, com diversos países emergentes melhorou a percepção de risco relativa da América Latina. Nesse “concurso de feiura”, ficamos um pouco melhor.

Finamente, há sinais de que a elevação da taxa de juros contribui para o movimento da moeda.

A ação conjunta desses quatro fatores —retirar o bode da lei orçamentária de 2022 da sala, a volta da gangorra preço das matérias-primas e câmbio, a melhora relativa da América Latina em razão da guerra e o maior diferencial de juros— parece explicar o movimento da moeda, que saiu de R$ 5,74 em 21 de dezembro último para R$ 4,74 na sexta-feira passada. Incrível valorização de R$ 1 por dólar.

Muito difícil construir cenário para o câmbio. Minha avaliação é que a atual valorização em algum momento cessará e, ao longo do processo eleitoral, viveremos muita volatilidade, com o real se desvalorizando um pouco.

No fim do ano, com a retomada pelo novo governo de uma trajetória de ajuste fiscal estrutural, devemos voltar a uma lenta trajetória de fortalecimento de nossa moeda.

Como se não houvesse amanhã, por Oscar Vilhena Vieira.

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O governo federal colocou em prática a estratégia de subverter o sistema brasileiro de proteção ambiental por meio de ‘reformas infralegais’

Oscar Vilhena Vieira, Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.

Folha de São Paulo – 26/03/2022

A Constituição de 1988 assegurou a todos o “direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado… impondo ao Poder Público e à coletividade, o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”, antecipando de forma premonitória as ameaças impostas pela crise climática que hoje constitui um dos principais desafios para a humanidade.

Em atendimento a esse verdadeiro pacto intergeracional estabelecido pelo artigo 225 da Constituição Federal, o Brasil adotou em 2004 um Plano de Ação para Prevenção e Controle de Desmatamento na Amazônia Legal, que foi consolidado pela lei 12.187, de 2009. A implementação desse plano contribuiu de maneira efetiva para a redução de 83% do desmatamento na Amazônia Legal entre 2004 e 2012, contrariando interesses de grileiros, madeireiros, garimpeiros ilegais e de setores envolvidos em projetos agrícolas insustentáveis.

Incapaz de alterar a Constituição e as leis de proteção ambiental, para atender sua base de apoio, o governo federal colocou em prática a estratégia — explicada por Ricardo Salles na escatológica reunião ministerial de 22 de abril de 2020 — de subverter o sistema brasileiro de proteção ambiental, por meio de “reformas infralegais”, como se não houvesse amanhã.

Combinada com estrangulamento orçamentário, nomeação de pessoas inaptas e atos parainstitucionais que estimulam o desmatamento, o infralegalismo autoritário de Bolsonaro vem permitindo ao seu governo amesquinhar a ação de agências de proteção ambiental como Ibama, ICMBio, Inpe e mesmo a Funai.

De 2018 para cá, houve uma queda de 82,7% na imposição de embargos a atividades de desmatamento; assim como uma redução de 80,7% nas apreensões realizadas pelo Ibama. No mesmo sentido, mais de 5.000 autuações por infrações ambientais correm risco de prescrever em decorrência de deliberada omissão governo.

O resultado desse plano macabro e inconstitucional é a impunidade e o aumento do desmatamento. A estratégia do infralegalismo autoritário, aplicada ao campo ambiental, contribuiu para um aumento de 76% no desmatamento na Amazônia Legal em 2021, se comparado a 2018. O desmatamento em terras indígenas (TI) e nas unidades de conservação (UC) cresceu respectivamente 138% e 130% nos mesmos três anos (Prodes/Inpe). O índice de emissões causadoras de emergência climática superou três vezes a meta estabelecida pela Política Nacional de Mudança Climática.

O Supremo Tribunal Federal, que vem assumindo um papel fundamental na defesa das instituições democráticas e na proteção do direito à vida e à saúde da população durante o período Bolsonaro, terá nos próximos dias uma oportunidade única de interromper essa espiral perversa de devastação ambiental.

Não se trata de interferência indevida do Supremo em esfera de competência do Executivo, mas de mero exercício da missão reservada ao Supremo de proteger a Constituição de atos e omissões que a afrontem. Ao Supremo não se requer a criação de uma política ambiental, mas apenas que faça cumprir aquilo que foi estabelecido pela Constituição e pelas leis.

Mais do que a preservação das florestas, do regime de chuvas, da pujança do agronegócio ou da preservação de nossa matriz limpa de energia —que dependem de nosso regime de águas—, o que está em jogo nesse julgamento é o bem-estar de nossos filhos e netos e, no limite, a própria sobrevivência das futuras gerações.

Tem dinheiro sobrando no Tesouro?, por Marcos Mendes.

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Ilusão de cofre cheio e governabilidade corroída podem terminar em crise institucional

Marcos Mendes, Pesquisador associado do Insper, é autor de ‘Por que É Difícil Fazer Reformas Econômicas no Brasil?’

Folha de São Paulo – 25/03/2022

A arrecadação do governo federal tem batido recordes, e isso leva os políticos a achar que há dinheiro sobrando. Nada mais enganoso.

A previsão do Ministério da Economia é de um déficit de R$ 67 bilhões (0,7% do PIB) em 2022. Para que a dívida pública pare de subir, precisamos, em um cenário muito otimista, de um superávit de, pelo menos, 1,5% do PIB. Isso significa um ajuste fiscal de, no mínimo, 2,2 pontos percentuais do PIB (1,5+0,7) ou R$ 212 bilhões.

Esse ajuste é necessário, embora não suficiente, para a economia ter chances de voltar a crescer.

As decisões políticas, contudo, seguem na contramão. As reduções de impostos já implementadas têm custo anual aproximado de R$ 40 bilhões. Há propostas de aumento de gastos com alta probabilidade de aprovação que, em uma conta conservadora, somam R$ 30 bilhões por ano, o que não inclui o custo da eventual criação de um fundo de estabilização de preços de combustíveis, aprovado no Senado, mas travado na Câmara. Se aprovado, esse fundo será uma conta em aberto, de custo elevado, como argumentei em coluna anterior.

A dissonância entre a frágil situação fiscal e a sensação de dinheiro sobrando decorre do aumento dos preços das commodities, com os quais a receita tributária federal é fortemente correlacionada.

Quando sobem os preços das commodities exportadas pelo Brasil, lucram as empresas ligadas ao setor, pagando mais impostos, royalties e, no caso de estatais, dividendos. Há, também, impacto inflacionário, pelo aumento do preço daqueles bens no mercado interno, que se transfere rapidamente à arrecadação do governo.

Dados da Receita para os 12 meses encerrados em janeiro mostram que, entre os setores econômicos que mais aumentaram o pagamento de impostos, predominam os ligados à exportação de commodities: minerais metálicos (261% de aumento), petróleo e gás (193%), agropecuária (100%). O aumento médio da arrecadação foi de 22%.

Em relatório divulgado na terça (22), o Ministério da Economia mostra que, na comparação com os valores que constam do Orçamento, a expectativa de arrecadação com royalties, dividendos e bônus de assinatura ligados à indústria do petróleo aumentou 50%, representando R$ 60 bilhões a mais.

Esse é o típico aumento de receita que está fora do controle do governo. Se o preço das commodities despencar no mercado internacional, a arrecadação tributária cairá junto. Se usarmos esse ganho temporário de receita para conceder benefícios fiscais e aumentos de gastos duradouros, quando a maré das commodities virar, nossa delicada situação fiscal se agravará ainda mais.

Foi o que aconteceu entre 2004 e 2012: houve um longo ciclo positivo de preços de commodities, e o governo expandiu despesas e benefícios fiscais. Com a queda dos preços das nossas exportações, a arrecadação caiu, mas as despesas continuaram altas e os benefícios fiscais se perpetuaram. Abriu-se grande déficit primário, o Brasil perdeu o grau de investimento, e ingressamos na recessão de 2014.

Parece que rumamos, de novo, na mesma direção. O que tem segurado a expansão de despesas é o teto de gastos. Embora ferido pelas diversas flexibilizações da regra, ele ainda está sendo capaz de segurar muitas pressões.

Por outro lado, a captura do Orçamento e da coordenação política do governo pelo centrão, somado às pretensões eleitorais do presidente, e a infiltração de interesses privados nos ministérios têm criado espaço para todo tipo de gasto e benefício fiscal paroquial e populista. Vetos presidenciais a leis que propõem mais gastos caem como moscas, atropelando cotidianamente a Lei de Responsabilidade.

Isso faz antever novas pressões contra o teto. Se houver novas flexibilizações, ou até mesmo a sua revogação por um novo presidente simultaneamente a uma queda dos preços das commodities, a deterioração fiscal se acentuará.
Uma nova crise fiscal, em um contexto de economia que não cresce há anos, governabilidade comprometida, orçamento capturado e polarização política, coloca no radar o risco de crise institucional.

Guerra de Putin exige reação econômica global coordenada, por Martin Wolf.

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Países terão que usar seus recursos fiscais para cuidar dos refugiados e compensar o impacto do aumento de preços dos alimentos sobre os mais pobres

Martin Wolf, Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.

Folha de São Paulo, 23/03/2022

O ataque de Vladimir Putin à Ucrânia vai refazer nosso mundo. Como isso acontecerá permanece indefinido. Tanto o resultado da guerra quanto, mais ainda, suas ramificações mais amplas, incluindo aquelas para a economia global, são geralmente desconhecidos. Mas alguns pontos já são muito evidentes. Vindo apenas dois anos após o início da pandemia, este é mais um choque econômico, catastrófico para a Ucrânia, ruim para a Rússia e significativo para o resto da Europa e grande parte do mundo.

Como de costume, o impacto dos refugiados é principalmente local. A Polônia já abriga a segunda maior população de refugiados do mundo, depois da Turquia. Os refugiados também estão chegando a outros países do leste europeu. Virão mais. Muitos também desejarão ficar perto de sua terra natal, esperando retornar em breve. Eles precisam ser alimentados e alojados.

No entanto, as ramificações vão muito além da Europa oriental ou mesmo da Europa como um todo, como mostra uma excelente perspectiva econômica provisória da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico). A Rússia e a Ucrânia representam apenas 2% da produção global e uma parcela semelhante do comércio mundial. Os estoques de investimento estrangeiro direto na Rússia e os da Rússia em outros lugares também representam apenas 1% a 1,5% do total global. O papel mais amplo desses países nas finanças globais também é irrelevante. No entanto, eles são importantes para a economia mundial, de qualquer modo, principalmente porque são grandes fornecedores de commodities essenciais, sobretudo cereais, fertilizantes, gás, petróleo e metais vitais, cujos preços nos mercados mundiais dispararam.

A OCDE estima que esse choque reduzirá a produção mundial este ano em 1,1 ponto percentual abaixo do que teria sido. O impacto nos Estados Unidos será de apenas 0,9 ponto percentual, mas na zona do euro será de 1,4 ponto. O impacto comparável sobre a inflação será de mais 2,5 pontos percentuais para o mundo, mais 2 pontos para a zona do euro e mais 1,4 ponto percentual para os EUA.

O aumento dos preços da energia e dos alimentos reduzirá a renda real dos consumidores muito mais do que essas perdas do Produto Interno Bruto. As receitas reais dos países importadores líquidos de energia e alimentos também serão mais afetadas do que apenas o seu PIB. Também é provável que as estimativas da OCDE sejam muito otimistas.

Isso dependerá, entre outras coisas, da duração dessa guerra maligna e da possível disseminação de sanções para a China ou de embargos às importações de energia para a Europa.

Esses impactos diretos esperados na produção são muito menores do que os da Covid: em 2020, a produção mundial acabou cerca de 6 pontos percentuais abaixo da tendência. Mas uma recuperação total da Covid não havia ocorrido antes da chegada desse novo choque, que prejudicou as relações internacionais, aumentou as preocupações com a segurança nacional e minou a legitimidade da globalização. Esta tragédia provavelmente projetará longas sombras.

Uma razão disso é seu impacto sobre a inflação e as expectativas inflacionárias. O Federal Reserve (banco central dos EUA) tornou-se mais agressivo. Mas ainda acredita em “desinflação imaculada” –a capacidade de conter a inflação sem muito, ou nenhum, aumento do desemprego. O Banco Central Europeu também enfrenta um salto da inflação, ao qual será obrigado a responder. Na prática, o aperto provavelmente prejudicará a atividade e os empregos mais do que se espera, em parte devido à fragilidade financeira.

De modo mais fundamental, o aparecimento de divisões geopolíticas entre o Ocidente, de um lado, e Rússia e China, de outro, colocará em risco a globalização. As autocracias tentarão reduzir sua dependência das moedas e dos mercados financeiros ocidentais. Tanto elas quanto o Ocidente tentarão reduzir sua dependência do comércio com os adversários. As cadeias de suprimentos serão encurtadas e regionalizadas. No entanto, observe que a dependência da Europa em partes da Ucrânia já era regional.

A política econômica tem relevância apenas limitada em tempo de guerra. Não pode salvar os que estão sendo atacados, embora possa tentar punir ou dissuadir os responsáveis. Mas pode e deve responder às consequências. A política monetária deve continuar sendo dirigida para o controle da inflação e das expectativas inflacionárias, por mais desagradável que isso possa parecer.

É possível e necessário, entretanto, que os países apliquem seus recursos fiscais para cuidar dos refugiados e compensar o impacto dos preços mais altos da energia e dos alimentos sobre os mais vulneráveis. Estes últimos incluem muitos países em desenvolvimento, especialmente importadores líquidos de energia e alimentos. Eles exigirão apoio substancial em curto prazo. Os direitos de saque especiais criados no ano passado poderão agora ser usados para esses fins. Os países de alta renda não precisam deles e deveriam doá-los ou pelo menos emprestá-los aos países mais necessitados.

A resposta a esta tragédia terá de ser muito mais do que de curto prazo. Assim como a Covid nos obriga a planejar como lidar com futuras pandemias, essa guerra deve nos forçar a pensar mais sobre segurança em um mundo mais hostil do que a maioria de nós previa ou pelo menos esperava. A segurança energética será reforçada por uma mudança ainda mais rápida para as energias renováveis. Isso não é mais algo apenas ligado ao clima. Em curto prazo, a diversificação das fontes de combustíveis fósseis também será essencial.

Mais uma vez, está claro que o Ocidente e especialmente a Europa terão que fazer um grande e coordenado aumento de sua capacidade de defesa coletiva. Isso vai custar caro. Os europeus têm recursos para serem mais independentes estrategicamente. Eles devem usá-los. Enquanto a direita isolacionista continuar tão poderosa nos EUA, isso não será apenas correto, mas sábio.

Por último, mas não menos importante, a Rússia deve permanecer um pária enquanto esse regime vil sobreviver. Mas também teremos que conceber uma nova relação com a China. Devemos continuar cooperando. No entanto, não podemos mais contar com esse gigante em ascensão para bens essenciais. Estamos em um novo mundo. A dissociação econômica agora certamente se tornará profunda e irreversível. Não vejo como evitar isso.

Momento da virada democrática, por Ilona Szabó de Carvalho.

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Estamos exaustos, mas precisamos ser resilientes para enfrentar os próximos meses

Ilona Szabó de Carvalho, Empreendedora cívica, mestre em estudos internacionais pela Universidade de Uppsala (Suécia). É autora de “Segurança Pública para Virar o Jogo”.

Folha de São Paulo, 23/03/2022

Neste ano de 2022 estamos diante de uma batalha civilizacional. Já se foram mais de três anos de um desgoverno que dispensa apresentações. Finalmente voltaremos às urnas. Há muita coisa em jogo, a começar por nossa jovem democracia. Estamos exaustos, mas precisamos ser resilientes para enfrentar os próximos meses.
Desde 2019, o Instituto Igarapé monitora veículos da imprensa e identifica os ataques ao espaço cívico, classificando os episódios de abuso de poder, violação de direitos, intimidação e assédio, dentre outras táticas usadas por líderes populistas-autoritários para minar a democracia. As reações das instituições do Estado e da sociedade civil também são registradas.

E para melhor nos preparar para o que ainda está por vir, organizamos uma retrospectiva da situação do espaço cívico no ano de 2021. Começo com uma boa notícia: mesmo diante de ofensivas antidemocráticas diárias estamos resistindo. Se por um lado mapeamos 1.551 ameaças ao espaço cívico, por outro, foram 1.349 respostas institucionais e 750 ações de resistência da sociedade. Portanto, há esperança.

Porém, ao longo de 2021, as ameaças se diversificaram e se tornaram mais graves, o que deixou ainda mais claro o objetivo de seus perpetradores: centralizar o poder, alienar a população e silenciar a oposição. O avanço no aparelhamento de órgãos-chave contribuiu para o enfraquecimento de áreas vitais como educação, meio ambiente, cultura, saúde e direitos humanos. Ao todo, foram 240 casos de abuso de poder identificados.

Por sua vez, o assédio institucional e a perseguição de servidores não alinhados cegamente ao governo agravaram o desmonte de políticas públicas. A aplicação abusiva da Lei de Segurança Nacional expôs o uso ilegítimo do aparato policial e judicial para silenciar vozes dissidentes por meio de prisões, intimações e investigações arbitrárias.

Os 325 casos contabilizados de intimidação e assédio restringiram a liberdade de expressão de jornalistas, ativistas, pesquisadores, dentre outros. Em certos casos, as agressões verbais escalaram para a violência física.

Para driblar o sistema de freios e contrapesos republicano, o governo usou e abusou de atos infralegais: consolidou-se a era do “governar por decretos”. Foram 308 decretos em 2021, muitos deles invadindo a competência do Congresso para legislar, como é o caso dos decretos sobre armas de fogo —que enfraquecem o pacto democrático em que cidadãos confiam ao Estado a sua segurança e o monopólio responsável do uso da força.

Além disso, foram identificados 142 casos de jogo duro constitucional —uso indevido de prerrogativas institucionais, forçando os limites da legalidade para obter ganhos pessoais ou para grupos políticos. Essas táticas vieram acompanhadas da escalada do discurso autoritário. O episódio do desfile de blindados, por mais caricato que tenha sido, e as manifestações de 7 de setembro foram, possivelmente, prenúncios de atos antidemocráticos que ainda estão por vir.

Nesse contexto, também ganharam palanque campanhas de descredibilização da ciência e do sistema eleitoral. Por um lado, a retórica autoritária e enganosa foi ecoada por uma onda de fake news e desinformação —412 casos—, que, somando-se à gestão irresponsável da pandemia, impactou sobremaneira a população indígena, quilombola, negra e de baixa renda —principais alvos dos 145 casos de violação de direitos civis e políticos.

E, por outro, as alegações sem provas de fraude nas eleições contribuíram para minar a confiança da população nas instituições e preparar o terreno para os ataques planejados para, no mínimo, gerar dúvida e confusão nas eleições.
Em outubro temos a chance de corrigir o rumo e voltar a trilhar o caminho da consolidação democrática. É mais que chegada a hora de virar esse jogo.

Trabalho por app pode estar empurrando pessoas para a direita, diz antropóloga

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Rosana Pinheiro-Machado recebeu uma das bolsas mais prestigiosas do mundo para coordenar pesquisa

FERNANDA CANOFRE – FOLHA DE SÃO PAULO, 21/03/2022

PORTO ALEGRE

Em países emergentes como Brasil, Índia e Filipinas, trabalhadores de plataformas como Uber e vendedores de Instagram encontraram nas redes sociais um meio de sobrevivência, mas também um ambiente fértil da extrema-direita, alinhada à ascensão dos governos atuais desses países.

Para a antropóloga brasileira Rosana Pinheiro Machado, a relação entre a inserção no mercado de trabalho desses grupos sociais e o posicionamento político de direita não são coincidência.

É possível que a própria estrutura das plataformas — seu formato altamente individualizado e focado no mérito — estejam exacerbando tendências políticas hiperliberais, argumenta.

Essa é a hipótese central de um trabalho de pesquisa que será coordenado por Pinheiro-Machado, professora da Universidade de Bath (Reino Unido).

A antropóloga foi laureada com um financiamento no valor aproximado de 2 milhões de euros (cerca de R$ 11 milhões) pelo European Research Council (da União Europeia), uma das bolsas mais prestigiosas do mundo, anunciado nesta quinta-feira (17). O trabalho deve começar em maio e tem previsão de duração de cinco anos.

Com trabalho de anos na periferia de Porto Alegre, buscando entender a identificação de trabalhadores do chamado precariado, que viveram o incentivo ao consumo dos anos de governos petistas, com as ideias do presidente Jair Bolsonaro (PL), Rosana conversou com a Folha sobre as questões do novo mundo do trabalho.

A pesquisa busca entender as contradições de países com economias emergentes, com classes sociais que apresentam tendência a apoiar autoritários. Como se chegou a essa hipótese? Quando a gente olha para a teoria de populismo, a gente tem uma deficiência que é tentar entender pelo ponto de vista do trabalhador precarizado, [fenômenos como] Donald Trump e o Brexit. Só que a relação do mundo do trabalho em países que tiveram crises depois de 2017 e países em crescimento é diferente.

É muito diferente ter aquele trabalhador estereótipo do voto do Trump, o cara que perdeu emprego na indústria, perdeu o estado de bem-estar social, e populações como na Índia, onde 80% da população rural sempre esteve na informalidade, ou mesmo no Brasil. O sentimento político é bastante diferente.

O que tem em comum entre esses três países é que todos foram considerados grandes futuras potências democráticas, todos fizeram, em cascata, uma virada autoritária, com algumas coisas em comum, próprias das contradições desses modelos.

Você tem milhões de pessoas saindo da linha da pobreza, que passaram a viver a plataformização do trabalho —não só do Uber, mas Facebook, WhatsApp, Instagram, Telegram. Pessoas que, no sentido mais amplo possível, usam alguma plataforma digital para empreender.

Esse trabalhador precarizado, aspirante a camada média, se alinha com o autoritário. A hipótese do projeto é entender até que ponto as próprias plataformas não estão exacerbando esse processo pela própria estrutura, altamente individualizada, focada no mérito, hiperliberal por essência.

Isso pode ter profundo impacto na democracia global, onde tiver plataformização. São milhões de pessoas trabalhando 20 horas por dia, no celular, recebendo conteúdo. E por ter impacto também no mundo do trabalho: massas de trabalhadores que entram num sistema de ilusão, acreditando que vão se aposentar com Bitcoins.

Tem outro aspecto que é entender quem são os influencers [influenciadores], porque entre esse trabalhador precarizado e o político populista tem um mundo de mediadores.

Que evidências existem nessa direção no Brasil, por exemplo? Quando Bolsonaro fala o oposto do “fique em casa”, que era comércio aberto, o que toda a esquerda pensa? Que ele é um genocida, e fica sem entender como uma parte da população segue gostando dele. Mas é uma parte da população que está totalmente alinhada a um projeto hiperindividualista: esse trabalhador se faz por si próprio, ele não precisa de política de Estado, ele odeia o que chama de “coitadismo”.

Muitos desses populistas têm uma mensagem direta focada na produção do inimigo interno, que é o mau trabalhador, o vagabundo, e valorizando a figura do trabalhador que vence por si próprio, que não precisa do Estado. Todo pensamento progressista vai em outra direção, pensando no Estado como provedor do bem-estar social e de direitos. Bolsonaro fala para muitos desses trabalhadores quando promove comércio aberto, uma autogestão da pandemia, que é o oposto de uma gestão coletiva.

Qual o impacto político dessa plataformização do trabalho? Essa é a maior pergunta do projeto. Toda a literatura de plataformização e política está mais alinhada em entender o fenômeno de resistência, as possibilidades de sindicalização, só que é uma possibilidade muito pequena da política das plataformas.

Grande parte desses trabalhadores não necessariamente são bolsonaristas, mas estão muito vinculados a um grau individualista e conservador, mais alinhado ao campo da direita e à despolitização do que à resistência. Nós estamos argumentando que, tão importante quanto olhar para a mobilização, é entender o que nas próprias plataformas está desmobilizando.

A nossa hipótese inicial é que, conforme vai se plataformizando, uma grande parte vai caindo na malha da extrema-direita.

Ainda não se sabe o impacto político disso nessas pessoas que estão empreendendo do seu celular 20 horas por dia. A gente tem que lembrar que elas estão entrando em lugares que não são só econômicos, mas permeados de valores políticos. Não se tem noção do que isso vai resultar daqui alguns anos em termos de subjetividade política.

A pessoa está horas trabalhando e recebendo todo tipo de informação em um lugar onde a extrema-direita tem hegemonia total, a esquerda não passa nem perto. É muito além do gabinete do ódio, eles têm um ecossistema político. Esse trabalhador está muito mais exposto a essas redes que são super empreendedoras, “faça você mesmo”, “contra vagabundo”.

Influencers, gamers, pastores pops, caras que ajudam a investir e são seguidos por milhões de pessoas, é tudo muito alinhado ao bolsonarismo. Tem um aspecto também de entender a renovação do bolsonarismo para além do Bolsonaro, como esses grupos conservadores e hiper liberais continuam recrutando membros das classes populares.

Tem todo um universo de pessoas muito mais sofisticado do que aquela fake news tosca que a gente combatia. Um ambiente muito mais persuasivo, sutil e poderoso, que é o sonho de uma ilusão de um estilo de vida.

Movimentos como o dos entregadores fascistas estão na contramão? Como eles se encaixam nesse cenário? Eles estão na contramão no sentido positivo. São um movimento quantitativamente pequeno, mas que tem papel muito importante se souberem usar as redes, criar canais de comunicação, inclusive, internacionais. Existem movimentos similares nas Filipinas, de diversos tipos, não só antifascistas, mas outras formas de cooperativas.

O mundo da resistência é muito diverso, mas está na contramão de uma avalanche dessa fase do neoliberalismo que é a destruição de tudo. Por enquanto, estamos sendo engolfados por essa lógica de profunda individualização desse trabalhador que é explorado e ao mesmo tempo quer explorar.

O apoio a governos autoritários cresceu em medida proporcional à parcela da população que passou a ter acesso à internet em países emergentes? Há uma coincidência do acesso à internet e alinhamento com a extrema-direita, mas é porque a extrema-direita, no mundo todo, se organizou com as redes sociais, não dá para saber até que ponto isso é uma conexão direta.

A gente tem, no mundo pós-pandêmico, um nível de conectividade maior e um nível de plataformização jamais visto na stória. E a gente precisa responder qual a consequência política disso, porque é um movimento que veio para ficar.

Os camelôs de Porto Alegre, que eu estudei a vida toda, durante a pandemia, foram para o Instagram. Hoje em dia, todo mundo tem celular, é caro, é difícil fazer uma aula online, mas todo mundo consegue fazer um perfil no Instagram. Estamos falando sobre o trabalhador precarizado, não sobre extrema pobreza.

Boa parte dessa pesquisa começou com uma curiosidade que eu tinha, em grupos públicos bolsonaristas, boa parte desse cluster era de grupos de vendas no WhatsApp —grupos de vendas em geral, que não eram políticos, mas onde mais circulava material bolsonarista. A gente vai olhar todas as entradas possíveis no processo.

Essa classe do chamado precariado teria força para mudar a dinâmica do capitalismo, no sentido de conseguir maior proteção social e direitos, como os movimentos de trabalhadores do século 20? Acredito que sim. O mundo todo está se precarizando, inclusive, países desenvolvidos, e não tem saída política que não seja de transformação do capitalismo via camadas precarizadas, que são grande parte da população.

Ou a gente vai entrar num buraco onde todo mundo acredita que é cada um por si, mais ou menos como está, ou a gente vai ter que ver um processo de transformação, como a renda básica universal, em que todo mundo tem o mínimo de dignidade para sobreviver. Além de movimentos, que são pequenos ainda, mas que acredito que por sua internacionalização podem mostrar que é possível ter outros modelos de trabalho.

Você afirma que é importante também entender as reações emocionais nesse contexto. As teorias do populismo sempre estão tentando entender quem é esse trabalhador que se fala em termos de nostalgia, ressentimento, ódio, porque perdeu emprego, direitos.

Eles não estão só com sentimento de raiva, também tem que entender como essas pessoas criam projetos de ilusão, quais são as aspirações dessas pessoas, quais os sonhos, como elas se iludem e o que a extrema-direita tenta entregar a elas.

Estamos num pico, no Brasil, com todo mundo tentando empreender online, o que não é sustentável, e vai ter uma onda de muita desilusão. O que o campo democrático tem a oferecer para esse mundo da desilusão? Esse mundo de pessoas empreendendo online selvagemente é muito novo.

Como vocês devem conduzir o trabalho de campo? É um desenho de pesquisa ambicioso. São três etnografias de 14 meses cada, simultâneas, uma em cada país. As cidades ainda vão ser definidas, por enquanto está previsto Rio, Manila e Nova Déli. Meses de imersão, acompanhando as vidas dessas pessoas diariamente, um pesquisador em cada país.

A gente vai criar o banco de dados para poder acompanhar o processo de plataformização desse trabalhador, e ver todas as interações com políticos, influencers e com esse mundo da extrema-direita. Ao longo de cinco anos, vamos ver a tendência de como ele começa a interagir com o material político. A nossa hipótese é que a plataformização leva muitos desses trabalhadores à extrema-direita, e que existem muitos caminhos e razões para isso.

Vamos criar esse banco de dados a partir de trabalhadores de quem a gente tem contexto. A gente vai formar também um léxico para poder fazer a captura, ver qual o sentimento, os sonhos, a revolta deles. A gente quer ouvir também quem ainda não é convertido, que fica longe da política.

Rosana Pinheiro-Machado, 42
Nascida em Porto Alegre, formada em Ciências Sociais e doutora em Antropologia pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Atualmente é professora do Departamento de Ciências Políticas e Sociais da Universidade de Bath (Inglaterra). É autora de “Amanhã vai ser maior” (Planeta, 2019).