Grandes desafios para a economia brasileira

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Depois de três anos de desaceleração e crise econômica, marcadas por alto desemprego, queda considerável da renda e do salário, incremento da inflação e do endividamento público, além de um déficit crescente e de muita instabilidade política, o Brasil inicia um ciclo modesto de recuperação econômica e melhora no ambiente de negócios.

Com a recessão e os desequilíbrios econômicos, os investimentos foram reduzidos, de um lado as empresas acumularam grandes estoques e, com isso, evitavam aumentar seus investimentos produtivos; de outro, o incremento nos trabalhadores desempregados, sem salários e sem rendas, sem empregos estes trabalhadores não possuíam recursos para adquirir seus produtos e mercadorias necessárias para a sobrevivência e de seus familiares, levando uma parte substancial dos trabalhadores a viver em condições degradantes e indignas, com isso, percebemos um aumento na pobreza e na marginalidade.

A crise gerou graves impactos sociais, o incremento do desemprego levou mais de 12 milhões de pessoas para a desesperança, com impactos diretos sobre o consumo e para todo o ciclo econômico, gerando graves consequências sociais, como violência urbana e insegurança pública, com aumento na criminalidade, novos medos e desestruturação familiar, impulsionadas pelo incremento do tráfico, das milícias e no crime organizado.

A situação recessiva da economia brasileira contribuiu para a degradação das finanças dos governos federal, estaduais e municipais, com isso, muitos fornecedores ficaram sem receber seus pagamentos, os trabalhadores tiveram seus salários atrasados e as condições de vida destes pioraram rapidamente, gerando uma espiral de medos e instabilidades, esta situação de desesperança perdura até os dias atuais e as perspectivas de melhora econômica se fazem mais presentes, embora bastante tímidas e insuficientes.

O ambiente econômico se degradava rapidamente devido a crise política, a abertura de um processo de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff elevou a instabilidade econômica e piorou o comportamento dos setores produtivos, o clima era de grande preocupação e desesperança, a inflação crescia rapidamente, o endividamento público aumentava e o déficit público cresceu rapidamente, as empresas de classificação de risco rebaixaram as notas do país e a situação econômica se degradou de forma acelerada.

Muito se discutiu na época se o impeachment fora motivado por crimes de responsabilidade ou por mero interesse golpista, acredito que o processo esteve atrelado a ambas as justificativas, a contabilidade criativa aconteceu, embora não tenha ocorrido apenas no mandato desta presidente, muitos cometeram as irregularidades e não foram punidos com a mesma rigidez. O processo foi motivado pela fragilidade da presidente em controlar o jogo político e propor uma agenda mais assertiva para todos os agentes produtivos, sem força politica e carisma pessoal, o resultado foi um processo longo e desgastante para a sociedade e com graves impactos econômicos e financeiros para a economia do país.

Com a queda da presidente Dilma Rousseff e a ascensão de Michel Temer, medidas econômicas mais liberais foram introduzidas, a inflação fora controlada, as taxas de juros se reduziram, as perspectivas econômicas melhoraram, mas mesmo assim, o tão desejado crescimento econômico não apareceu, o número de desempregados pouco se reduziu, a violência urbana cresceu de forma acelerada, apenas em 2017 foram registrados mais de 60 mil homicídios, o ambiente de insegurança crescia, levando o governo federal a intervir na segurança pública do estado do Rio de Janeiro, além da péssima situação das contas públicas, que pouco reagiram a nova política econômica.

Depois de uma eleição conturbada, o candidato Jair Bolsonaro assume a presidência e inicia uma nova estratégia política para a nomeação de ministro e subordinados, dentre os nomeados destacamos o Ministro da Economia Paulo Guedes e o Ministro da Justiça e da Segurança Pública, o ex-juiz Sérgio Moro, iniciando uma nova gestão carente de ideias e políticas mas marcado fortemente pelo apoio dos setores militares e da igreja evangélica, dois braços importantes do governo, além do filósofo Olavo de Carvalho, radicado nos Estados Unidos e descrito como o grande ideólogo do presidente.

Depois de pouco mais de 100 dias de governo, tempo insuficiente para uma reflexão mais estruturada e complexa do novo governo, percebemos alguns traços e rabiscos estranhos do novo governo, discussões constantes, comentários exagerados, postagens excessivas e uma grande dose de desastres, principalmente no campo da Educação e das Relações Exteriores, ambos comandados por pessoas pouco expressivas na sociedade e muito vinculadas aos pensamentos ideológicos da direita, descritos como liberais na economia e conservadores nos costumes.

Na educação, percebemos um desgoverno crescente, pouco mais de três meses de mandato, o Ministro Ricardo Velez Rodrigues pouco trouxe de novidades, neste curto período, muitos foram substituídos, confrontos ficaram evidentes entre grupos variados e as políticas efetivas e emergenciais ainda não se fizeram presentes, apenas uma vaga proposta de combate a corrupção aos moldes da Lava a Jato e uma guerra aberta a proposta de escola sem partido e uma tal de ideologia de gênero.

Depois de chegar aos 100 mil pontos, num momento de excitação e grandes expectativas do mercado com as propostas liberais do Ministro Paulo Guedes, a Bolsa de Valores perdeu um pouco do ânimo e os investidores passaram a desconfiar do governo, tudo isto devido as fragilidades da articulação política, marcadas por imaturidades constantes, dificuldades de intermediação política, muitas tuitadas infelizes e pouca efetividade na defesa da proposta, até mesmo o presidente Jair Bolsonaro defende as reformas econômicas de forma constrangida e sem convicções mais sólidas, deixando o mercado em polvorosa e criando expectativas negativas para o futuro próximo.

Depois de duas viagens internacionais, terminamos a semana com o presidente da Câmara dos Deputados fazendo inúmeras críticas ao governo, definindo-o como um deserto de ideias e projetos, segundo este, o presidente precisa sair das redes sociais e passar a governar o país, deixar de falar asneiras e assumir suas responsabilidades como mandatário máximo da nação, somente assim, o país poderá sonhar com uma guinada na situação econômica e um alento a quase 12 milhões de desempregados, que buscam novas oportunidades no mercado a mais de quatro anos, muitos deles sobrevivendo em condições pouco dignas e deploráveis.

Cabe ao governo iniciar as discussões políticas em torno da Reforma da Previdência, conversar, dialogar e negociar com todas as forças e grupos políticos são formas salutares de construir consensos, consensos estes importantes para o sucesso da empreitada, sem esta reforma a economia tende a perder força e os impactos serão sentidos por todos, principalmente pelos grupos mais frágeis e desprovidos de perspectivas da população.

Outro ponto que deve ser destacado, depois que a eleição terminou, cabe ao governo reestruturar o discurso, adotar uma política de inclusão e conversação constantes, afinal, não foi apenas o executivo federal quem foi eleito, mas todos os deputados e senadores, suas demandas devem ser vistas com normalidade e aceitas como parte do jogo democrático. Todas as vezes que o presidente da República, um de seus filhos ou subordinados fazem críticas excessivas a classe política, dizendo que esta quer apenas barganhar cargos e recursos públicos, o resultado é uma criminalização da política, sendo que esta deve ser vista como um instrumento fundamental para a sociedade e para a melhoria das condições sociais, criminalizar a política pode abrir espaço para atitudes negativas e autoritárias, além de retrógrada e desnecessária.

Neste ambiente de instabilidades e medos constantes, cabe aos grupos organizados da sociedade civil diminuírem estes discursos agressivos e inflamados, muitos grupos se digladiam em conflitos constantes em redes sociais, setores da classe média e aficcionados pelo governo deixam de lado seu espírito crítico e passam a defender medidas idiotas como forma de marcar posição, pensam em si e esquecem da situação deplorável do país, suas dificuldades políticas e sua divisão interna.

A reforma da previdência é deveras importante para o país, faz-se fundamental destacar que, com o envelhecimento da população e a maior longevidade dos indivíduos, além das inúmeras mudanças na estrutura do trabalho, onde os entrantes estão diminuindo e os aposentados aumentando, as preocupações com relação a sustentabilidade deste sistema são inúmeras, com isso, a reforma se justifica de forma urgente e necessária.

Para viabilizar esta proposta, cabe ainda ao governo melhorar o Benefício de Prestação Continuada (BPC), evitando um aviltamento tão elevado como foi a proposta original enviada ao Congresso em fevereiro, além disso, em uma situação de desequilíbrios fiscal e orçamentário, o governo comete o equívoco de propor reestruturação salarial para as carreiras militares, deixando claro o corporativismo que envolve a presidência do capitão Bolsonaro, sem um ataque frontal ao corporativismo, dificilmente teremos êxito no reequilíbrio das contas públicas e na superação da crise econômica.

Estamos num momento crucial para nos colocarmos como um país civilizado ou vamos descambar para a barbárie, atender a todas as demandas inviabilizaria o país e levaria a economia a uma situação de degradação, sem fazer a reforma num curto espaço de tempo a situação econômica também se degradará. Diante da inevitabilidade desta reforma, sabendo que é uma medida inexorável, cabe ao governo apertar os fraudadores, cobrar os inadimplentes e taxar aqueles que pouco pagam, somente assim se conseguirá mostrar para a sociedade que o esforço exigido para a confecção desta reforma será de todos, desde aqueles que residem nas favelas e nos sertões até os moradores dos condomínios de luxo e dos bairros de elite, todos os indivíduos, indistintamente, devem contribuir.

Embora saibamos da importância da reforma da previdência, o atual governo ainda não conseguiu propor nada na seara econômica, depois de 100 dias de mandato, conversas desnecessárias, discursos ideológicos, debates e comentários chulos e inapropriados, nos parece claro que a equipe econômica coloca toda suas fichas na Reforma da Previdência, sem ela, dificilmente teremos condições de governabilidade nos próximos anos e todos seremos afetados pela degradação das condições econômicas, embora tenhamos inúmeras restrições ao grupo político que ora controla a administração federal, mais alguns anos de degradação econômica e política trará resultados sociais jamais vistos, embora pacatos e ordeiros, como muitos definem o cidadão brasileiro, a revolta e a indignação tendem a crescer e se transformar em um grande estopim para uma nova primavera, cuja destruição será de grandes proporções.

 

 

 

Inchaço de verba de universidade pública não teve contrapartida, diz Claudio Haddad

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Folha de São Paulo, 24 de março de 2019 – Por Érica Fraga

Claudio é fundador do conselho deliberativo do Insper, que completa duas décadas.

O orçamento das universidades públicas aumentou muito no Brasil sem a contrapartida de resultados, como a presença do país nos rankings das cem melhores instituições do mundo.

A opinião é de Claudio Haddad, 73, fundador e presidente do conselho deliberativo do Insper, instituto de ensino superior e pesquisa sem fins lucrativos, que completa duas décadas neste mês.

“O problema grave de governança” das universidades públicas, diz ele, é apenas parte do panorama ruim do ensino brasileiro, do nível básico ao superior, que indica que a educação é prioridade da “boca para fora” no país.

A falta de responsabilização dos gestores pela baixa aprendizagem, apesar dos investimentos maiores nos últimos anos, ajuda, segundo Haddad, a explicar o cenário.

Numa espécie de círculo vicioso, as deficiências que os alunos herdam da escola limitam a qualidade das faculdades. Por isso, Haddad considera injustas as críticas sobre a natureza da expansão do ensino superior privado:

“Não há faculdade que faça o milagre de resolver todos os problemas da educação passada”, diz ele que, atualmente passa parte do ano em Portugal.

Nesse contexto de tantos problemas, Haddad diz acreditar que atitudes recentes do atual governo —como o anúncio de que haveria uma Lava Jato do ensino superior privado— desviam a atenção do essencial, que é a aprendizagem.

O ministro da Economia, Paulo Guedes, foi sócio de Haddad nos primeiros anos do Insper, antes de a instituição receber esse nome e se tornar uma entidade sem fins lucrativos. As desavenças dos dois foram, segundo Haddad, um momento preocupante na trajetória do projeto.

Entre as conquistas importantes, ele lista o programa de bolsas para alunos de baixa renda e a expansão contínua do Insper, que chega aos 20 anos com a inauguração de um prédio novo e a contagem regressiva para o início de novos cursos, como graduação em direito e mestrado em jornalismo.

Qual é o seu maior orgulho em relação ao Insper?
Fico orgulhoso de tudo. Foi uma trajetória que envolveu um número grande de pessoas. E educação é um setor em que a tradição conta muito, né? Para um aluno ir para uma escola começando do zero é preciso um voto de confiança muito grande.

Quando o sr. sentiu que tinha decolado?  
A escola foi ficando conhecida, principalmente após a formatura da primeira turma, que acabou em terceiro lugar no provão do país, que era tipo o Enade [Exame Nacional de Desempenho de Estudantes] da época. As pessoas viam que cumpríamos o que prometíamos, procurando inovar não apenas por inovar, mas para melhorar. Aluno bom chama aluno bom, professor bom chama professor bom, e aí a coisa vai andando.

Qual foi o momento que mais preocupou o sr.?
Um evento importante foi minha separação do meu sócio, quando comprei a participação dele. Tínhamos uma cláusula no contrato de compra e venda, tivemos divergências estratégicas.

O sócio do sr. era o Paulo Guedes? Qual era a principal divergência entre vocês? 
Ele queria expandir mais rápido, queria um modelo tipo a FGV, de franquia. E tinham várias outras coisas. Eu estava mais interessado em ter uma entidade de excelência, um modelo de universidade americana privada.

Na época, era com fins lucrativos ainda, mas eu tinha em mente —talvez sem ter muita consciência— ser sem fins lucrativos. Então, exerci a cláusula, dei um preço e ele optou por vender. Isso foi em 2003.

Em 2013, o sr. disse à Folha se incomodar com a visão de que o Insper era uma escola de elite. Acha que isso mudou?
Mudou muito. Os bolsistas, por exemplo, são hoje 12,6% dos alunos.

A ideia é expandir esse percentual?
A ideia é que qualquer aluno que passe no vestibular e queira ficar no Insper, fique, independente de patrimônio ou renda. Claro que o sistema brasileiro é perverso. Os melhores alunos do ciclo básico são de escolas privadas caras. Felizmente há exceções, o mundo é estocástico, não é determinístico.
Então, apesar de as pessoas terem um background familiar complicado, muitos conseguem ir para a frente. O nosso problema é que o aluno olha o Insper e fala “é escola de rico, nem vou fazer vestibular”.

Isso ainda existe?
Existe um pouco. Então a gente diz “olha, tem bolsa, você será acolhido aqui se passar”, e isso está sendo gradualmente disseminado, mas demanda tempo. Ainda temos poucos candidatos de outros estados, gostaríamos de ter mais. Abrimos uma entrada via Enem, justamente para evitar que o candidato precise vir até aqui.

As mudanças no Enem têm ajudado?
Ajudaram em alguns sentidos. O problema é que os resultados saem muito tarde, no início do ano. Isso complica nosso processo de seleção.

O Enem tem sido alvo de polêmicas. O presidente Jair Bolsonaro manifestou a intenção de ler a prova antes de sua aplicação. O que o sr. acha disso?
Acho que cada macaco no seu galho. O presidente precisa presidir o país ao invés de olhar prova de admissão de qualquer lugar.

O Insper está em expansão, mas em um contexto de crise do ensino superior. O ensino privado teve uma expansão problemática. Como o sr. avalia isso?
Acho que não se pode falar do ensino superior sem falar do básico. O panorama do ensino básico ainda é trágico. Estamos lidando com um público que se forma no ensino médio com muitas lacunas. Isso impacta a qualidade do ensino superior.
Quantos alunos que se formam no ensino médio têm condições de cursar um Insper, uma FGV? Poucos.
Mas eles têm que ser atendidos de alguma maneira. O ensino privado surgiu pra atender a essas pessoas.
A qualidade do aluno que vem, em termos acadêmicos, deixa a desejar em função das lacunas que ele teve. Não há faculdade que faça o milagre de resolver todos os problemas da educação passada.
Então, acho a crítica de que se expandiu muito o ensino superior privado com qualidade ruim um pouco superficial. Não acho que foi ruim. Atende a uma necessidade. O aluno sempre ganha alguma coisa fazendo mais quatro anos de um curso.

Há pessoas formadas em vagas de baixa qualificação, fazendo faxina. Estudos feitos para alguns países mostram que o aluno pode nunca recuperar o gasto no ensino superior.
Pode acontecer. Acontece na Europa e nos Estados Unidos também. Tem o problema de certos cursos que efetivamente não acrescentam valor. Se a gente acredita no mercado, eventualmente as pessoas deveriam demandar menos desses cursos.
A universidade pública, por outro lado, sofre um problema grave de governança.
É de graça, o que também é questionável, porque boa parte dos alunos vêm de escolas caras e poderiam contribuir.
Mas quanto à governança, elas recebem dinheiro sem contrapartidas e sem cobrança.
O orçamento das universidades federais aumentou muito. E o que isso gerou em termos de melhor qualidade? Não sei. Acho que continuamos sem nenhuma universidade de peso no Brasil entre as cem melhores do mundo. Mesmo comparadas a outras da América Latina, acho que estamos pra trás.
E temos poucas entidades privadas com qualidade que sejam sem fins lucrativos e entrem em pesquisa. O Insper é uma delas, a FGV é outra, mas são relativamente poucas. Esse é o problema do ensino superior. E não é bom. Há anos se fala que o ensino é prioridade, e tudo mais, mas as coisas evoluem muito devagar.

Se é prioridade, porque não vai mais rápido?
Acho que a prioridade é um pouco da boca pra fora. Acho que é um problema basicamente de gestão. Onde as pessoas querem elas fazem acontecer. Aconteceu em Sobral (CE), em uma ocasião, no Rio de Janeiro, em Foz do Iguaçu. Em Pernambuco está acontecendo. No Espírito Santo também.
Não é querer por querer. É preciso identificar as pessoas que vão tocar, adotar metas, cobranças. Ver o que funcionou e não funcionou.
O problema da educação é que ninguém é responsável por nada. Aumentou-se muito a verba para educação nos últimos anos. E os resultados? Melhoraram? Alguém foi responsabilizado?

Deveria haver responsabilização?
Sim, é o que acontece com uma empresa. O cara fala: eu preciso de tantos milhões para montar o projeto. Aí não acontece o resultado, o que se faz? “Tudo bem, toma mais esses milhões de novo?” Não.

Voltando ao ensino superior, o MEC falou há pouco em uma Lava Jato da educação. Como esse tipo de situação afeta o setor? 
Não tenho conhecimento para falar de Lava Jato na educação. Acho que, se quer fazer alguma coisa, se faz. Não fica anunciando. Acho que isso tudo é muita perda de tempo, muita conversa sobre temas que não são fundamentais. O fundamental é o ensino e o aprendizado.

Como o sr. avalia a economia brasileira?
Tivemos problemas sérios. Precisaríamos retomar o crescimento de maneira rápida, mas não vejo isso acontecendo. Temos muitos problemas na parte fiscal, reformas que precisam ser feitas e não serão fáceis.

O governo parece caminhar na direção certa?
Não sei, acho a coisa ainda bastante confusa. Algumas propostas parecem muito boas.

Como qual? Acho essa proposta mais ambiciosa da Previdência ótima, mas tem que conversar no Congresso porque não é nada trivial. Acho que há clima para alguma reforma da Previdência, nem que seja paliativa por alguns anos.

Tendo trabalhado com o Paulo Guedes, o sr. acha que ele tem o perfil para conduzir o país nesse desafio? Prefiro não falar sobre isso. O Paulo é muito inteligente e articulado.

Claudio Haddad, 73

Formado em engenharia mecânica e industrial pelo Instituto Militar de Engenharia, doutorado em economia na Universidade de Chicago. É fundador e presidente do conselho deliberativo e da assembleia de associados do Insper. Membro do conselho de administração do Instituto Unibanco. Preside o conselho consultivo do escritório brasileiro do David Rockefeller Center para estudos latino-americanos da Universidade Harvard. Foi diretor do Banco Central e sócio do Banco Garantia.

Os invisíveis do sistema

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14.09.2017

Desde 2013, quando foi publicado O Capital no Século XXI, o do economista francês Thomas Piketty, o problema da desigualdade entrou no foco das preocupações com o mundo contemporâneo. 

Para Saskia Sassen, uma referência em sociologia urbana, porém, a desigualdade é apenas um aspecto parcial do problema atual mais profundo: os “perdedores” do sistema econômico são verdadeiramente expulsos, tornam-se invisíveis, deixam de ser contados nas estatísticas e praticamente desaparecem.

Esse é o tema de seu livro Expulsões: Brutalidade e Complexidade na Economia Global, em que a professora da Universidade Columbia descreve as expulsões não apenas das populações desempregadas, refugiadas e carcerárias, mas também da crise ambiental, com a extinção de espécies e a “morte” de terras e águas.

“A terra morta pode ser um terror para quem vive nela. Pense nos milhões de pessoas que querem deixar seus países não só por causa de guerras, mas também porque a terra morreu”, diz em entrevista.

O subtítulo do livro (“Brutalidade e Complexidade na Economia Global”) sugere que os sistemas mais complexos frequentemente levam a efeitos bastante simples e, mais do que isso, brutais. Como se dá esse processo?
Saskia:
 Os maiores exemplos são os seguintes: primeiro, a matemática algorítmica, crucial no setor financeiro.

É o caso da hipoteca subprime, que nunca se destinou a oferecer moradias para famílias de baixa renda, mas a gerar títulos lastreados em ativos, no contexto de um circuito de alto investimento que não aguentava mais derivativos garantidos por outros derivativos.

Segundo o Fed, mais de 14 milhões de famílias perderam suas casas nesse período histórico curto e brutal, que durou oito anos. Outro caso é a exploração de petróleo por fracionamento, uma modalidade de mineração muito complexa, que resulta na destruição selvagem de rochas e no envenenamento de cursos d’água.

Um exemplo simples é a exportação de empregos. Exige uma logística complicadíssima, engenheiros brilhantes, e para quê? Pagar salários baixos e valorizar as empresas no mercado acionário.

Qual é o papel do conhecimento nessa brutalidade? O que se pode mudar na maneira como ele é produzido e disseminado?
Saskia: 
Nos circuitos do capital, o conhecimento raramente é inspirador; é apenas uma ferramenta. O uso dessas formas extremamente complexas de conhecimento para produzir brutalidades elementares é um elemento central do funcionamento do atual sistema econômico.

Desde os anos 1980, com a desregulamentação e a privatização, entramos num período marcado pelo domínio de setores extrativistas; pense no Google e no Facebook: uma vez que criaram suas plataformas digitais, que são brilhantes, tornaram-se extrativistas.

O Google coleta os dados disponíveis sobre todos nós, cria pacotes a partir deles e os vende a outras empresas. Isso é extração. Também penso que muitos componentes da alta finança, hoje, são extrativistas. Esses setores são dominantes, como depois da Segunda Guerra Mundial [1939-1945] o consumo de massa foi dominante.

Em 1990, o filósofo Gilles Deleuze [1925-1995] previu a emergência de “sociedades de controle”, caracterizadas por sistemas informáticos que determinariam automaticamente acessos e bloqueios. Os algoritmos realizaram a “sociedade de controle”?
Saskia: 
Sim e não. Temos que ir além de uma ideia tão ampla. Produzimos os instrumentos que geraram essa situação, e o que me interessa é a variedade de processos e formas de conhecimento necessárias para tanto. Só que o perigo não está só nos sistemas poderosos de controle, mas também na psicologia que resulta deles.

E podemos lutar contra isso. Por fim, em toda sociedade há pessoas e espaços que não podem ser alcançadas mesmo pelo sistema mais poderoso.

O inimigo mais forte não é o próprio sistema, mas nosso conhecimento falho do perigo, até que seja tarde demais e acabemos sendo moldados. É o caso do Facebook e das histórias falsas sobre a eleição americana em que os leitores acreditaram. A incapacidade de entender o que está sendo feito é um enorme perigo.

A senhora introduz o conceito de expulsão para mostrar que a questão no mundo atual é mais do que de desigualdade: os prejudicados estão de fato fora do sistema. Mas eles não deixam de existir. O que acontece com eles?
Saskia: 
Eles se tornam invisíveis para nossas categorias de análise, para nossas medições da economia e das condições gerais da população. Quando o governo americano diz que o desemprego caiu para 4%, deixa de fora um bom número de desempregados que simplesmente não são mais contados, mas existem, são corpos plenamente materiais.

Essa tensão entre o material e o fato de que ele pode tornar-se invisível também pode ser percebida a respeito de condições muito distintas, como a terra morta. Uma vez que a terra está morta, esquecemos dela, ela desaparece de nossas medições padronizadas da economia.

Os expulsos exercem alguma pressão de fora sobre o sistema?
Saskia: 
É uma questão complicada: se os expulsos podem afetar o sistema. São pessoas que continuam vivendo, mesmo que na miséria. E podem estar vivendo bem no meio de um grande centro urbano.

Por exemplo, um homem negro de 33 anos que nunca teve um emprego, que se vira como pode para ter o que comer, que dorme em lugares diferentes a cada noite, para que a polícia não o reconheça. Nas economias avançadas, há milhões de pessoas e famílias inteiras nessa condição.

O mesmo vale para a terra morta?
Saskia: 
No caso da terra morta, ela está ali, mas um governo como o americano não se importa. Nem sequer fazem mapas oficiais mostrando terra morta. Como se o problema não existisse. Mas a terra morta pode ser um terror para quem vive nela.

Pense nos milhões de pessoas que querem deixar seus países não só por causa de guerras, mas também porque a terra morreu. E não há lei que reconheça o refugiado que foge de um país porque não sobrou terra nenhuma.

São refugiados de um tipo particular de “desenvolvimento” econômico. Uma porção cada vez maior da terra pertence a corporações enormes e poderosas.

O crescimento acelerado das favelas e periferias não é acidente. Todo ano, milhões de pequenos agricultores são expulsos de suas terras, substituídos por uma mina, uma nova expansão urbana etc. O único lugar aonde podem ir são as favelas das grandes cidades.

Um sistema baseado em extrativismo e expulsões foi o colonialismo. Muitas de suas descrições fazem pensar na lógica colonial. Como o modelo das expulsões se compara ao colonialismo?
Saskia: 
Entramos em um modo diferente do colonialismo. É provavelmente melhor não usar esse termo para descrever o período atual.

Eis algumas das principais diferenças. Este é um colonialismo puramente extrativista, ao contrário dos antigos impérios, que tinham projetos mais amplos, como a “missão civilizadora” da França, ou os britânicos, que formavam e educavam indianos para compor os estratos médios da burocracia imperial.

Hoje, não há mais nada disso. Uma vez que se extraiu o que era desejado, as corporações simplesmente vão embora. Esta época é governada por uma lógica extrativista, incluindo setores que nunca pensamos como extrativistas.

A senhora crê que o Acordo de Paris e outras resoluções das conferências climáticas da ONU serão eficazes para evitar que mais terra e mais água morram?
Saskia: 
Esse acordo e os outros anteriores nos deixam longe de resolver a destruição ambiental. Mas é uma grande vitória, porque produziu um consenso. Há muito mais pessoas falando em mudança climática e mais empresas tentando se tornar sustentáveis, até onde isso seja possível.

Revoluções precisam de décadas para amadurecer, e esse é um primeiro passo. Ao mesmo tempo, biólogos, ecologistas e outros cientistas estão produzindo inovações que vão bem além do acordo. Gosto de me concentrar nessas inovações, em vez dos acordos gerais, mais tímidos, que têm impacto limitado.

No livro, lemos que a fronteira entre quem permanece no sistema e quem é expulso está se fechando cada vez mais sobre os de dentro, a ponto de atingir as classes médias dos países ricos. Qual é o limite desse fechamento?
Saskia: 
São fronteiras tão brutais que, nas sociedades ocidentais, só afetam os mais pobres ou discriminados, mesmo se hoje até os filhos da classe média estão sendo privados de direitos.

Os números, especialmente nos EUA, deixam claro que setores crescentes das classes trabalhadoras acabaram em situação de pobreza e desespero, principalmente famílias negras. E o mesmo ocorreu a setores das classes médias. Os sistemas complexos da economia e da sociedade tornam muitos trabalhadores irrelevantes.

Minha preocupação, ao identificar essa noção de limites sistêmicos dentro de economias nacionais, também é, em parte, criar uma contrapartida para a noção de que a globalização elimina fronteiras. Ora, ao mesmo tempo, estamos construindo barreiras dentro dos países.

A senhora argumenta que os expulsos se tornam invisíveis, e que só enxergamos o lado positivo do desenvolvimento econômico. O mesmo vale para as partes do mundo em que o crescimento inclui populações no consumo de massas?
Saskia: 
Sim. As fronteiras da expulsão dos sistemas (econômico, social, biosférico) são fundamentalmente diferentes das fronteiras geográficas dos Estados.

O foco na fronteira vem de uma das principais hipóteses do livro: que a passagem da era keynesiana à era das privatizações e da desregulamentação conduziu à passagem de uma dinâmica que incluía para uma dinâmica que exclui.

Ainda falta ver se essa passagem da incorporação à expulsão também está emergindo na China e na Índia, mas já há elementos. Na China, a incorporação de uma massa de pessoas na economia monetária injetou-as numa dinâmica em que são “pobres monetizados”. A desigualdade também está explodindo na China, com novas formas de concentração econômica no topo. Sem falar no bullying corporativo.

No lado mais brilhante da economia global, parece existir uma tendência à monumentalidade, tanto em eventos esportivos quanto em construções de cidades como Dubai e Hong Kong. Como essa monumentalidade se relaciona com o tema das expulsões?
Saskia: 
Existe algo como 30% ou 40% da população que formam classes médias altas e elites com muito dinheiro.

Devemos concentrar menos atenção no 1%, os mais ricos dos ricos, e olhar para essas pessoas que se tornaram bem mais ricas do que jamais puderam imaginar. São eles que tornam a concentração de riqueza visível. Reinventam grandes partes das cidades a partir de seus desejos. Expulsam as classes modestas que viveram naqueles bairros por gerações, porque “precisam” de mais espaço para mais mansões e shoppings de luxo.

As tecnologias inteligentes e o emburrecimento social

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Richard Sennett

A grande história do que está acontecendo na revolução tecnológica hoje, no que se refere às cidades, e suspeito que seja igual em outros campos, é que a tecnologia está se tornando cada vez mais primitiva socialmente.

Podemos usar a tecnologia muito bem. É necessário para lidar com o funcionamento de uma cidade. Mas, agora, estamos usando a tecnologia para dizer às pessoas o que fazer, em vez de proporcionar uma ferramenta que mostre opções.

Coisas como o Google Maps dizem às pessoas para onde ir e como chegar lá. Estamos, em outras palavras, emburrecendo a quantidade de informação à disposição das pessoas. Google Maps é uma operação de emburrecimento.

O que quero é algo que estimule as pessoas a pensarem indutivamente sobre onde estão, sobre o tipo de lugar onde estão — e que dê a elas as ferramentas para fazê-lo. Temos a tecnologia para isso, mas não é uma tecnologia que estamos usando.

Por exemplo, você está em um bairro e quer ir para outro lugar bem diferente. Simplesmente ter um mapa com o caminho mais rápido não é inteligente. Você quer saber que tipo de lugar é esse para o qual você está indo. Se você pegar um caminho, que tipo de experiência terá caminhando até lá, em vez de outra rota?

Para isso, é necessário outro tipo de informação além de apenas desenhar a menor linha entre duas coisas ou mostrar que tipo de transporte público, ou como dirigir até lá. Isso é uma redução de informação. Você não está aprendendo o ambiente.

Portanto, a tecnologia está sendo concebida para entregar um produto social cada vez mais primitivo, elas estão se tornando cada vez mais monopolistas e uniformes. Elas entregam um produto que pode ser padronizado e vendido em todo lugar.

Ao passo que, se você usar o tipo de tecnologia de que gosto, o Linux, que é um kernel de código aberto, você terá diversas formas de se relacionar com as pessoas. Se as coisas continuarem assim, em dez anos você terá na web um recurso desperdiçado. Isso será como se a complexidade regredisse, o que é terrível.

Porém, há uma coisa que vocês podem fazer. Vocês não precisam esperar alguém passar uma lei para começar a se comunicar de formas diferentes uns com os outros. O Linux está aqui e existem diversas outras ferramentas de código aberto que permitem programar de forma que não essa função padronizadora.

Minha noção de cooperação é que, quanto mais as pessoas cooperam uns com os outros, mais problemas encontram quanto mais se aprofundam nas coisas. A forma como o Google entende cooperação é que, quanto mais cooperativo se é, mais as pessoas concordam.

E, de novo, isso é uma espécie de abuso de tecnologia. Nós não enxergamos as coisas apenas como sim ou não. Ou como isso ou aquilo. As pessoas nunca pensam apenas isso ou aquilo, elas pensam tudo.

Contribuição colaborativa é diferente de inteligência coletiva. Contribuição colaborativa é quando você tem uma quantidade enorme de pessoas, especialmente na internet, contribuindo com uma opinião, e pega uma média disso.

A maioria, digamos, dois milhões de pessoas pensam X e um milhão pensa Y. Não há espaço para inteligência nisso. É apenas um concurso de popularidade. Além disso, o milhão de pessoas que pensam Y podem estar certos.

Temos a tecnologia para obter respostas mais complexas e fazer um desenho disso. Sabemos como fazer isso. Mas, novamente, a tecnologia não está sendo usada assim. É por isso que odeio pesquisas de popularidade de políticos.

Isso não é inteligência coletiva. É apenas simplificar uma questão e obter um sim ou um não. E isso é culpa, não do público, é culpa da forma como as questões são apresentadas ao público.

Como eu digo, hoje temos a tecnologia para produzir um retrato muito mais complexo, um retrato muito mais inteligente da opinião pública. Mas não a usamos.

Mídias sociais reduzem a capacidade de aprender, diz Richard Sennett

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por Leandro Cólon/Folha de São Paulo – 11.08.2015

O sociólogo americano Richard Sennett, 72, afirma que a onda das mídias sociais tem reduzido a capacidade das pessoas de adquirir conhecimento externo. Em entrevista à Folha, ele diz que o modelo cada vez mais customizado da internet cria um cenário sem elemento “surpresa” no cotidiano.

Um dos sociólogos mais prestigiados, Sennett publicou em 1977 o clássico O declínio do homem público, em que aborda, entre outras coisas, as mudanças de comportamento do homem desde o século 18, sobretudo em relação a intimidade, individualismo e exposição. O que escreveu há quase 40 anos, diz ele, ainda se aplica hoje, agora num contexto do mundo eletrônico da web.

Nascido em Chicago, Sennett recebeu a reportagem na London School of Economics, onde leciona. É professor também da New York University e entre seus livros está em Juntos, obra de 2012 em que defende o conceito de cooperação entre os indivíduos.

O sociólogo, que integra a comissão de reorganização urbana de Atenas como parte da conferência da ONU de 2016 sobre o futuro das cidades (Habitat), diz que a criação de cooperativas informais é fundamental para países como Grécia e Brasil reagirem às turbulências econômicas. Na entrevista, Sennett critica os shoppings no Brasil e as “cidades inteligentes”.

Richard Sennett estará em Porto Alegre no dia 24 de agosto e em São Paulo no dia 26 para conferências no Fronteiras do Pensamento, copatrocinado pela Folha de S.Paulo. O sociólogo sobe ao palco ao lado de sua esposa, a também socióloga Saskia Sassen.

Como o senhor vê as mudanças no comportamento das pessoas tantos anos depois de publicar O declínio do homem público?
Richard Sennett:
 Há 40 anos, havia muitas questões sobre a transformação da presença física das pessoas em público, e agora temos os mesmos problemas: perguntamo-nos sobre a presença na web. As mídias sociais aumentam a discussão entre o público e o privado.

Não tínhamos nada parecido nos anos 70 e fico impressionado como ainda nos atingem questões sobre a noção do uso de espaço público para autoexposição e interação real. Como analista social, é deprimente para mim que esses problemas persistam, agora no espaço eletrônico.

O senhor acha que atingimos o ápice da falta de privacidade?
Richard Sennett: 
O mais triste sobre o ciberespaço é que há cada vez menos chance para a surpresa. Quando você caminha na rua, coisas que não espera podem acontecer. Quando está no Facebook, isso é feito tão sob medida que fica difícil a ideia de aprender alguma coisa que não soubesse, afinal, tudo é customizado, feito para seu perfil. Isso é um tipo de redução de quão inteligente o público à minha volta pode ser.

Por que o senhor critica as “cidades inteligentes”?
Richard Sennett: 
Elas removeram o elemento indutivo de aprendizado sobre o entorno. Como um dos líderes do Habitat 3, uma de nossas discussões é como evitar o mau uso da tecnologia que envolve a liberdade das pessoas. Essa tecnologia tem feito as pessoas ficarem sem pensar sobre isso.

Os governos autoritários, por exemplo, amam essas cidades, porque sua capacidade de vigilância é incrível. Há cidades americanas que usam os sensores de tráfego, de velocidade para coordenação, para identificar o número de motoristas negros e brancos. Isso acaba usado de forma diferente de seu propósito [original], vira um instrumento de dominação.

Recentemente, o senhor criticou o conceito de shoppings das cidades latino-americanas.
Richard Sennett: 
Fiquei impressionado com tantos estacionamentos nos shoppings no Brasil ocupando espaços públicos. São espaços cosmopolitas mal utilizados. Não há nada para fazer a não ser parar carros, as crianças não podem entrar nem usá-lo. Como na China, são espaços que separam a nova classe média dos pobres. Se você é pobre na China, não pode ir ao shopping.

O que os shoppings também fazem é destruir os negócios locais, isso é um grande problema aqui no Reino Unido, pois os centros das pequenas cidades não podem competir com grandes redes.

Qual sua opinião sobre a cidade de São Paulo?
Richard Sennett: 
É uma cidade muito avançada, com muito capital humano. O grande desafio é como colocar essa capital para trabalhar para todos. Eu adoro São Paulo, é uma cidade de torres, mas também tem problemas de segurança. O trânsito nem me incomoda (risos), porque sou muito paciente, posso ver meus e-mails, ouvir música clássica, um violino de Wagner.

O senhor trabalhou na organização dos Jogos Olímpicos de Londres. A próxima Olimpíada será no Rio. Qual seu conselho para as autoridades?
Richard Sennett: 
Eu me envolvi no planejamento dos locais dos jogos, o que fazer com eles depois da Olimpíada. Queríamos evitar o que ocorreu com a Grécia em 2004 [após os Jogos, várias arenas foram abandonadas]. Os lugares precisam ser utilizados imediatamente após o evento. Se você espera cinco, seis anos, eles começam a se degradar, e é isso que tentamos evitar em Londres.

Passamos por uma crise econômica no Brasil, na Europa temos o exemplo da Grécia nos últimos cinco anos. O senhor acredita que seu conceito de “cooperação” entre as pessoas poderia ajudar esses países a superar tais problemas?
Richard Sennett: 
Não creio que possa ajudar a superar, mas acredito que pode ajudá-los a enfrentar os problemas. Conheço muito bem a questão da Grécia, por causa do Habitat 3. Lá, o governo tem falhado em apoiar isso, e a União Europeia basicamente criou um cenário de punição para o país.

Na Grécia, há cooperativas informais de família dividindo recursos. Uma delas, em Atenas, foi criada para garantir que as crianças tomem café da manhã antes de ir para a escola, porque uma das consequências da austeridade é que muitas famílias não conseguem garantir isso. O governo grego não faz nada.

Uma imagem global é sobre a necessidade da cooperação no local de trabalho. Mas na política econômica, se a estrutura formal de apoio falha, gera situações como a de Grécia, Itália, Portugal.

A cooperativa é a única medida de defesa. Uma coisa terrível no liberalismo [econômico] é que as pessoas são cada vez mais donas de indivíduos em detrimento da cooperação informal.

O senhor acredita que haja uma solução para a Grécia?
Richard Sennett: 
Em 1953, 50% da dívida alemã foi abolida pelo governo grego, mas hoje isso é [usado como] um tipo de hegemonia, uma punição cruel. A Alemanha tem bloqueado qualquer tipo de alívio [aos gregos]. O país nunca vai se recuperar se toda hora tiver que pedir mais dinheiro para pagar dívida. Isso nunca deixará o país ser saudável.

Como vê o drama imigratório da África para a Europa?
Richard Sennett: 
É uma política de combate, sem muita esperança, porque estão mirando nos barcos, nos imigrantes que tentam chegar a Itália e Grécia. Entristece-me ver que a União Europeia está em colapso, não sabe o que fazer com um problema humanitário, como a imigração, e econômico, como as políticas de austeridade que estão falhando.

O senhor defende que as pessoas deveriam cada vez mais ter ações das empresas que trabalham. Isso não é uma contradição do modelo capitalista?
Richard Sennett: 
É um tipo de social capitalismo que contradiz o capitalismo liberal. No Reino Unido, na loja de departamento, John Lewis, os empregados têm ações. Depende de como se manuseia, do quão preocupada a empresa é com isso. Não se espera que o vendedor seja o dono dela, mas que o direito de ter ações lhe dê voz.

No regime liberal, o círculo de controle se reduz, cada vez menos pessoas tomam as decisões. Eu gostaria de ver o monopólio de empresas como Microsoft, Google, Amazon quebrado. Mas quando elas têm um competidor, compram-no ou fecham-no.

Quando começou a crise de 2008, achei que haveria um movimento para destruir isso, mas essas empresas se mostraram mais resistentes e sobreviveram.

 

 

Sem acordo com os partidos, Bolsonaro não vai governar, afirma cientista político

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É assim no mundo inteiro, afirma Limongi; bancadas temáticas, como a da Bíblia, têm poder limitado no Congresso

Mario Cesar Carvalho – Folha de São Paulo – 20/03/2019

Associar o presidencialismo de coalizão a corrupção, como fazem os bolsonaristas, “é um mito, uma bobagem sem tamanho”, diz o cientista político Fernando Limongi, professor aposentado da USP que dá aulas na escola de economia da Fundação Getulio Vargas.

Corrupção, segundo ele, não é uma consequência inevitável da coalizão, prática que presidentes adotam para ter maioria no Congresso, oferecendo cargos a partidos para integrarem uma aliança.

Limongi cita a Dersa como exemplo de corrupção sem coalizão. A estatal paulista de estradas está envolvida numa série de escândalos em governos que não têm relação com partidos.

O discurso de Bolsonaro contra essa prática e a defesa de alianças com bancadas temáticas, como as da bala e da Bíblia, revela o despreparo do presidente, de acordo com o cientista político.

Bancadas temáticas não tem poder de definir a agenda de votações no Congresso; só partidos podem fazer isso. “É muito pouco provável que o governo seja capaz de governar sem costurar acordos com partidos. É assim no mundo inteiro. Partidos organizam o processo político”, disse em entrevista por email à Folha.

Segundo ele, o problema de Bolsonaro é mais grave do que seu discurso contra partidos: o presidente não entendeu que é preciso partilhar o poder para governar.

Bolsonaro começou refutando os partidos e dizia que iria trabalhar com bancadas temáticas, como as da bala e da Bíblia. Por que essa estratégia parece não estar funcionando? Não é possível dizer se está ou não funcionando, pois o governo ainda não começou a governar. Por enquanto, o governo pouco fez ou propôs. O que há na agenda e que depende do Congresso é a reforma da Previdência, que ainda não começou a tramitar. Pouco se sabe sobre como o governo pretende reunir os votos para aprová-la. Mas o governo tem mais matérias para aprovar, como as mais de uma dezena de medidas provisórias herdadas de Temer e as quatro promulgadas pelo próprio Bolsonaro. Uma das herdadas já expirou e não há notícias de que o governo esteja cuidando da aprovação das que emitiu. Se bobear, toda a reformulação ministerial vai para o espaço.

Bolsonaro associa presidencialismo de coalizão e corrupção. É possível fazer coalizão sem recursos espúrios? Isso é um mito, uma bobagem sem tamanho. Não há relação necessária entre governo de coalizão e corrupção. Não há dúvidas de que, no Brasil, as duas coisas conviveram no passado recente, mas daí a concluir que uma coisa leva à outra é a mais pura bobagem. A relação está longe de ser causal. Há corrupção sem o tal do presidencialismo de coalizão.

Tome o caso da Dersa em São Paulo, onde os acusados são governadores e não há nenhum indício de que o dinheiro desviado visasse comprar maioria para aprovar projetos. E os desvios de dinheiro ligados à usina nuclear de Angra? Lá o grosso da corrupção não passou pelos partidos. Mais do que isso, os desvios ocorreram em um modelo insulado da política, no qual quem decidia eram técnicos e militares. Aliás, durante o regime militar, o programa nuclear brasileiro foi amparado pela conta Delta, em um esquema em que as empreiteiras entravam para lavar dinheiro obtido por acordos com o Iraque em que se trocava urânio por petróleo.

No livro que escreveu com Argelina Figueiredo, vocês mostram a importância dos partidos na relação com o Executivo. O governo teria articulação para alterar esse quadro?

É muito pouco provável que o governo seja capaz de governar sem costurar acordos com partidos. É assim no mundo inteiro. Partidos organizam o processo político. Nasceram dessa necessidade.

Além disso, basta ler os regimentos internos do Senado e da Câmara para ver que os partidos são peças-chaves do processo decisório. Por força dos regimentos, líderes partidários definem quais matérias serão votadas, quando e como. Sem a participação dos líderes, as coisas não andam.

Os líderes de bancadas temáticas não têm essas prerrogativas. É simples assim. É básico. Mas Bolsonaro desconhece o elementar porque nunca se interessou pelo processo legislativo, nunca teve interesse em aprovar matérias. Essa visão é um indicador do seu despreparo político.

A Lava Jato expôs o modo como presidentes obtêm apoio no Congresso. É possível retomar o presidencialismo de coalizão após esse desnudamento? Como disse, se a Lava Jato desnudou algo, esse algo não tem nenhuma relação necessária com a formação de coalizão e/ou a forma como presidentes conseguem apoio para aprovar seus projetos. Se essa relação fosse necessária, seríamos forçados a concluir que todos os presidentes brasileiros governaram recorrendo a esses mesmos expedientes.

No Brasil, como em um grande número de países, não se escapa da necessidade de partilhar o poder. Toda e qualquer proposta legislativa do presidente precisa ser aprovada por uma maioria. Se o partido do presidente não controla a maioria das cadeiras, tem que conseguir apoio de parlamentares dos demais partidos. A questão é se vai obter caso a caso ou se vai montar uma base estável. Essa é decisão inicial que o presidente deve tomar. É uma questão de estratégia política e que não tem nada a ver com montar o governo em torno de ideias, competência ou o que for. Nas duas opções, para obter maioria, o governo tem que ampliar sua base, obter apoio da maioria. No primeiro caso, de uma forma limitada, circunstancial. No segundo, de uma maneira estável, permanente.

O governo Bolsonaro parece não ter entendido isso, ou melhor, parece achar que negociar caso a caso, construindo maiorias a cada proposta, seria o mesmo que privilegiar ideias, programa, capacidade ou sei lá o quê. Não é.

Quais são as consequências dessa estratégia? Na verdade, ao privilegiar o caso a caso, o governo diminui o horizonte temporal da negociação e, com isso, exclui quem o apoia dos ganhos de ser governo, dos possíveis retornos que a aprovação da proposta pode vir a gerar. A resistência a apoiar o governo aumenta, o preço em concessões e o tempo gasto em negociações crescem.

Formar uma coalizão é dar base e estabilidade ao governo, é saber que se pode contar com o apoio do partido, nas horas boas e nas más. Com a estabilidade, ambas as partes ganham. Mas isso implica dividir o poder com os demais partidos —e daria no mesmo se esse acordo fosse construído com bancadas temáticas. É esse o problema do governo Bolsonaro, sua incapacidade de entender que precisa partilhar o poder. O problema não é com quem e como se negocia. O xis da questão é saber se o governo está disposto a fazer política, a negociar e partilhar o poder.

O problema, na verdade, é mais sério, pois essa incompreensão política vem do próprio presidente, da sua falta de liderança. Até agora o governo nem sequer foi capaz de organizar o PSL. O partido do presidente é uma bagunça por falta de orientação, pela falta da definição de uma linha política, de propostas concretas.

O sr. acha que é possível governar com coalizão baseada em princípios, como pregam bolsonaristas? A proposição se baseia em uma falsa dicotomia entre princípios e pragmatismo, entre ideais e negociatas. Assume-se que há um governo que tem ideologia e princípios e que esse governo seria forçado a negociar com políticos inescrupulosos e destituídos de ideais.

Se as coisas forem colocadas dessa forma, toda e qualquer negociação será uma distorção ou concessão eticamente censurável. Mas por que devemos assumir que o presidente —e essa premissa foi aplicada aos governos anteriores— tem uma ideologia e os congressistas não? Veja, mesmo que o presidente diga que só se move por princípios, não se deve assumir que saiba como estes mesmos princípios serão traduzidos em políticas públicas. Há uma enorme distância entre o discurso e a implementação das políticas. E é nesta passagem do discurso à prática que os interesses envolvidos atuam, não necessariamente para desvirtuar a proposta. Obviamente, cada um defende o seu e tenta fazer valer os seus interesses.

Mas se o governo sabe o que quer, então tem condições de negociar e rejeitar as contribuições que desfiguram sua proposta inicial. Dizer que é impossível ter princípios e governar não passa de uma desculpa, uma forma conveniente de jogar a culpa nos aliados.

O problema do governo Bolsonaro não decorre da necessidade de formar coalizão ou dos custos envolvidos nessa operação. A dificuldade é anterior e passa pela incapacidade do presidente de entender o que significa fazer politica, de entender que para governar será preciso compartilhar o poder. Essa incompreensão se mostrou de forma nua e crua na demissão de Bebianno. O presidente não se dispõe a compartilhar o poder nem com seus apoiadores de primeira hora. E as razões da demissão pouco tiveram a ver com princípios e ideais.

O governo Bolsonaro passa por vexames semanais. Isso decorre de inexperiência? O maior problema tem nome e RG conhecido. O despreparo de Bolsonaro para o exercício da Previdência é evidente. Esse fator foi minimizado durante a campanha. O atentado, ao retirá-lo de cena, acabou por protegê-lo. Mas a fatura foi entregue e o preço a pagar é o que está aí, uma trapalhada atrás da outra.

Os filhos de Bolsonaro são um entrave à formação de alianças ou o pragmatismo vai imperar em votações importantes? Não é possível separar Bolsonaro de seus filhos. Bebianno sucumbiu a uma operação desencadeada de comum acordo entre o presidente e seu filho Carlos. Resta saber se Mourão terá o mesmo destino. Vice, contudo, não pode ser demitido.

Presidencialismo de coalizão

A expressão “presidencialismo de coalizão” foi criada em artigo publicado em 1988 pelo sociólogo e cientista político Sérgio Abranches para designar os arranjos políticos feitos pelo presidente para obter maioria no Congresso e aprovar as políticas de seu interesse. A estratégia é associada a corrupção, clientelismo e mando das oligarquias que atuam no Congresso.

Ao analisar a política brasileira às vésperas das eleições de 2018, Abranches defendeu que não havia nenhuma indicação de que essa prática política sofreria mudanças. O presidente Jair Bolsonaro (PSL) começou o mandato dizendo que iria privilegiar as bancadas temáticas, mas já começou a fazer acenos a partidos que integravam a base de Lula e Dilma Rousseff, como o MDB

 

“Capitalização transformou adultos de classe média em idosos pobres”

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Economista chileno Andras Uthoff diz que modelo pinochetista, que produziu massa de pobres no Chile, também não dará certo no Brasil

Por Thais Reis Oliveira – Carta capital – 19/03/2019

O economista chileno Andras Uthoff conhece bem o projeto de Previdência que o governo Bolsonaro quer para o Brasil. Professor da Faculdade de Economia e Negócios da Universidade do Chile e conselheiro regional da Organização Social do Trabalho (OIT), ele ajudou a tirar do papel a contrarreforma que, em 2008, tentou corrigir o encolhimento das aposentadorias causado pelos problemas de privatização da previdência chilena.

A reforma imposta em 1981 pelo ditador Augusto Pinochet – com a ajuda de uma patota de economistas formados na Escola de Chicago – acabou com a contribuição do estado e dos patrões, tanto na Previdência quanto na saúde. Cada trabalhador passou a poupar individualmente para a própria velhice, depositando cerca de 10% dos salários em contas administradas por bancos privados.

Trinta e oito anos depois, o fracasso é provado em números. Quando foi apresentada, a capitalização pinochetista prometia um retorno de 70% do salário médio das contribuições. Mas hoje, a primeira leva de aposentados recebe em torno de 35% de sua renda média.

Mesmo após as mudanças da era Bachelet, quase 80% das aposentadorias pagas hoje no Chile estão abaixo do salário mínimo. E 45% dos pensionistas vive abaixo da linha da pobreza (com cerca de 600 reais). A classe média foi a mais afetada, porque passou receber na velhice muito menos do que recebera durante a vida laboral, mas não foi beneficiada pela contrarreforma.

Outra promessa furada, diz Ulthoff, é que os investimentos da Previdência privada impulsionariam a economia chilena. Do fundo de 200 bilhões de dólares em recursos poupados pelos trabalhadores, quase 3/4 do PIB do país, cerca de 40% estão investidos no exterior.

Embora tenha sido apresentada como “alternativa” aos novos ingressantes no mercado de trabalho, a proposta de Guedes levanta campo para a privatização da Previdência. Se for aprovada como está, prevê o economista, vai repetir os dramas chilenos. “O sistema privado caminhou todos esses anos apenas com o aporte dos trabalhadores. Não deu certo lá e não vai dar no Brasil”, diz.

Uthoff esteve em Brasília para participar de um ciclo de debates sobre a Reforma brasileira e falou com exclusividade a CartaCapital sobre as diferenças entre Brasil e Chile.

CartaCapital: Muitos economistas brasileiros acreditam que esta reforma, como está agora, deixará uma massa de idosos ganhando menos que o mínimo. Como esse processo aconteceu no Chile?

Andras Uthoff: No Chile, em 1981, os empresários deixaram de contribuir para a pensão de seus empregados, tanto na Previdência quanto na saúde. O sistema sobreviveu exclusivamente do aporte dos empregados, com uma capitalização e má qualidade de empregos. Não deu certo: 79% das pensões financiadas pelo sistema, mesmo após os subsídios estatais, estão abaixo do salário mínimo chileno (cerca de 1810 reais). E 44% dos aposentados vive abaixo da linha da pobreza, ganhando menos de 600 reais por mês. Isso não foi resolvido no Chile e não será resolvido no Brasil com capitalização individual.

CC: Como reagiu a opinião pública quando Pinochet impôs ou o modelo de capitalização dos anos 80?

AU: Como estávamos em uma ditadura até os anos 90, ninguém podia opinar. Simplesmente houve uma mudança de todo o modelo econômico para um projeto neoliberal. E o mercado financeiro foi introduzido nas pensões e nos planos de saúde. O que aquela reforma fez foi destruir a seguridade social, introduzindo o mercado na jogada. Na Previdência, com a capitalização, e na Saúde, com os seguros individuais, na Saúde. O problema é que ao fazer contratos individuais, você deixou desamparada aqueles que não tiveram a capacidade de pagar uma entrada.

CC: Você pode explicar como o processo de 2008 aconteceu no Chile para corrigir essas distorções?

AU: A reforma de 2008 criou a pensão básica solidária e a contribuição previdenciária, pagas por um fundo público. O primeiro, para quem não conseguiu poupar nada. E o segundo para quem economizou, mas não o suficiente para se manter na velhice. Mas só recebem aqueles cuja renda familiar ficam entre os 60% mais pobres. Portanto, não é universal. A solução de 2008 melhora a cobertura, mas não muda efetivamente as aposentadorias.

CC: Você também diz que a classe média foi a mais prejudicada pela reforma chilena. Por quê?

AU: Sim, a classe média é a mais afetada porque é assalariada e sua renda previdenciária cai substancialmente. Quando a reforma foi implantada, prometia-se uma aposentadoria de 70% da média do salários que a pessoa recebera durante a vida ativa. Hoje em dia, as taxas de reposição são em média de 35%. Quer dizer que a renda dessas pessoas diminuiu 65%, é uma mudança muito grande. Você vive a vida de trabalhador como classe média. Ao sair dela, se torna pobre.

CC: Em outras entrevistas, você disse que não era a favor do retorno de um sistema totalmente público. Qual seria o seu modelo de ideal de Previdência?

AU: Os modelos ideais não existem. Cada país deve construir o seu, de acordo com as limitações impostas pelas restrições e desigualdades orçamentárias, a fim de cumprir o marco regulatório da seguridade social. Existe consenso de que os sistemas devem ser de múltiplos pilares e não apenas de capitalização individual. A OIT propõe a construção da escada de segurança com um piso universal não-contributivo, um pilar coletivo de solidariedade e um suplemento de capitalização individual obrigatório ou voluntário.

O atual sistema brasileiro já tem esse design. Precisa ser melhorado, é verdade. Mas não substituído.

 

As milícias crescem velozmente por dentro do Estado

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José Cláudio Alves frisa que “a estrutura política e econômica das milícias no Rio de Janeiro hoje começa a ganhar vários outros contornos, que não eram perceptíveis e que agora se manifestam”.

A prisão dos dois acusados de estarem envolvidos no assassinato da vereadora Marielle Franco e seu motorista, Anderson Gomes, “é a exceção de uma regra”, diz o sociólogo José Claáudio Alves  à IHU On-Line. “A regra é que membros de milícias são intocáveis, seus negócios se ampliam e eles têm dimensões crescentes desse poder e agora expressam isso a partir do assassinato de pessoas que ocupam cargos no âmbito político e que são contrárias aos seus interesses”, menciona.

Na entrevista a seguir, concedida por WhatsApp, Alves frisa que “a estrutura política e econômica das milícias no Rio de Janeiro  hoje começa a ganhar vários outros contornos, que não eram perceptíveis e que agora se manifestam”. Entre eles, o sociólogo cita a atuação da milícia na construção do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro – Comperj em Itaboraí. “Várias empresas terceirizadas estão atuando na construção da obra e a milícia está controlando quem vai trabalhar nessas empresas. Isso já é um passo à frente em relação à atuação das milícias anteriormente: a milícia detecta onde o capital está se manifestando — nesse caso é um capital público em parceria com empresas privadas — e, ao ficar a par da situação, manipula essa informação e passa a controlar de forma violenta o acesso a esse emprego, cobrando taxas e valores das pessoas que querem trabalhar nessas empresas. Assim esses empregados terão que repassar parte dos seus salários para os milicianos. Essa é uma novidade nesse campo no Rio de Janeiro”, informa.

Outra novidade no Rio de Janeiro é a atuação da milícia marinha, que, segundo Alves, atua a partir de informações de que o Ministério da Pesca e Aquicultura não está fornecendo licenças para pescadores. “Essa milícia aborda os pescadores no mar, quando eles estão pescando, exige a licença que o pescador não tem e passa a exigir valores semanais para permitir que o pescador possa continuar pescando. Então, surgiu na costa do Rio de Janeiro essa milícia marítima que passa a controlar os pescadores”, denuncia.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Que avaliação o senhor faz da investigação do assassinato de Marielle e Anderson Gomes, ao longo do último ano, que culminou com a prisão de dois suspeitos de estarem envolvidos com o crime?

José Cláudio Alves – A minha avaliação em relação às apurações e investigação da polícia no caso Marielle é que elas foram muito lentas. Essa demora acaba acarretando uma série de complicações para saber se, de fato, esses são os responsáveis. A princípio parece que os dois presos foram os responsáveis, mas a pergunta que fazemos é quantas pessoas estavam envolvidas nisso e quem são os mandantes envolvidos nesse crime. Muitas questões ficaram soltas e ao longo do tempo elas não foram investigadas nem apuradas, o que gera consequências, como a morosidade da investigação, a dificuldade de ela prosseguir, de averiguar quantos outros suspeitos poderiam ser identificados no processo mas não serão. Paira a dúvida sobre se de fato não haveria indícios mais contundentes e próximos a grupos políticos que hoje ocupam espaço no âmbito federal, se não haveria ligações mais profundas, mas que com a demora da investigação acabam sendo perdidas e apagadas.

Essa demora toda nos faz refletir, mas a prisão dos suspeitos é algo importante e acaba, de outro lado, amortecendo a busca de explicações, acaba sendo uma espécie de cala boca e subterfúgio, e também acaba sendo um alívio para esse sofrimento todo, mas não vejo o processo como algo conclusivo.

IHU On-Line – As notícias divulgadas na imprensa dizem que as investigações do caso Marielle chegaram até o chamado Escritório do Crime, um poderoso grupo miliciano de Rio das Pedras que atua sob encomenda. O senhor tem informações sobre esse grupo?

José Cláudio Alves – Não tenho detalhes sobre como o Escritório do Crime atua. Sei que Rio das Pedras é uma favela histórica, muito grande, de imigração de nordestinos, que está na área da zona Oeste do Rio de Janeiro, onde a milícia tem uma presença extremamente forte. Essa é uma das áreas mais antigas, que está na base da formação das milícias no Rio de Janeiro. As milícias dessa região têm uma forma muito peculiar de atuação no campo da venda de terrenos. Na zona Oeste existe a presença muito grande de um tipo de solo chamado turfa, que é um solo inadequado para a construção de casas porque é muito movediço e não permite a estrutura de alicerce das construções. Por conta disso, há um controle naquela região das áreas em que é possível construir, ou seja, há um limite e uma faixa específica para a compra de terrenos e construção de casas. Esse processo é controlado pela milícia, que tem informações privilegiadas, as quais são obtidas dentro do Estado, já que são os agentes do Estado que circulam nesse âmbito. Esse é um mercado que se expandiu muito naquela região, porque trata-se de uma área onde há muita procura por moradia, porque ela é vinculada a processos migratórios, principalmente de nordestinos.

Os comerciantes daquela região iniciaram o processo de financiamento das milícias para impedir que o tráfico de drogas acessasse aquela comunidade. Logo, aquela é uma área onde a atuação da milícia é muito consolidada e movimenta muitos recursos. A busca por um dos envolvidos no Escritório do Crime, Adriano de Nóbrega, revelou que a mãe e a esposa dele trabalharam como assessoras de Flávio Bolsonaro enquanto ele era deputado estadual no Rio de Janeiro. O próprio Flávio também fez várias comendas de homenagens à atuação de milicianos no estado do Rio de Janeiro. Então, há uma vinculação forte dessa milícia com a estrutura do poder político dos Bolsonaros. Tudo indica isso, haja vista a situação da esposa e da mãe do Adriano de Nóbrega, o qual parece ser uma das lideranças do Escritório do Crime.

Desde o início eu sabia que havia o “dedo da milícia” e a prática típica de execução primária de grupos de extermínio, e que isso levaria aos negócios e aos interesses econômicos de políticos que a milícia estabelece a partir daquela região, mas numa rede que é muito maior do que Rio das Pedras. Então, toda essa rede pode ter algum grau de envolvimento no assassinato de Marielle, na sua organização, na sua proteção e no seu financiamento. Demorou um ano para se dar um retorno muito pífio desse caso, que foi a prisão de duas pessoas. Essa é uma estrutura muito mais ampla e com muito mais relações, uma rede muito maior que deveria ser revelada e apresentada nesse quadro.

IHU On-Line – O governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, disse que os presos pela morte de Marielle e Anderson Gomes serão convidados a fazer delação premiada na nova fase da investigação, que quer chegar aos mandantes do crime. Nos últimos anos há uma série de debates jurídicos e políticos acerca da necessidade ou não da delação premiada na investigação de crimes. Como o senhor avalia esse tipo de medida para este caso específico para se chegar aos mandantes do crime?

José Cláudio Alves – Não tenho uma reflexão muito consolidada sobre o estatuto da delação premiada. O que me impressiona é que existe uma dimensão organizada do crime a partir do Estado e, portanto, parece que facilmente seria possível ter acesso ao que esses grupos fazem, como atuam de forma organizada dentro do Estado, mas o que se vê é que os que investigam e buscam a justiça estão numa ratoeira, como se tivessem que se esconder desses grupos. Ou seja, não se tem uma atuação clara, consistente e firme da conduta das investigações, e aí se buscam subterfúgios, como delações premiadas. Me impressiona muito o poder que esses grupos têm e a fragilidade da estrutura do judiciário frente a esse poder, a ponto de ele próprio se ver encurralado, em busca de delações premiadas para algo que é escancarado, que está nas ruas.

Alega-se que é preciso ter uma delação premiada para poder avançar na investigação e isso virou uma possibilidade. Se os efeitos disso fossem reais e trouxessem à baila toda essa rede e fizessem uma atuação em rede a ponto de dar um baque significativo nessa estrutura e restringi-la… mas até agora não vi nada disso acontecer. Pelo contrário, cada baque que essa estrutura sofre é pequeno, o que permite a sua rápida recomposição muito facilmente.

IHU On-Line – Qual é o poder político das milícias que atuam no Rio de Janeiro hoje? Quem faz parte dessa estrutura?

José Cláudio Alves – O braço político tem se ampliado desde as últimas eleições no campo federal, principalmente, e estadual, com a eleição, se não de milicianos diretamente eleitos, de bancadas de partidos de ultradireitapartidos conservadores e partidos vinculados a uma lógica fundamentalista religiosa, permitindo a eleição de uma bancada fundamentalista, conservadora e voltada para a lógica de que “bandido bom é bandido morto”. Nesse sentido, a bancada da bala se ampliou muito no Rio de Janeiro, projetando figuras simplesmente insignificantes, ignoradas pela população daqueles que atuavam politicamente, que vieram numa onda extremamente conservadora projetadas por esse discurso do aumento da violência, aumento da execução sumária, da prática da eliminação do outro, da lógica do desarmamento, e tudo isso tem ampliado o poder político desses grupos.

Isso é visível no Rio de Janeiro, e os reflexos já estão sendo vistos pelo aumento do número de operações policiais com chacina, com mortes de pessoas, o aumento de desaparecidos forçados. E o mais preocupante são as subnotificações: não está ocorrendo registro de homicídios e desaparecidos; eles não estão sendo registrados por conta da lógica do medo associada à lógica da violência crescente da instituição Estado e do aparato policial. Isso tem um efeito de repressão a todo e qualquer registro de atos violentos e perdas de direitos. A tendência é esse cenário piorar e fortalecer ainda mais esses grupos em termos políticos naquela região. Tenho dito que cinco décadas de grupos de extermínio se reverteram em 70 a 75% da votação que Bolsonaro e a extrema direita que se associou a ele obtiveram na última eleição na Baixada. Isso não é uma surpresa; foi algo construído ao longo das últimas cinco décadas, se contarmos tudo que aconteceu desde a ditadura empresarial militar no Brasil. É sob essa égide que vivemos ainda.

Atuação das milícias

estrutura política e econômica das milícias no Rio de Janeiro hoje começa a ganhar vários outros contornos, que não eram perceptíveis e que agora se manifestam. Vou dar alguns exemplos. Um deles é em Itaboraí, uma cidade metropolitana do Rio de Janeiro, onde está sendo construído o Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro – Comperj, cujas obras do governo federal estavam paradas e foram retomadas recentemente. Várias empresas terceirizadas estão atuando na construção da obra e a milícia está controlando quem vai trabalhar nessas empresas. Isso já é um passo à frente em relação à atuação das milícias anteriormente: a milícia detecta onde o capital está se manifestando — nesse caso é um capital público em parceria com empresas privadas — e, ao ficar a par da situação, manipula essa informação e passa a controlar de forma violenta o acesso a esse emprego, cobrando taxas e valores das pessoas que querem trabalhar nessas empresas. Assim esses empregados terão que repassar parte dos seus salários para os milicianos. Essa é uma novidade nesse campo no Rio de Janeiro.

Outra novidade é a milícia marítima, que atua a partir de informações de que o Ministério da Pesca e Aquicultura não está fornecendo licenças para pescadores há três anos ou mais. Essa milícia aborda os pescadores no mar, quando eles estão pescando, exige a licença que o pescador não tem e passa a exigir valores semanais para permitir que o pescador possa continuar pescando. Então, surgiu na costa do Rio de Janeiro essa milícia marítima que passa a controlar os pescadores.

Uma terceira forma de ampliação das milícias é o controle de serviços médicos nos hospitais públicos no Rio de Janeiro. Escutei que no Hospital Geral de Bom Sucesso, um hospital federal, a milícia controla quem acessa e quem tem direito aos serviços do hospital e cobra taxas por isso. Então, isso também é uma inovação. A venda de drogas também passou a ser utilizada pela milícia como uma forma de trabalho e atuação. A milícia não só aluga pontos de drogas para facções do tráfico, mas agora faz a própria venda da droga. Então, o leque de atuação das milícias se amplia e todo esse leque de atuação tem seu braço político.

IHU On-Line – Qual é a relação das milícias com o Estado?

José Cláudio Alves – A relação das milícias com o Estado é determinante para o que ela se transformou nos dias de hoje, uma estrutura de poder absoluta, ampla, autoritária, expressiva e crescente no Rio de Janeiro. Tenho dito que a milícia atua com duas faces que são determinantes: a legal e a ilegal.

face legal da milícia é a condição de ter acesso a informações privilegiadas do Estado a respeito de terras, propriedades, monopólios de comércios, pagamentos de impostos, sobre operações policiais que blindam a milícia de prisões; tudo isso faz parte da dimensão legal. Também faz parte dessa dimensão o fato de a polícia operar o judiciário na sua ponta com investigações, repressões, ou seja, o processo jurídico inicial envolvido na dimensão do judiciário é controlado pela polícia e seus agentes e isso dá mais poder aos milicianos.

face ilegal, que é a face criminosa, assassina, torturadora, totalitária, obstrui qualquer tipo de contestação do seu poder que mata e executa quem se contrapõe a ela. A milícia só tem esse poder todo graças à dimensão legal das informações e dos postos que esses agentes ocupam dentro do Estado.

Assim, a face legal e a ilegal se complementam e se projetam uma na outra, criando uma estrutura totalitária, fechada, blindada, intocável. A prisão desses dois acusados é a exceção de uma regra. A regra é que membros de milícias são intocáveis, seus negócios se ampliam e eles têm dimensões crescentes desse poder e agora expressam isso a partir do assassinato de pessoas que ocupam cargos no âmbito político e que são contrárias aos seus interesses.

A meu ver a milícia tem dimensões mais poderosas e mais amplas do que eu poderia ter imaginado há algum tempo. As milícias crescem velozmente por dentro do Estado e se beneficiam dessa dupla face da mesma moeda, a face legal e a ilegal. O ilegal é o Estado. Por mais que o Estado se reconheça como legal e trabalhe com essa concepção para todos nós, o determinante aqui é a dimensão ilegal, que ultrapassa a dimensão do legal, ampliando os poderes do Estado e dando a ele uma face cada vez mais totalitária, absoluta, irresistível, incontornável e capaz de controlar massas e espaços geográficos ao longo do tempo, de uma forma como nós vivemos hoje. Essa face ilegal amplia o poder do Estado, não restringe o seu poder. Não é o anti-Estado, o poder paralelo, mas sim a presença multidimensional de um Estado autoritáriototalitário e ditatorial. Nós nunca saímos da ditadura; saímos da ditadura oficial para a ditadura dos grupos de extermínio e milícias, que é a forma que opera hoje nessas regiões e no Rio de Janeiro. Essa estrutura submete todos nós a esse controle e poder da tortura e da execução sumária.

IHU On-Line – Como o senhor avalia o pacote anticrime encaminhado à Câmara pelo novo governo, que aposta em três vias: combate a crimes de corrupção, combate ao tráfico de drogas e combate a crimes de violência?

José Cláudio Alves – O pacote de Moro vai na contramão de toda a minha avaliação e de tudo que venho falando ao longo dos anos. O pacote anticrime se insere na lógica totalitária, ditatorial e autoritária da estrutura policial, que é a base de alimentação do crime organizado expresso na milícia. Moro, ao defender os princípios do próprio Bolsonaro, como o excludente de ilicitude, alega que o agente de segurança, numa condição de estresse e sem controle do ambiente e do momento em que está atuando, permite a ele o uso da violência letal, do assassinato e homicídio como forma de solução daquelas questões, eximindo aquele policial de responsabilidade.

Na verdade, isso era tudo que esses grupos apoiadores dessa estrutura política ideológica da extrema direita queriam. Eles não vão mais precisar colocar capuz para matar; vão matar como milicianos. Agora, eles podem matar de cara limpa e vão dizer que estavam no cumprimento do seu dever, sob forte tensão. Trata-se da ampliação e explosão de um processo que já está em crescimento e expansão. É isso que nos assusta, porque irá gerar dimensões mais graves e desrespeitosas dos direitos da população. Esse pacote também aumenta a punitividade, amplia a dimensão de encarceramento, amplia as penas, o que é uma grande ilusão, porque é na dimensão penitenciária que se dá a organização dessas grandes facções.

Encarcerar e prender não vai resolver o problema. Pelo contrário, hoje as facções operam pelo sistema penitenciário. É preciso fazer o contrário: desmontar essas estruturas, esvaziá-las e tratar as drogas não como problema de polícia, mas de saúde e de educação. É preciso desmilitarizar a polícia para que o policial dialogue com a população e construa uma lógica política de proteção, para que o policial não seja o agente que mais mata e que mais morre. Então, é preciso reformular a estrutura e não reforçá-la e ampliá-la. De outro lado, é preciso investir em políticas públicas que possam proteger essa população mais frágil. Não vemos isso. Vemos a perda e a destruição dos direitos dos trabalhadores. Esse pacote do Moro avança no caminho inverso do que deveria ser. Esses grupos vão se fortalecer mais ainda com essas medidas.

IHU On-Line – Como o senhor avalia o fato do caso Marielle ter ocupado outros espaços, chegando até mesmo ao Carnaval?

José Cláudio Alves – O fato de Bolsonaro ter postado imagens quase pornográficas, se referindo ao carnaval nessas dimensões, comprovam o efeito que o carnaval trouxe para o país inteiro em termos da crítica, da afronta, da insubordinação e da resistência a essa dimensão da extrema direita no poder. Bolsonaro expressa isso tentando fazer do carnaval o mesmo discurso de mentira, de dissimulação e destruição que ele fez na época da campanha eleitoral do ano passado, como ele fez com a campanha que as mulheres iniciaram do #Ele Não. Ali foi feita a mesma estratégia: foram montadas fake news com imagens de mulheres nuas e em situações diferenciadas em relação à tradição moral e familiar que esses grupos defendem, para desqualificar as manifestações. Até que ponto ele vai conseguir resultados, mantendo essa estratégia? A impressão que dá é que ele está se lixando para o que a sociedade faz; ele não quer governar. Ele quer dilapidar, quer destruir, assassinar e investir em dimensões conservadoras, em perdas de direitos, em redução do papel da mulher na sociedade, na diminuição de direitos de gays, lésbicas, travestis, quer aprofundar a dimensão do racismo contra as populações negras e indígenas. Ele é uma bomba de hidrogênio de efeito devastador que elimina as divergências e oposições. Ele é a expressão disso.

Enfim, temos a milícia no poder. Ela chegou a se consolidar numa dimensão municipal, estadual e federal, numa dimensão mais crescente. É esse meu diagnóstico. Essa dimensão do que ocorre no carnaval é a expressão da resistência, a expressão aguerrida de luta popular em espaços em que o povo está para expressar a sua inconformidade com tudo que vem acontecendo.

Espero que esses espaços se ampliem na sociedade como um todo, que a verdade vença, supere esse ódio, mentira, covardia e essas execuções sumárias de um Estado totalitário e de uma sociedade que se sujeita a esse totalitarismo. Espero o retorno à consciência, à solidariedade, à lucidez, à compaixão, aos direitos e à proteção dos mais fracos, e não esse Estado dilapidado. Isso não pode ser feito com ilusões: hoje esse Estado é algoz de toda a população brasileira e a milícia é a expressão mais brutal e violenta desse torturador que está na nossa frente. Esse é o dilema que a sociedade terá que enfrentar.

 

A crise da macroeconomia

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Por André Lara Resende | 08 de março de 2019 – Para o Valor Econômico

A crise da macroeconomia

A teoria macroeconômica está em crise. A realidade, sobretudo a partir da crise financeira de 2008 nos países desenvolvidos, mostrou-se flagrantemente incompatível com a teoria convencionalmente aceita. O arcabouço conceitual que sustenta as políticas macroeconômicas está prestes a ruir. O questionamento da ortodoxia começou com alguns focos de inconformismo na academia. Só depois de muita resistência e controvérsia, extravasou os limites das escolas. Embora ainda não tenha chegado ao Brasil, sempre a reboque, nos países desenvolvidos, sobretudo nos Estados Unidos, já está na política e na mídia.

A nova macroeconomia que começa a ser delineada é capaz de explicar fenômenos incompatíveis com o antigo paradigma. É o caso, por exemplo, da renitente inflação abaixo das metas nas economias avançadas, mesmo depois de um inusitado aumento da base monetária. Permite compreender como é possível que a economia japonesa carregue uma dívida pública acima de 200% do PIB, com juros próximos de zero, sem qualquer dificuldade para o seu refinanciamento. Ajuda a explicar o rápido crescimento da economia chinesa, liderado por um extraordinário nível de investimento público e com alto endividamento. Em relação à economia brasileira, dá uma resposta à pergunta que, há mais de duas décadas, causa perplexidade: como explicar que o país seja incapaz de crescer de forma sustentada e continue estagnado, sem ganhos de produtividade, há mais de três décadas?

Em artigo recente, “Consenso e Contrassenso: Dívida, Déficit e Previdência”, que circula como texto para discussão do Iepe/Casa das Garças (http://iepecdg.com.br/wp- content/uploads/2019/02/Consensoecontrasenso.docx…pdf), procuro ligar alguns pontos que podem vir a consolidar um novo paradigma macroeconômico. Como foi escrito com o objetivo de embasar a argumentação na literatura econômica, pode exigir do leitor conhecimentos específicos e ser mais técnico do que seria desejável. Por isso volto ao tema, de forma menos técnica, para dar ideia desse novo arcabouço macroeconômico e de suas implicações para a realidade brasileira. As conclusões são

surpreendentes, muitas vezes contraintuitivas, irão provocar controvérsia e correm risco de ser politicamente mal interpretadas.

Não tenho a intenção, nem seria possível, responder às inúmeras dúvidas e perguntas que irão, inevitavelmente, assolar o leitor. Ao fazer um resumo esquemático das teses que compõem as bases de um novo paradigma macroeconômico, pretendo apenas estimular o leitor a refletir e a procurar se informar sobre a verdadeira revolução que está em curso na macroeconomia. É da mais alta relevância para compreender as razões da estagnação da economia brasileira. Na literatura econômica fala-se numa armadilha da renda média, constituída por forças que impediriam, uma vez superado o subdesenvolvimento, que se chegue finalmente ao Primeiro Mundo. Há razões para crer que não se trata de uma armadilha objetiva, mas sim conceitual.

Pilares de um novo paradigma

O primeiro pilar do novo paradigma macroeconômico, a sua pedra angular, é a compreensão de que moeda fiduciária contemporânea é essencialmente uma unidade de conta. Assim como o litro é uma unidade de volume, a moeda é uma unidade de valor. O valor total da moeda na economia é o placar da riqueza nacional. Como todo placar, a moeda acompanha a evolução da atividade econômica e da riqueza. No jargão da economia, diz-se que a moeda é endógena, criada e destruída à medida que a atividade econômica e a riqueza financeira se expandem ou se contraem. A moeda é essencialmente uma unidade de referência para a contabilização de ativos e passivos. Sua expansão ou contração é consequência, e não causa, do nível da atividade econômica. Esta é a tese que defendo no meu livro “Juros, Moeda e Ortodoxia”, de 2017.

Moeda e impostos são indissociáveis. A moeda é um título de dívida do Estado que serve para cancelar dívidas tributárias. Como todos os agentes na economia têm ativos e passivos com o Estado, a moeda se transforma na unidade de contabilização de todos os demais ativos e passivos na economia. A aceitação da moeda decorre do fato de que ela pode ser usada para quitar impostos.

O segundo pilar é um corolário do primeiro: dado que a moeda é uma unidade de conta, um índice oficial de ativos e passivos, o governo que a emite não tem restrição financeira. O Estado nacional que controla a sua moeda não tem necessidade de levantar fundos para se financiar, pois ao efetuar pagamentos, automática e obrigatoriamente, cria moeda, assim como ao receber pagamentos, também de maneira automática e obrigatória, destrói moeda. Como não precisa respeitar uma restrição financeira, a única razão macroeconômica para o governo cobrar impostos é reduzir a despesa do setor privado e abrir espaço para os seus gastos, sem pressionar a capacidade de oferta da economia. O governo não tem restrição financeira, mas é obrigado a respeitar a restrição da realidade, sob pena de pressionar a capacidade instalada, provocar desequilíbrios internos e externos e criar pressões inflacionárias.

O terceiro pilar é a constatação de que o Banco Central fixa a taxa de juros básica da economia, que determina o custo da dívida pública. Desde os anos 1990, sabe-se que os bancos centrais não controlam a quantidade de moeda, nenhum dos chamados “agregados monetários”, mas sim a taxa de juros. O principal instrumento de que dispõe o Banco Central para o controle da demanda agregada é a taxa básica de juros.

O quarto pilar é a constatação de que uma taxa de juros da dívida inferior à taxa de crescimento da economia tem duas implicações importantes. A primeira é que a relação dívida/PIB irá decrescer a partir do momento em que o déficit primário – aquele que exclui os juros da dívida – for eliminado, sem necessidade de qualquer aumento da carga tributária. Portanto, se a taxa de juros, controlada pelo Banco Central, for fixada sempre abaixo da taxa de crescimento, a dívida pública irá decrescer, sem custo fiscal, a partir do momento em que o déficit primário for eliminado. Este é um resultado trivial e mais robusto do que parece, pois independe do nível atingido pela relação dívida/PIB, da magnitude dos déficits e da extensão do período em que há déficits. A segunda implicação, tecnicamente mais sofisticada, é que será possível aumentar o bem-estar de todos em relação ao equilíbrio competitivo através do endividamento público. Em termos técnicos, diz-se que o equilíbrio competitivo não é eficiente no sentido de Pareto.

Sobre esses quatro pilares, acrescenta-se o que foi aprendido sobre a inflação nas últimas três décadas. Ao contrário do que se acreditou por muito tempo, a moeda não provoca inflação. Inflação é essencialmente questão de expectativas, porque expectativas de inflação provocam inflação. As expectativas se formam das maneiras mais diversas, dependem das circunstâncias, e os economistas não têm ideias precisas sobre como são formadas. A pressão excessiva da demanda agregada sobre a capacidade instalada cria expectativas de inflação, mas não é condição necessária para a existência de expectativas inflacionárias. Alguns preços, como salários, câmbio e taxas de juros, funcionam como sinalizadores para a formação das expectativas. Se o banco central tiver credibilidade, as metas anunciadas para a inflação também serão um sinalizador importante. Uma vez ancoradas, as expectativas são muito estáveis. A inflação tende a ficar onde sempre esteve. Por isso é tão difícil, como sempre se soube, reduzir uma inflação que está acima da desejada. Depois da grande crise financeira de 2008, ficou claro que é igualmente difícil elevar uma inflação abaixo da desejada.

Novas ideias, antigas raízes

Embora grande parte das teses do novo paradigma contradigam o consenso econômico- financeiro, elas não são novas. Têm raízes em ideias esquecidas, submersas pela força das ideias estabelecidas e insistentemente repetidas. A tese de que a moeda é essencialmente uma unidade de conta, cuja aceitação deriva da possibilidade de usá-la para pagar impostos, é de 1905. Foi originalmente formulada pelo economista alemão Georg F. Knapp, no livro “The State Theory of Money”. Ficou conhecida como “cartalismo” e foi retomada recentemente pelos proponentes da chamada moderna teoria monetária, MMT em inglês.

Já a tese de que o governo que emite a sua própria moeda não tem restrição financeira, portanto não precisa equilibrar receitas e despesas, é de 1943. Seu autor, Abba Lerner, foi um economista que, como Clarice Lispector, nasceu na Bessarábia, estudou na Inglaterra e deu contribuições de grande relevância para os mais diversos campos da teoria econômica. No ensaio “Functional Finance and the Federal Debt”, Lerner enuncia os princípios que devem guiar o governo no desenho da política fiscal. Segundo ele, os déficits fiscais podem e devem sempre ser usados para garantir o pleno emprego e estimular o crescimento.

A primeira prescrição de Lerner, a sua “primeira lei das finanças funcionais”, é macroeconômica: o governo deve sempre usar a política fiscal para manter a economia no pleno emprego e estimular o crescimento. A única preocupação em relação à aplicação dessa prescrição deve ser com os limites da capacidade de oferta da economia, que não podem ser ultrapassados, sob pena de provocar desequilíbrios internos e externos e criar pressões inflacionárias. A segunda prescrição, ou a segunda “lei das finanças funcionais”, é microeconômica: os impostos e os gastos do governo devem ser avaliados segundo uma análise objetiva de custos e benefícios, nunca sob o prisma financeiro.

Todo banqueiro central com alguma experiência prática na condução da política monetária sabe que o banco central controla efetivamente a taxa de juros básica da economia. Os mais atualizados sabem ainda que, desde que não haja pressão sobre a capacidade de oferta, é possível criar qualquer quantidade de moeda remunerada sem provocar inflação. Trata-se de um poder tão extraordinário, que convém a todos, para evitar pressões políticas espúrias, continuar a sustentar a ficção de que o banco central deve controlar, e que efetivamente controla, a quantidade de moeda.

Já o fato de que o governo – que emite a sua própria moeda – não está submetido a qualquer restrição financeira, é bem menos compreendido. Talvez porque seja profundamente contraintuitivo, dado que todo e qualquer outro agente, as empresas, as famílias, os governos estaduais e municipais, estão obrigados a respeitar o equilíbrio entre receitas e despesas, sob pena de se tornar inadimplentes.

Quando se compreende a proposição que a moeda é um índice da riqueza na economia, que sua expansão não provoca inflação e o seu corolário, que governo que a emite não tem restrição financeira, há uma mudança de Gestalt.

A compreensão da lógica da especificidade dos governos que emitem sua moeda provoca uma sensação de epifania, que subverte todo o raciocínio macroeconômico convencional. Toda mudança de percepção que desconstrói princípios estabelecidos é inicialmente perturbadora, mas uma vez incorporada, abre as portas para o avanço do conhecimento. Como observou o Prêmio Nobel de Física, gênio inconteste, Richard Feynman, num artigo de 1955, “O Valor da Ciência”, o conhecimento pode tanto ser a chave do paraíso, como a dos portões do inferno. É fundamental que essa mudança de percepção seja corretamente interpretada para a formulação de políticas. Assim como Ivan Karamazov concluiu que se Deus não existe, tudo é permitido, de forma menos angustiada e mais afoita, não faltarão políticos para concluir que se o governo não tem restrição financeira, tudo é permitido.

Do ponto de vista macroeconômico, se o governo gastar mais do que retira da economia via impostos, estará aumentando a demanda agregada. Quando a economia estiver perto do pleno emprego, corre o risco de causar desequilíbrios e provocar pressões inflacionárias. Do ponto de vista microeconômico, a política fiscal tem impactos alocativos e redistributivos importantes. Embora o governo não esteja sempre obrigado a equilibrar receitas e despesas, a composição de suas despesas e de suas receitas, a forma como o governo conduz a política fiscal, é da mais alta importância para o bom funcionamento da economia e o bem-estar da sociedade. A preocupação dos formuladores de políticas públicas não deve ser o de viabilizar o financiamento dos gastos, mas sim a qualidade, tanto das despesas como das receitas do governo. A

decisão de como tributar e gastar não deve levar em consideração o equilíbrio entre receitas e despesas, mas sim o objetivo de aumentar a produtividade e equidade. Por isso, é fundamental não confundir a inexistência de restrição financeira com a supressão da noção de custo de oportunidade. O governo continua obrigado a avaliar custos e benefícios microeconômicos de seus gastos. Um governo que equilibra o seu orçamento, mas gasta mal e tributa muito, é incomparavelmente mais prejudicial do que um governo deficitário, mas que gasta bem e tributa de forma eficiente e equânime, sobretudo quando a economia está aquém do pleno emprego.

É possível argumentar que seria melhor não desmontar a ficção de que os gastos públicos são financiados pelos impostos, pelo “o seu, o meu, o nosso dinheiro”, para criar uma resistência da sociedade às pressões espúrias por gastos públicos. Afinal, pressões políticas, populistas e demagógicas, por mais gastos nunca hão de faltar. O problema é que quando se adota um raciocínio torto, ainda que com a melhor das intenções, chega-se a conclusões necessariamente equivocadas.

Uma armadilha brasileira

Desde o início dos anos 1990, a taxa real de juros foi sempre muito superior à taxa de crescimento da economia. Só entre 2007 e 2014 a taxa real de juros ficou apenas ligeiramente acima da taxa de crescimento. A partir de 2015, quando a economia entrou na mais grave recessão de sua história, com queda acumulada em três anos de quase 10% da renda per capita, a taxa real de juros voltou a ser muito mais alta do que a taxa de crescimento. A economia cresceu apenas 1,1% ao ano em 2017 e 2018. Hoje, com a renda per capita ainda 5% abaixo do nível de 2014, com o desemprego acima de 12% e grande capacidade ociosa, a taxa real de juros ainda é mais do dobro da taxa de crescimento. Como não poderia deixar de ser, a relação dívida/PIB tem crescido e se aproxima de níveis considerados insustentáveis pelo consenso macro-financeiro.

O diagnóstico não depende do arcabouço macroeconômico adotado, é claro e irrefutável: as contas públicas estão em desequilíbrio crescente e a relação dívida/PIB vai continuar a crescer e superar os 100% em poucos anos. Já o desenho das políticas a serem adotadas para sair da situação em que nos encontramos é completamente diferente caso se adote a visão macroeconômica convencional ou um novo paradigma. O velho consenso exige o corte a despesas, a venda de ativos estatais, a reforma da Previdência e o aumento dos impostos, para reverter o déficit público e estabilizar a relação dívida/PIB. É o roteiro do governo Bolsonaro sob a liderança do ministro Paulo Guedes. A partir de um novo paradigma, compreende-se que o equívoco vem de longe.

A inflação brasileira tem origem na pressão excessiva sobre a capacidade instalada, durante as três décadas de 1950 a 1980 de esforço desenvolvimentista. Foi agravada pelo choque do petróleo na primeira metade da década de 1970, quando adquiriu uma dinâmica própria, alimentada pela indexação e pelas expectativas desancoradas. Altas taxas de inflação crônica têm uma forte inércia, não podem ser revertidas apenas através do controle da demanda agregada, com objetivo de provocar desemprego e capacidade ociosa. Para quebrar a inércia é preciso um mecanismo de coordenação das expectativas. No Plano Real, esse mecanismo foi a URV, uma unidade de conta sem existência física, corrigida diariamente pela inflação corrente. A URV foi uma unidade de conta oficial virtual, com poder aquisitivo estável, uma moeda plena na acepção Cartalista, que viabilizou estabilização da inflação brasileira. Quando a URV foi

introduzida, a economia não crescia, havia desemprego e capacidade ociosa. A causa da inflação não era mais o gasto público nem o excesso de demanda. Quando se compreende que o governo emissor não tem restrição financeira, fica claro que não havia necessidade de equilibrar as contas públicas para garantir a estabilidade da moeda. A criação do Fundo de Estabilização Social e posteriormente a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal, apenas satisfizeram as exigências do consenso macroeconômico e financeiro da época.

Como se acreditava na necessidade de equilíbrio financeiro do governo, para garantir a consolidação da estabilização, a carga tributária foi sistematicamente elevada. Chegou a 36% da renda, comparável às das mais altas entre as economias desenvolvidas. Durante os governos do PT, opção demagógica pelo aumento dos gastos com pessoal e por grandes obras, turbinadas pela corrupção e sem qualquer avaliação de custo e benefícios, combinada com a ortodoxia do Banco Central, aprofundou o desequilíbrio das contas públicas. O quadro foi agravado pela rápida queda do crescimento demográfico e do aumento da expectativa de vida, que tornou a Previdência crescentemente deficitária.

Uma vez feita a transição da URV para o Real, teria sido necessário manter uma âncora coordenadora das expectativas. Retrospectivamente, o correto teria sido adotar um regime de metas inflacionárias, para balizar as expectativas, que só veio a ser adotado no segundo governo FHC. A opção à época foi por dispensar um mecanismo coordenador das expectativas e confiar nas políticas monetária e fiscal contracionistas. Optou-se por combinar uma política de altíssimas taxas de juros com a austeridade fiscal. O resultado foram mais de duas décadas de crescimento desprezível, colapso dos investimentos públicos, uma infraestrutura subdimensionada e anacrônica, Estados e municípios estrangulados, incapazes de prover os serviços básicos de segurança, saneamento, saúde e educação. Mas como não vale a pena chorar sobre o leite derramado, passemos a políticas a serem adotadas para sair da armadilha em que nos encontramos, com base no novo arcabouço conceitual macroeconômico.

Reformas voltadas para o futuro

Comecemos pela questão que ocupa as manchetes, a reforma da Previdência. Sim, é preciso uma reforma da Previdência, não porque ela seja deficitária, mas porque ela é corporativista e injusta e porque o aumento da expectativa de vida exige a revisão da idade mínima. O déficit do sistema previdenciário, como todo déficit público, não precisa ser eliminado se a taxa de juros for inferior à taxa de crescimento. Como estamos com alto desemprego, significativamente abaixo da plena utilização da capacidade instalada e com expectativas de inflação ancoradas, o objetivo primordial das “reformas” deve ser estimular o investimento e a produtividade.

Em paralelo à reforma da Previdência, deve-se fazer uma profunda reforma fiscal segundo os preceitos das finanças funcionais de Abba Lerner. O objetivo da reforma tributária não deve ser maximizar a arrecadação, mas sim o de simplificar, desburocratizar, reduzir o custo de cumprir as obrigações tributárias, para estimular os investimentos e facilitar a inciativa privada. Enquanto não houver pressão excessiva sobre a oferta e sinais de desequilíbrio externo, a carga tributária deve ser significativamente menor.

A taxa básica de juros deveria ser reduzida, acompanhada do anúncio de que, a partir de agora, seria sempre fixada abaixo da taxa nominal de crescimento da renda. Simultaneamente, deveria-se promover a modernização do sistema monetário, substituindo as LFTs e as chamadas Operações Compromissadas, que hoje representam metade da dívida pública, por depósitos remunerados no Banco Central. Adicionalmente, seria dado acesso direto ao público, não apenas aos bancos comerciais, às reservas remuneradas no Banco Central. A modernização do sistema, com redução de custos e grandes ganhos de eficiência no sistema de pagamentos, passaria ainda pela criação de uma moeda digital do Banco Central, que abriria o caminho para um governo digital e desburocratizado.

Para garantir a eficiência dos investimentos e o ganho de produtividade, deveria-se promover uma abertura comercial programada para integrar definitivamente a economia brasileira na economia mundial. O prazo de transição para a completa abertura comercial deveria ser pré-anunciado e de no máximo cinco anos.

Por fim, mas não menos importante, seria fundamental criar mecanismos eficientes, idealmente através da contratação de agências privadas independentes, para avaliação de custos e benefícios dos gastos públicos em todas as esferas do setor público. A política fiscal é da mais alta relevância para o bom funcionamento da economia e para o bem-estar da sociedade. Compreender que o governo não tem restrição financeira não implica compactuar com um Estado inchado, ineficiente e patrimonialista, que perde de vista os interesses do país. Ao contrário, redobra a responsabilidade e a exigência de mecanismos de controle e avaliação sobre a qualidade, os custos e os benefícios, dos serviços e dos investimentos públicos.

Estas linhas gerais de políticas, sugeridas pelo novo paradigma macroeconômico, correm o risco de desagradar a gregos e troianos. Não se encaixam, nem no populismo estatista da esquerda, nem no dogmatismo fiscalista da direita. Como observou, de maneira premonitória, Abba Lerner, em seu ensaio de 1943, os princípios das Finanças Funcionais são igualmente aplicáveis numa sociedade comunista, como numa sociedade fascista, como numa sociedade capitalista democrática. A diferença é que se os defensores do capitalismo democrático não os compreenderem e adotarem, não terão chance contra aqueles que vieram a adotá-los. No primeiro ensaio de “Juros, Moeda e Ortodoxia”, sustento que, durante o século XX, o liberalismo econômico perdeu a batalha pelos corações e pelas mentes dos brasileiros. Embora a história tenha mostrado que seus defensores, desde Eugênio Gudin, estavam certos sobre os riscos do capitalismo de Estado, do corporativismo, do patrimonialismo e do fechamento da economia à competição, foram derrotados porque adotaram um dogmatismo monetário quantitativista equivocado. Tentaram combater a inflação promovendo um aperto da liquidez. O resultado foi sempre o mesmo: recessão, desemprego e crise bancária. Expulsos do comando da economia pela reação da sociedade, seus defensores recolhiam-se para lamentar a demagogia dos políticos e a irracionalidade da população. Quase sete décadas depois de Gudin, os liberais voltam a comandar a economia. O apego a um fiscalismo dogmático e a um quantitativismo anacrônico pode levá-los, mais uma vez, a voltar para casa mais cedo do que se imagina.

André Lara Resende é economista

 

Acordo EUA-China e o agro brasileiro – Marcos Jank

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 Brasil pode ser atingido em soja, milho, algodão, etanol e todas as carnes

O encontro entre Jair Bolsonaro e Donald Trump no dia 19 se dará às vésperas da conclusão de um acordo histórico entre os EUA e a China que pode ser altamente disruptivo para o agronegócio mundial, afetando principalmente o Brasil.

O acordo pode representar o fim de uma era em que o comércio se expandia baseado essencialmente na competitividade dos países, sem grande esforço.

Ele traz novos elementos para a equação: pressionados por imenso déficit comercial de US$ 420 bilhões, os EUA deram início a uma guerra mercantilista com a China impondo elevadas tarifas sobre US$ 250 bilhões em importações.

O gigante asiático retrucou impondo tarifas sobre US$ 110 bilhões dos EUA, o que atingiu em cheio a soja americana. A disputa trouxe US$ 8 bilhões adicionais às nossas exportações de soja para a China, levando os incautos a inclusive “comemorar” a guerra comercial.

Tudo indica que os EUA vão forçar a China a ampliar as suas compras de produtos agropecuários americanos em absurdos US$ 30 bilhões anuais, que, na melhor das hipóteses, se somariam aos US$ 14 bilhões que foram adquiridos em 2018.

Previsões mais sombrias dizem que as importações chinesas vindas dos EUA poderiam ultrapassar US$ 50 bilhões anuais, se somadas ao valor de 2017, que foi de US$ 22 bilhões.

Acreditamos que as exportações mundiais de soja voltarão ao seu curso normal pré-2017, com os chineses se beneficiando plenamente da alternância das safras americana (EUA) e sul-americana (Brasil e Argentina), que ocorrem em diferentes momentos do ano. Essa complementariedade garante estabilidade de oferta e menor risco para a China.

Ocorre, porém, que, para chegar aos US$ 30 bilhões adicionais, a China teria de oferecer acesso privilegiado aos EUA em outros produtos.

Dois casos com forte impacto sobre o Brasil são o milho e o algodão. O consumo de milho da China é gigante (280 milhões de toneladas), porém as suas importações têm sido muito reduzidas —apenas 3,5 milhões de toneladas em 2018.

Os EUA pressionarão a China a importar muito mais milho, flexibilizando o seu regime restritivo de cotas de importação e facilitando o ingresso de milho transgênico.

Outros produtos americanos que seriam beneficiados pelo acordo são o etanol de milho, o DDG (subproduto da produção de etanol usado em alimentação animal) e as carnes.

No caso do etanol, a importação viria da obrigatoriedade de mistura de 10% de etanol na gasolina da China (E10), que foi mandatada no passado, mas jamais cumprida.

Estimamos que, entre produtos e subprodutos de milho, etanol e algodão, a China poderia ampliar suas importações dos EUA em mais de US$ 10 bilhões adicionais por ano.

Nas carnes, se a China retirar as restrições técnicas e sanitárias que foram impostas aos americanos nos últimos anos, certamente seremos prejudicados em todas as proteínas animais —aves, suínos e bovinos—, com destaque para as perdas de mercado em pés e coxas de frango.

A China certamente tem meios para atender à forte pressão dos EUA, ampliando o acesso de soja e de outros produtos agropecuários.

Resta saber se isso será feito à luz das regras da OMC, se ela vai “forçar a barra” na flexibilização das barreiras técnicas e sanitárias e se usará a sua estrutura estatal (estoques estratégicos e empresas públicas) para operacionalizar o acordo.

Enfim, se esse acordo se concretizar, poderemos estar entrando numa era de “comércio administrado” caso a caso, sob a égide de interesses geopolíticos, que pode reduzir o nosso acesso à China, ao Brics e a outros mercados emergentes. Aí sim estaríamos entregando a nossa alma.

Esta coluna foi escrita em parceria com André Soares, senior fellow do Cebri (Centro Brasileiro de Relações Internacionais)

Marcos Sawaya Jank

Especialista em questões globais do agronegócio, trabalha em Singapura. É livre-docente em engenharia agronômica pela USP.

 

 

A banalização do mal e a desumanização do indivíduo

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Escrevo num momento de reflexão sobre os rumos da sociedade mundial, somente nesta semana a sociedade internacional se assustou com dois eventos que trouxeram perplexidade, medos e desesperanças, os eventos inexplicáveis protagonizados por dois adolescentes que invadiram uma escola estadual e mataram oito pessoas e as atrocidades cometidas na Nova Zelândia, onde um atirador matou mais de quarenta pessoas com requintes de violência e traços acelerados de insanidade, diante disso, todos estão se perguntando para onde a sociedade internacional está caminhando e quais os motivos que levam cidadãos considerados normais a cometeram uma crueldade como esta?

Nos momentos iniciais destas atrocidades, os indivíduos buscam explicações, teorias e respostas variadas dos motivos que levaram os indivíduos a cometerem crimes tão violentos, destruindo sonhos, degradando famílias e destilando ódio, rancor e ressentimentos por todos os poros da sociedade, gerando nuvens de medo, desesperança e instabilidades.

Muitas questões são aventadas por especialistas, todos dotados de teorias e grandes instrumentos científicos para opinar e dar suas opiniões, cercados por uma mídia sedenta por respostas e por uma sociedade atônita por explicações mais bem estruturadas e convincentes, que possam trazer um pouquinho mais de esperança e confiança para a coletividade.

Estamos inseridos em uma sociedade que se transforma com grande rapidez, as mudanças tecnológicas deixaram as fábricas e as organizações empresariais e estão, cada dia de forma mais intensa, adentrando nossas casas e residências, exigindo dos trabalhadores uma ampla capacidade de adaptação, capacitação e qualificação constantes, tudo isto exige dos indivíduos uma centralidade maior do mundo do trabalho em nossas vidas contemporâneas, diminuindo o tempo que passamos com nossas famílias, nossos filhos, amantes e conosco mesmo, o trabalho nos consome mais do que queremos e mais, ao nos consumir diuturnamente, passa a nos transformar intimamente.

Anteriormente, as famílias se subdividiam, os homens saíam de casa para o trabalho cotidiano e as mulheres eram responsáveis pelas atividades do lar e pela educação dos filhos, desta forma a figura da família estava sempre presente na vida dos filhos, gerando proximidade, intimidade, responsabilidade e segurança, estas características estão ausentes na família contemporânea, gerando desequilíbrios e desestruturas.

O mundo do trabalho exige dos indivíduos uma constante transformação, sob pena de exclusão e dificuldades de inserção neste mercado que, cotidianamente, se transforma, gerando desafios que os indivíduos não estão mais em condição de suportar, tudo isso leva o cidadão a desequilíbrios generalizados, medos incessantes e transtornos psicológicos, emocionais e espirituais em escalas até então jamais vistas e imaginadas.

Além das mudanças constantes na sociedade contemporânea, este mundo do trabalho exige dos trabalhadores uma guerra constante, palavras como metas, produtividade, empreendedorismo, bônus, competição, lucro e competitividade, são constantes no vocabulário do mundo da gestão, levando os indivíduos a uma interiorização destes conceitos no ideário de cada trabalhador, busca-se uma racionalidade, uma maximização de lucros e uma minimização de custos que coloca o trabalhador na berlinda, dando-lhe uma centralidade na produção e na prestação de serviços e, ao mesmo tempo, retirando-lhe uma forte capacidade de participação mais intensa nas decisões.

Nesta sociedade, percebemos uma crise do indivíduo, os relacionamentos não mais se sustentam, os enamorados se afastam uns dos outros, o medo do fracasso e da frustração leva o indivíduo a se distanciar da realidade e, muitas vezes, levando-o a construir mundos paralelos para dar vazão a insegurança, criando perfis falsos e acessando mercados obscuros nas redes sociais para dar vazão a uma intolerância crescente.

Nesta sociedade encontramos uma grande competição entre todos, Estados competem uns com os outros, empresas se digladiam por mais mercados, lucros e rentabilidade, trabalhadores se encontram perdidos e perplexos com as cobranças que se avolumem cotidianamente, obrigando-os a se adaptarem a estas transformações frenéticas e alucinantes, neste clima de constante competição estamos cada vez mais estressados, cansados e desesperançados, muitos se rendem a depressão que aflige mais de 300 milhões de pessoas no mundo, enquanto outros optam pelo suicídio, acreditando com isto, que estão se escondendo dos duros embates da vida contemporânea.

A desagregação das famílias está associada ao excesso de cobranças na sociedade, às transformações do mercado de trabalho, que obrigam os pais a se ausentarem de suas casas para buscar o alimento necessário para a reprodução dos seus entes queridos, nesta nova sociedade marcada pela crescente introdução de máquinas e tecnologias, além de sua formação inicial, faz-se fundamental uma atualização constante, obrigando os trabalhadores a se ausentarem de suas casas ou a se fechar em seus escritórios, deixando filhos e familiares sem os contatos essenciais para a construção contínua da personalidade e da segurança de seus filhos, amados e dependentes.

Com a ausência dos genitores, os filhos passam a ser educados pela escola e pela televisão, que tem importância central na sociedade, mas não dispõem dos aparatos necessários para auxiliar na construção da personalidade de crianças e adolescentes, com isso, estes últimos passam a atrair pessoas com interesses negativos diversos, desde drogas, álcool e prostituição, dificultando uma possível melhoria num futuro imediato.

As causas destas dificuldades estão na busca constante pelo prazer, pelo gozo farto e pelas responsabilidades mínimas, sexo, drogas, álcool e dinheiro nos trazem um prazer imediato e nos leva a um precipício, o hedonismo nos seduz e esconde as nossas responsabilidades enquanto pais, cônjuges e profissionais, quando acordamos deste pesadelo nos assustamos com nossas escolhas individuais e nos amedrontamos diante da vida.

O mundo do trabalho exige cada vez mais dos trabalhadores, nos lares mais abastados os problemas estão na complexidade das atividades imateriais, enquanto nos lares mais desprovidos de recursos financeiros, os trabalhadores passam grande parte seu tempo em condução, com isso, estar próximo de filhos e familiares é um luxo incomensurável, gerando sempre insatisfação e consciência intranquila, medos e preocupações.

Nestas mudanças do mundo da gestão, as empresas trocam mão de obra por tecnologia, levando os trabalhadores a uma situação de constante instabilidades e medos de serem substituídos por máquinas, na atualidade o medo aumenta porque esta troca está atingindo trabalhadores mais qualificados e em cargos de diretoria e supervisão, que sofrem a concorrência com a inteligência artificial, obrigando-os a novas capacitações e constantes atualizações, tudo isso leva as famílias a um distanciamento crescente, uma desumanização ascensional e uma perda das funções sociais dos pais, gerando um caos generalizados na sociedade e uma perda de referências positivas no cotidiano das crianças e adolescentes.

Somos vítimas de uma sociedade centrada no lucro e na acumulação financeira, enterramos nossas vidas na loucura da competição desenfreada do mundo moderno e nos esquecemos dos compromissos familiares anteriores, neste ambiente, algumas famílias desistem de ter filhos e buscam uma vida que lhes garanta uma maior acumulação financeira e orçamentária, garantindo-lhes, nos momentos de senilidade, bolsos cheios de recursos, propriedades e tesouros monetários e corações marcados por parcos sentimentos de solidariedade e uma grande porção de solidão e desesperança.

A legitimação desta sociedade está nas vitrines das lojas e nas televisões de alta resolução, nos prazeres dos desfiles nos shoppings, no espetáculo da tecnologia, nos avanços das comunicações e nas facilidades dos smartphones que nos conectam com um mundo de sonho e fantasia, onde não existe espaço para tristezas, onde as postagens são sempre de pessoas alegres e bem sucedidas e as homenagens são feitas, na grande maioria, aqueles que menos fizeram para a coletividade, mas que mais apareceram para a mídia e para a coletividade.

A busca constante por lucros está matando o ser humano, enterrando os sentimentos mais nobres, isolando os indivíduos, degradando a natureza e condenando as pessoas a uma perda constante de sua sensibilidade social, os dramas no mundo não mais nos assustam, os medos das pessoas não mais nos levam a empatia e a perspectivas de uma melhora, esta está diretamente ligada as mudanças que devem ser conduzidas e empreendidas por cada indivíduo em sua intimidade, o mundo só muda quando o ser humano se transforma, esta transformação é urgente e necessária, se não a fizermos, em pouco tempo, estaremos novamente discutindo questões importantes, mas interpretando os fatos de forma equivocada e fugindo de discussões mais relevantes e fundamentais.

Os massacres assistidos quase ao vivo nesta semana mexeram com todos os indivíduos, uns se sensibilizam mais enquanto outros pouco se sintonizaram com a dor alheia, nesta busca por explicações das razões e dos motivos que levaram pessoas descritas como normais a adotarem atitudes irracionais, tentemos encontrar explicações nas escolhas que estamos fazendo nos últimos anos, deixemos de lado este excesso de tecnologias e as substituamos por mais diálogo, conversas e proximidade, substituamos presentes e mercadorias caras por mais limites, direitos e deveres,  assumamos a responsabilidade que cabe a cada um de nós e voltemos a mostrar a importância das crenças e dos valores morais, se não aprendermos com mais uma destas monstruosidades, muito brevemente estaremos conversando sobre os mesmos crimes e as mesmas violências, sempre buscando responsáveis e nos eximindo de nossas culpas.

Todos os seres humanos devem ser vistos como um misto de bem e de mal, nenhum indivíduo é dotado apenas de coisas boas e edificantes, aumentar nossas virtudes e reduzir nossas indigências nos levam a sinais claros de progressos visível e fundamental, este crescimento está centrado em valores e sentimentos melhores que demandam um incremento da educação, não uma educação que se concentre apenas em instrumentos cognitivos de compreensão do mundo, mas em uma educação que além destes instrumentos cognitivos nos auxilia na construção de valores maiores e mais sólidos, somente esta educação capacita o ser humano para a compreensão da vida e da sociedade e o aproxima dos valores que sustentam uma obra maior e mais consistente.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Os impactos da financeirização sobre o sujeito

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IHU – Junho 2010.

A financeirização é uma forma de biopoder, teoriza o economista Andrea Fumagalli. A autonomia pessoal é hoje muito mais limitada do que há três décadas, e a individualidade foi suplantada pelo individualismo: a alienação física tende a converter-se em cerebral

“No paradigma atual do capitalismo cognitivo, os mercados financeiros, longe de serem o local de rendimento parasitário improdutivo, são o motor da economia”, reflete o economista italiano Andrea Fumagalli, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Para ele, a crise financeira é, também, uma crise de desenvolvimento capitalista, e a crise da governança não é apenas técnica, mas também política. Outro nexo entre a financeirização como forma de biopoder é a crescente privatização dos serviços de saúde, que “aumentou a governança biopolítica das instituições econômicas sobre o corpo humano, tanto do ponto de vista físico quanto do mental”. Segundo Fumagalli, em nossos dias a “alienação do corpo tende a tornar-se cerebral”. O impacto da financeirização sobre o sujeito é, ao mesmo tempo, um impacto de chantagem e medo, mas também de um consenso: chantagem de uma necessidade em um contexto de trabalho cada vez mais individualizado e precário. Paradoxalmente, continua, a autonomia pessoal é muito mais limitada hoje do que há 30 anos: “A divisão entre o tempo de trabalho e o tempo de não trabalho poderia ser traduzida também na separação entre coerção e liberdade potencial. Uma vez terminado o horário de trabalho, a disciplina do trabalho acabava em favor de outras estruturas disciplinares”. Resulta que atualmente a autonomia individual é limitada e reprimida, em plena “era da ideologia do indivíduo livre”. Em lugar da individualidade, reifica-se o individualismo.

Doutor em Economia Política, Andrea Fumagalli é professor no Departamento de Economia Política e Método Quantitativo da Faculdade de Economia e Comércio da Università di Pavia, Itália. Dentre seus vários livros publicados, citamos: Il lavoro. Nuovo e vecchio sfruttamento (Milão: Punto Rosso, 2006) e Crisi dell’economia globale. Mercati finanziari, lotte sociali e nuovi scenari politici (Verona: Ombre corte, 2009).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Por que considera a financeirização como uma forma de biopoder?

Andrea Fumagalli – No paradigma atual do capitalismo cognitivo, os mercados financeiros, longe de serem o local de rendimento parasitário improdutivo, são o motor da economia. Eles representam o lugar onde valoriza-se, ao mesmo tempo, a produtividade intangível e cognitiva e executa-se a privatização dos serviços sociais. Canalizando de modo forçado parte crescente da renda do trabalho (pensões e indenizações, além de renda que, por intermédio do estado social, traduzem-se nas instituições de proteção da saúde e da educação pública), substituíram o Estado como segurador social. Desse ponto de vista, representam a privatização da esfera reprodutiva da vida. Exercitam, portanto, o biopoder. Os mercados financeiros, assim, assumem o lugar do antigo estado de bem-estar keynesiano e levam a cabo as formas indiretas de redistribuição do capital para o trabalho, gerenciando de modo direto e distorcido as quotas crescentes de rendimento do trabalho que ali são canalizadas de forma mais ou menos forçada. Enquanto isso, as grandes instituições financeiras multinacionais são hoje organizações que valorizam “indiretamente” a acumulação da produção mundial, assim como no paradigma fordista os lucros das grandes multinacionais manufatureiras foram o espelho das relações de força entre o capital industrial e o trabalho assalariado.

Os mercados financeiros — por meio dos índices de mercado — representam, em resumo, um tipo de multiplicador real da economia, e neles condensam-se todas as expectativas dos grandes operadores econômicos. Não é por acaso que, na década passada, os bancos centrais fizeram depender as escolhas de política monetária (taxas de juro e a oferta de moeda corrente), em função do objetivo de estabilizar a dinâmica dos mercados financeiros, com a esperança — totalmente ilusória — de limitar as oscilações e a volatilidade. Além disso, com o advento do capitalismo cognitivo, o processo de exploração perde a unidade de medida quantitativa ligada à produção industrial. Tal medida foi, de alguma forma, definida pelo conteúdo do trabalho necessário para a produção de mercadorias, medida pela tangibilidade da produção própria e pelo tempo necessário para a produção.

Com o advento do capitalismo cognitivo, a valorização tende a engajar-se nas várias formas de trabalho, que tragam as horas de trabalho efetivamente autorizadas para coincidir sempre mais com o tempo de vida. Hoje, o valor do trabalho na base da acumulação capitalista é também o valor do conhecimento, dos afetos e dos relacionamentos, do imaginário e do simbólico. O êxito dessas transformações biopolíticas é a crise da medida tradicional do valor-trabalho e, com ela, a crise da forma-lucro. Uma possível solução “capitalista” era medir a exploração da cooperação social e do intelecto geral por intermédio da dinâmica dos valores de mercado. O lucro transforma-se assim em renda, e os mercados financeiros tornam-se o lugar da determinação do valor-trabalho, o que se transforma em valor-finança que não é outro senão a expressão subjetiva da expectativa dos lucros futuros realizados pelos mercados financeiros que acumulam, desse modo, um rendimento. É esse o biopoder das finanças contemporâneas.

IHU On-Line – Em que sentido a crise das finanças é crise de governança financeira do biopoder atual?

Andrea Fumagalli – A crise de governança socioeconômica com base no papel dos mercados financeiros tem duas origens. A primeira diz respeito ao fato de que a atual crise financeira marca o fim da ilusão de que o financiamento pode constituir uma medida de trabalho, pelo menos no contexto atual de fracasso da governança cognitiva do capitalismo contemporâneo. Assim, a crise financeira é também uma crise do desenvolvimento capitalista.

A segunda está na instabilidade estrutural do capitalismo atual, o que não pode ser sanado com ações corretivas de natureza reformista. Na presença de ganhos de capital, os mercados financeiros desempenham no sistema econômico o mesmo papel que, no contexto fordista, desempenhava o multiplicador keynesiano (ativado por gastos deficitários). No entanto — ao contrário do multiplicador keynesiano tradicional — isso leva a uma redistribuição destorcida de renda. Para que tal multiplicador seja operativo (> 1), é necessário que a base financeira (ou seja, a extensão dos mercados financeiros) esteja constantemente aumentando e que os ganhos de capital acumulados sejam, em média, superiores à perda do salário mediano (que, a partir de 1975 em diante, foi de aproximadamente vinte por cento). Por outro lado, a polarização das rendas aumenta o risco de insolvência das dívidas que estão na base do crescimento da mesma base financeira e reduz o salário médio. Aqui, então, abre-se a primeira contradição que faz com que a governança socioeconômica dos mercados financeiros, por intermédio da distribuição dos ganhos de capital, possa ser sustentada ao longo do tempo.

Endividamento crescente

A crise da governança não é apenas uma crise “técnica”, mas é também, e sobretudo, uma crise “política”. A condição para que os mercados financeiros possam apoiar as fases de expansão e de crescimento real seria o aumento constante da base financeira. Em outras palavras, é necessário que a quota de riqueza mundial canalizada para os mesmos mercados financeiros cresça constantemente. Isso implica um contínuo aumento da relação entre débito e crédito ou por meio do aumento do número de pessoas endividadas (grau de extensão dos mercados financeiros) ou por meio da construção de novos instrumentos financeiros que se alimentam do comércio financeiro já existente (o grau de intensidade mercados financeiros). Os produtos derivados são um exemplo clássico dessa segunda modalidade de expansão dos mesmos mercados financeiros. Sejam quais forem os fatores considerados, a expansão dos mercados financeiros é acompanhada necessariamente ou pelo aumento do endividamento ou pelo aumento da atividade especulativa e dos riscos envolvidos. Trata-se de uma dinâmica intrínseca ao papel dos mercados financeiros como a pedra angular do capitalismo cognitivo.

Falar sobre a especulação excessiva para a ganância dos gestores ou dos bancos não tem absolutamente nenhum sentido e só pode servir somente para desviar a atenção das verdadeiras causas estruturais dessa crise. O resultado final é, necessariamente, a insustentabilidade de um endividamento crescente, especialmente quando começa a ficar endividada parte da população com maior risco de insolvência: exatamente aqueles estratos sociais que, devido à precariedade dos processos de trabalho, não estão em condições de desfrutar daquele “efeito riqueza” que a participação nos ganhos do mercado de ações permitia aos estratos sociais mais abastados.

Nó contraditório

A crise de inadimplência no crédito imobiliário tem, assim, a sua origem em uma das contradições do capitalismo cognitivo contemporâneo: a natureza irreconciliável de uma distribuição desigual de renda com a necessidade de alargar-se a base financeira para continuar a desenvolver o processo de acumulação. Esse nó contraditório não é outro senão o vir à luz de uma irredutibilidade (superávit) da vida de boa parte dos atores sociais para subsunção (eles são fragmentados em singularidade ou definíveis nos segmentos de classe). Um superávit que hoje se expressa em uma multiplicidade de comportamentos: das formas de infidelidade às hierarquias corporativas, à presença de comunidades que se opõem à governança territorial, ao êxodo individual e grupal dos ditames de vida impostos pelas convenções sociais vigentes, até ao desenvolvimento de formas de auto-organização no mundo do trabalho e da revolta aberta contra novos e velhas formas de exploração nas favelas das megalópolis do Sul do mundo, nas metrópoles ocidentais, nas áreas de maior industrialização recente no sudeste da Ásia como na América do Sul. Um excedente que pode ser encontrado, declarando em uníssono, nos quatro cantos do planeta, que não está disponível para pagar por essa crise. A instabilidade incurável do capitalismo contemporâneo é também o resultado desse excedente.

IHU On-Line – Quais são os efeitos dessa crise em termos econômicos e subjetivos?

Andrea Fumagalli – Os efeitos da crise podem ser analisados em diferentes níveis: o macroeconômico e o macrorregional, ou seja, do ponto de vista dos efeitos sobre as hierarquias econômicas mundiais e o nível mais microeconômico e subjetivo relativo aos efeitos sobre a vida dos seres humanos.

Nível macroeconômico

A capacidade dos mercados financeiros para criar “valor” está relacionada ao desenvolvimento de “convenções” (bolhas especulativas), capazes de criar expectativas tendencialmente homogêneas que empurram os principais operadores financeiros a apoiarem determinados tipos de atividade financeira. Na década de 1990, era a Economia da Internet; nos anos 2000, a atração veio do desenvolvimento de mercados asiáticos (com a China entrando na OMC em dezembro de 2001) e da propriedade imobiliária. Os efeitos devastadores do colapso da bolha imobiliária, em 2008, exigiam uma forte intervenção do estado para tapar as lacunas da balança abertas nas grandes instituições bancárias, de seguros e financeiras. O Estado desenvolveu assim o papel de emprestador de última instância, e, consequentemente, a fundo perdido e sem qualquer estímulo ao pedido. É a recessão atual e a forte introdução de liquidez pública, mais que o excesso de despesas públicas, a principal causa do déficit/PIB. Em um cenário similar, estão os países mais dependentes da dinâmica econômica internacional a serem os mais penalizados, ou seja, os países que desempenham o papel de subfornecedores, sem poderem influenciar a trajetória tecnológica dominante. A área do Mediterrâneo está entre eles.

A especulação financeira pretende, assim, desenvolver uma nova convenção, que podemos definir como “Acordo do bem-estar”, em que o objeto dessa mesma especulação é diretamente a prosperidade (o bios) dos indivíduos. Dos acordos de tipo setorial à alta intensidade cognitiva (economia de internet), passando pelas convenções relacionadas ao desenvolvimento de áreas territoriais globais, chega-se, assim, a acordos que têm como objeto as condições de vida e de trabalho dos seres humanos. O biopoder das finanças confirma-se penetrante e cada vez mais direta. A crise europeia e as dificuldades dos EUA e do Japão evidenciam a capacidade de manutenção econômica demonstrada pelos países do Leste da Ásia e da América Latina (e, em primeiro lugar, do Brasil). A crise atual, portanto, põe em discussão a questão da hegemonia financeira dos EUA e a centralidade dos mercados de ações anglo-saxões no processo de financiamento. A saída dessa crise, necessariamente, marcará um deslocamento do centro de gravidade financeiro para o Leste e em parte para o Sul (América). Já, em nível produtivo e de controle dos escambos comerciais, ou seja, em nível real, os processos de globalização cada vez mais evidenciaram uma mudança do centro produtivo para o leste e para o sul do mundo. Desse ponto de vista, a atual crise financeira pôs fim a um tipo de anomalia que tinha caracterizado a primeira fase da expansão do capitalismo cognitivo: o deslocamento da centralidade tecnológica e do trabalho cognitivo para Índia e para a China, na presença da manutenção da hegemonia financeira no Ocidente. Quando o desenvolvimento dos países orientais (China e Índia), do Brasil e África do Sul era ainda impulsionado pelos processos de terceirização e subcontratação laboral no estrangeiro ditadas pelas grandes corporações ocidentais, não era possível identificar uma distonia espacial entre as duas principais variáveis de controle do capitalismo cognitivo: o controle da moeda-finança, por um lado, e o controle da tecnologia de outro. A atual crise financeira pôs fim à tal distonia espacial.
O primado tecnológico e o financeiro tendem desde então a se articular também em nível geoeconômico. Resulta que o capitalismo cognitivo, como um paradigma de acúmulo bioeconômico, torna-se hegemônico até na China, na Índia e no Sul do mundo. Isso não significa, seja dito claramente, que eles tenham deixado de ter importantes diferenças também radicais entre as diferentes áreas e os diferentes tempos por meio dos quais se distendem os processos capitalistas de valorização e por meio dos quais se rearticula continuamente a composição de trabalho controlado e explorado pelo capital.Também não é possível, então, estabelecer uma série de conceitos passepartout que são igualmente aplicáveis em Nairóbi, em Nova Iorque e em Xangai. O ponto é, especialmente, que o próprio sentido das diferenças radicais entre as localidades, as regiões e os continentes deve ser recomprimido dentro da rede heterogênea de sistemas de produção, de temporalidade e experiências subjetivas do trabalho, que constituem o capitalismo cognitivo.

Nível subjetivo e microeconômico

Os principais efeitos microeconômicos preocupam-se com a dinâmica do mercado de trabalho. As crises econômicas raramente produzem processos de transformações sociais, especialmente rebeliões. E frequentemente são utilizadas como uma gazua para iniciar o processo de reestruturação, também nos contextos em que não seriam justificadas. O resultado final, na verdade, é um aumento da insegurança, habitualmente justificada pela necessidade de combater o desemprego crescente. Se, depois de tudo isso, vêm unidas a políticas econômicas fiscais recessivas (como está acontecendo na Europa), ao agravamento das condições de trabalho e renda, também se adicionam o desmantelamento dos serviços sociais e a privatização da vida. Aqui estão as principais tendências:
• Uma vez terminada a fase decadente e recessiva do PIB, na atual fase de estagnação, o mercado de trabalho torna-se ainda mais flexível.
• Nesse contexto, a crise evidencia o grau e a intensidade da insegurança.
• Favorece-se relativamente a inserção de trabalhadores jovens (que são mais baratos e mais fáceis de serem demitidos) para substituir os de mais de quarenta anos com contratos de trabalho estáveis. Aumenta-se assim o problema dos acima de quarenta sem trabalho.
• Acentua-se o processo de terceirização, o que facilita ainda mais o processo de insegurança. Além disso, a quota de contratos atípicos aumenta também na indústria. A precariedade é condição comum, mesmo que prevaleça no setor de serviços.
• É penalizado o emprego das mulheres e interrompe-se o processo de feminização do trabalho.
• Não admira que o trabalho migrante venha ulteriormente penalizado, por meio da expulsão do mercado de trabalho.
• Em conclusão, o trabalhador e a trabalhadora migrantes são diretamente dispensados; o trabalhador e a trabalhadora indígenas, primeiro, são tornados inseguros e só sucessiva e eventualmente demitidos.

IHU On-Line – Como podemos compreender a alienação e as doenças enquanto efeitos dessa financeirização e biopoder?

Andrea Fumagalli – Nos últimos vinte anos, o processo de mercantilização da vida (da bios) deu passos gigantescos não só do ponto de vista tecnológico (por exemplo, o desenvolvimento da genética e da biotecnologia), mas também no que respeita à subsunção das atividades culturais, criativas e ambientais. O processo de “remodelação” interessou às estruturas espaço-urbanísticas das grandes cidades, modificando de modo estrutural a relação centro/periferia. A atividade cultural que é relacional; tornou-se uma fonte de valorização. A condição feminina e a atividade de reprodução tornaram-se paradigmas da condição econômica e precária da pós-modernidade. Tal processo teve repercussões graves para a saúde do gênero humano.

A crescente privatização dos serviços de saúde aumentou a governança biopolítica das instituições econômicas sobre o corpo humano, tanto do ponto de vista físico quanto do mental. Em termos de corpo físico, está se ampliando no mundo uma divisão social e geográfica entre os que têm acesso à medicação e ao tratamento, e os que não o têm. A instituição pública não é mais uma garantia da saúde pública, assim como tinha evoluído na Europa tecnocrática do século passado no sentido foucaltiano. Da mesma forma, o desenvolvimento da divisão cognitiva do trabalho, graças aos processos de desmantelamento da educação e da sua privatização, determina novas segmentações sociais com base na possibilidade de acesso aos diferentes níveis de ensino, muitas vezes em detrimento do desenvolvimento de uma abordagem cultural crítica e sistêmica.
Hoje, a alienação do corpo tende a tornar-se cerebral. Reduziu-se a separação entre as atividades manuais (o braço) e a atividade intelectual (o cérebro), entre o processo de trabalho e o produto do trabalho, mas cada vez mais, uma vez que o cérebro se tornou máquina, desenvolveu-se uma alienação cerebral, totalmente interna ao próprio processo de trabalho e à vida humana. A alienação cerebral produzida de maneira sofisticada por causa do controle social é o instrumento de domínio do biopoder atual.

IHU On-Line – Como esse biopoder e financeirização impactam na constituição do sujeito e sua autonomia?

Andrea Fumagalli – O impacto da financeirização sobre o sujeito é, ao mesmo tempo, um impacto de chantagem e medo, mas também de um consenso: chantagem de uma necessidade em um contexto de trabalho cada vez mais individualizado e precário (também do ponto de vista existencial), o consenso do imaginário estereotipado veiculado pelo sistema de informação e de comunicação simbólico (considera-se o papel dos meios de comunicação como o Facebook e a internet, bem como o processo de atribuição de marca do consumo). A autonomia pessoal é hoje, de longe, muito mais limitada do que há trinta anos, nos dias de trabalho na fábrica. A divisão entre o tempo de trabalho e o tempo de não trabalho poderia ser traduzida (não automaticamente) também na separação entre coerção e liberdade potencial. Uma vez terminado o horário de trabalho, a disciplina do trabalho (principalmente no corpo físico) acabava em favor de outras estruturas disciplinares (família, gênero, escolaridade, raça etc.), embora menos difundidas sobre a mente humana a respeito das formas de controle e condicionamento social que hoje parecem prevalecer, quando as faculdades cognitivas são os principais fatores produtivos.
A autonomia individual resulta muito limitada e reprimida. È paradoxal que, na era da ideologia do indivíduo livre, o que vem reprimido é a individualidade em favor do individualismo. E sabemos bem que, entre a individualidade entendida como expressão potencial dos seus próprios talentos criativos e humanos e o individualismo como comportamento oportunista e egoísta, há uma grande diferença. Hoje, a negação da individualidade (e da sua autonomia) é expressa exatamente com a exaltação do individualismo.

 

A ética do mercado financeiro internacional é o lucro

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IHU – Outubro de 2008.

Para o professor Gilberto Dupas, a persistir essa crise no nível em que está, temos de esquecer realmente o patamar de crescimento de 5% pelo menos por um ano ou talvez mais.

Os fatores principais de preocupação em relação à renda e à demanda brasileira em função da crise financeira internacional, sob o olhar do professor Gilberto Dupas, é a “diminuição da demanda externa de commodities, que afetam nossos volumes de exportação e, ao mesmo tempo, uma diminuição do crescimento da demanda interna em função de um menor crescimento do próprio país”. Na entrevista que concedeu por telefone à IHU On-Line, Dupas alerta para o fato de que continuamos praticando, no Brasil, as maiores taxas de juros do mercado internacional. “Então, evidentemente que a diminuição da taxa de juros seria uma condição essencial, que não foi alcançada, para estarmos num período de maior estabilidade do crescimento”.

Gilberto Dupas é professor visitante da Universidade de Paris II e da Universidade Nacional de Córdoba e membro da Comissão de Ética da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) e do Conselho Nacional de Avaliação do Ensino Superior (CONAES). Entre seus livros mais recentes publicados, citamos O mito do progresso (São Paulo: UNESP, 2006) e Espaços para o crescimento sustentado da economia brasileira (São Paulo: UNESP, 2007).

IHU On-Line – Com a melhora na renda dos brasileiros, aumentou o consumo também. O que muda e como esse cenário se transforma a partir da crise financeira internacional?

Gilberto Dupas – Nós passamos, na economia brasileira, por uma fase interessante, que foi disparada pela explosão das exportações de commodities neste século, a partir do grande aumento da demanda chinesa. Nesta fase, num primeiro tempo, a renda foi alimentada pelas exportações. Num segundo momento, que é esse onde estávamos um pouco antes da crise, vários outros fatores alimentaram a renda; não só o crescimento do emprego, como o crescimento da demanda interna, especialmente em alguns setores, como construção civil, além do fator de previdência e aposentadoria. Então, estávamos num momento da economia brasileira, crescendo mais de 5% ao ano, em que se associavam aos ganhos motivados pela exportação fatores endógenos, que significavam a expansão do mercado interno, que permitia esse crescimento. Precisamos lembrar, também, que, ao mesmo tempo em que crescia a renda, também crescia o endividamento de médio e longo prazo. A estabilidade relativa da inflação tinha permitido, ainda que com taxas de juro muito altas, recordes no mundo, com o Selic a 14%, que a expansão do prazo de financiamento, tanto de bens de consumo duráveis como de residências, proporcionasse um significativo aumento do endividamento, comprometendo, portanto, a renda futura do brasileiro. Evidentemente que já havia sinais de preocupação, embora pequenos, porque, como o prazo do endividamento aumentou e essas dívidas eram sustentadas por uma taxa de juros muito alta, imaginava-se que poderia haver na frente um ciclo de inadimplência por conta destes prazos longos de financiamento. Este era o quadro antes da crise internacional que tínhamos aqui no Brasil.

Depois da crise

Agora, podemos dizer que crise internacional afeta, fundamentalmente, duas coisas. Primeiro: a capacidade do Brasil de manter níveis de exportação da mesma magnitude em dólar que mantinha anteriormente, em função da queda da economia mundial. E, em segundo lugar, é preciso reconhecer que os efeitos desta queda da economia mundial caem sobre a própria renda interna, considerando que, se o país vier a crescer menos no ano que vem (já se fala em números da ordem de 2 a 3%), evidentemente a expansão da renda deve acompanhar essa diminuição do crescimento. Esses são os fatores principais de preocupação do lado da renda e da demanda: uma diminuição da demanda externa de commodities, o que afeta nossos volumes de exportação e, ao mesmo tempo, uma diminuição do crescimento da demanda interna em função de um menor crescimento do próprio país.

IHU On-Line – Com a crise financeira internacional, como fica a questão dos empréstimos e financiamentos bancários?

Gilberto Dupas – Isso depende, justamente, deste quadro de projeção da renda futura do brasileiro. Houve uma sensível melhora nas rendas, especialmente das classes baixas. Uma parte muito significativa dos pobres foi incorporada à chamada classe média baixa.  Então, isso significou a possibilidade de uma classe social, que basicamente consumia poucos bens de consumo duráveis, entrar numa fase nova, que foi a que nós vimos até então. Vamos nos lembrar que financiamento é basicamente comprometimento das rendas futuras. E, portanto, as rendas futuras caindo, a lógica será de tomar novos empréstimos e diminuir o pagamento dos empréstimos em curso. Isso pode afetar o consumo. Outro fator preocupante também se refere à questão da casa própria. Especialmente nas classes de renda baixa, mas, em geral, o que tem predominado agora é não só o emprego formal, mas também o emprego flexível. E isso faz com que o tempo de permanência no emprego, na mesma atividade, encurte, o que significa também que os deslocamentos do local de trabalho devem ser mais intensos. Se a liquidez no mercado de imóveis estiver muito boa, o sujeito que comprou um imóvel e seu emprego passou para um lugar distante, pode vender esse imóvel e passar para a frente. Se, por acaso, a liquidez imobiliária estiver baixa, num momento de maior contração, e a sua condição de pagar as prestações de casa própria diminuírem, nós teremos provavelmente um imóvel abandonado, com dificuldades de liquidez. Então, esses são os fatores principais que podem afetar a questão dos empréstimos. Não nos esquecendo nunca que continuamos praticando as maiores taxas de juros do mercado internacional. Então, evidentemente que a diminuição da taxa de juros seria uma condição essencial, que não foi alcançada, para estarmos num período de maior estabilidade do crescimento. Pelo contrário, do jeito que as coisas caminham hoje, com o dólar neste novo patamar, e com a nossa dependência muito grande de importações (dado que acabamos nos acostumando em exportar commodities e importar tecnologia), significa um encarecimento muito grande das importações. Isso pode ter pressões inflacionárias e a tendência normal de um Banco Central ortodoxo como o nosso é reagir ao aumento de pressão de preços com aumento de juros ainda mais. O que pode tornar complicada não só a questão da inadimplência, mas também a própria condição de crescimento a níveis em que estávamos antes. O que quer dizer que, em última análise, a persistir essa crise no nível em que está, precisamos esquecer realmente o patamar de crescimento de 5% pelo menos por um ano ou talvez mais.

IHU On-Line – Considerando o capitalismo neste mundo globalizado, quais os maiores riscos para a economia nacional da crise financeira que abala principalmente os Estados Unidos?

Gilberto Dupas – Em primeiro lugar, essa crise nos pega e pega a maioria dos países da América Latina também numa posição de reservas bastante forte. É absolutamente inédito na história brasileira a reserva de mais de 200 bilhões de dólares. Isso pode nos dar, num primeiro momento, uma certa sensação de conforto. Mas precisamos imaginar que essas reservas têm como correspondentes, do outro lado, um estoque muito grande de capital especulativo, de capital flutuante internacional, ou de brasileiros do exterior que reaplicam aqui, que se movem com grande velocidade nos momentos de crise. Vimos agora, nestes dias, o impacto disso não só na bolsa de valores, como também no crédito de curto prazo. Estima-se que esse capital volátil deve atingir em torno de 280 bilhões e é possível que nesta crise tenham saído uns 30 bilhões. Isso quer dizer que há muito capital volátil ainda a sair. E se nós tivermos uma crise de grandes proporções, que junte uma recessão internacional com a diminuição das exportações do Brasil e com o aumento da taxa do dólar, nós poderemos ter sinais de crise de contas correntes, que já estão por aí. Isso pode significar que essas reservas, na pior das hipóteses, possam ser consumidas com grande rapidez, o que não só acenderia um sinal amarelo sobre a questão da dívida externa, mas também da dívida interna brasileira. Isso é tudo o que nós gostaríamos que não acontecesse.

IHU On-Line – Quais as principais repercussões no mundo inteiro da reprovação inicial do pacote bilionário de Bush para salvar os bancos americanos? Como entra aqui a discussão sobre a tensão entre público e privado, considerando o uso do dinheiro do Estado para recuperar instituições privadas como os bancos?

Gilberto Dupas – Tem se falado muito em Keynes nesses últimos tempos. Vocês mesmos estão nessa edição da revista preocupados com isso. Isso tem muito a ver, porque Keynes trabalhou com essa idéia da diferença entre especulador e investidor, caracterizando o mercado financeiro fundamentalmente como volátil, do ponto de vista do especulador, e a atividade produtiva como sendo o mercado do investidor. Keynes dizia que os mercados financeiros favorecem o investimento e sustentam a demanda agregada, na medida em que diminuem o risco do investidor de assumir posições ilíquidas. Porque, no caso, por exemplo, do mercado de ações, o investidor, quando investe num mercado estável, sabe que se essa companhia tiver uma rentabilidade menor do que a de uma bolsa estável, ele pode sempre vender suas ações em bolsa e poder fazer sua liquidez. O que quer dizer, nesse caso, que o mercado financeiro para ele poderia ser até um mercado bastante positivo com relação à dinâmica capitalista. Só que Keynes lembra que o investidor incorpora a idéia de que ele pode sempre sair da sua posição de ações e daí, citando o clássico, “o que vale para todos individualmente, mas que não vale para nenhum enquanto conjunto”. O que quer dizer o seguinte: se vem uma crise de grandes proporções e o mercado financeiro perde liquidez e trava, como o que vimos, acontece o que tipicamente chamamos de “comportamento de manada”; se todos querem sair ao mesmo tempo, ninguém pode sair. Foi o que vimos recentemente com relação às ações dos bancos americanos, que tiveram uma queda muito grande e que, portanto, viraram pó. Keynes estabelece claramente um perfil para a atividade de especulação, que diz ser uma atividade que consiste em prever a psicologia do mercado. E que “os especuladores podem não causar dano quando são apenas bolhas num fluxo constante de empreendimento, mas a situação torna-se séria quando o empreendimento de converte em bolhas num turbilhão especulativo”. É exatamente o que nós temos aqui agora. Basicamente, o mercado especulativo no mercado financeiro se transformou num jogo de pôquer.

IHU On-Line – Que previsões podemos fazer para o crescimento econômico brasileiro, tendo em vista o desfavorável cenário financeiro internacional?

Gilberto Dupas – Tudo indica que esta fase de crescimento de mais de 5% no Brasil deve refluir para níveis em torno de 3%, se tudo estiver mais ou menos bem no ano que vem. As repercussões mais profundas da crise sobre os bancos brasileiros, por exemplo, é muito provável que sejam bastante pequenas, porque não só os bancos brasileiros não entraram como os bancos americanos, de maneira tão intensa nesse mercado especulativo de segundo e terceiro nível, mas porque também o Brasil tem fundamentos razoáveis agora para não estar tão atingido por essa crise. Mas estará atingido, sem dúvida, e, evidentemente, o quadro só se tornará mais grave se tivermos efetivamente uma erosão rápida das nossas reservas por conta de uma crise de conta corrente, envolvendo a diminuição das exportações e a dificuldade de diminuir as importações, além de pressões inflacionárias por conta do preço dessas importações no consumo interno, e algum sinal de preocupação com relação à dívida interna realimentada à taxa de juros muito alta. Se a crise internacional for grande o suficiente para que contamine dessa forma o quadro brasileiro, aí poderíamos ter cenários mais preocupantes no Brasil.

IHU On-Line – Como o capitalismo e o mercado liberal podem enfrentar o “mal financeiro” constituído? Podemos vislumbrar possíveis transformações na estrutura do capitalismo?

Gilberto Dupas – Essa é uma questão muito relevante e difícil. De um lado, podemos dizer que a história do capitalismo é a história das suas crises. Capitalismo sem crise não é capitalismo. Fazendo uma retrospectiva histórica, lembramos que o capitalismo se tornou o sistema dominante depois da derrocada dos regimes socialistas reais e, sendo dominante, se viu desobrigado a trazer efetivamente o que prometia, que era o bem-estar geral, da inclusão de populações maiores. Pelo contrário, o que vemos é um aumento da população pobre no mundo. O que fez diminuir o número de pobres nesses últimos 20 anos foi o crescimento da China, que se deu aplicando regras contrárias aos princípios liberais. No entanto, não há nenhum sistema alternativo que podemos propor quando criticamos o capitalismo. Mas temos de fazer essa crítica, esperando que o capitalismo possa se reformar. Quais são as chances de uma reforma no sistema capitalista? É muito complicado, porque o risco e a capacidade do empreendedor de buscar oportunidades de maximização do lucro onde quer que elas estejam e passando por cima de valores de natureza social e política só pode ser controlado com Estados fortes e com instituições reguladoras internacionais fortes, que possam definir as regras, que limitem o tamanho das “garras” do capitalismo, de tal forma que as empresas possam exercer sua atividade de maximização do lucro sem danos sociais muito intensos. Estamos vendo o sintoma de que as instituições financeiras internacionais não funcionam mais neste nível do capitalismo globalizado, operando com grande velocidade e transferência de fluxos em tempos reais em mercados especulativos. A grande pergunta é: o capitalismo quer ser regulado? E a segunda pergunta é: o capitalismo pode ser regulado por instituições reguladoras internacionais?

IHU On-Line – Qual a ética predominante no sistema financeiro internacional, que nos permite entender as origens e os rumos da atual crise?

Gilberto Dupas – A ética do mercado financeiro internacional e a ética do capitalismo é o lucro. Este é o grande problema. Portanto, a sociedade precisa criar a sua ética para definir limites para essa mola fundamental da lógica capitalista. Este é o grande dilema: a sociedade civil, através do exercício da política, das suas entidades políticas, tem de buscar uma ética que procure definir regulações que permitam ao capitalismo exercer a sua dinâmica de tal modo que a “fúria” do empreendedor não bata de frente com as necessidades da sociedade e com os princípios éticos mais fundamentais da promoção do ser humano, da inclusão social mínima, da proteção contra a fome, do emprego mínimo decente. Vamos ver se a ética da sociedade pode combinar com a ética do lucro.

 

O cinismo da argumentação econômico-financeirista

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IHU – Março de 2015.

Para o professor Ladislau Dowbor vivemos um momento dramático em que as soluções às crises afetam as populações mais pobres

Ao focar os desequilíbrios e contradições das soluções financeiristas para a atual crise econômica, o professor Ladislau Dowbor argumenta que atingir os grandes eixos de despesa do Estado só agrava a situação das populações mais miseráveis. “O Estado tem um papel de redistribuição dos recursos e da redução das desigualdades, então quando se reduzem os gastos apenas do lado do governo, se está, em grande parte, atingindo os recursos que dizem respeito à parte mais pobre da sociedade”, sustenta, em entrevista por telefone à IHU On-Line. “É natural que a ideia de restringir as reformas ao reajuste fiscal seja amplamente apoiada pelas elites”, complementa.

Em seu sentido mais amplo, a crise que vivenciamos é uma crise do humanismo, como atesta Dowbor. “O momento é dramático porque está todo mundo querendo consumir mais. Toda a mídia, todo o sistema de informação que é financiado por empresas produtoras quer que a gente consuma mais. Esse negócio está, simplesmente, gerando um efeito catastrófico: temos o aquecimento global, a liquidação da cobertura florestal do planeta, a liquidação dos mares, e por aí vai”, explica. “Nós temos uma área de miséria, baseada nos 4 bilhões da base da pirâmide social, quase dois terços da população, chamada ‘educadamente’ pelo Banco Mundial como ‘as pessoas que não têm acesso aos benefícios da globalização’, são os pobres do planeta”, sustenta.

Há contradições prementes na sociedade brasileira, como o fato de existir televisão em mais de 97% dos domicílios, mas não ter saneamento básico em 40%. Ocorre que, na opinião do pesquisador, testemunhamos, atualmente, um novo tipo de pobre. “Nós temos uma pressão imensa do que se convencionou chamar de ‘elite’, mas é uma elite extremamente retrógrada reagindo de maneira visceral, muito mais com o fígado que com a cabeça, ao fato que os pobres estão levantando a cabeça, estão frequentando aeroportos, estão começando a participar da vida social. Então a parte das elites e grande parte da classe média alta acha isso escandaloso”, provoca.

Ladislau Dowbor é doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, professor titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP e da Universidade Metodista de São Paulo – UMESP. Além disso, é consultor de diversas agências das Nações Unidas.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Para compreendermos melhor a questão de fundo da economia brasileira, gostaria que o senhor explicasse as diferenças entre “reajuste financeiro” e “reajuste fiscal”…

Ladislau Dowbor – O ciclo de recursos monetários e financeiros na economia é basicamente o mesmo. Quando falamos em reajuste fiscal a tendência é focar nos desequilíbrios das contas de governo. Quando falamos em ajustes financeiros engloba o ajuste fiscal, mas é mais amplo. A parte da fiscalidade, que se cobra via imposto e que se orça para os gastos, verifica o equilíbrio do montante para as contas públicas. Já o equilíbrio financeiro vai incluir as dinâmicas de toda a movimentação privada de recursos através dos bancos, dos crediários, por meio dos sistemas privados, ou seja, o conceito é mais amplo.

IHU On-Line – De que forma o reajuste fiscal está mais alinhado à perspectiva política do que à econômica?

Ladislau Dowbor – Quando se focam os desequilíbrios na conta pública e entra uma visão política de que o Estado é quem deve reduzir os seus gastos, isso vai atingir os grandes eixos de despesa do Estado que são, em particular, as áreas sociais como saúde e educação; vai atingir as infraestruturas; e vai atingir as áreas de transferência de recursos dos diversos setores sociais que podem ser tanto a previdência quanto o Bolsa Família, além dos diversos programas deste tipo. O Estado tem um papel de redistribuição dos recursos e da redução das desigualdades, então quando se reduzem os gastos apenas do lado do governo, se está, em grande parte, atingindo os recursos que dizem respeito à parte mais pobre da sociedade. É natural que a ideia de restringir as reformas ao reajuste fiscal seja amplamente apoiada pelas elites.

IHU On-Line – Uma das alternativas à questão econômica apresentada pelo atual governo, por meio do Ministério da Fazenda, é de que é preciso cortar gastos e continuar elevando os juros. Mas como resolver a contradição posta nesta solução? Que setores são beneficiados por essa dinâmica e quais são os mais prejudicados?

Ladislau Dowbor – Quando se fala em cortar gastos, um certo reajuste fiscal pode ser até interessante na medida em que ele conduza a um certo enxugamento da máquina (estatal) e a uma busca de maior eficiência do uso dos recursos. Fazer isso periodicamente nos governos e nos países, em si, não é mal, mas não reduzindo estruturalmente a participação do governo na sociedade. Quanto aos juros, há uma confusão que é feita por praticamente todos os meios de comunicação. Há, por um lado, uma taxa sobre a dívida pública que agora é de 12,75%. Há outra, ao tomador final (os consumidores), que pagamos no crediário, no cartão de crédito, nos bancos, para a pessoa física e jurídica e sobre estas devemos pensar separadamente. Essa parte dos juros deve ser dividida em separado.

Os juros que consistem na Taxa Selic, os juros sobre a dívida pública, são basicamente a taxa que o governo vai pegar dos nossos impostos para transferir os juros para quem aplica na dívida pública, essencialmente os bancos, o mercado financeiro, os intermediários. Isto é, quando eu tenho minha poupança, o banco pega o meu dinheiro e vai aplicar em títulos da dívida pública que vão pagar a 12,75% e somente o banco vai receber esses juros. É uma transferência de dinheiro público para os bancos. A grande justificativa é que isso é necessário para combater a inflação. É um argumento falacioso, porque esse juro não é utilizado no comércio, nas empresas e coisas do gênero. Na verdade é uma pressão dos grandes intermediários financeiros para que o governo transfira mais dinheiro de nossos impostos para os bancos. Isso não contempla só os bancos, mas também diversos grupos de seguradoras.

Quando observamos as variações dos juros sobre a dívida pública — a Taxa Selic era de 7,5% — é por pressão dos bancos que querem voltar a ter estas transferências do governo sem precisar produzir. É uma pressão essencialmente política e a inflação é utilizada como argumento de justificação. Portanto, “não” se estariam aumentando os juros sobre a dívida pública para engordar os bancos, mas sim para proteger os bancos; no Brasil tudo se faz para as elites e não para o bem-estar da população. Por outro lado, ao observarmos a taxa de juros da Selic, percebemos que não houve mudança na taxa de juros comerciais, que são absolutamente escorchantes. Na realidade não se está modificando a dinâmica da inflação.

IHU On-Line – Como a capacidade de compra da maior parte da população foi “drenada” pelos bancos e de que forma isso impacta no processo de redistribuição de renda e crescimento do país?

Ladislau Dowbor – Na última década foi feito um imenso esforço de trazer para dentro do mercado cerca de 40 milhões de pessoas, foram gerados cerca de 20 milhões de empregos formais e tivemos um avanço imenso. Por exemplo, em 1991 a expectativa de vida do brasileiro era de 65 anos e, atualmente, é de 75 anos. Nas duas últimas décadas o brasileiro passou a viver em média dez anos a mais, isto é, ele tem dez anos a mais para reclamar. Há avanços significativos na interiorização do desenvolvimento. Em 1991, 85% dos municípios brasileiros — existem 5.575 cidades — estavam em termos de Indicador de Desenvolvimento Humano – IDH em um nível muito baixo, abaixo de 0.50. Em 2010, apenas 32 municípios, portanto, 0,6%, estavam nesse nível catastrófico. Fazendo uma relação desses avanços com a capacidade de compra da sociedade, gerou um momento de forte avanço do sistema econômico. O sistema financeiro, por sua vez, com suas diversas ferramentas, se adaptou rapidamente e começou a sugar esses recursos que aumentaram na base da sociedade.

Por exemplo, as pessoas que veem a oportunidade de comprar uma geladeira obviamente têm dificuldades de pagar à vista, então vai ter um crediário que vai apresentar ao cliente uma prestação que cabe no bolso, sabendo que de modo geral as pessoas não têm ideia do cálculo financeiro e o do imposto. A Associação Nacional dos Executivos de Finanças, Administração e Contábeis – Anefac apresenta uma média de juros dos artigos do comércio de 104%. A pessoa vai comprar sua geladeira ou seu fogão, que são bens de necessidade básica, mas paga o dobro do que outra pessoa que paga à vista. Então na realidade se está drenando a capacidade de compra, pois como se paga o dobro, no âmbito geral, a pessoa somente poderá gastar a metade de seu rendimento, porque se endivida muito, mas não compra muito; se diz que a prestação cabe no bolso, mas tem que caber no bolso durante 24 meses.

Agora somamos o que as pessoas compram com cartão. O que se paga no cartão a crédito, em geral, os bancos vão reter 5% do valor das compras, no débito é cerca de 2% a 3%. De qualquer forma, sempre que se comprar com o cartão os bancos vão drenar entre 2% e 5% do valor da compra. Se somarmos toda a massa de compras com cartão que a população faz dá uma conta gigantesca de recursos. Para exemplificar, sobre todas as movimentações em que incidia a antiga CPMF , que na época era de 0,31%, eram gerados, segundo a revista Veja, R$ 40 bilhões por ano. Atualmente, somente no cartão, sem entrar no rotativo, já se está pagando um valor, pois a loja recebe dos bancos com os 5% já descontados. Então imagine a compra sobre a base daquilo que fica no rotativo, ou seja, quando as pessoas não têm dinheiro suficiente para pagar no cartão. No meu caso, a PUC me paga pelo Santander cujo rotativo é de 633,21%. Isto é, uma coisa absolutamente abominável, um suicídio financeiro, mas isso é tratado como uma coisa normal.

É interessante fazer uma comparação. Fui ver o Media Markt , uma rede europeia parecida com as Casas Bahia, ou esses outros similares, e eles cobram 1,05% ao mês. Assim uma compra de R$ 600 em 18 meses vai resultar, ao final, em um gasto de R$ 699. Eu fiz um estudo em uma loja de Joinville, em Santa Catarina, de uma televisão de R$ 690 e o custo final dela será de mais de R$ 1,4 mil. Então se somar os crediários, o cartão de crédito simples pagando na modalidade de crédito e os rotativos, a população tem a capacidade de compra sugada pelos intermediários financeiros, que não produzem nada.

Ainda tem a modalidade de crédito para a pessoa física. O governo criou um sistema de crédito consignado com a modalidade de juros entre 25% e 30%, o que é escorchante. Esse tipo de crédito, na Europa, está na faixa de 4% a 5% ao ano. No geral a pessoa física que vai pedir um crédito no banco vai pagar cerca de 100%. Portanto, a metade da capacidade de compra vai para o banco. O crédito à pessoa jurídica, que está na base de 40% a 50%, torna inviável criar uma empresa e pagar esse tipo de juro. O resultado que se tem com esses diversos elementos é, de um lado, a redução drástica da capacidade de compra da população e, com isso, o efeito de dinamização da economia, através da compra, esfria; de outra parte, isso impacta o empresário produtor que está recebendo muito pouco por seu produto, porque o grosso do lucro está sendo sugado pelo intermediário financeiro. Se o produtor recebe pouco e a população está perdendo a possibilidade de compra pelo grau de endividamento, há um duplo esfriamento da economia seja pela capacidade de investimento por meio da produção, seja pela capacidade de compra do cidadão.

Como a Taxa Selic é extremamente elevada e o governo cede para o intermediário financeiro cerca de R$ 250 bilhões a R$ 300 bilhões dos nossos impostos, em vez de aplicar isso em infraestrutura, saúde, educação e semelhantes, há uma esfriamento da economia por parte da capacidade de investimento do Estado. Chamo isso de “Triângulo das Bermudas” porque você está travando a demanda, os investimentos e as políticas sociais do governo. Na realidade o exercício que eu fiz — é o mesmo que fiz para muitos países das Nações Unidas — é o do ciclo financeiro completo. Então, para fechar esse circuito analisamos os intermediários financeiros, que se enchem de dinheiro tanto pela taxa Selic quanto pelas diversas modalidades de crédito, e percebemos que eles não só não reaplicam esse dinheiro na economia como jogam o dinheiro para fora em paraísos fiscais e, portanto, deixam de pagar impostos.

Se o banco pegasse nossas finanças e aplicasse em uma empresa que fabrica sapatos seria ótimo. Vai gerar lucro para o empresário, parte desse lucro ele vai devolver com o pagamento dos juros e o sistema circula de maneira adequada. O problema é que aqui se formou um cartel de bancos que trava o efeito dinamizador dos nossos recursos que coloca a economia em funcionamento e não há economia que sobreviva a um sistema como este.

IHU On-Line – Por que, apesar de institucionalmente o Estado afirmar que tem uma política tributária progressiva, na prática ela se torna regressiva? De que forma essa dinâmica corrobora a tese de Piketty  sobre a desigualdade, desta vez com dados do Brasil?

Ladislau Dowbor – O paralelo com o Piketty é interessante porque ele mostra, nos estados em que ele analisa, particularmente os Estados Unidos e os países desenvolvidos, que as grandes fortunas estão se formando por aplicações financeiras e funcionam sem estímulo ao desenvolvimento. Piketty mostra a desigualdade, sobretudo no 0,1% das gigantescas fortunas que se formam.

Nós tivemos agora, em Davos, no Fórum Econômico Mundial, o estudo da Universidade de Oxford mostrando que no planeta 85 famílias têm mais patrimônio acumulado que a metade mais pobre da população mundial, ou seja, 3,5 bilhões de pessoas. Essa concentração de renda e patrimônio em nível planetário tem sua representação no Brasil. Essa diferença vem de onde? Esse dinheiro tem que ser tirado do bolso de milhões de pessoas que estão pagando no cartão de crédito, no crediário, nas diversas formas de dívida.

O que Piketty estava mostrando nos seus estudos é como isso tem impacto nos países em desenvolvimento. Um banco como o Santander, um gigante mundial, 25% a 30% dos seus lucros ele tira do Brasil. Na realidade, nós pagamos o desenvolvimento do sistema financeiro internacional. Há um conjunto de estudos que se desenvolveram em nível mundial, por exemplo, Tax Justice Network , nos Estados Unidos; os estudos sobre as transferências ilegais, chamado Global Financial Integrity

No caso brasileiro cerca de R$ 7 bilhões são transferidos ilegalmente através de um mecanismo chamado de missing voicing, que é fraude sobre fatura, onde se sobrefatura ou subfatura as ações internacionais para fazer transferência para fora do país. Se alguém transfere para fora do país R$ 100 milhões e o Produto Interno Bruto – PIB do Brasil é de R$ 5 bilhões, cerca de 2% da riqueza que deveria somar à economia interna são transferidos para o exterior. Nosso crescimento já estaria, por exemplo, em torno dos 3%.

Há outros mecanismos que, com a crise financeira mundial, também estão sendo estudados para outros continentes. O Kofi Annan , que foi secretário geral da Organização das Nações Unidas – ONU considera que esse sistema de missing voicing puxa da renda da África do Sul cerca de 40 milhões de dólares por ano. De certa maneira, o exercício que eu fiz é a dimensão brasileira de um serviço de financeirização nacional que drena os recursos da parte mais pobre da população e fica difícil para os empresários investirem naquilo que chamamos de economia real, o que significa dificuldade de aumentar os salários e que gera a redução da pulsão da economia produtiva por meio da drenagem do capital financeiro.

IHU On-Line – O capitalismo financeirista ficou velho demais para nossas sociedades tecnocientíficas? Que alternativas poderíamos vislumbrar em um novo horizonte?

Ladislau Dowbor – Quando observamos o que acontece em diversos lugares, há coisas interessantes. Por exemplo, a Alemanha se protegeu razoavelmente, apesar das dificuldades, e o crescimento deles foi praticamente zero ano passado, pelo fato de que as poupanças não estão alocadas em bancos, mas em caixas municipais de poupança e isso vai financiar pequenos investimentos locais, que geram emprego e rendimento à população da região. Na Polônia, que segundo o The Economist foi o país que melhor escapou da crise financeira mundial, existem cerca de 472 bancos cooperativos. Então não se drena a capacidade econômica, senão, usa-se o dinheiro das pessoas para desenvolver projetos produtivos para as diversas regiões. O desafio principal é que os nossos recursos que estão sendo drenados para a financeirização voltem para o sistema produtivo, voltem a pagar os impostos para pagar as políticas sociais de modo que as gerações futuras possam se desenvolver.

IHU On-Line – Estamos sempre à beira de uma “crise financeira mundial”, em que os Estados devem sempre manter a austeridade para “salvar” a economia. Que lições a Islândia tem a oferecer para o mundo? Como o senhor avalia a realização de um plebiscito no Brasil sobre a dívida pública?

Ladislau Dowbor – Há uma série de alternativas. Nos Estados Unidos há o trabalho da senadora Hazel Henderson  nas propostas de expansão dos bancos públicos. Há a opção da Islândia que foi nacionalizar os bancos para gerar controle sobre os sistemas especulativos. Há iniciativas de se criar um sistema entre as nações de comunicação de evasão para enfrentar os paraísos fiscais e enfrentar o tipo de organização surrealista que se vê através do HSBC. Este banco, em suas contas suíças, ajuda a fazer evasão fiscal e só de brasileiros são aproximadamente 8.600 contas de fortunas catalogadas nesses dados que saíram agora. Há uma dimensão de alternativas em determinadas nações de travar o sistema especulativo e há as iniciativas internacionais de obrigar os grandes grupos financeiros a informar sobre os fluxos; além disso, nesses principais centros de regulação, promover um avanço de se criar um arcabouço jurídico, que nos Estados Unidos se chama Lei Dodd-Frank , mas que está sofrendo imensa resistência por parte dos grupos financeiros. Está se tentando uma regulação semelhante na Europa, pelo Banco Central Europeu.

Eu acrescentaria um quarto eixo que é interessante. Em inúmeros lugares as pessoas estão saindo dos bancos. Por exemplo, nos Estados Unidos há um sistema peer-to-peer em que as pessoas repassam recursos diretamente a quem precisa um empréstimo sem passar por nenhum banco, trata-se de uma desintermediação do sistema financeiro. Se pegarmos o Banco Palmas , em Fortaleza, eles criaram a própria moeda e pegaram o Banco Comunitário de Desenvolvimento que ajuda a financiar os pequenos projetos sem pagar os juros escorchantes do cartão de crédito e coisas do gênero.

Atualmente uma pesquisa da Universidade de São Paulo – USP mostrou a existência de 103 bancos comunitários no Brasil e temos algumas dezenas de municípios que já imprimem moeda própria e facilitam o desenvolvimento local. Em Imperatriz, no Maranhão, 90% do que se encontra nas prateleiras do mercado vêm do Sudeste. Isso é um absurdo, pois faz os produtos viajarem por quase dois mil quilômetros gastando estradas, gastando diesel, gastando caminhão, em vez de estimular a produção local e o autoconsumo, que gera emprego, gera produção mais barata, gera produtos sem tantos conservantes, etc. Então, na realidade, todo o sistema de especulação financeira tem de voltar a ser um sistema que ajude a desenvolver a economia real e não a aumentar fortunas privadas de grandes magnatas das finanças.

No Brasil, os bancos chamam de “investimento” o que é aplicação financeira. Nos Estados Unidos não existe a palavra de aplicação financeira, eles chamam tudo de investiment. Essa distinção é muito importante para termos mais pessoas entendendo o processo. Outra dinâmica que dificulta o entendimento é que no Brasil, para confundir, os grandes grupos apresentam o juro mensal. Isso é treta, porque o juro tem que ser calculado ao ano, porque as pessoas pensam que um juro mensal de 2% é menos se comparado ao juro anual de 6%, que é três vezes maior, mas não é. Eu tive um aluno que trabalhava nessas redes e ele dizia “professor, aqui (no Brasil), vender a prazo é muito fácil, pois ninguém entende de matemática financeira”. Quando se apresenta um juro de 2% a uma pessoa, ela pensa “isso é uma merreca, uma bobagem”, mas não é. O fato de apresentar juros ao mês é uma coisa escandalosa, porque tira a capacidade das pessoas de entenderem que tipo de negócio está sendo feito. Se colocam na negociação “você vai pagar 100% de juros” a pessoa entende que a metade do investimento que é feito vai para o intermediário financeiro e a outra metade é para comprar o produto.

A Akatu  teve uma iniciativa interessante criando e publicando uma cartilha em defesa dos consumidores que querem comprar legitimamente sua geladeira ou equipamentos eletrodomésticos básicos. Isso ocorreu, sobretudo, porque os intermediários financeiros descobriram esse dinheiro picado e distribuído entre milhões de pessoas e o sistema financeiro de juros permite a eles sugarem e com isso esterilizarem o imenso esforço de distribuição de renda feito no país.

IHU On-Line – Em que medida a crise civilizacional que vivenciamos não pode ser reduzida às questões política e econômica? Estamos diante de uma crise do humanismo?

Ladislau Dowbor – Esse é uma dimensão mais ampla. Ela se conecta com a primeira, mas na verdade é mais complexa. Nós temos 7,2 bilhões de habitantes. Só para as pessoas entenderem o que isso significa, pensemos quando nasceu o meu pai, em 1900, éramos 1,5 bilhão, atualmente somos 7,2 bilhões, repito. O aumento é dramático, está todo mundo querendo consumir mais. Toda a mídia, todo o sistema de informação que é financiado por empresas produtoras quer que a gente consuma mais. Esse negócio está, simplesmente, gerando um efeito catastrófico: temos o aquecimento global, a liquidação da cobertura florestal do planeta, a liquidação dos mares, e por aí vai. O WWF  publicou há dois meses um relatório sobre a destruição da vida dos vertebrados no planeta. Nós perdemos, entre 1970 e 2010, 52% da vida de vertebrados do planeta. Ou seja, nós estamos destruindo a vida em um ritmo absolutamente avassalador. Isso é irrefutável, os dados estão aí.

De um lado estamos destruindo o planeta em função da ganância de grupos que querem ganhar cada vez mais e mais; os americanos dizem “greed is good”, “a ganância é boa”. O segundo elemento dessa crise civilizacional é que estão deixando o planeta para aproximadamente um terço da população mundial, que são os grandes privilegiados, sobretudo o 1% que está no topo da pirâmide, ilustrada nas 85 famílias que têm um patrimônio acumulado maior que o da metade da população. Isso tem efeitos práticos, como o 1,3 bilhão de pessoas sem acesso à luz elétrica; pense que todas as crianças nessas casas não podem estudar decentemente, não têm acesso à informática e aos sistemas modernos. Está se preparando uma nova geração de desigualdade. Há 2 bilhões de pessoas que não têm acesso à água limpa e sabemos que a água contaminada é o principal vetor de doenças, o que gera mais gastos. Temos, segundo o Banco Mundial, 1,3 bilhão de pessoas que vivem com menos de 1,25 dólar por dia. Nós temos uma área de miséria, baseada nos 4 bilhões da base da pirâmide social, quase dois terços da população, chamada “educadamente” pelo Banco Mundial como “as pessoas que não têm acesso aos benefícios da globalização”, são os pobres do planeta.

Esse lado social está implodindo o planeta de outra forma. As explosões não são só nos países árabes, há movimentos de marginalizados por toda a parte, porque vivenciamos uma situação muito espantosa. Encontraremos, por exemplo, dados de que há televisão em 97% dos domicílios brasileiros, mas, no caso do saneamento básico, temos cerca de 40% das residências sem esse serviço. O problema é que as pessoas sabem, por meio da televisão, que podem ter direito à educação decente para os filhos, a uma saúde decente, isto é, não são mais pobres como antigamente de cabeça baixa e analfabetos completos. As pessoas agora querem exigir seus direitos. Então se esse planeta, pela parte das elites, não acordar e começar a realmente utilizar o volume gigantesco de recursos parados em paraísos fiscais ou nos sistemas especulativos e reinventar isso para financiar o desenvolvimento efetivo dos países para reforçar a inclusão produtiva, o desenvolvimento vai para o brejo.

IHU On-Line – Que Brasil teremos nos próximos quatro anos?

Ladislau Dowbor – Nós temos uma pressão imensa do que se convencionou chamar de “elite”, mas é uma elite extremamente retrógrada reagindo de maneira visceral, muito mais com o fígado que com a cabeça ao fato que os pobres estão levantando a cabeça, frequentando aeroportos, estão começando a participar da vida social. Então a parte das elites e grande parte da classe média alta acha isso escandaloso. Esse tipo de reação emocional não é só aqui, em 1964 vimos as madames que saíram na “Marcha da família com Deus” e coisas do gênero. Vimos as tentativas que foram feitas na véspera do suicídio de Vargas  tentando uma dinâmica de que tudo é corrupto e que temos que derrubar o Vargas. Nós temos hoje uma elite política golpista, na minha compreensão, que quer um certo retrocesso. Quando olhamos as manifestações de Junho de 2013 percebemos ali, misturado, gente que quer fazer pressão política por mudança só que com sinais contraditórios, onde tem uma parte, a da direita, querendo garantir seus privilégios, mas também há pessoas que, legitimamente, estão dizendo que devemos ir muito mais além, mais Prouni , mais extensão dos sistemas de formação profissional, mais investimento social, mais tecnologia para a agricultura familiar e por aí vai. Na verdade eu me colocaria na posição de quem quer que o Brasil volte a avançar.

O problema é que a pressão por parte do sistema financeiro trava o desenvolvimento. Então vejamos, a Europa baixou a cabeça, transferiu trilhões de dólares para os bancos, assim como os Estados Unidos fizeram para salvar seus bancos. O desafio é muito grande, mas essencialmente político, de uma classe conservadora de privilegiados que vêm mantendo um elitismo de Estado. Superamos a escravidão, e isso nem faz tanto tempo assim, conseguimos que a mulher tivesse direito ao voto — e estamos começando a ampliar os direitos das mulheres —, conseguimos eliminar do mundo o coronelismo. Quando olhamos em termos históricos tivemos avanços significativos, estamos em um mundo com muitas democracias. Entretanto, vamos sentir por toda parte a reação contra as democracias. Os ataques dos Estados Unidos à Venezuela por conta do petróleo; os ataques da direita na Bolívia, no Equador, na Argentina e outros.

De certa maneira o Brasil não é uma ilha. Em um clima de insegurança geral e especulação financeira a nossa grande vantagem é de ser um país que tem 200 milhões de consumidores. Nós temos uma base interna econômica muito forte e podemos depender menos de todo o sistema internacional e precisamos incluir de maneira decente muitíssima gente que somente começou a consumir um pouquinho. Então, o horizonte interno de preencher um espaço econômico gera uma capacidade fundamental, mas isso não ocorre diminuindo o investimento público, reduzindo os salários, pelo contrário, isso se faz gerando a capacidade de compra que permita dinamizar o conjunto. Junto com a África Subsaariana, temos a maior reserva de terras agrícolas do planeta e temos água. Com a expansão da população mundial há uma demanda muito forte por produtos agrícolas, que não é só alimento, mas também ração animal, biocombustível e fibras.

Sobre a crítica de o Brasil estar se reprimarizando, isso é uma grande bobagem. Se observarmos o setor da agricultura moderna, ele não tem nada a ver com o setor primário. O sistema de gestão do solo é extremamente sofisticado, inclusive demais, pois considero que há um processo químico exagerado. O Brasil não necessariamente vai encontrar o seu caminho somente por meio da indústria. Na realidade, com a necessidade de inclusão de uma imensa faixa da população que cria um horizonte de expansão interno, que não nos torna reféns da economia internacional, nos deixa em situação de um imenso potencial de fornecimento das necessidades básicas que o planeta demanda. Para o mercado interno se desenvolve um conjunto de áreas de bens e serviços diversificados e para fora se aproveitam as nossas vantagens em comparação com outros países. A América Latina é oca economicamente.

 

 

A “mão invisível” do mercado não funciona sem a “mão visível” do Estado

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Fernando Ferrari Filho destaca que em situações de crises de demanda efetiva, políticas fi scal e monetária contra-cíclicas e políticas de renda são imprescindíveis para mitigar os problemas de desemprego

Conforme análise do economista Fernando Ferrari Filho, “em um mundo globalizado e financeirizado, de livre mobilidade de capitais, a crise do sub-prime é a expressão mais clara e contundente de como a demanda por riqueza financeira e especulativa acaba gerando crises econômicas”. Com certeza, continua ele, “Keynes e os pós-keynesianos são as referências para entendermos os turbulentos dias atuais”. Na entrevista que concedeu por e-mail para a IHU On-Line, Fernando Ferrari afirma que “a crise de liquidez financeira dos Estados Unidos sem dúvida alguma afeta o lado real da economia norte-americana, ocasionando deflação dos ativos e recessão, e desencadeia um efeito contágio na economia mundial, principalmente na economia européia, especialmente a região do Euro, e a economia asiática”.

Fernando Ferrari Filho é graduado em Economia, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), mestre em Economia, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), doutor em Economia, pela Universidade de São Paulo (USP), e pós-doutor pela University of Tennessee System (1996). Atualmente, é professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Ele publicou, nos Cadernos IHU Idéias nº 37 o artigo: As concepções teórico-analíticas e as proposições de política econômica de Keynes. O texto está disponível para download em www.unisinos.br/ihu

IHU On-Line – Em que sentido as teorias de Keynes podem ser úteis no sentido de compreender a crise financeira internacional? Keynes contribui para vislumbrarmos alguma saída ou alternativa?

Fernando Ferrari Filho – A origem da crise do subprime está relacionada às perdas causada pelo crescente default dos empréstimos das hipotecas de subprime, grande parte delas “securitizadas” e distribuídas a investidores do mercado global. O agravamento da referida crise, por sua vez, passa pelo aumento da fragilidade financeira produzida por um lento e não percebido processo de erosão das margens de segurança de firmas e bancos, visto que os agentes apresentam posturas especulativas, que resultam em práticas de empréstimos de alto risco. Pois bem, sabendo que a teoria keynesiana explica os motivos pelos quais economias monetárias/capitalistas são inerentemente instáveis – sinteticamente, em um contexto de incerteza aguçada em relação aos resultados econômicos esperados em um futuro próximo e diante de um ambiente institucional desfavorável às tomadas de decisões, os agentes econômicos postergam decisão de gastos (consumo e investimento) e preferem liquidez (manutenção da riqueza na forma monetária) –, logo, em um mundo globalizado e “financeirizado” e de livre mobilidade de capitais, a crise do subprime é a expressão mais clara e contundente de como a demanda por riqueza financeira e especulativa (“securitizada” e “coberta”) acaba gerando crises econômicas. Com certeza, Keynes e os pós-keynesianos, dentre os quais H. Minsky, são as referências para entendermos os turbulentos dias atuais.

IHU On-Line – O senhor acredita que a crise financeira internacional em efeito dominó pode provocar mudanças no capitalismo?

Fernando Ferrari Filho – A crise do subprime e, por conseguinte, a crise de liquidez financeira dos Estados Unidos, sem dúvida alguma afeta o lado real da economia norte-americana, ocasionando deflação dos ativos e recessão, e desencadeia um efeito contágio na economia mundial, principalmente na economia européia, especialmente a região do Euro, e a economia asiática.

IHU On-Line – Segundo Keynes, o que é necessário para assegurar a estabilidade econômica e a harmonia social?

Fernando Ferrari Filho – Em situações de crises de demanda efetiva, políticas fiscal e monetária contra-cíclicas e políticas de renda são imprescindíveis para mitigar os problemas de desemprego. Essa, sem dúvida, é a principal mensagem do capítulo 24 da The general of employment, interest and money, de J. M. Keynes.

IHU On-Line – Qual a contribuição do Estado para a sobrevivência do capitalismo? Como o senhor avalia, nesse sentido, a postura do presidente Bush e do presidente Lula?

Fernando Ferrari Filho – A “mão invisível” do mercado não funciona sem a “mão visível” do Estado. Em outras palavras, pelo fato de os mercados terem, inerentemente, falhas de coordenação, a intervenção do Estado, visando criar um ambiente institucional favorável à realização de investimentos privados e expandindo a demanda efetiva, é imprescindível. Sem dúvida alguma, a discussão internacional atual não está centrada na questão terrorista, mas, sim, na crise financeira mundial, no fracasso da Rodada de Doha e na perspectiva da recessão mundial, entre outros temas econômicos. Nesse sentido, o discurso de Lula da Silva foi muito mais relevante do que o de G. W. Bush.

IHU On-Line – Podemos imaginar no contexto atual a proposta de Keynes de um capitalismo administrado, em que as disfunções do mercado fossem supridas pela intervenção do Estado?

Fernando Ferrari Filho – As crises cambiais e financeiras dos últimos anos, tais como as cambiais dos países emergentes ao longo dos anos 1990 e início dos anos 2000 e a recente crise norte-americana, mostram que a reestruturação do sistema monetário internacional está na ordem do dia. Nesse particular, mais uma vez, o legado de Keynes é de fundamental importância para se pensar a referida reestruturação. Uma proposta de reestruturação do sistema monetário internacional, tendo como base as idéias de Keynes, passa, pelo menos, por quatro pontos: (1) criação de um international market maker, emissor de uma moeda de conversibilidade, capaz de assegurar a liquidez necessária à expansão da demanda efetiva mundial; (2) controle dos fluxos de capitais de curto prazo (especulativos); (3) mecanismos de reciprocidade de ajustamento de balanço de pagamentos; e (4) taxas de câmbio administradas. Em outras palavras, a reestruturação do sistema monetário internacional precisa ser arquitetada de forma tal que o referido sistema não fique à mercê do livre mercado e, principalmente, da hegemonia econômico-financeira de determinado país.

IHU On-Line – Como Keynes veria o chamado “livre mercado”?

Fernando Ferrari Filho – Com ceticismo. Keynes, a partir, dos anos 1920, passa a ser bastante crítico do capitalismo à la laissez-faire. Por exemplo, em um artigo intitulado “The end of laissez-faire”, Keynes já argumentava que “o capitalismo, relativamente, administrado poderia ser mais eficiente”.

IHU On-Line – Podemos perceber algo das proposições de Keynes na política econômica do governo Lula?

Fernando Ferrari Filho – Em termos do tripé da política macroeconômica, qual seja, regime de metas de inflação, metas de superávit fiscal e flexibilidade cambial com livre mobilidade de capitais, política que vem sendo implementada no país desde 1999 e que foi endossada pelo governo Lula da Silva, não há similaridade entre a referida política e as proposições de Keynes. Todavia, se levarmos em consideração os programas de natureza social, tais como Bolsa Família e o Programa de Aceleração do Crescimento, pode-se dizer que esses programas procuram distribuir renda e criar um ambiente institucional favorável à realização dos investimentos privados, respectivamente.

IHU On-Line – Como entender, principalmente no contexto econômico atual, a afirmação de Keynes de que, em uma economia monetária, a moeda nunca é neutra?

Fernando Ferrari Filho – Em um mundo no qual o futuro é incerto e desconhecido, os indivíduos preferem reter moeda e, por conseguinte, suas decisões de gasto, sejam de consumo, sejam de investimento, são postergadas. Em outras palavras, a retenção de moeda, por parte dos indivíduos, se constitui em uma forma de segurança contra a incerteza em relação aos seus planos de transações e produção. Por que moeda? Porque moeda é o ativo líquido par excellence.

IHU On-Line – Quais as principais mudanças na economia introduzidas pela revolução teórica de Keynes e que permanecem com força até os dias atuais?

Fernando Ferrari Filho – As principais contribuições da teoria keynesiana são o “princípio da demanda efetiva” e a “teoria monetária da produção”. As duas contribuições ajudam a explicar porque as economias capitalistas não convergem para o pleno emprego e, mais ainda, são sujeitas a recorrentes instabilidades. O principal legado em termos de política econômica e que é válido nos dias de hoje? Estado e mercado são duas instituições complementares. Há uma sinergia entre ambas as instituições. A intervenção do Estado, seja em termos, eventualmente, de atividade produtiva e de políticas públicas, seja no sentido de criar mecanismos que propiciem um ambiente institucional favorável às tomadas de decisões dos indivíduos, constitui-se na solução para as crises de demanda efetiva e de desemprego.

 

 

Heranças coloniais e inserção econômica internacional

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Um dos grandes desafios para a economia de um país gigantesco como o Brasil, é como se inserir na economia internacional, numa sociedade que passa por grandes e rápidas transformações, se posicionar no novo modelo econômico e produtivo global é um imenso desafio, sem esta inserção o país estará condenado a uma mediocridade perpétua, relegando sua autonomia e soberania para outros países e outras nações, perdendo uma grande oportunidade de levar o país a alçar altos voos e melhorar as condições de vida da população.

Se olharmos para a história econômica brasileira, perceberemos que o país já se inseriu na lógica global em alguns momentos de sua trajetória, principalmente quando ainda era uma colônia de Portugal e nos caracterizávamos como uma economia agroexportadora, baseada em produtos primários de baixo valor agregado, voltado ao mercado externo e marcada por ciclos de monoculturas que se alteravam com constância, sem uma maior profissionalização e marcado por um grande amadorismo na gestão.

Como destacou o economista Celso Furtado no monumental Formação Econômica do Brasil, nossa nação durante muitos séculos foi descrita como uma economia baseada em ciclos econômicos que se alternavam, inicialmente com o pau-brasil, depois a cana de açúcar, os metais preciosos e o ciclo cafeeiro, todos estes ciclos contribuíram para que a metrópole extraísse uma ampla gama de recursos da colônia, mantendo esta última empobrecida e não melhorando de forma estrutural a riqueza de Portugal, estes recursos serviram apenas para satisfazer os luxos e os confortos de uma elite degradada.

Nestes ciclos encontramos uma estrutura centrada na extração e posterior embarque de produtos para a metrópole, com isso, as mercadorias daqui extraídas não colaboraram para melhorar as condições sociais da população, eram riquezas que foram transportadas para Portugal e este se utilizou dos recursos advindos desta venda para a aquisição de produtos e mercadorias industrializadas da Inglaterra, sem visão estratégia os portugueses perderam a oportunidade de construir uma estrutura produtiva moderna e dinâmica.

O Brasil estava inserido no comércio global, os portugueses carregavam seus navios com mercadorias advindas do Oriente Médio, principalmente temperos, frutos do mar, tecidos, lãs, dentre outros. Estes produtos eram trocados com as colônias portuguesas da África por escravos e levados ao Brasil, onde estes últimos eram deixados e os navios eram novamente carregados com produtos extraídos da colônia, principalmente cana de açúcar, pau-brasil e metais preciosos, o Brasil desde seu nascimento estava inserido no comércio internacional como uma colônia produtora de produtos primários e de baixo valor agregado.

Neste período de grande exploração, os portugueses não conseguiram introduzir um novo modelo econômico e produtivo, embora tenham extraído grandes fortunas e imensas riquezas do “comércio” com o Brasil, uma pequena parte destes recursos foi diretamente investido na economia portuguesa, como o país não tinha as perspectivas imediatas de desenvolver sua indústria ou outros setores estratégicos, continuou sua dependência de outros países na região, principalmente sua ampla dependência dos ingleses, na época a maior economia do mundo e dona da hegemonia no comércio internacional, país com inúmeras colônias, grande capacidade de empreender e ótima localização geográfica

A colonização brasileira teve início com a descoberta do país, em 1500, e terminou com a independência, fato este ocorrido em 1822, nestes mais de trezentos anos, a economia do país esteve sempre atrelada a uma economia mais estruturada, depois da colonização nossa dependência econômica passou para a Inglaterra, na época a grande pioneira da Revolução Industrial, momento central da história da humanidade que trouxe um salto tecnológico e produtivo em escala internacional e contribuiu para o crescimento da migração das pessoas do campo para as cidades e para um incremento de produtividade.

A colonização brasileira foi descrita como uma colonização de exploração, o que nos diferenciou da colonização dos Estados Unidos, cuja modelo foi chamada de povoamento, enquanto as riquezas da colônia portuguesas eram nítidas e bastante evidentes, na colônia inglesa, as montanhas e os territórios inóspitos, contribuíram para que os Estados Unidos fossem pouco explorados pelos descobridores, algo diferente aconteceu com o Brasil, que desde seus primórdios se caracterizou como uma economia explorada e muito mal gerida pela metrópole, com heranças negativas que se perpetuaram no tempo e ainda hoje podem ser vistas como características intrínsecas ao país.

Os portugueses legaram ao Brasil, um modelo muito burocratizado e marcado por traços fortes de intervencionismo e corrupção, as decisões deviam ser sempre tomadas e autorizadas pelo imperador, o que fazia com que tais decisões demorassem muitos meses, obrigando os investimentos e os empreendimentos a se perpetuarem durante muitos anos. Nos Estados Unidos encontramos uma situação bastante diferente, com um modelo mais descentralizado e dinâmico, as decisões eram sempre mais rápidas e dinâmicas, marcadas por um espírito mais acelerado, empreendedor e bastante flexível.

A base da economia colonial estava assentava na mão de obra escrava, com isso, o Brasil vai ficar muito distante da introdução de um mercado consumidor de massas, com grande parte do trabalho centrada na escravidão, o sistema capitalista nacional apresentava severas limitações, sem emprego e renda o sistema ficava inviabilizado na sua essência.

A escravidão também foi central para a construção de uma sociedade excludente, como uma grande parcela desta sociedade estava ausente desta estrutura de emprego, salário, renda e consumo, construímos um modelo onde a renda e a riqueza se concentrou na mão de poucos e a pobreza era uma característica geral e marcante, esta herança se mantem até os dias atuais fazendo do Brasil um dos países mais desiguais do mundo.

Dos quatro grandes ciclos econômicos vividos pelo país no período da colonização, o que mais contribuiu para o crescimento do país foi o ciclo do café, iniciado na metade do século XVIII, este ciclo teve seu maior progresso no século XIX, quando impulsionou a economia do país e contribuiu para que o processo de desenvolvimento adentrasse ao interior do país, inicialmente na região do norte fluminense, região de Campos dos Goytacazes e Vassoura e, posteriormente, na região do noroeste paulista, principalmente no entorno de Bauru, onde se desenvolveu imensamente, contribuindo para o crescimento do país e o fortalecimento do capitalismo nacional, além de impulsionar o crescimento das ferrovias que transformaram a região e abriram caminho para um forte ciclo de crescimento e desenvolvimento da região.

No século XIX, o país visualiza um embate na cultura cafeeira, que denota claramente como era a estrutura produtiva do país, de um lado o Brasil arcaico, escravista, marcado por baixa produtividade e com apoio político como instrumento de controle das varáveis econômicas e, de outro, um Brasil mais moderno, a favor de trabalhadores livres e adepto de investimentos variados para diversificar a produção e diminuir a dependência dos produtos primários de baixo valor agregado, neste embate  o Brasil moderno se sai melhor mas, quando toma o poder, percebe-se que o chamado de moderno não é tão moderno assim, com o poder nas mãos passa a adotar políticas tradicionais e conservadoras, mantendo o poder político para extrair do Estado Nacional as mais variadas benesses.

Ao analisarmos a sociedade brasileira percebemos que esta é uma das grandes características do Brasil, o moderno se une ao arcaico e constroem juntos um novo modelo de gestão, não existe uma ruptura com a sociedade tradicional e a construção de uma nova organização social, com isto estamos sempre presos a interesses e teorias antigas e ultrapassadas, enquanto o mundo avança o país se ressente de mais modernidade, uma modernidade verdadeira e dinâmica, mas o que vemos é uma modernidade conservadora.

Os ciclos anteriores foram pródigos em extrair grandes somas de riquezas do país e levá-las para o exterior, alimentando uma casta portuguesa cheia de interesses imediatistas, muito dinheiro, muita riqueza e nenhum projeto de desenvolvimento, o resultado desta política foi um incremento na importações de produtos ingleses que, com estes recursos, angariaram grandes somas de recursos para financiar o seu desenvolvimento industrial, se tornando o berço da civilização industrial e a economia dominante do mundo até o começo do século XX.

A ausência de uma estratégia de desenvolvimento para Portugal foi transplantada para o Brasil que, durante muitos anos depois da independência, se caracterizou por disputas predatórias entres grupos variados, principalmente entre setores da economia agrícola e, posteriormente, depois da Revolução de 1930, quando se confrontaram os agroexportadores e defensores de um Brasil agrícola e, de outro, um Brasil industrializado, que via na indústria uma estratégia central de desenvolvimento e de melhoria nas condições sociais da população, na sua maioria marcada pela pobreza extrema e pela marginalidade, tão bem retratados na obra Os bestializados de José Murilo de Carvalho.

A inserção do país na economia global, no período colonial, trazia alguns constrangimentos para a economia brasileira, de um lado, os produtos agrícolas tinham seus preços definidos pelo mercado externo, os demandantes tinham grande poder sobre a definição dos preços destes produtos. De outro, os produtos importados por países como o Brasil, na sua maioria mercadorias industrializadas, tinham seus preços definidos pelo produtor, com esta estrutura de preços do comércio internacional, percebíamos que a economia global privilegiava os países dotados de um maior desenvolvimento industrial em detrimento dos países agrícolas, o que inviabilizava uma estratégia de planejamento estratégico e perpetuava o poder e a dominação dos países ricos e industrializados.

O Brasil foi um dos últimos países a acabar com a escravidão, postergamos o máximo possível em colocar um ponto final nesta situação degradante, mesmo sofrendo a pressão dos ingleses, que viam na escravidão um entrave ao desenvolvimento do capitalismo no Brasil, ainda conseguimos manter uma estrutura escravocrata durante muitas décadas, desta forma percebemos uma herança de exploração, sofrimentos, altos custos e baixa produtividade, todas estas características que dão ao Brasil uma sociedade dividida entre exploradores e exploradas, com salários baixos e pouco dinamismo econômico.

As nossas escolhas sempre foram truncadas, nossas chamadas revoluções carecem de transformações estruturais, nossas leis sempre foram burladas de acordo com interesses de grupos poderosos e forças escusas e nossos sonhos sempre foram deixados de lado, desde sempre somos o país do futuro, nosso passado foi marcado por grandes exploração e desigualdade, fomos fundamentais para financiar grandes revoluções em outros países e regiões, impulsionamos com estas riquezas solos e regiões distantes mas, ainda não conseguimos encontrar um caminho para nosso próprio desenvolvimento, nossa elite se satisfaz com o desenvolvimento de outras regiões e evita contribuir para o desenvolvimento local, algo que só as teorias da psicanálise podem nos explicar convincentemente.

A estrutura agroexportadora perdeu força no Brasil com a crise de 1929, neste momento os nossos maiores compradores reduziram imensamente a compra de produtos brasileiros em decorrência da depressão em curso nos Estados Unidos e que se espalhou para toda a economia internacional. Com estoques elevados e preços em queda, o governo foi obrigado a interferir no mercado para evitar a quebra da economia cafeeira, neste momento os estoques de café são incinerados e os preços voltam ao ponto de equilíbrio, mas a economia cafeeira entra em colapso e abre espaço para novos grupos políticos, econômicos e sociais, tudo isso culmina na chamada Revolução de 30 e na ascensão de Getúlio Vargas ao poder, inicia-se o processo de industrialização brasileira.

O Estado sempre foi o local das grandes lutas políticas no Brasil, desde a independência até a Revolução de 30, o grande detentor dos poderes estatais eram os cafeicultores, que se utilizaram de seu poder para criar leis e construir políticas para satisfazer seus interesses econômicos e financeiros. Com a ascensão dos industriais a partir de Getúlio Vargas, percebemos uma outra elite dominando as estruturas do Estado e se utilizando deste poder para demarcar suas políticas e interesses, o Brasil rural perde espaço para um país mais urbano, novas formas de trabalho e instrumentos de estímulo ao setor produtivo, determinando os interesses do setor industrial.

O Estado brasileiro sempre defendeu os interesses dos grupos que o comanda, os setores mais fragilizados e depauperados são relegados ao esquecimento, sendo entregues a estes setores apenas as migalhas do capitalismo e os pequenos benesses do capital.

No começo do século XXI o Brasil se depara com desafios diferentes, a industrialização não trouxe os ganhos prometidos e o grande agente econômico é o setor do agronegócio, o país hoje pode ser descrito como um dos maiores exportadores de produtos agrícolas, para muitos especialistas temos um potencial para sermos o celeiro do mundo, temos clima e terra em abundância e solos e regiões ainda inexplorados, temos tecnologias de pontas construídas pelas empresas em parcerias com universidades e centros de pesquisas públicas e privadas, somos um dos maiores responsáveis pelos saltos de produtividade no campo e temos espaços de sobra para assumir esta liderança, o que nos falta é uma estratégia centrada em interesses maiores, estratégias que coloquem no centro os desejos e os anseios da sociedade brasileira, o fim da desigualdade e da pobreza, sem isto o país vai continuar sendo descrito como o país do futuro, um futuro sempre distante e que nunca chega.

 

 

 

 

 

 

 

O desafio dos bons empregos

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Dani Rodrik – Valor Econômico – 11/02/2019

No mundo inteiro, atualmente, o principal desafio para conquistar a prosperidade econômica inclusiva é a criação de números suficientes de “bons empregos”. Sem emprego produtivo e confiável para a vasta maioria da população em idade ativa de um país, ou o crescimento da economia continua fugaz ou seus benefícios acabam concentrados em uma minoria insignificante. A escassez de bons empregos também solapa a confiança nas elites políticas, o que alimenta a reação adversa autoritária e nativista que afeta muitos países atualmente.

A definição de um bom emprego depende, evidentemente, do nível de desenvolvimento econômico do país em questão. É, normalmente, um cargo estável no setor formal que vem acompanhado de salvaguardas trabalhistas essenciais, como condições de trabalho seguras, direitos de barganha coletivos e regulamentações contra demissões arbitrárias. Isso possibilita, no mínimo, manter um estilo de vida de classe média, de acordo com os padrões do país em questão, com renda suficiente para moradia, alimentação, transportes, educação e outros gastos da família, além de alguma poupança. Como argumenta há muito tempo Zeynep Ton, do MIT, as estratégias de “bons empregos” podem ser tão lucrativas para as empresas quanto o são para os trabalhadores.

Mas o problema mais profundo é o de caráter estrutural. Tanto países desenvolvidos quanto em desenvolvimento sofrem hoje de uma crescente incompatibilidade entre a estrutura da produção e a estrutura da população em idade ativa. A produção está se tornando cada vez mais intensiva em qualificação, enquanto o grosso da força de trabalho continua de baixa qualificação. Isso gera uma disparidade entre os tipos de empregos e os tipos de trabalhadores disponíveis.

A tecnologia e a globalização conspiraram para ampliar essa discrepância, com a automação e a digitalização cada vez maiores da indústria e dos serviços. Embora as novas tecnologias pudessem ter beneficiado trabalhadores de baixas qualificações, em princípio, na prática o avanço tecnológico foi, em grande medida, de substituição de mão de obra. Além disso, o comércio e os fluxos de investimento internacionais, e as cadeias de valor mundiais, em especial, homogeneizaram as técnicas de produção no mundo inteiro, tornando muito difícil para países mais pobres competir nos mercados mundiais sem adotar técnicas intensivas em qualificações e em capital semelhantes às utilizadas nas economias avançadas.

O resultado disso é a intensificação do dualismo econômico. Toda economia do mundo de hoje é dividida entre um segmento avançado, geralmente mundialmente integrado, que emprega uma parcela minoritária da população em idade ativa, e um segmento de baixa produtividade que absorve o grosso dessa população, muitas vezes a baixos salários e sob condições precárias.

Há apenas três maneiras de reduzir a incompatibilidade entre a estrutura dos setores produtivos e a da população em idade ativa. A primeira estratégia, e a que concentra o grosso da atenção das políticas públicas, é o investimento em qualificações e em educação. Se a maioria dos trabalhadores adquirirem a capacitação e as qualificações exigidas pelas tecnologias avançadas, o dualismo acabará se desfazendo, com a expansão dos setores de alta produtividade em detrimento dos demais.

Toda economia do mundo hoje é dividida entre um segmento avançado, mundialmente integrado, que emprega parcela minoritária da população em idade ativa, e um segmento de baixa produtividade que absorve o grosso dessa população, muitas vezes a baixos salários.

Essas políticas voltadas para o capital humano são importantes, mas seus efeitos serão sentidos no futuro. Elas são pouco operantes no enfrentamento das realidades presentes do mercado de trabalho. Não é possível transformar a população em idade ativa da noite para o dia. Além disso, sempre há ao risco real de que a tecnologia avance mais rapidamente do que a capacidade da sociedade de educar os recém-ingressos em sua população em idade ativa.

Uma segunda estratégia é convencer empresas bem-sucedidas a empregar mais trabalhadores pouco qualificados. Em países em que as diferenças de qualificações não são enormes, os governos podem (e devem) convencer suas empresas de sucesso a aumentar o nível de emprego – ou diretamente ou por meio de seus fornecedores locais. Os governos dos países desenvolvidos também têm um papel a desempenhar para mudar a natureza da inovação tecnológica. Frequentemente, eles subsidiam tecnologias substitutivas de mão de obra, capital intensivas, em vez de conduzir a inovação para direções socialmente mais benéficas, voltadas para aumentar, em vez de substituir, o contingente de trabalhadores menos qualificados.

Essas políticas pouco tendem a fazer muita diferença em países em desenvolvimento. Para eles, o principal obstáculo continuará a ser o fato de que as tecnologias já adotadas dão espaço insuficiente à substituição de fatores: usar mão de obra menos qualificada em vez de profissionais qualificados ou capital físico. Os exigentes padrões de qualidade necessários para abastecer as cadeias de valor mundiais não podem ser atendidos facilmente pela substituição de máquinas por mão de obra manual. É por isso que a produção mundialmente integrada, mesmo nos países mais abundantes em mão de obra, como a Índia ou a Etiópia, recorre a métodos relativamente intensivos em utilização de capital.

Isso coloca um largo segmento de economias em desenvolvimento – desde países de renda média, como o México e a África do Sul até países de baixa renda, como a Etiópia – diante de um enigma. A solução padrão de melhorar as instituições educacionais não rende benefícios de curto prazo, enquanto os setores mais avançados da economia são incapazes de absorver a superoferta de trabalhadores de baixa qualificação.

A resolução desse problema pode exigir uma terceira estratégia, que é a que capta o menor grau de atenção: impulsionar uma faixa intermediária de atividades de baixa qualificação intensivas em uso de mão de obra. O turismo e a agricultura não tradicional são os principais exemplos desses setores que absorvem mão de obra. O emprego público (em construção e prestação de serviços), há muito desprezado pelos especialistas em desenvolvimento, é outra área que pode exigir atenção.

A política governamental, tanto nos países desenvolvidos quanto nos em desenvolvimento, está, com muita frequência, preocupada em impulsionar as tecnologias mais avançadas e em promover as empresas mais produtivas. Mas a incapacidade de gerar empregos bons, de classe média, tem custos sociais e políticos muito altos. Reduzir esses custos exige um foco diferente, voltado especificamente para o tipo de emprego alinhado com a composição de qualificações dominante na economia em questão. (Tradução de Rachel Warszawski).

Dani Rodrik, professor de economia política internacional da Faculdade de Governo John F. Kennedy, da Universidade de Harvard, é autor de “Straight Talk on Trade: Ideas for a Sane World Economy”.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O resultado disso é Há apenas três maneiras de reduzir a incompatibilidade entre a estrutura dos setores produtivos e a da população em idade ativa. A primeira estratégia, e a que concentra o grosso da atenção das políticas públicas, é o investimento em qualificações e em educação. Se a maioria dos trabalhadores adquirirem a capacitação e as qualificações exigidas pelas tecnologias avançadas, o dualismo acabará se desfazendo, com a expansão dos setores de alta produtividade em detrimento dos demais. Toda economia do mundo hoje é dividida entre um segmento avançado, mundialmente integrado, que emprega parcela minoritária da população em idade ativa, e um segmento de baixa produtividade que absorve o grosso dessa população, muitas vezes a baixos salários Essas políticas voltadas para o capital humano são importantes, mas seus efeitos serão sentidos no futuro. Elas são pouco operantes no enfrentamento das realidades presentes do mercado de trabalho. Não é possível transformar a população em idade ativa da noite para o dia. Além disso, sempre há ao risco real de que a tecnologia avance mais rapidamente do que a capacidade da sociedade de educar os recém-ingressos em sua população em idade ativa. Uma segunda estratégia é convencer empresas bem-sucedidas a empregar mais trabalhadores pouco qualificados. Em países em que as diferenças de qualificações não são enormes, os governos podem (e devem) convencer suas empresas de sucesso a aumentar o nível de emprego – ou diretamente ou por meio de seus fornecedores locais. Os governos dos países desenvolvidos também têm um papel a desempenhar para mudar a natureza da inovação tecnológica. Frequentemente, eles subsidiam tecnologias substitutivas de mão de obra, capital intensivas, em vez de conduzir a inovação para direções socialmente mais benéficas, voltadas para aumentar, em vez de substituir, o contingente de trabalhadores menos qualificados. Essas políticas pouco tendem a fazer muita diferença em países em desenvolvimento. Para eles, o principal obstáculo continuará a ser o fato de que as tecnologias já adotadas dão espaço insuficiente à substituição de fatores: usar mão de obra menos qualificada em vez de profissionais qualificados ou capital físico. Os exigentes padrões de qualidade necessários para abastecer as cadeias de valor mundiais não podem ser atendidos facilmente pela substituição de máquinas por mão de obra manual. É por isso que a produção mundialmente integrada, mesmo nos países mais abundantes em mão de obra, como a Índia ou a Etiópia, recorre a métodos relativamente intensivos em utilização de capital. Isso coloca um largo segmento de economias em desenvolvimento – desde países de renda média, como o México e a África do Sul até países de baixa renda, como a Etiópia – diante de um enigma. A solução padrão de melhorar as instituições educacionais não rende benefícios de curto prazo, enquanto os setores mais avançados da economia são incapazes de absorver a superoferta de trabalhadores de baixa qualificação. A resolução desse problema pode exigir uma terceira estratégia, que é a que capta o menor grau de atenção: impulsionar uma faixa intermediária de atividades de baixa qualificação intensivas em uso de mão de obra. O turismo e a agricultura não tradicional são os principais exemplos desses setores que absorvem mão de obra. O emprego público (em construção e prestação de serviços), há muito desprezado pelos especialistas em desenvolvimento, é outra área que pode exigir atenção. A política governamental, tanto nos países desenvolvidos quanto nos em desenvolvimento, está, com muita frequência, preocupada em impulsionar as tecnologias mais avançadas e em promover as empresas mais produtivas. Mas a incapacidade de gerar empregos bons, de classe média, tem custos sociais e políticos muito altos. Reduzir esses custos exige um foco diferente, voltado especificamente para o tipo de emprego alinhado com a composição de qualificações dominante na economia em questão. (Tradução de Rachel Warszawski)

Dani Rodrik, professor de economia política internacional da Faculdade de Governo John F. Kennedy, da Universidade de Harvard, é autor de “Straight Talk on Trade: Ideas for a Sane World Economy”.

Desigualdade, Políticas Sociais e crescimento econômico: uma análise de duas experiências exitosas de combate à exclusão social no Brasil contemporâneo.

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Artigo escrito com o intuito de contribuir para a discussão da desigualdade recente no Brasil e no mundo, destacando os avanços na sociedade brasileira e analisando dois programas exitosos de políticas públicas.

Sociedade da vigilância em rede

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Ricardo Abramovay – Revista Quatro Cinco Um: a revista dos livros – 08/03/2019

Três livros ainda inéditos no Brasil expõem o desencanto de pensadores com as promessas da inteligência artificial

A vigilância tornou-se a marca característica das sociedades contemporâneas ao final da segunda década do milênio. Não se trata de perseguição política, de arapongas ou de bisbilhotice, e sim de algo muito mais profundo, pervasivo e impactante: a vigilância se converteu em parte decisiva da nossa sociabilidade, ou seja, da maneira como nos relacionamos uns com os outros e com as coisas. E assim é porque a vigilância ocupa o epicentro do modelo de negócios das mais importantes empresas da economia contemporânea, ou seja, as de maior valor, de maior presença em nossa vida cotidiana, que concentram o cerne da inovação tecnológica e espalham pelo conjunto da sociedade o uso de dispositivos conectados ao ecossistema corporativo que lideram. O Estado não é seu principal vetor, embora tenha participado (às vezes ativamente, às vezes por omissão) em sua emergência.

“Compartilhamento” é a forma adocicada de sua apresentação pública. Os 510 mil comentários e as 136 mil fotos postadas no Facebook por minuto, as 40 mil buscas no Google por segundo (1,2 trilhão em 2018) ou os 60 milhões de fotos que sobem ao Instagram todos os dias nos perfis de seus 500 milhões de usuários diários são a matéria-prima da mais importante inovação tecnológica do século 21: a inteligência artificial.

O que caracteriza a vigilância não é só o sistema de captação de dados embutidos em nossos computadores, celulares e em todas as dimensões de nossa vida — quando fazemos compras, quando nos deslocamos de carro ou de transporte coletivo, e também os momentos em que estamos dentro de casa ou no trabalho. Tão importante quanto a captação desses dados é a capacidade daqueles que os usam de fazer inferências a respeito do nosso comportamento, abrindo caminho para que nos conheçam melhor e possam aplicar modelos às nossas atitudes com o objetivo de prever o que faremos.

O que foi caracterizado, há vinte anos, por Manuel Castells, em sua clássica trilogia, como a “sociedade da informação em rede”, converteu-se na “sociedade da vigilância em rede, que integra um conjunto de sensores embutidos não só nos dispositivos que identificamos como produtores de dados (computadores e celulares), mas também em equipamentos que se integram de maneira imperceptível para nós, com o objetivo não só de conhecer o nosso comportamento, mas, sobretudo, de interferir em nossa conduta como consumidores e cidadãos. A computação não é mais uma atividade específica: ela se tornou ubíqua.

Churchill dizia: ‘Moldamos os nossos prédios e depois eles nos moldam’. Isso se aplica às tecnologias que marcam as mudanças sociais, em qualquer época

É verdade que novas tecnologias têm sempre o impressionante poder de modificar a sociabilidade humana. Como mostra Robert Gordon  em The Rise and Fall of American Growth [ascensão e queda do crescimento americano], a água encanada, a coleta de lixo, a eletricidade, o telefone, o rádio, a TV, o automóvel, o transporte de massas, os antibióticos e o raio X mudaram completamente a sociabilidade e a própria subjetividade dos habitantes dos países que puderam adotar essas transformações de forma generalizada, no início do século 20. Winston Churchill dizia: “Moldamos os nossos prédios e depois eles nos moldam”. É claro que isso se aplica às tecnologias que marcam as mais importantes mudanças sociais, em qualquer época. Elas sempre nos moldam de alguma forma, assim como os prédios de Churchill.

Mas a capacidade de nos moldar vinda das tecnologias contemporâneas, sobretudo da inteligência artificial, é inédita. Por mais que o automóvel, o elevador, os túneis e os viadutos alterem a nossa percepção sobre o espaço, as distâncias e os territórios, eles estão fora de nós, diferentemente dos dispositivos digitais, que não apenas colocam a vigilância no nosso bolso, no nosso corpo, na nossa casa, no nosso carro e nas ruas, mas usam-na para prever e, cada vez mais, determinar o que fazemos. São tecnologias que interferem de maneira direta e voluntária em nossa mente.

Três livros recentes, ainda não publicados no Brasil, estudam algumas das mais importantes dimensões desse fenômeno: a moldagem dos comportamentos humanos, a orientação da política na era da vigilância em rede e o lugar histórico da vigilância na evolução do próprio capitalismo.

Arquitetura do comportamento

Não existe em português uma boa tradução para o verbo que dá título ao livro de Brett Frischmann (da Villanova University e de Stanford) e Evan Selinger (do Rochester Institute of Tecnology), Re-Engineering HumanityEngineering, em inglês, aproxima-se de um conjunto que inclui construir, influenciar, moldar, manipular e fazer. “Re-engenheirar” a humanidade não é simplesmente um meio de ampliar as vendas, com base nas informações coletadas sobre as preferências das pessoas oferecendo-lhes, nas palavras de Mark Zuckerberg, anúncios que lhes sejam relevantes. Na verdade, as informações permanentemente coletadas e analisadas por algoritmos, cujo funcionamento nos é completamente opaco, permitem que nossa conduta seja previsível e, justamente por isso, abrem caminho a uma interferência em nosso cotidiano que é inédita e atinge todas as esferas da vida social.

Em 2014, por exemplo, a Amazon patenteou um sistema que permite antecipar o que os clientes querem comprar, antes mesmo que eles próprios o saibam. A mágica está nas informações reunidas sobre cada um de nós e na análise que delas é feita. Essa é uma das explicações para a compra pela Amazon, em fevereiro de 2019, da Eero, uma start up que amplia o alcance das conexões de wi-fi e elimina os pontos cegos (ou surdos) no interior das residências. Boa notícia, salvo, como lembra matéria do Financial Times, o fato de que o dispositivo terá o condão de ampliar a quantidade e a variedade de dados domésticos que a Amazon recebe sobre os usuários da inovação, fortalecendo assim sua capacidade preditiva sobre o nosso comportamento e somando-se às informações já hoje fornecidas pelo robô doméstico Alexa, do qual já foram vendidos nada menos que 100 milhões de unidades. Somando-se Alexa, Siri (da Apple) ou Google Assistant, um quarto dos domicílios norte-americanos possui hoje um smart speaker. A eles podem-se acrescentar outros dispositivos de vigilância como as tvs inteligentes da Samsung, que não só respondem a comandos de voz, mas registram e armazenam as informações derivadas de conversas no local onde o aparelho se encontra. Ou, então, equipamentos capazes de informar a quem está em casa sobre o estado de espírito de um membro da família que vem chegando da rua.

A Amazon patenteou um sistema que antecipa o que os clientes querem comprar, antes que eles o saibam

Da mesma forma que o gps vai subtraindo das pessoas a capacidade de se localizar, serão cada vez mais frequentes os dispositivos voltados a substituir a nossa percepção, a nossa intuição e a nossa empatia por informações que orientam o nosso comportamento. A atenção moral e o cuidado com o outro são superados pelos resultados matematicamente certeiros da mineração de dados. Reduzem-se os custos de transação nas relações pessoais, mas essa redução, ao mesmo tempo, abre caminho para que a compreensão do outro seja terceirizada para as máquinas. As trocas pessoais são “re-engenheiradas”.

Em última análise, o caminho tomado pelas tecnologias digitais está desafiando a ideia-chave do Iluminismo de que somos indivíduos autônomos e responsáveis por nossas decisões. Claro que essas capacidades humanas são aprendidas e desenvolvidas na vida social. O problema é que as bases para uma formação individual voltada ao exercício da liberdade podem ser solapadas por dispositivos que, sob o pretexto de ampliar nossa mente, de operar como próteses cognitivas, acabam inibindo o nosso maior bem comum, que é a capacidade autônoma de conviver com os outros.

A conclusão é que um dos mais importantes desafios do século 21 está na liberdade de nos desconectarmos e de nos tornarmos independentes do poder, embutido nos dispositivos em que estamos imersos, de determinar quem somos e como nos relacionamos.

Engenheiros filósofos

Os impactos políticos das tecnologias de vigilância são estudados pelo advogado britânico Jamie Susskind, ex-assessor de Tony Blair e do senador Edward Kennedy, em Future Politics. Sua tese central é que as leis, nas sociedades contemporâneas, serão executadas (enforced) e estarão cada vez mais embutidas nos dispositivos digitais que usamos. É o veículo autônomo (e não seu condutor) que vai submeter-se aos limites de velocidade e à regulamentação para estacionar. O tema já havia sido estudado, desde 1999, nos trabalhos do advogado e ativista norte-americano Lawrence Lessig, que o sintetizou na fórmula “code is law”. Os programas digitais terão a força de determinar a nossa conduta.

Se, durante o século 20, se tratava de saber em que medida a nossa vida era determinada pelo Estado, pelo mercado e pela sociedade civil, agora a questão (que norteia o livro de Susskind) é outra: em que medida a nossa vida será determinada por poderosos sistemas digitais e em que termos esse poder será exercido.

A dominação — a capacidade de fazer os outros agirem segundo a vontade do dominador, na célebre definição de Max Weber — cada vez mais estará em códigos a partir dos quais nossos equipamentos trarão a instrução sobre o que podemos e o que não podemos fazer. No lugar das regulamentações escritas virão as prescrições programadas. A força, até aqui concentrada numa esfera pública (o Estado), vai se transferindo para a esfera privada, controlada pelos gigantes das tecnologias digitais. Assim, os que controlam essas tecnologias terão crescente poder sobre a vida social e, portanto, sobre o futuro da democracia e da liberdade.

Nos processos legislativos democráticos, as leis mudam com base em discussões públicas, orientadas por representantes eleitos, por mais que haja falhas nessa representação. No mundo da vida digital, a mudança é adaptativa, e, mesmo quando responde a pressões sociais (como a decisão do WhatsApp de reduzir para cinco o número de destinatários de mensagens encaminhadas simultaneamente), ela não passa por um debate público.

Mais que isso: a tradição liberal na política sempre exaltou o caráter experimental dos processos legislativos. Tanto Karl Popper quanto Friedrich Hayek sustentavam a impossibilidade de conhecer a vida social na sua totalidade e a importância do erro e de suas correções como expressões das virtudes da democracia. Ninguém poderia ter certeza de que possuía a solução correta para determinado problema, e por isso o debate democrático deveria ocupar o centro da vida política. A principal consequência política da nossa dependência dos dispositivos digitais é que eles abrem caminho a soluções políticas resultantes daquilo que pontificam os algoritmos e não dos representantes políticos.

Os algoritmos vão se tornando cada vez mais misteriosos conforme ganham autonomia no processo de aprendizagem das máquinas

A nossa própria percepção do mundo é cada vez mais controlada pelos sistemas digitais que filtram a maneira como nos informamos. Os mediadores humanos são substituídos por sistemas automatizados. Daí resulta, para Susskind, uma fragmentação social que bloqueia o próprio debate público. Contrariamente à expectativa inicial de seus pioneiros e de seus mais importantes teóricos, o alargamento esperado da nossa capacidade comunicativa e da variedade de informações que formam a nossa cultura política converteu-se nas bolhas de repetição e redundância a que o escrutínio minucioso e personalizado dos algoritmos nos submete. Tanto mais que os algoritmos, além de propriedade privada, vão se tornando eles mesmos cada vez mais misteriosos, conforme ganham autonomia no processo de aprendizagem das máquinas.

A opacidade das decisões tomadas pelos algoritmos chegou a tal ponto que a Darpa (a agência militar norte-americana onde nasceu a internet) criou um programa (Explainable Artificial Intelligence) para que os pesquisadores tentem entender as decisões resultantes dos processos autônomos de aprendizagem de máquinas.  Pois é essa autonomia (das máquinas, não nossa!) que está desempenhando e vai desempenhar um papel cada vez mais importante na regulação das nossas atividades, ou seja, na política.

A mais importante conclusão de Susskind, inspirada por Tim Berners Lee, inventor da World Wide Web, é que o mundo precisa com urgência de “engenheiros filósofos”. Não se trata de uma opção tecnocrática que concentre ainda mais poder em alguns sábios, e sim da urgência de que o desenvolvimento tecnológico esteja organicamente vinculado a opções éticas não só sobre os impactos, mas também sobre o próprio sentido dos aparatos digitais em que nossa vida está mergulhada. E isso só se faz com amplo debate público.

Capitalismo de vigilância

Publicado em janeiro, The Age of Surveillance Capitalism [A era do capitalismo de vigilância], de Shoshana Zuboff — psicóloga e uma das primeiras mulheres a conquistar uma cátedra na escola de negócios de Harvard —, já foi comparado à Primavera silenciosa de Rachel Carson e até ao Capital de Marx. O evidente exagero deve-se à ambição de suas setecentas páginas. Zuboff procura nada menos que os fundamentos teóricos capazes de explicar a nova modalidade de capitalismo trazida pelos gigantes digitais e cuja essência pode ser assim resumida: se no capitalismo do século 20 o controle dos meios de produção era a base para a extração do trabalho humano em que se apoiam os ganhos empresariais, hoje os lucros corporativos provêm de um conjunto amplo e generalizado de meios de modificação do nosso comportamento.

Não é mais o trabalho, e sim a experiência humana, em todas as suas dimensões, que é apropriada e transformada em dados para servir de base para uma interferência cada vez maior na nossa vida. A marca central das sociedades contemporâneas (o que já havia sido antecipado de forma pioneira pela obra de André Gorz, que, infelizmente, Zuboff nem sequer menciona) não é mais a exploração do trabalho, e sim aquilo que Jürgen Habermas chamou de colonização do mundo da vida, ou seja, a transformação de nossas relações pessoais, de nossa intimidade, de nossa interação, em base para a acumulação capitalista por meio justamente da vigilância. No lugar de “modo de produção”, surgem dispositivos que criam “modos de modificação de comportamento”. O excedente econômico torna-se, assim, comportamental, e os ativos que permitem a extração desse excedente são ativos de vigilância, em que é fundamental o sistema ubíquo de computação que a internet das coisas está ampliando com velocidade estonteante.

Mas a vigilância está longe de ser um fenômeno fundamentalmente econômico. Psicóloga de formação, Zuboff conheceu pessoalmente B. F. Skinner durante sua graduação. Skinner concebia a liberdade humana como uma completa ilusão, derivada apenas da nossa ignorância. Caso tivéssemos instrumentos capazes de obter e analisar os dados em função dos quais agimos, veríamos, sustentava Skinner, que as nossas ações são sempre condicionadas a estímulos, incentivos, punições ou aos contextos que produzem esses estímulos. Assim, para Skinner, a liberdade e os valores básicos que o Iluminismo (sobretudo Kant) expressou na ideia de autonomia humana são fruto da nossa ignorância, e não virtudes que deveríamos exaltar. Essas ideias, publicadas por Skinner em Além da liberdade e da dignidade (1971), estão, mostra Zuboff, na raiz do capitalismo de vigilância.

Em nossa época, o excedente econômico torna-se comportamental, e os ativos que permitem a extração desse excedente são ativos de vigilância 

É claro que estas linhas não fazem justiça à riqueza de dados e de explicações sobre essa obra, que já está marcando tão fortemente o debate sobre o significado histórico da revolução digital e de sua modalidade presente, que Zuboff denomina capitalismo de vigilância. Chama a atenção a escassez de menções a movimentos de resistência às práticas dos gigantes digitais contemporâneos. Da mesma forma, há uma hesitação no livro entre a ideia de que o que está em questão é o capitalismo (e não as tecnologias) e a ausência total de qualquer menção àquilo que poderia ser uma abordagem não capitalista do uso dos dispositivos digitais na vida social. Nada disso, porém, tira o imenso valor do livro.

Na verdade, os três livros aqui comentados exprimem o desencanto do pensamento contemporâneo com relação a dispositivos que vinte anos atrás prometiam abrir portas para a emancipação social. Mas, em comum, as três obras levantam a bandeira da liberdade e da autonomia humanas contra um sistema que, em nome da eficiência, reduz a nossa iniciativa, a nossa capacidade de ação independente e ameaça a nossa dignidade.

Frischmann, Brett; Selinger, Evan
Re-Engineering Humanity  Cambridge University Press • 430 pp • R$ a definir

Susskind, Jamie
Future Politics Oxford University Press • 544 pp • R$ a definir

Zuboff, Shoshana
The Age of Surveillance Capitalism PublicAffairs • 704 pp • R$ a definer

https://www.quatrocincoum.com.br/br/resenhas/economia/sociedade-da-vigilancia-em-rede

Economia do baixo crescimento e das Instabilidades crescentes

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Depois de um período de recessão marcado por baixíssimo crescimento econômico, aumento no desemprego, redução na renda e nos salários e queda vertiginosa nos investimentos, as perspectivas para este ano são menos empolgantes, depois de um momento de êxtase nos mercados financeiros, com queda no dólar e recorde na Bolsa, o Brasil vive um período de incertezas e inseguranças no campo econômico.

Nos primeiros sessenta dias do novo governo percebemos um misto de imaturidade política, amadorismo crescente e um falatório generalizado, um governo novo com vícios antigos e conhecidos, alguns falam demais, emitem opinião sobre tudo e todos, enquanto outros falam de menos, com isso, percebemos na sociedade e no mercado financeiro uma grande apreensão, sem mudanças sólidas o país não tem chances de superar este crescimento medíocre e insuficiente.

Depois de uma década de forte crescimento, o país se depara, a partir de 2014, com graves problemas econômicos e políticos, o lado fiscal da economia se ressente de um maior equilíbrio, os déficits crescem de forma acelerada, os gastos públicos são reduzidos e a economia perde seu motor mais importante, com isso, o país amarga uma de suas maiores recessões, em 2015 o PIB caiu 3,9%, em 2016 outro tombo de 3,6%, em 2017 algum crescimento, modestos 1,1%, neste momento a economia sai da recessão e as perspectivas para o ano seguinte passam a ser melhores, uns acreditando em quase 3%, outros defendendo números mais modestos, na casa do 2%, depois dos doze meses percebemos um crescimento ridículo na casa dos 1,1%, repetindo valores do ano anterior e aumentando as incertezas sobre a economia e as perspectivas para o sistema produtivo.

O Brasil vive um período de grandes transformações, depois de um aumento das intervenções estatais e de gastos públicos que incrementaram o crescimento econômico mas, ao mesmo tempo, degradaram as finanças públicas e abriram espaço para uma recessão sem precedentes, obrigando os governantes a adotarem políticas mais efetivas no controle dos gastos públicos, com isso, a economia literalmente entrou em um sinal de baixo crescimento e a recuperação está se mostrando cada vez mais complexa, exigindo novos esforços de uma população depauperada pelas crises constantes.

Se olharmos para os indicadores macroeconômicos, perceberemos que o país apresenta um superávit nas contas externas e uma grande quantidade de reservas em moeda estrangeira, os preços internos estão controlados e a taxa de juros se encontra em números reduzidos se comparado com períodos anteriores, de outro lado encontramos uma situação fiscal degradada com déficits acima dos 100 bilhões de reais e um desemprego na casa dos 12% da população, inviabilizando investimentos e melhores resultados no futuro.

A inflação baixa e controlada está mais atrelada ao baixo consumo e a recessão do que a outros instrumentos de política monetária, a população se encontra endividada, as empresas de análise de crédito estimam em mais de 60 milhões de brasileiros inadimplentes, os empresários estão com estoques altos e as vendas estão em compasso de espera, com isso, os investimentos estão sendo postergados para momentos melhores e mais consistentes, sem consumo e sem investimentos a economia não anda e a situação do país se agrava, gerando incertezas e instabilidades crescentes.

A situação econômica exige um forte choque de confiança e de credibilidade, cabe aos agentes econômicos mostrar a sociedade novos caminhos para o crescimento, para que isso aconteça algumas medidas importantes precisam de tomadas, controlar os gastos do Estado é fundamental para melhorar as perspectivas fiscais e abrir espaço para novos investimentos governamentais, gerando novos empregos, melhorando a renda e estimulando o sistema econômico. Controlar os gastos é uma medida crucial, mas insuficiente para melhorar o universo fiscal do Estado, uma política mais estrutural exige uma consistente reforma previdenciária, que seja implementada para produzir uma economia no médio e no curto prazos, reduzindo os privilégios e melhorando as condições de alguns grupos vulneráveis da sociedade brasileira, uma reforma tributária que aumente a quantidade de pessoas que pagam impostos, um forte combate a sonegação e a evasão fiscal, e uma maior tributação sobre setores mais abastados, inclusive reduzindo isenções de inúmeros setores econômicos, dentre eles o agronegócio e o financeiro, segundo especialistas, o Brasil vem, nos últimos anos, deixando de arrecadar mais de 4% do produto interno Bruto, algo em torno de 250 bilhões de reais, com estes recursos os déficits nas contas públicos não existiriam e o país poderia melhorar rapidamente sua condição macroeconômica.

Destacamos ainda, como fundamental para a melhora das instituições do país a reforma política e eleitoral, como se governa uma sociedade com uma gama tão ampla de partidos políticos como temos na atualidade no Brasil? Uma grande parte destas agremiações foram criadas por grupos políticos minoritários que se utilizem destas estruturas para abocanhar os fundos partidários, com prestação de contas inexistentes e desvios generosos para políticos e expoentes de destaque na organização político-partidária.

Outro ponto importante que deve ser privilegiado pelo novo governo é referente ao sistema bancário e financeiro, os bancos são detentores de grandes lucro, mesmo com uma economia em forte recessão, faz-se fundamental aumentar a competição no sistema estimulando e regulando as fintechs, incrementando a inserção da população no sistema financeiro, acelerando reformas microeconômicas, aumentando o acesso ao crédito, reduzindo as taxas de juros de forma consistente e melhorando o ambiente de negócios. Uma política forte na diminuição da burocracia é fundamental para o crescimento dos investimentos públicos e privados, nos últimos anos foram sendo criadas instituições estatais que atuam de forma exagerada na fiscalização e regulação, ministérios, agências reguladoras, cada uma disputando poder e buscando uma maior influência nos negócios, isso sem falar no aparelhamento políticos destas organizações, instrumentos importantes tecnicamente acabaram se tornando espaços degenerados e disputados por grupos políticos como forma de mostrar poder e influência sobre a sociedade.

No cenário internacional, faz-se necessário uma observação mais consistente da economia global, depois da crise de 2008, os governos atuaram fortemente no sentido de injetar bilhões e bilhões de dólares e euros nos mercados domésticos, os países conseguiram melhorar suas performances mas não conseguiram gerar crescimentos mais sólidos, diante disso, os governos dos países desenvolvidos estão, novamente, aumentando os incentivos para seus setores produtivos, como se vê na China, Estados Unidos, Japão e Europa, incrementando suas dívidas e empurrando a resolução do problema para um futuro muito próximo, neste ambiente de protecionismo e nacionalismo, onde os governos estão protegendo empresas e setores temos que tomar cuidado com um discurso liberal, por mais que concordemos com grande parte deste discurso, faz-se fundamental observar os cenários externos, privatização e redução do papel do Estado é fundamental, apenas precisamos entender se este é o momento correto para a alienação deste patrimônio.

Estamos vivendo um período muito conturbado na economia mundial, o protagonismo asiático no cenário internacional, conquistado nas últimas décadas tem levado países desenvolvidos a adotarem políticas para reduzir a perda de espaço de suas empresas para as empresas asiáticas, estas políticas, claramente protecionistas, estão aumentando as divergências e os conflitos comerciais, reduzindo os acordos e as trocas entre nações, ao Brasil cabe uma política mais moderada, nosso comércio com a China se tornou muito relevante e precisa ser conservado em bases sólidas e consistentes, além disso, precisamos abrir novos mercados para nossos produtos, a redução da burocracia é fundamental e a melhora da competitividade dos nossos produtos uma condição primordial, para que isto aconteça, o país precisa se abrir para o comércio internacional como é o desejo do novo Ministro da Economia, Paulo Guedes, o fundamental é encontrar a melhor forma de fazer e exigindo sempre contrapartidas palpáveis dos nossos parceiros comerciais, menos ideologia e mais pragmatismo.

O discurso liberal é bem encantador e sedutor, a redução da intervenção do Estado na economia depois do malogro petista agrada a classe média e os grupos empresariais formadores de opinião, o grande problema desta visão, ou limitação, é que muitos setores precisam fortemente dos incentivos e subsídios estatais para a sua sobrevivência, sem estes muitas empresas sucumbiriam a competição com grupos transnacionais externos, o que percebemos deste discurso é de defesa de mais competição e maior concorrência mas, nas entrelinhas percebemos dos grupos nacionais, que seus privilégios e subsídios devem ser mantidos e, se possível, ampliados e melhorados.

Neste ambiente de controle dos gastos públicos e austeridade fiscal, muitos grupos econômicos precisam se conscientizar da importância de uma política econômica mais racional, percebendo com isso, que muitas das antigas tradições econômicas precisam ser alteradas, os subsídios fiscais que sempre foram dados pelo governo brasileiro precisam ser repensados a luz de um momento de escassez, estudar as políticas de subsídios e compreender seus resultados, consertando os erros cometidos anteriormente e mantendo as políticas exitosas e, além disso, privilegiando os mais eficientes, esta deve ser a tônica desta nova empreitada econômica, mais concorrência e menos protecionismo.

Depois de um começo de governo avassalador, o mercado passou a se preocupar mais com os rumos da economia neste novo governo, se na agenda econômica percebemos uma maior clareza, embora o ritmo ainda esteja bastante lento, no front político percebemos muitas dissonâncias, falas desnecessárias e discursos inflamados, tudo como se estivéssemos, ainda, em um ambiente de embate eleitoral, percebemos autoridades com discursos detonando os partidos políticos, a classe política e os grupos sociais, muitos destes grupos são fundamentais para a aprovação de reformas importantes para o êxito deste governo, descer do palanque eleitoral, moderar o discurso político, construir maiorias sólidas e consistentes, deveriam ser as prioridades centrais do novo governo, acreditamos que não se governa democraticamente um país como o Brasil detonando a classe política e contra os adversários, o regime democrático nos estimula a lidar com o contraditório, esta postura imatura tende a levar o governo a acumular derrotas e reduzir as perspectivas positivas da sociedade para o futuro e, sem mudanças nas expectativas, dificilmente teremos a transformação que almejamos para o país.

Novas tecnologias alterando o mundo do trabalho, incertezas generalizadas no cenário econômico nacional, endividamento elevado da população, guerras comerciais, aumento do nacionalismo e do protecionismo, crescimento da intolerância e do sectarismo e um ambiente conflagrado nas redes sociais, todas estas situações fomentam um clima de grandes medos e desesperanças para a economia brasileira, diante disso, o que nos resta é acreditar que os grupos responsáveis pela gestão do Estado consigam transformar sonhos em esperanças e os medos em perspectivas mais promissoras, todos devemos acreditar, embora estejamos dominados por um certo ceticismo, a esperança deve sempre prevalecer, embora não tenha votado neste grupo político, o caos e a degradação não nos interesse, este clima apenas nos trará destruição e desigualdades.