Aumento do PIB não vai trazer ajustes fiscais para o País, Mendonça de Barros.

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Mesmo com resultado positivo, resposta do PIB ainda não pode ser levada a longo prazo quando se fala em ajuste fiscal

José Roberto Mendonça de Barros.

O Estado de São Paulo, 12/06/2022

Acho inacreditável que a melhora da relação dívida/PIB leve a interpretações da existência de um ajuste fiscal estrutural no País. Explico o porquê.

A aceleração da inflação reduz o coeficiente, porque o PIB nominal cresce mais rápido do que a dívida. Além disso, cai o salário mínimo e, em consequência, reduzem-se os gastos da Previdência. Da mesma forma, derruba a folha de salários em termos reais. O problema é que isso será revertido em prazo curto, tanto pela queda na inflação resultante dos juros altos como porque as grandes corporações irão brigar pela reposição salarial em 2023.

A arrecadação de impostos cresceu em boa parte por conta do choque de commodities. Ora, é bastante provável que o ciclo desses preços se reverta no próximo ano pela esperada redução no crescimento global.

Da mesma forma, o forte crescimento do PIB de 2021 teve efeitos positivos na coleta de impostos, que em parte são pagos neste ano, como o ajuste do Imposto de Renda. Isso não mais se repetirá, dadas as modestas projeções para 2022 e 2023.

Além disso, o processo orçamentário regular está completamente destruído por conta do crescimento das emendas parlamentares, especialmente as de relator. Essas transferências são paroquiais, mal distribuídas, pouco transparentes e de escasso efeito no crescimento. Basta pensar em obras inacabadas e shows sertanejos.

O pior de tudo é que não existe mais uma regra fiscal, pois o teto foi tantas vezes perfurado que virou uma ficção. Não há estabilidade macroeconômica sem uma âncora fiscal crível.

O populismo fiscal chegou com tudo. Convencido de que não ganhará a eleição com a inflação tão alta, o presidente da República, com o entusiasmado apoio do seu ministro da Economia, enviou para o Congresso um pacote de medidas que busca reduzir os preços da energia. Ele tem três elementos: a limitação do ICMS em vários produtos em 17%, a zeragem dos impostos federais nos combustíveis e um pretenso estímulo para que Estados reduzam a zero a alíquota desses produtos, pelo menos até depois das eleições. O pacote total tem o astronômico custo fiscal de R$ 90 bilhões em 12 meses.

O pior de tudo é que, mesmo se aprovado, os preços na bomba podem não cair. Dificilmente os Estados concordarão em, voluntariamente, reduzir a zero o ICMS. É esperado que até o fim do ano o preço internacional do petróleo suba ainda mais. E o real deve se desvalorizar em resposta à farra fiscal, como já ocorreu nos últimos dias.

A herança fiscal será lamentável.

É razoável que alunos mais ricos paguem mensalidade em universidades públicas? NÃO

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Criam-se grupos diferentes de alunos, e valores pagos tendem a crescer

Miguel Buzzar, Professor e vice-diretor do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP
Paulo Martins, Professor de letras clássicas e diretor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (FFLCH-USP)
Vladimir Safatle, Professor titular de filosofia da FFLCH-USP

Folha de São Paulo, 11/06/2022

Há perguntas que não são perguntas. Pois a maneira com que são construídas expressam a enunciação de uma certeza, não a abertura a uma questão. Colocar o problema da cobrança de mensalidades em universidades públicas como uma pergunta sobre se ricos deveriam ou não pagar para nelas estudar é o caso de uma pretensa questão que já claramente induz a resposta e naturaliza suas consequências.

Pois o problema poderia ter sido colocado de várias outras formas. Por exemplo: “a educação superior pública deveria deixar de ser gratuita?”; “pessoas pobres que estudam em universidades públicas deveriam, a partir de agora, submeter-se a decisões discricionárias sobre se terão ou não direito a bolsas?”; “o Estado deveria se desresponsabilizar sobre o financiamento integral de suas universidades públicas, que são responsáveis pela quase totalidade da pesquisa no país?”.

É claro que somos contra privilégios das classes mais ricas, mas o eterno tópico das mensalidades das universidades públicas é apenas uma maneira de fazer, na verdade, os pobres e a classe média pagarem para suas filhas e filhos obterem uma formação de qualidade. Pois a virtude do tempo mostra a verdade das intenções aparentemente justas e puras. Nos países onde o sistema universitário público adotou mensalidades, a história foi a mesma. Primeiro, a definição de quem é “rico” vai paulatinamente ampliando-se. Para termos um exemplo, 60% das alunas e alunos da Universidade de São Pulo vêm de famílias que ganham até 10 salários mínimos. Se uma família que ganha 10 salários mínimos, com pai, mãe e dois filhos, for considerada rica —e paga aluguel e plano de saúde e o ensino superior for pago—, um dos filhos terá que deixar de estudar, como aconteceu em vários países.

“Mas podemos criar bolsas de estudos para os que não podem pagar”, dirá o apóstolo da educação neoliberal. No entanto, por uma dessas coisas inexplicáveis que ocorrem em todos os lugares, o número de bolsas nunca é suficiente. Isso fez com que vários estudantes em várias partes do mundo tivessem que contrair dívidas para estudar, iniciando a vida profissional endividados. O que não deixa de ser uma bela maneira de fazê-los submissos a qualquer emprego que consigam o mais rápido possível.

A partir do momento que o Estado se desengaja pontualmente de suas universidades, ele tende a se desengajar integralmente. Isso faria com que as universidades aumentassem suas mensalidades, criassem grupos diferentes de estudantes (exemplo: os estudantes não paulistas pagariam mais que os paulistas para estudarem nas universidades paulistas) e cobrassem fortunas por “cursos de especialização” e “de verão”.

Já os ricos que deveriam pagar mensalidades fariam o que fazem cada vez mais atualmente, ou seja, enviariam seus filhos e filhas para estudarem em universidades estrangeiras. Mais à frente certamente ganhariam diminuição de impostos como benesse de um Estado com menos responsabilidade social —além de poderem contar em suas empresas com recém-formados docilizados pelo endividamento.

No entanto, se quisermos efetivamente fazer justiça social, sugerimos outra pergunta: “É razoável que ricos paguem impostos sobre grandes fortunas, sobre consumo conspícuo e transações financeiras para financiar um grande projeto de universidade pública, gratuita, de qualidade e popular?”. Afinal, ensino como direito humano deveria ter garantido seu acesso de forma universal.

O poder civil, por Luís Francisco Carvalho Filho.

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A volta dos militares é lenta, gradual e segura

Luís Francisco Carvalho Filho, advogado criminal, presidiu a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (2001-2004).

Folha de São Paulo, 11/06/2022

Militares da Marinha, em Santa Helena, no Paraná, exigem que pessoas baixem as calças durante revistas pessoais porque as Forças Armadas não estão submetidas a controle externo.

A Justiça Militar, que eventualmente pune um ou outro soldado infrator, quando flagrado pela opinião pública, mas sem incomodar comandantes, é historicamente cúmplice de incontáveis atos de violência e barbárie.

Ao apurar assassinatos (ainda que as “pretensas vítimas” sejam “inocentes”), a Justiça Militar define os “erros” como “plenamente escusáveis” e arquiva as investigações, normalmente preguiçosas e conduzidas por companheiros dos investigados.

A Marinha, tão desinibida quando, no âmbito da operação Ágata, para “repressão dos delitos transnacionais e dos crimes ambientais”, humilha transeuntes, é tímida ao reagir ao desaparecimento do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Philips, gente que, ao olhar de Bolsonaro e das Forças Armadas, se mete indevidamente na Amazônia.

A volta dos militares ao poder segue, de forma invertida, o plano da abertura democrática cunhado por Golbery e Geisel na década de 1970: “Lenta, gradual e segura”. Precisa ser interrompido.

Após o ciclo de 1964, os militares se recolhem, sem deixar, contudo, de influir na feitura da Constituição de 88. O poder civil vasculha os crimes da ditadura, mas torturadores e terroristas das Forças Armadas alcançam a impunidade.

Ao criar o Ministério da Defesa em 1999, Fernando Henrique Cardoso transmite a ilusão de que uma pá de cal é lançada na tradição golpista brasileira.

A ascensão militar recomeça com seguidas operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), que, politicamente, configuram pedidos de ajuda formal dos presidentes da República às Forças Armadas para o combate do sentimento de insegurança pública.

O Ministério da Defesa contabiliza desde a ECO 92, no Rio de Janeiro, 145 GLOs. Algumas passam despercebidas, como as que “garantem” realização de “pleitos eleitorais”. Outras são chamadas para grandes eventos, como a Copa do Mundo ou os Jogos Olímpico Jogos Olímpicos, ou para reprimir greves de PM e caminhoneiros, ou para combater a violência urbana —as que costumam deixar rastros de sangue e de abuso de poder.

Jair Bolsonaro tem sido econômico em matéria de GLO (decretou apenas 9) porque ainda teme a responsabilização de militares por crimes que estão acostumados a cometer contra civis.

A partir do governo Temer (2016-2018), aumenta a presença política e vitórias se acumulam.
Conseguem a aprovação da Lei 13.491/2017, “retaguarda jurídica” que amplia a competência da Justiça Militar e facilita a impunidade de soldados assassinos.

Gesto inusitado e covarde, Dias Toffoli designa um general da reserva para assessorá-lo (ou vigiá-lo) na presidência do STF. Michel Temer quebra a tradição inaugurada por FHC e nomeia ministro da Defesa outro general.

O capitão Bolsonaro é eleito, e, para se legitimar nas tropas que o repudiavam, aumenta a remuneração dos militares, protegidos da reforma previdenciária, e loteia a administração federal entre oficiais cada vez mais simpáticos ao golpe.

Desde 2013, dormitam no STF ações contra julgamento de civis pela Justiça Militar: Raquel Dodge, ex-procuradora-geral da República, pedia decisão urgente. Desde 2017, tramitam no STF ações contra julgamento de crimes praticados por militares contra civis pela Justiça Militar. O Supremo patina.

Repensando a Economia

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Vivemos num momento de grandes transformações de paradigmas, todas as bases que sustentavam a sociedade e moldavam as organizações econômicas, políticas e sociais estão sendo alteradas rapidamente, gerando preocupações, medos, ansiedades e desigualdades crescentes.

Neste cenário, percebemos uma sociedade marcada por grande competição entre os setores econômicos e pelo crescimento da concorrência entre pessoas e organizações, levando a um crescimento do individualismo, dos ganhos imediatos, pelos lucros estratosféricos e pela ostentação elevada, uma sociedade centrada na aparência e numa solidariedade artificial e calculada, centrada e dominada por imagens postadas nas redes sociais.

Diante dessa sociedade, percebemos que a economia se transformou num ambiente tóxico, centrado nos ganhos imediatos dos setores financeiros, angariando poder político e patrocínios nos círculos de alta influência, criando uma economia totalmente artificial e sem consistência, que se mostra incapaz de sobrevivência em momento de agitações sociais e crises econômicas constantes.

O cenário contemporâneo mostra as fragilidades da economia como ciência, que abandonou a produção e a geração de empregos decentes e enveredou pelos escaninhos da financeirização, pelos ganhos crescentes da especulação e pelas riquezas centradas em moedas digitais que criam bilionários de uma noite para o dia e, num momento seguinte, os transformam, novamente, em ex-bilionários, sem recursos, sem dignidades e sem esperanças.

Neste ambiente, percebemos que a economia brasileira caminha rapidamente pela estagnação estrutural, onde uma pequena parte acumula grandes somas de riquezas materiais, sem produzir, sem empregar, sem compartilhar e sem pagar tributos, garantindo espaços nas capas das revistas, contas bancárias polpudas, reservas em restaurantes de elite e, em contrapartida, se esquecem da situação de penúria e de indignidade de grande parte da população nacional que está na marginalidade, na degradação e na desesperança.

Muitos defendem o empreendedorismo nacional e a busca crescente pelos ideais da destruição criadora, conceitos criados e estruturados pelo economista austríaco Joseph Schumpeter, como forma de alavancar o crescimento e o desenvolvimento brasileiro.

Estas teorias são muito sedutoras e atraentes e buscam o crescimento econômico e a redução das desigualdades que perpassam a sociedade mas, antes de difundirmos estes pensamentos salvacionistas individuais, faz-se necessário, a construção de uma nova agenda de desenvolvimento, reduzindo as taxas de juros, melhorando o ensino nacional, diminuindo os desequilíbrios tributários que impactam fortemente sobre os “empreendedores” em detrimento dos grandes conglomerados que usufruem de isenções fiscais e estímulos financeiros que garantem alta rentabilidade, que na maioria das vezes, são canalizados para paraísos fiscais ou retornam para ganhos especulativos, garantindo lucros elevados e retorno para grupos de financistas sedentos de rendimentos elevados e sem compromissos com a nação e com o bem-estar da estrutura produtiva.

A economia nasceu para ser um instrumento para garantir que os recursos existentes na sociedade possam ser distribuídos para todos os indivíduos da coletividade, garantindo o mínimo necessário para a sobrevivência de todos os indivíduos, diante disso, percebemos que a Ciência Econômica não conseguiu cumprir seus compromissos na sua constituição, isso acontece porque, infelizmente, essa ciência foi apropriada pelos interesses imediatos dos setores mais poderosos da sociedade, transformando produtos materiais e imateriais em instrumentos de acumulação, uma verdadeira mercantilização, garantindo grandes somas de recursos financeiros para os donos do dinheiro e para os seus prepostos, que legitimam seus ganhos estratosféricos, garantindo lucros estravagantes, lucram com as deformações do setor público e, ao mesmo tempo, hipocritamente, defendendo a redução dos Estado Nacional. Neste ambiente, a redução do Estado na economia deve ser vista como uma verdadeira vitória de Pirro.

Ary Ramos da Silva Júnior, bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Brasileira Contemporânea, Mestre e Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 08/06/2022.

Nem a obsessão neoliberal, nem o desenvolvimentismo do passado, diz Lara Resende.

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Para economista, presidenciáveis deveriam deixar dogmas de lado e oferecer respostas para desafios do século 21

RICARDO BALTHAZAR – FOLHA DE SÃO PAULO – 04/06/2022

Um dos formuladores do Plano Real, que derrubou a hiperinflação nos anos 1990, o economista André Lara Resende passou a ser tratado por muitos de seus pares como um estranho no ninho depois que se tornou um crítico ácido do pensamento econômico convencional.

Para ele, episódios dramáticos como a crise financeira internacional de 2008 e a pandemia do coronavírus mostraram que até países como o Brasil têm condições de se endividar para financiar seus gastos em certas situações sem perder o controle sobre a economia.

Ele volta à carga em “Camisa de Força Ideológica”, que chegou às livrarias nesta sexta (3). É o quinto de uma série de volumes em que critica os pressupostos de seus colegas ortodoxos e defende sua revisão. Mais conciso, é também o mais acessível para o público leigo.

O economista considera equivocada a decisão do Banco Central de elevar as taxas de juros para segurar a inflação, que no ano passado ultrapassou a meta definida pelo governo, e defende a retomada de investimentos públicos como saída para reerguer a economia.

Lara Resende tem mantido contato com assessores do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em caráter informal, e reuniu-se recentemente com o ex-governador Geraldo Alckmin (PSB), que será o vice da chapa petista na campanha presidencial deste ano.

Coordenador de um núcleo de especialistas no Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), o economista elaborou um conjunto de propostas de política econômica que deverá ser apresentado em breve como contribuição do grupo para o debate eleitoral.

O que há de errado com o pensamento econômico no Brasil? A teoria macroeconômica está sendo revista no mundo há pelo menos uns dez anos, mas no Brasil houve uma radicalização do dogmatismo, a ideia de que a boa política macroeconômica se resume a equilibrar o orçamento público em todas as circunstâncias.

Mesmo depois da pandemia, quando o governo aumentou despesas e contornou o teto de gastos para enfrentar a crise sanitária? No Brasil, só se defende esse modelo. Basta ler os jornais. O curioso é como conseguem justificar essa postura e defender simultaneamente o aumento da taxa de juros pelo Banco Central em 12 pontos percentuais em seis meses, que faz crescer a despesa com a dívida pública.

Isso significa transferência de renda para os detentores da dívida pública, que são os agentes superavitários da economia. É uma política profundamente concentradora, e uma incongruência espantosa. A responsabilidade fiscal é muito importante, mas está mal definida.

O teto de gastos ainda tem sentido? Sou a favor de teto para despesas correntes, especialmente as de pessoal. Um teto para a totalidade das despesas, excluído o serviço da dívida, como temos hoje, é insensato. Ele não conteve as despesas correntes, nem as demagógicas, mas espremeu o espaço para investimentos.

A economia não funciona sem investimentos públicos, em infraestrutura, educação, saúde, segurança. Eles são complementares aos investimentos privados e viabilizam grande parte deles. Mas o teto estrangulou completamente a capacidade do Estado de investir.

O sr. diz no livro que “a desconfiança elitista e tecnocrática em relação aos políticos na democracia representativa impede a revisão do quadro institucional”. Os erros de sucessivos governos e a história do país não justificam essa desconfiança? Não sei se o Brasil é excepcional nisso. Em todo lugar do mundo existe o problema do mau uso dos recursos públicos, o mau uso da poderosíssima faculdade do Estado de criar crédito. Esse mau uso é um perigo permanente, que deve ser regulado de forma competente.

Mas não se consegue restringir o mau uso dos recursos públicos simplesmente com leis e restrições formais. Nisso o Estado funciona como uma empresa. Se for composto por pessoas essencialmente corruptas, não adianta você ameaçar, impor restrições e punições.

Ao enfatizar a ausência de restrição financeira para emissão de dívida pelo governo, o sr. não acaba sugerindo que não há limite nenhum? Claro que existem limites. A relação da dívida com o PIB obviamente não pode ir para o infinito. Mas o poder que o Estado tem de criar crédito pode ser bem usado, o que ocorre quando o retorno do investimento feito é superior ao custo do crédito que o financiou.

Não existe um limite numérico que deva ser respeitado. Países ricos têm hoje dívidas superiores a 100% do PIB. Em determinadas circunstâncias, como guerras e pandemias, o endividamento é necessário para impedir uma tragédia. É o que vimos com a Covid.

É possível revertê-lo quando a economia se reorganizar e voltar a crescer. Agora, se você usar o crédito de forma descontrolada, para políticas demagógicas e gastos sem retorno nenhum, em termos de produtividade ou de bem-estar, aí sim estará sendo irresponsável.

O livro discute a necessidade de maior coordenação entre a política monetária, a cargo do Banco Central, e a política fiscal. A maior autonomia conferida pela legislação brasileira ao BC prejudica essa coordenação? Essa organização institucional de um Banco Central Independente, que não pode comprar dívida pública, funcionou bem no século passado, mas está ultrapassada e se tornou disfuncional. Ela tem que ser repensada e estamos elaborando uma proposta sobre isso.

A campanha eleitoral abre espaço para uma revisão da política econômica como a que o sr. propõe? Os que estão em busca de uma terceira via não têm projeto. Na economia, continuam agarrados a chavões neoliberais e se apresentam como alternativa à direita bolsonarista, como representantes do verdadeiro neoliberalismo. Assim não se chegará a lugar nenhum.

Precisamos de um projeto para a retomada do desenvolvimento no século 21. Ele não virá da obsessão neoliberal, que se tornou completamente ultrapassada, nem com o desenvolvimentismo do século 20. Os desafios que precisamos enfrentar são novos e enormes.

Há a questão ambiental, a necessidade de repensar a energia para nos livrarmos de combustíveis fósseis, a busca por maior inclusão social. A revolução tecnológica, que traz ganhos de produtividade, mas desestrutura o emprego. Essa é a discussão a ser feita.

ANDRÉ LARA RESENDE, 71
Formado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio, é doutor em economia pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts, nos EUA. Foi diretor do Banco Central no governo José Sarney, assessor especial do presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e presidente do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social). Trabalhou no mercado financeiro por mais de 30 anos. Publicou antes “Consenso e Contrassenso” (2020) e “Juros, Moeda e Ortodoxia” (2017), ambos pelo selo Portfolio Penguin

Economia brasileira em 2 tempos, por Silvia Mattos

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PIB cresceu, mas não se sabe até quando vamos ser surpreendidos positivamente

Silvia Matos, Economista e pesquisadora do FGV Ibre (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas)
Folha de São Paulo, 03/06/2022

A divulgação do PIB referente ao primeiro trimestre do ano confirmou um resultado positivo na margem de 1%, ligeiramente acima da previsão do Boletim Macro IBRE de 0,9%.

Sempre avaliamos que não haveria recessão na economia brasileira neste ano e o primeiro trimestre seria positivo, mas, mesmo assim, os resultados divulgados nos últimos meses foram acima do esperado, em particular, os dados referentes ao mês de março. Sem dúvida, o processo de normalização dos setores mais afetados pela pandemia tem sido mais rápido que o esperado.

Entre os setores, os destaques foram o crescimento das atividades de Outros Serviços e Transporte de 2,1% e 2,2% em relação ao quarto trimestre, respectivamente. Com isso, a atividade Outros Serviços que ainda estava abaixo de nível pré-pandemia (quarto trimestre de 2019) já está 0,8% acima deste patamar no primeiro trimestre. E estes setores são intensivos em trabalho, então não surpreende também a expressiva recuperação do emprego no período.

Consequentemente, o destaque pelo lado da demanda foi o consumo das famílias. De acordo com o Monitor do PIB do FGV IBRE, em torno de 50% da cesta de consumo é composta por serviços. E mesmo com salários reais muito deprimidos, o comportamento da massa real de rendimentos do trabalho tem sido mais positivo. E a expansão do programa Auxílio Brasil também contribuiu para o resultado.

Além disso, como esperado, a contribuição externa para o crescimento foi muito expressiva, com forte expansão das exportações e contração das importações. E neste aspecto, é importante mencionar que o agronegócio já atingiu 27,4% do PIB em 2021, a maior participação desde 2004, segundo o Cepea (Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada – Esalq/USP). Somando ao aumento da participação da indústria extrativa no PIB, podemos dizer que em torno de um terço do PIB depende direta e indiretamente de commodities.

Como estamos passando por um ambiente muito favorável para os preços das commodities, os países produtores destes bens são beneficiados. De fato, em diversos países da América Latina, dados de atividade também estão melhores do que o esperado pelo mercado, com revisões de crescimento para cima.

A alta nos preços das commodities, a reabertura da economia e os estímulos fiscais contribuíram positivamente para o crescimento do PIB no trimestre. Mas, a pergunta mais importante no momento é saber até quando vamos ser surpreendidos positivamente. Minha avaliação é que esta fase se esgotará em breve, por diversos motivos.
Em primeiro lugar, uma parte do crescimento foi explicada por fatores temporários, como a reabertura, a normalização do consumo do governo e a expressiva contribuição externa.

Pelo lado externo, a desaceleração esperada para a economia mundial é expressiva, pois o principal motivo é a
necessidade de reduzir a inflação. Algo que chama atenção é a alta de preços dos insumos e bens industriais, que devido à reorganização das cadeias de produção global, pode ser muito mais persistente.
Neste contexto, o custo para desinflacionar a economia brasileira é hercúleo.

Além dos motivos externos, temos um processo inflacionário generalizado no Brasil. A reabertura foi muito inflacionária, o choque de commodities por muito tempo não foi compensado pela valorização cambial, e tivemos um choque nos preços de energia elétrica no ano passado. Uma inflação generalizada de custos, em todos os setores. A pressão por repasses continua e o instrumento para debelar a inflação é reprimir a demanda. Não há outra saída.

Por fim, o investimento contraiu muito além do esperado no primeiro trimestre. Um péssimo sinal.
Então é necessário olhar o segundo tempo da nossa economia, que deverá ficar mais evidente no segundo semestre de 2022 em 2023. O segundo tempo pode demorar um pouco mais para começar, mas já está programado.

Inflação e desemprego

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Vivemos momentos de grandes incertezas e instabilidades na economia internacional, os indicadores macroeconômicos brasileiros nos levam a preocupações e medos crescentes, inviabilizando os investimentos produtivos e estimulando os investimentos financeiros e especulativos, angariando novas levas de bilionários em detrimento de uma massa de desempregados, excluídos e desesperançados.

A inflação cresce de forma acelerada em todas as regiões do mundo, motivadas pela desestruturação das cadeias produtivas geradas pela pandemia, pela guerra da Ucrânia que impactou sobre os preços dos alimentos e dos combustíveis, todos estes fenômenos geraram uma tempestade perfeita que culminaram em políticas protecionistas por parte de algumas nações e contribuíram para o incremento das incertezas e para as volatilidades econômicas, reduzindo as rendas dos trabalhadores e degradaram as condições de vida de muitas nações, dentre elas a brasileira que tiveram mais de 19 milhões de pessoas passando fome, uma tragédia humanitária.

A globalização trouxe grandes benefícios para a comunidade global, criando novos desafios e novas oportunidades para empresas, para as nações e para os trabalhadores. Muitas nações embarcaram nos ventos liberalizantes da economia internacional sem pensarmos sobre as consequências no longo prazo, terceirizamos setores produtivos relevantes e nos tornamos dependentes da importação de produtos industrializados fundamentais para nossa sobrevivência.

O resultado direto desta política é que, num momento de crises externas generalizadas, sentimos os efeitos desta dependência, como aconteceu no momento da pandemia e está acontecendo com outros produtos fundamentais para a sociedade brasileira, com isso, estamos assistindo o aumento dos preços em variados produtos e incremento da inflação, que impacta negativamente sobre uma economia que perdeu a capacidade de se reconstruir, gerando crises constantes, desemprego elevado e lucros escorchantes que engordam os ganhos de financistas nacionais e estrangeiros que não tem nenhum compromisso com a sociedade brasileira.

Além da inflação, destacamos o desemprego como um dos mais urgentes desequilíbrios que deve ser combatido pela sociedade brasileira, para combater esta degradante situação macroeconômica, precisamos de aumento nos investimentos produtivos, sem estes não conseguiremos recuperar o dinamismo da estrutura produtiva, reduzir o desemprego que crassa a sociedade brasileira e garantir instrumentos de capacitação dos trabalhadores, aumentando os dispêndios na pesquisa científica, reestruturando o complexo da saúde, recuperando a indústria nacional, modernizando as políticas públicas, estimulando o aumento da produtividade dos setores produtivos, incremento das vendas externas e buscando uma inserção mais autônoma e soberana. Sabemos que estas políticas perpassam variados governos, exigem uma visão mais ampla e de longo prazo e, para isso, precisamos de uma ampla reestruturação política, reconstruindo a solidez da política institucional, enterrando uma visão atrasada da política como apenas um instrumento de poder e de ganhos individuais e de seus grupos políticos que contribuíram negativamente para a situação atual de degradação, dos conchavos, da corrupção e da diminuição de credibilidade da política institucional.

Neste ambiente de desemprego crescente e grandes transformações do mundo do trabalho cabe ao setor público a adoção de políticas efetivas para estimular as estruturas produtivas e priorizar as micro e pequenas empresas, setor responsável por grande parte dos empregos e da sobrevivência da sociedade, uma classe central para todas as nações civilizadas que, infelizmente, no Brasil, não recebem os incentivos fiscais e tributários para o seu desenvolvimento e canaliza, os chamados parcos recursos para os grandes atores econômicos, gerando uma degradação e perpetuando as desigualdades.

Na pós-pandemia precisamos repensar a estrutura produtiva, alavancar a recuperação da economia, melhorando os indicadores macroeconômicos, estimulando a geração de emprego e valorizando a renda, sem isso, continuemos chafurdando no caos.

Ary Ramos da Silva Júnior, bacharel em Ciências Econômicas e Administração, especialista em Economia Criativa, mestre, doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 01/06/2022.

Cracolândia precisa de direitos básicos e empatia, não de ‘dor e sofrimento’

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Uso de crack não é causa, mas sintoma de múltiplas vulnerabilidades

Pedro Abramovay, Diretor da Open Society Foundations para a América Latina e Caribe

Ana Clara Telles, Oficial de programa da Open Society Foundations para a América Latina e Caribe especializada em política de drogas, redução de danos e segurança pública

Folha de São Paulo, 28/05/2022

A megaoperação realizada no último dia 11 no centro de São Paulo para reprimir a chamada “cracolândia” é o último episódio de uma sucessão de equívocos de diferentes governos quando o assunto é política de drogas.

A estratégia de usar a repressão policial para incentivar a busca por tratamento atende ao afã dos gestores públicos que, seduzidos por falsas promessas e pressionados pelo tique-taque dos ciclos eleitorais, buscam soluções simplistas para questões complexas.

Longe de ser a substância psicoativa (lícita ou ilícita) mais consumida pela população brasileira, o crack é associado, pelo senso comum, a grupos sociais vulneráveis e empobrecidos.

Diante de crises econômicas severas, como a que fez triplicar o número de brasileiros vivendo abaixo da linha da pobreza nos últimos anos, ele volta a ganhar protagonismo no debate público, sobretudo em ano de eleições.

Acontece que o uso de crack não é causa, mas sintoma de múltiplas vulnerabilidades, que incluem a negação do acesso a direitos básicos, como saúde, moradia e alimentação, e a exposição a inúmeras situações de violência ao longo da vida.

Sem que haja políticas consistentes, integradas e de longo prazo para lidar com elas, a história continuará se repetindo da pior maneira.

Os exemplos do que é capaz de fazer uma boa abordagem nessa área não são poucos. No campo das políticas públicas, programas como o Atitude, em Pernambuco, e o De Braços Abertos, em São Paulo, colheram bons resultados e ganharam reconhecimento internacional ao oferecer aos usuários do serviço alternativas concretas de acolhimento, moradia e emprego.

Por parte da sociedade civil, projetos como o Espaço Normal, gerido pela organização Redes da Maré, no Rio de Janeiro; o É de Lei, em São Paulo; e a Escola Livre de Redução de Danos, no Recife, mantêm centros de convivência para pessoas que usam drogas e as ajudam a acessar serviços públicos de saúde e assistência social de maneira integrada e efetiva e sem que precisem sair de seus territórios.

Em todos esses casos, o trabalho é de formiguinha, demanda paciência e, sobretudo, um olhar sem estigmas, empático.

O ponto de partida é enxergar as pessoas que usam crack e outras drogas como sujeitos autônomos capazes de decidir sobre suas vidas, não devendo ser submetidas a nenhum tipo de tratamento contra sua vontade.

A partir daí, criam-se estratégias para garantir que tenham acesso a direitos básicos, muitos dos quais lhes foram negados ao longo de suas vidas. Em vez de impostas, opções de tratamento em saúde são oferecidas de acordo com suas demandas e necessidades e se amplia o repertório de cuidado através do fortalecimento de vínculos com suas famílias e suas comunidades, no lugar da internação e do isolamento.

Capaz de promover mudanças efetivas, essa abordagem é inconciliável com a violência e a repressão, ao contrário do que argumentam os responsáveis pela atual política.

À diferença das estratégias violentas de “dor e sofrimento”, a paciência e a empatia funcionam a longo prazo. Mas o longo prazo não cabe no horizonte de quem tem olhos apenas nas eleições.

É preciso que os gestores públicos assumam o compromisso de enfrentar o problema pelo que ele é, em vez de continuarem reféns de soluções tão rápidas e cruéis quanto ineficazes.

Matar, matar, matar, por Luiz Francisco Carvalho Filho.

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Presidente da República celebra policiais assassinos

Luiz Francisco Carvalho Filho, Advogado criminal, presidiu a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (2001-2004).

Folha de São Paulo, 28/05/2022

Jair Bolsonaro é “suspeito” de integrar uma quadrilha para desvio de dinheiro público —as “rachadinhas”, uma modalidade de peculato.

Além do enriquecimento ilícito, a família Bolsonaro anda armada, ameaça jornalistas, perturba o processo eleitoral e conspira contra a democracia.

Nem por isso forças de segurança podem atirar para matar o governante “suspeito”, réu no Tribunal dos Povos, ou os filhos “suspeitos” do governante, homiziados em Brasília.

Há pastores evangélicos “suspeitos” de explorar a miséria humana, lavagem de dinheiro, pedofilia, charlatanismo, corrupção. Nem por isso as polícias invadem igrejas repletas de fiéis e disparam suas armas contra os religiosos “suspeitos”.

Há oficiais do Exército “suspeitos” de tortura, extorsão, tráfico de drogas, desvio de armas. Nem por isso destacamentos assaltam quartéis, atiram a esmo, e abatem a tiros militares “suspeitos”.
Há políticos e empresários “suspeitos” de desmatar Amazônia ou de cometer atos gravíssimos contra a administração pública. Nem por isso seus colaboradores, familiares ou vizinhos são atingidos por balas perdidas.

Quem examinar a relação de inquéritos instaurados no Supremo Tribunal Federal contra Arthur Lira, por exemplo, verá que o presidente da Câmara dos Deputados, hoje com o nome “limpo”, já foi “suspeito” de um impressionante rosário de delitos (corrupção, evasão de divisas, lavagem de capital, organização criminosa, compra de votos, desvio de valores, violência doméstica). Nem por isso policiais justiceiros estavam autorizados a acionar os seus fuzis no gabinete parlamentar.

Este exercício retórico parece esdrúxulo (e de fato é), mas ajuda a observar a situação absurda que a sociedade brasileira impõe a habitantes de favelas cariocas.

Há nos morros do Rio de Janeiro “suspeitos” de tráfico de drogas. Nem por isso operações policiais podem ser arquitetadas como se inexistissem ali moradores inofensivos.

A reação das “autoridades” à calamitosa operação da Vila Cruzeiro, com pelo menos 23 “suspeitos” mortos, é infame.
O presidente da República, “suspeito” de fazer apologia da letalidade policial, parabeniza os “guerreiros” do Bope por “neutralizar” pelo menos 20 marginais. Para o macabro governador Cláudio Castro, que, depois de quase dois anos no Palácio Guanabara, comemora 330 mortos em 74 chacinas, o complexo da Penha é “hotel de luxo para chefes de facções criminosas”.

Para dar um brilho político à tragédia, o cínico comando da PM do Rio de Janeiro adere à estratégia golpista de Bolsonaro e acusa o Supremo Tribunal Federal de estimular a criminalidade ao tentar inibir confrontos e tiroteios.
Agora parceira da Polícia Rodoviária Bolsonarista, com tradição histórica de achaques e abordagens humilhantes de motoristas imprudentes ou “suspeitos” (improvisada câmara de gás em Sergipe é sinal de novos tempos), as forças policiais cariocas matam, matam e matam porque ninguém se importa.

Nada acontece com policiais matadores e seus comandantes assassinos. Arriscaria dizer que as polícias do Rio, com as honrosas exceções de sempre, estão entre as mais corruptas instituições do planeta.

É só enterrar os mortos e esperar. Outras chacinas virão: outras favelas, outros “suspeitos”, invariavelmente pobres e pretos. Diante do olhar complacente e do silencioso sorriso da magistratura e do Ministério Público. Com as honrosas exceções de sempre.

Ódio e nojo, por Silvio Almeida

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Estamos à mercê de assassinos respaldados pelo Estado brasileiro

Silvio Almeida, Advogado, professor visitante da Universidade de Columbia, em Nova York, e presidente do Instituto Luiz Gama.

Folha de São Paulo, 27/05/2022

O ódio é um afeto que se apresenta na política das mais diversas formas. Da mesma maneira que o ódio pode conduzir à morte e à destruição, é também um sentimento capaz de, paradoxalmente, nos levar a lutar por libertação ou a estabelecer formas ativas de solidariedade para com aqueles que sofrem.

Dito de outra forma, foi preciso odiar a escravidão e seus institutos para que ela pudesse ter fim; foi preciso odiar os nazistas e seus símbolos para derrotá-los. É imperioso odiar o fascismo e todos que o celebram. É imprescindível repudiar visceralmente e com todas as forças aqueles que humilham e destroem a vida de trabalhadores e de minorias.

É importante pensar nisso quando observamos o fato de que estamos sob o domínio de assassinos, racistas, tarados, genocidas, sociopatas, omissos, oportunistas e argentários. E não me refiro apenas aos notórios milicianos que hoje nos governam, mas a toda uma lógica de violência e de assassinato que comanda a institucionalidade brasileira.

Pela segunda vez em pouco mais de um ano, a polícia do Rio de Janeiro patrocinou uma chacina em que ao menos 23 pessoas consideradas “suspeitas” foram assassinadas em Vila Cruzeiro. Não era uma operação clandestina e nem uma ação de grupos paramilitares.

Era uma operação policial oficial que contou com o beneplácito do governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, com o costumeiro silêncio do sistema de justiça e com apoio de setores da sociedade, incluindo parte da mídia.

Um dia depois do massacre no Rio de Janeiro, policiais rodoviários federais, na cidade de Umbaúba, interior de Sergipe, imobilizaram e trancaram dentro de um camburão Genivaldo de Jesus Santos. Não sendo suficiente, os policiais jogaram uma bomba de gás no interior do veículo, o que resultou na morte de Genivaldo por asfixia. Ou seja: os policiais criaram uma câmara de gás improvisada e a utilizaram a vista de todos.

Em nota sobre o caso, disse a direção da PF que, em razão da “agressividade” do homem, “foram empregadas técnicas de imobilização e instrumentos de menor potencial ofensivo para sua contenção e o indivíduo foi conduzido à Delegacia de Polícia Civil em Umbaúba”.

Para além do evidente cinismo contido na expressão “menor potencial ofensivo”, a mim me parece cristalino que essa declaração é parte de um sistema institucionalizado de execuções extrajudiciais.

Se alguém tinha alguma dúvida sobre o que é necropolítica, eis dois exemplos genuinamente brasileiros. Não se trata apenas de produzir a morte física, mas também a morte das possibilidades existenciais. Tirar a vida biológica é insuficiente; é preciso eliminar a memória que se tem sobre os mortos.

É necessário impedir homenagens e bloquear todos os ritos que possam dar algum sentido para a vida dos assassinados. Por este motivo, a polícia retorna aos territórios em que matou para destruir homenagens ou para tumultuar velórios.

Aterrorizar parentes, amigos, vizinhos dos mortos é parte crucial desse processo que visa não só garantir a impunidade, mas também a extirpar toda esperança de uma vida decente. A necropolítica é, afinal, esta mistura macabra de biopolítica, estado de exceção e estado de sítio que leva para favelas e periferias as técnicas de controle criadas nas plantations e nos campos de extermínio.

Para quem tem alguma dúvida sobre o que foi dito até aqui, serei ainda mais explícito: o Brasil, que há muito flertava, agora beija o nazismo na boca. Há setores da sociedade civil e da burocracia estatal que não tem mais qualquer pudor em defender o extermínio de populações inteiras, de deixar as pessoas morrerem de fome, de advogar o encerramento de serviços públicos essenciais, enfim, de matar pobres e minorias.

Com nazismo não se pode vacilar. Quem faz uso de símbolos, técnicas ou de discursos do nazismo é nazista, e nazistas devem ser tratados com todo o rigor possível, porque sua única serventia é provocar dor e sofrimento, sua única especialidade é matar.

Como disse Ulisses Guimarães é preciso ter ódio e nojo à ditadura —ditadura aliás, que muito se utilizou das lições nazistas de tortura e extermínio—, é preciso cultivar ódio e nojo a estes nazistas, assassinos e omissos aninhados no Estado brasileiro.