EUA: a admirável “greve geral não declarada”, por Sonali Kolhatkar.

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Frente a baixos salários e empregos de merda, multiplicam-se as autodemissões, às vezes performáticas; e espalham-se as greves, algumas com grandes vitórias. Há algo surpreendente no coração do capitalismo – mas a velha mídia não quer ver

Por Sonali Kolhatkar, no Alencontre | Tradução: Vitor Costa
OUTRAS PALAVRAS – 25/12/2001

Em 14 de setembro de 2021, uma jovem da Louisiana chamada Beth McGrath postou no Facebook um vídeo em que trabalhava no Walmart. Sua linguagem corporal mostra uma forte tensão quando ela cria coragem para anunciar, pelo microfone, sua demissão aos compradores da loja. “Todo mundo aqui está com excesso de trabalho e é mal pago”, ela começa, e continua questionando alguns gerentes por seus comportamentos impróprios e desrespeitosos. “Espero que vocês não falem com suas famílias da mesma forma que falam conosco”, disse ela antes de terminar com um “foda-se este trabalho!”.

Talvez Beth McGrath tenha se inspirado em Shana Ragland, de Lubbock, cidade do Texas, que quase um ano atrás apresentou uma demissão pública semelhante em um vídeo de TikTok que ela postou da loja Walmart onde trabalhava. As queixas de Shana Ragland eram semelhantes às de Beth McGrath, pois ela acusava os gerentes de insultar constantemente as trabalhadoras. “Espero que você não fale com suas namoradas do jeito que fala comigo”, disse ela pelo microfone da loja, antes de concluir com um “fodam-se os responsáveis, foda-se essa empresa”.

As demissões dessas duas jovens viralizaram e resumem bem um ano de grande instabilidade na força de trabalho estadunidense, que os economistas batizaram de “A Grande Demissão”. As mulheres, em particular, são vistas como as pioneiras dessa tendência.

A grande demissão
A gravidade da situação foi confirmada pelo último relatório do Bureau of Labor Statistics (BLS de 12 de outubro de 2021), que indica que uma porcentagem recorde de 2,9% da força de trabalho deixou seus empregos em agosto de 2021, o equivalente a 4,3 milhões de demissões.

Se essa alta taxa de demissões ocorresse em um momento em que os empregos são abundantes, isso poderia ser visto como um sinal de uma economia próspera, onde os trabalhadores poderiam escolher seus empregos. Mas o mesmo relatório do BLS mostrou que as vagas também diminuíram, sugerindo que algo mais está acontecendo. Uma nova pesquisa da Harris (também de 12 de outubro) com pessoas que estão empregadas, descobriu que mais da metade dos trabalhadores deseja se demitir. Muitos deles citam a falta de atenção e cuidados por parte do empregador e a falta de flexibilidade no planejamento dos horários de trabalho para justificar o desejo de deixar o emprego. Em outras palavras, milhões de trabalhadores na América simplesmente estão de saco cheio.

A turbulência no mercado de trabalho é tão grave que Jack Kelly, um colaborador sênior da Forbes.com, uma mídia favorável às empresas, definiu a tendência como uma “espécie de revolução e levante de trabalhadores contra maus chefes e corporações que se recusam a remunerar adequadamente e que exploram seu pessoal” (publicada em 8 de outubro de 2021). No que pode ser uma referência a vídeos virais como os de Beth McGrath e Shana Ragland – e a tendência crescente de postagens com a hashtag #QuitMyJob – Jack Kelly continua: “Os que se demitiram estão fazendo uma declaração poderosa, positiva e assertiva, dizendo que eles não aguentarão mais esses comportamentos abusivos”.

Ainda assim, alguns consultores sugerem combater a raiva dos trabalhadores por meio de “exercícios de vínculo”, como “compartilhamento de reconhecimento” e jogos. Outros sugerem aumentar a confiança entre trabalhadores e chefes – ou “exercer uma curiosidade empática” com os funcionários. Mas essas abordagens mais superficiais ignoram totalmente o problema principal.

Essas demissões devem ser vistas em conjunto com outra poderosa corrente que muitos economistas ignoram: o desejo crescente dos trabalhadores sindicalizados de entrar em greve.

As grandes greves
Em 13 de outubro de 2021, as equipes de filmagem da indústria cinematográfica anunciaram que poderiam parar em breve porque 60 mil membros da Aliança Internacional de Teatro e Funcionários de Palco (IATSE) haviam convocado uma greve nacional. (No lançamento do movimento, no domingo, 17 de outubro, foi obtido um acordo para melhorar a condição das equipes de filmagem; o espectro de uma paralisação pesou na decisão).

Cerca de 10 mil trabalhadores da John Deere (máquinas agrícolas), representados pelo United Auto Workers (UAW), também estão se preparando para entrar em greve após rejeitarem uma nova tentativa de acordo. A rede de clínicas Kaiser Permanente deve enfrentar uma greve de pelo menos 24 mil de suas enfermeiras e outros profissionais de saúde nos estados do oeste devido à piora dos salários e das condições de trabalho. E cerca de 1.400 trabalhadores da Kellogg em Nebraska, Michigan, Pensilvânia e Tennessee já estão em greve por causa de salários e benefícios (como plano de saúde e aposentadoria) insuficientes.

As greves anunciadas são tantas – e acontecem tão rápido – que o ex-secretário do Trabalho dos EUA (1992-1997, na gestão Bill Clinton) Robert Reich chamou a situação de “greve geral não-oficial” (The Guardian, 13 de outubro de 2021).

Ainda assim, a representação sindical permanece extremamente baixa nos EUA, resultado de décadas de esforços combinados das empresas para minar o poder de negociação dos trabalhadores e trabalhadoras. Hoje, apenas 12% dos trabalhadores e trabalhadoras são sindicalizados.

O número de greves e de trabalhadores e trabalhadoras em greve poderia ser muito maior se mais deles fossem sindicalizados. Trabalhadoras não sindicalizadas como Beth McGrath e Shana Ragland, contratadas por empresas historicamente antissindicais como o Walmart, poderiam ter conseguido organizar seus colegas de trabalho em vez de recorrer a demissões individuais divulgadas nas redes. Embora as mensagens de demissão nas redes sociais tenham um grande impacto nas discussões sobre o descontentamento dos trabalhadores e trabalhadoras, elas têm pouco impacto direto nas vidas dos colegas que permaneceram em seus empregos.

Um exemplo de como a organização sindical faz uma diferença concreta nas condições de trabalho é o acordo ratificado recentemente por 7 mil trabalhadores e trabalhadoras das farmácias Rite Aid e CVS (Consumer Value Store) em Los Angeles. A seção local da United Food and Commercial Workers negociou um aumento salarial de quase 10% para os trabalhadores e trabalhadoras, assim como benefícios sociais e padrões de segurança aprimorados.

E quando as empresas não atendem às demandas trabalhistas, os funcionários têm mais poder quando atuam como um coletivo unido numa negociação solidária do que como indivíduos. Vejamos o caso dos trabalhadores da Nabisco que entraram em greve em cinco estados neste verão. A Mondelez International, empresa controladora da Nabisco, registrou lucros recordes durante a pandemia graças ao aumento nas vendas de seus salgadinhos e biscoitos. A empresa ficou tão rica que pagou ao seu CEO uma remuneração anual de US$ 16,8 milhões e gastou US$ 1,5 bilhão na recompra de ações no início deste ano. Durante esse tempo, o salário médio de um trabalhador era de US$ 31.000 por ano, uma quantia muito baixa. Muitos dos empregos da Nabisco foram transferidos para o México, onde a empresa pôde reduzir ainda mais os “custos” com mão de obra.

Após semanas de piquete (iniciado em 10 de agosto de 2021), trabalhadores e trabalhadoras em greve da Nabisco, representados pelo Sindicato Internacional dos Trabalhadores de Panificação, Confeitaria, Tabaco e Moinhos de Grãos, voltaram ao trabalho (em 18 de setembro de 2021) após terem obtido aumentos retroativos de 2,25%, bônus de US$ 5 mil e um aumento nas contribuições do empregador para seus planos de aposentadoria. A empresa, cujo faturamento cresceu 12% no início do ano, pôde arcar com essas medidas e muitas outras ainda.

Essas demissões em massa, assim como essas greves de trabalhadores, revelam um profundo descontentamento em relação ao trabalho nos EUA, processo que já remonta a décadas. As empresas exerceram forte controle sobre a política, gastando parte de seu dinheiro para fazer lobby junto ao governo a fim de garantir lucros ainda maiores à custa dos direitos dos trabalhadores. Ao mesmo tempo, o poder dos sindicatos caiu – uma tendência diretamente ligada ao aumento das desigualdades econômicas (desigualdades que refletem o fortalecimento das formas de exploração).
Empresas e legislação

Mas agora, na medida em que os trabalhadores fortalecem sua posição, as empresas estão preocupadas.

Na esteira dessas greves e demissões, parlamentares estão tentando ativamente fortalecer as leis trabalhistas federais existentes. Mas grupos empresariais estão pressionando os democratas para enfraquecer as medidas pró-trabalho incluídas na lei Build Back Better (BBB), que está atualmente sendo debatida no Congresso.

Atualmente, os empregadores podem violar as leis trabalhistas sem grandes consequências, já que o National Labor Relations Board (NLRB) não tem o poder de impor multas aos infratores. Mas os democratas querem dar ao NLRB o poder de impor multas de US$ 50 mil a US$ 100 mil a empresas que violem as leis trabalhistas federais. O projeto Build Back Better também inclui o aumento de multas para empregadores que violarem os padrões do Occupational Safety and Health Administration (OSHA), órgão do governo federal cuja missão é prevenir acidentes, doenças e mortes no local de trabalho.

A Coalizão por um Local de Trabalho Democrático, um grupo de lobby empresarial que quer tudo, menos democracia no local de trabalho, está muito preocupada com as mudanças propostas. Ela enviou uma carta aos parlamentares sobre esse tema. Resta saber se os lobistas corporativos terão sucesso, dessa vez, em manter as leis trabalhistas bem fracas. Mas como os trabalhadores continuam a pedir demissão e as greves entre os trabalhadores sindicalizados se multiplicam, os empregadores estão ignorando os sinais de raiva e frustração generalizadas por sua conta e risco.

Perspectivas econômicas

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Mais um ano está chegando ao final. Depois de imensos desafios e oportunidades gerados pelo incremento da pandemia, os números assustadores de mortes em decorrência da covid-19, o crescimento da inflação e os desajustes das cadeias produtivas nacionais e internacionais, a economia brasileira sente os sinais claros do baixo crescimento econômico, dos reduzidos investimentos produtivos, da queda da renda, do incremento da pobreza, de indicadores sociais sofríveis e dos conflitos políticos que se aceleram continuamente, as perspectivas econômicas para o comportamento da estrutura produtiva são pouco agradáveis.
Os indicadores de emprego são assustadores, temos na atualidade quase cinquenta milhões de trabalhadores em situação de degradação laboral, neste ambiente, percebemos desempregados, subempregados, desalentados e um grande contingente de trabalhadores na informalidade. Neste ambiente, a massa de renda se reduz, o consumo está em queda, os investimentos produtivos não se recuperam, postergando a recuperação da economia e piorando, os já degradados, indicadores sociais.

O crescimento dos preços diminui o poder de compra da população, reduz a renda agregada, contraindo os salários, levando o governo ao aumento nas taxas de juros, piorando as expectativas econômicas e seus impactos são imediatos. Os investimentos produtivos se reduzem, a economia se retrai e se aproxima da recessão, postergando o incremento da esperança e degradando as condições sociais e as instabilidades políticas. No momento que escrevo, a perspectiva do chamado mercado é de um crescimento de 0,5% do produto interno bruto, se estes valores se efetivarem a renda per capita se reduz mais uma vez, tornando a população cada vez mais pobre e os indicadores econômicos mais tenebrosos.

No cenário fiscal as condições são preocupantes, impactando sobre os investidores externos que fogem da economia brasileira, atraindo apenas os investimentos de riscos, que buscam altas rentabilidades, taxas de juros atraentes e ganhos elevados, com isso, o país entra na rota dos grandes especuladores internacionais, garantindo retornos altos e, em contrapartida, percebemos a destruição dos setores produtivos nacionais. O resultado evidente deste cenário, é o incremento da desindustrialização da economia brasileira, um setor que já representou quase 30% do produto interno bruto e, na atualidade, apresenta apenas 10%, gerando empregos de baixo valor agregado, salários baixos, reduzindo consumo e queda brutal na renda dos trabalhadores.

Os desafios econômicos são elevados e exigem consensos políticos fundamentais, os grupos econômicos, financeiros e políticos mais relevantes precisam construir novas perspectivas para o futuro imediato. A construção, ou reconstrução, exige visão estratégica, planejamento econômico, mão de obra capacitada, investimentos em ciência e tecnologia, estratégias geopolíticas consistentes, deixando de lado interesses imediatos e ganhos corporativos, unindo forças entre todos os atores da comunidade. Sem esta unidade, sem a integração entre Estado e Mercado, o país se aproximará, novamente, de uma nova década perdida, com altos custos sociais que perduram durante muitas décadas e se aprofundou nos últimos quarentas anos, quando os países desenvolvidos inauguraram a chamada terceira e, posterior, revolução industrial e no Brasil, ainda nos perdemos em algum momento da segunda revolução industrial, levando o país a um retrocesso enorme, com perda de relevância na economia internacional, atrasos institucionais e dificuldades de competir no, cada vez mais, competitivo mercado global.

O próximo ano nos trará desafios conhecidos por todos os estudiosos da sociedade brasileira. Os desafios brasileiros não são novos, são conhecidos por todos os cidadãos, os desafios são econômicos, são políticos e são sociais cuja superação exige, antes de mais nada, união, solidariedade, liderança, autonomia e esperança. Conceitos fundamentais que não conseguimos construir neste ano que estamos deixando para trás.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Administrador, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 29/12/2021.

Onde está o mérito? por Michael França.

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Resultados obtidos por uma pessoa estão correlacionados com o local de nascimento

Michael França Ciclista, doutor em teoria econômica pela Universidade de São Paulo; foi pesquisador visitante na Universidade Columbia e é pesquisador do Insper.

Folha de São Paulo, 28/12/2021

Existe uma intensificação em torno do debate relacionado à meritocracia. No contexto americano, isso não se limita a um grupo ideológico. A discussão atravessa todo o espectro político. Sai da esquerda até chegar à direita.

Se por um lado premiar as pessoas pelo talento, esforço e desempenho tem seus aspectos positivos, por outro um sistema que não procure lidar com as diferenças nas trajetórias individuais na obtenção de resultados pode discriminar sistematicamente os menos favorecidos.

O dinheiro e as conexões facilitam o progresso daqueles que nasceram com melhores condições financeiras e os impulsionam na escalada da hierarquia social. Estudos têm demonstrado que os resultados alcançados por uma pessoa estão altamente correlacionados com o local do seu nascimento.

Indivíduos com piores origens socioeconômicas têm cada vez mais dificuldade para competir com aqueles oriundos da elite. Enquanto as famílias de alta renda costumam deixar consideráveis legados para as futuras gerações e investem pesadamente na formação de seus filhos, as mais desfavorecidas não têm a mesma disponibilidade de recursos e podem apresentar baixo interesse nesse tipo de investimento.

Educação pública de qualidade é uma saída. Porém, existem limites para o que ela pode fazer. Os progressos educacionais têm vários impactos positivos, como por exemplo, permitir maior acesso a bons empregos e melhorar a produtividade.

Entretanto, a riqueza herdada dos pais pode ter mais impacto na acumulação de capital e manutenção do poder intergeracional do que os ganhos gerados no mercado de trabalho. A contínua passagem de vantagens para os descendentes acaba deixando pouco espaço no topo para aqueles que não nasceram com boas condições financeiras.

Na sociedade brasileira, a transmissão do status socioeconômico da família ocorre de maneira quase automática. No entanto, a construção de uma economia mais competitiva e de uma sociedade mais próspera requer que haja maior mobilidade social.

As pessoas deveriam prosperar de acordo com seus esforços e não amplamente amparadas pela influência familiar. Apesar de revolucionária, essa ideia é difícil de ser colocada em prática em lugares com grandes desigualdades sociais.

Na teoria, muitos gostariam de ter um país mais justo e sem pobreza. Na prática, o brasileiro “cordial” tende achar que o grupo favorecido é sempre o outro. Apesar do desafio, é necessário avançar em reformas estruturais no funcionamento do Estado e encarar de frente a batalha para diminuir os privilégios herdados.

Em um país conservador, sempre há muitas resistências às mudanças. Contudo, a consciência social a respeito das desigualdades de oportunidades tem aumentado. Os avanços na educação foram abaixo do ideal nas últimas décadas, mas permitiram a ascensão de vozes antes excluídas.

Velhas narrativas estão sendo contestadas. Novas surgiram. O futuro tende a ser caracterizado por muita agitação social. Deste modo, continuar com a reprodução do status quo poderá não ser mais facilmente tolerado. Assim, espero.

Esse texto foi uma síntese de algumas discussões que procurei realizar nesse primeiro ano como colunista. Agradeço às leitoras e aos leitores que me acompanharam até aqui. Todas as críticas, sugestões e apoios estão sendo fundamentais para o desenvolvimento do trabalho.

O fracasso do mundo pós-soviético

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Lógica neocolonial ganhou desenvoltura inédita

Breno Altman, Jornalista e fundador do site Opera Mundi

Folha de São Paulo, 26/12/2021

No dia 26 de dezembro de 1991 deixava de existir a União das Repúblicas Socialistas (URSS). O capitalismo fora vitorioso, ao menos provisoriamente, na batalha iniciada em 1917, quando os bolcheviques chegaram ao poder a bordo de uma revolução que mudaria o mundo.

O colapso soviético, nos últimos 30 anos, foi decisivo para a consolidação da fase neoliberal do sistema capitalista. O desaparecimento do campo político, econômico e militar que media forças com o bloco liderado pelos Estados Unidos provocaria realinhamentos profundos na geopolítica mundial e na vida interna das sociedades.

A restauração da economia de mercado, nos primeiros momentos, afetou prioritariamente os povos do leste europeu, desmontando mecanismos de proteção social. Os novos Estados oligárquicos-burgueses foram tragados pela concentração de renda e riqueza, acompanhada pela precarização de direitos e o empobrecimento das classes trabalhadoras. Ainda que setores médios emergentes tenham se beneficiado de maior abertura econômica, essas nações voltaram a ser abocanhadas pelas principais potências imperialistas, sequiosas por ampliar mercados, exportar plantas industriais e ter acesso à mão de obra mais barata.

A implosão da experiência socialista, carcomida por erros e contradições, inibiu a resistência contra o ressurgimento capitalista. Tornou-se avassaladora a hegemonia das ideias liberais, com promessas de democracia e prosperidade. Sequer a reconstrução da Rússia, sob o nacionalismo de Vladimir Putin, alterou esse cenário, com evidentes sinais de degeneração, como os emitidos pela ascensão do neofascismo na Polônia, Hungria e Ucrânia.

Mas os reflexos do desaparecimento da URSS se estenderiam também ao Ocidente. Sem a ameaça de um sistema que, no pós-guerra, forçou o capitalismo à concessão de amplos benefícios aos trabalhadores dos países centrais, governos conservadores se viram de mãos livres para começar o desmonte dessas conquistas. A social-democracia europeia aceleraria sua adesão ao neoliberalismo, desprovida da condição de muro reformista para contenção do avanço soviético.

A esmagadora maioria dos partidos comunistas ou revolucionários foi demolida, desorganizando o movimento operário e sindical, já acossado por mudanças tecnológicas. Boa parte dessas organizações e lideranças capitulou à ideia de que a história chegara ao fim, com a perenidade do capitalismo, restringindo seu próprio papel à contenção de danos mais dolorosos.

A onda de retrocesso atingiria com maior impacto as nações periféricas, condenadas a uma divisão internacional do trabalho na qual deveriam aceitar sua função de provedora agroextrativista. Sem a URSS, a lógica neocolonial adquiriu inédita desenvoltura.

Excluída a China da contabilidade, o mundo tem assistido à decadência de alguns dos principais índices sociais, inclusive nas nações desenvolvidas, como os Estados Unidos. Também se eleva o número de guerras e conflitos armados, além da degradação ambiental.

O capitalismo, sem freios, empurra a humanidade para a barbárie. Oxalá sua crise estrutural abra nova janela histórica para que seja enterrado um sistema no qual a riqueza de 1% representa o patíbulo para todos os demais.

Globalizantes e Globalizados

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A globalização da economia transformou a sociedade internacional nos últimos quarenta anos, criando novas estruturas produtivas, novos modelos de convivência social, novos desafios para o mundo do trabalho, novas oportunidades e grandes instabilidades, que geram ansiedades, medos e incertezas cada vez maiores. Neste ambiente de crescimento da concorrência entre os atores econômicos, motivados pela globalização, os indivíduos precisam reinventar sua sobrevivência, sob pena de serem descartados e desumanizados, gerando inquietações sociais e políticas.

A globalização estimulou o consumismo, a busca crescente pelos valores monetários e imediatistas, contribuindo para uma crescente competição entre os atores sociais, uns ganham com este ambiente, angariando maiores lucros e ascensão social e econômica e, em contrapartida, muitos grupos são relegados ao esquecimento, perdem espaços no mercado de trabalho, são descartáveis e percebemos o aumento dos desequilíbrios emocionais, os transtornos, as depressões, as ansiedades e as desagregações.

Nesta nova sociedade, percebemos o incremento da tecnologia, o conhecimento ganha espaço e as inovações crescem de forma acelerada, motivando fortunas e riquezas, ações crescem e criam novos milionários, gerando novos atores no cenário internacional. Empresas gigantes perdem espaço na nova economia, atores marginais crescem, ganham robustez e se transformam em grandes conglomerados, novos modelos de negócio suplantam modelos tradicionais que exigem reestruturações, novas tecnologias e novas formas de compreensão do mundo dos negócios. Neste momento, percebemos que a globalização em curso na sociedade internacional está criando atores, os Globalizantes e os Globalizados. Os primeiros são descritos como os atores mais consistentes, mais inovadores, investiram e investem rapidamente em novas tecnologias, desenvolvem novos modelos de negócios, criam ambientes de empreendedorismo e inovação e atuam diretamente na construção de uma nova sociedade, centradas no conhecimento, na ciência e na pesquisa. Do outro lado, percebemos que os globalizados estão perdendo espaço na sociedade, investem pouco em inovação, reduzem os investimentos na educação, em ciência e tecnologia e colhem o ostracismo, a estagnação e a perpetuação das desigualdades sociais.

Os Globalizantes constroem espaços de consenso na coletividade e, com isso, ganham espaço na sociedade e perceberam a importância da industrialização como forma de angariar espaços no comércio internacional, garantindo o crescimento na escada tecnológica, se especializando em produtos de alto valor agregado e garantindo melhoras na qualidade de vida da população. Os Globalizados, a grande maioria das nações, se perdem em conflitos desnecessários, naturalizando a autodestruição, estimulando confrontos internos e, constantemente, se colocando como vítimas de um ambiente hostil, não conseguindo planejar e construir ações no longo prazo e se comprazem com a degradação do cotidiano, convivendo com a pobreza moral e a animosidade das relações sociais.

A globalização inaugurou um novo modelo de sociedade, trazendo ganhos e perdas para todas as nações, os setores que conseguiram crescer e ganhar espaço nesta nova sociedade foram os capazes de pensar na comunidade e nos interesses de todos os grupos sociais, criando novos vínculos políticos, reconstruindo a solidariedade em contrapartida a uma sociedade centrada no imediatismo e na alienação. Os ganhadores da globalização foram aqueles que investiram nos seres humanos, elegendo o capital humano como prioritário, garantindo novas oportunidades para todos os cidadãos, diminuindo os privilégios de poucos grupos sociais que vivem alardeando a meritocracia, mas cotidianamente, se esquecem que seus privilégios garantem a perpetuação de sua pseudo meritocracia.

O ambiente globalizado exige profissionalismo dos atores econômicos, as nações precisam construir diferenciais para se inserirem neste ambiente de concorrência crescente, seguindo os exemplos dos países que conseguiram alavancar seu desenvolvimento econômico, sem medidas concretas vamos continuar chafurdando na fome, na indignidade e no recuo civilizacional.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Administrador, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 22/12/2021.

O socialismo do século 21, por Elias Jabbour.

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Experiência chinesa exibe novas e superiores formas de planificação econômica

Elias Jabbour, Professor da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FCE-Uerj), é autor, ao lado de Alberto Gabriele, de “China – O Socialismo do Século XXI” (ed. Boitempo, 2021)

Folha de São Paulo, 20/12/2021

Alguns dados espantam. Neste exato momento cerca de 2 milhões de engenheiros e economistas estão trabalhando freneticamente em algum órgão público chinês com a missão que vai além de elaborar e executar projetos. Sobre seus ombros repousam as tarefas de assegurar autossuficiência tecnológica ao país e, de forma simultânea, garantir que 13 milhões de empregos urbanos sejam criados todos os anos. Além de uma clara combinação entre ciência e arte, trata-se de um interessante retrato de uma engenharia social de novo tipo.

Essa engenharia social pode ser observada como uma nova classe de formações econômico-sociais que emerge na China com o advento das reformas econômicas de 1978, momento aquele em que as reformas rurais levaram o socialismo chinês a se reinventar através de instituições de mercado. Desde então, mercado e plano na China são parte de uma totalidade, não opostos que se repelem. Nossas pesquisas apontam que a dinâmica deste “socialismo de mercado” é baseada em ondas de inovações institucionais que levaram, por exemplo, à formação de um poderoso núcleo produtivo e financeiro de caráter público (96 grandes conglomerados empresariais estatais sob coordenação da Sasac—sigla em inglês para Comissão de Supervisão e Administração de Ativos Estatais do Conselho de Estado— e cerca de 30 bancos de desenvolvimento). Um pujante setor privado não passa de ancilar e receptor dos efeitos de encadeamento gerados pelo core estatal da economia.

Duas questões ao debate: existe na história algum país que sob os cuidados de seu Estado nacional está o papel de coordenar a execução de milhares de projetos simultaneamente, desde uma ponte até grandes plataformas do nível de um computador quântico? Seria alguma heresia afirmar que nenhuma democracia ocidental que tenha a economia baseada na propriedade privada seja capaz de realizar algo próximo ao que os chineses estão realizando? Às duas questões a resposta é não. O poder político do Partido Comunista e a hegemonia da propriedade pública sobre a grande produção são a explicação mais plausível à capacidade do Estado chinês de entregar o que promete. Inclui-se neste pacote histórico o enfrentamento às grandes contradições surgidas como resultado de seu processo de desenvolvimento.

Não interessa a ninguém esconder os problemas sociais e ambientais chineses, diga-se de passagem. Afinal, não seria o processo de desenvolvimento algo caracterizado por saltos, de um ponto de desequilíbrio a outro?

Nesse sentido, o que seria o “socialismo do século 21”? O conceito se manifesta do movimento real. Ou seja, a forma histórica que emerge da experiência chinesa é um mix entre uma democracia não liberal e o surgimento de novas e superiores formas de planificação econômica. À disposição dos citados 2 milhões de profissionais estão inovações tecnológicas disruptivas como o 5G, o big data, a inteligência artificial.

Nunca, em nenhum momento da história humana, as condições à construção consciente do futuro estiveram presentes em um mesmo lugar.

O fim da pobreza extrema, a melhoria constante das condições de vida de seu povo e ambiciosos planos em matéria de redução de emissões de carbono expressam uma forma histórica caraterizada pela transformação da razão em instrumento de governo. Eis a forma histórica sintetizada na experiência chinesa: o socialismo do século 21, expressão embrionária de um projeto emancipatório e civilizacional, em sua forma histórica mais completa. Uma sociedade amplamente guiada pela ciência.

Nesse aspecto, o socialismo enquanto “razão no comando” é interessante contraponto ao irracionalismo por trás da ascensão da extrema direita justamente no coração da civilização ocidental, supostamente “superior”.

A China de 2021 em quatro ideias, por Tatiana Prazeres.

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Ano marca mudanças de trajetória com impacto no futuro do país asiático

Tatiana Prazeres Senior fellow na Universidade de Negócios Internacionais e Economia, em Pequim, foi secretária de comércio exterior e conselheira sênior na direção-geral da OMC.

Folha de São Paulo, 17/12/2021

Rédeas curtas para o setor privado, regulação de algoritmos e proibição de criptomoedas. A crise energética e a pressão sobre metas climáticas. A crise imobiliária. A flexibilização da política do filho único. A diplomacia das vacinas contra a Covid e o anúncio de fornecimento de 1 bilhão de doses para a África. Uma estação espacial em construção. Um pouso em Marte. A preocupação com tecnologia e autossuficiência. O centenário do Partido Comunista Chinês.

O ano de 2021 foi intenso para a China. No entanto, mais do que fazer uma retrospectiva, vale refletir sobre o que realmente importa. A tarefa é arriscada no calor dos acontecimentos, mas aqui vão quatro possíveis pontos de inflexão. Os fatos estão associados a 2021, mas marcam mudanças de trajetória com impacto na China dos próximos anos.

1) 2021 foi o ano em que tensões geopolíticas mudaram de vez os cálculos de Pequim sobre sua atuação externa. Com a União Europeia, um acordo de investimentos assinado e celebrado em dezembro de 2020 foi colocado na geladeira. Em relação aos EUA, evaporaram quaisquer ilusões de que com Joe Biden o relacionamento bilateral melhoraria. Com a Austrália, submarinos nucleares entraram em cena. Em relação ao Japão e à Índia, aumentou a desconfiança mútua.

A China prepara-se para um cenário internacional mais resistente à sua ascensão —sabe que, mais do que antes, preocupações geopolíticas sobrepõem-se a interesses econômicos em algumas capitais. Ao mesmo tempo, reforça seus vínculos com a Rússia e com o mundo em desenvolvimento, que, em grande medida, quer distância da rivalidade geopolítica dos grandes.

2) 2021 foi o ano em que Taiwan voltou ao centro das atenções internacionais —e o assunto não vai desaparecer. A possibilidade de um confronto passou a ser discutida possibilidade de um confronto passou a ser discutida em diferentes locais. ainda que com boa dose de exagero, alimentando perigosamente uma profecia que pode se realizar.

Neste ano, Biden flertou com a mudança da postura dos EUA sobre Taipé, algo que vale há quatro décadas. Como nunca antes, Pequim deixou claro que o objetivo de rejuvenescimento nacional, meta para o centenário da República Popular da China em 2049, inclui a reunificação do país.

3) 2021 foi o ano em que a China dobrou a aposta na política de tolerância zero em relação à Covid-19. Pequim apertou os parafusos do controle, com resultados impressionantes no combate à pandemia.

A história ainda está sendo escrita, mas o saldo hoje é altamente positivo para as autoridades chinesas, a despeito dos problemas do início, reconhecidos à boca pequena entre locais, e dos sacrifícios individuais onde surgem surtos esporádicos.

O combate à Covid possivelmente será visto como um marco no aumento da confiança dos chineses em seu modelo político, com impactos significativos sobre a legitimidade do regime —e isso é altamente subestimado fora da China.

4) 2021 foi o ano em que Pequim corrigiu rumos na economia, podando o que via como excessos. De olho em ganhos a longo prazo, a China pareceu disposta a grandes sacrifícios imediatos. Empresas do país perderam mais de US$ 1 trilhão em valor de mercado neste ano, afetadas por um festival regulatório surpreendente.

Muitas dessas medidas têm como pano de fundo a ideia de prosperidade comum —forte candidata a expressão do ano na China. O interesse em fortalecer a classe média e reduzir desigualdades não é novidade. Mas poucos antecipavam tantas mudanças, tão significativas e em tantos setores ao mesmo tempo.

Quando historiadores olharem para a China de 2021, saltará aos olhos o fato de que, no debate entre fazer o bolo crescer e reparti-lo melhor, Pequim neste ano fez sua escolha.

Menos moral e mais políticas públicas, por Marta Machado

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O pânico moral em torno da educação sexual e do aborto serve de cortina de fumaça para aprofundamento da desigualdade e da pobreza feminin

Marta Machado, Professora da Escola de Direito da FGV-SP e pesquisadora do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento)

Folha de São Paulo – 16/12/2021

Excelente reportagem de Fernanda Mena e Mathilde Missioneiro desta semana expôs a situação dramática de meninas que se casam e engravidam precocemente. O Brasil é o quinto país do mundo no ranking de casamentos precoces e tem o segundo maior índice de gravidez na adolescência —acima da média da América Latina e do Caribe e atrás apenas da África Subsaariana.

Altas taxas de fecundidade entre meninas e adolescentes estão relacionadas a situações de vulnerabilidade, violência sexual, falta de informação, acesso restrito a educação sexual, métodos anticoncepcionais e serviços de saúde reprodutiva. Ocorrem principalmente entre meninas negras, indígenas, de baixa renda e residentes em áreas rurais.

Além de riscos para a saúde e graves efeitos psicológicos, a maternidade precoce agrava o ciclo de vulnerabilidades e determina diversos desfechos na trajetória de vida das adolescentes: abandono ou menor rendimento escolar, dificuldade de inserção no mercado de trabalho, maior risco de violência e aumento da pobreza.

Tal negação de direitos e perspectivas de vida para meninas e adolescentes está diretamente relacionada à falta de políticas públicas de educação e saúde, cenário agravado no governo Bolsonaro.

Sob o manto da defesa da família tradicional, o governo promove o fim de campanhas educativas, a exclusão da educação sexual dos currículos escolares, a interrupção da distribuição de anticoncepcionais e a imposição de entraves a programas de saúde reprodutiva. Em meio ao aumento dos casos de violência sexual na pandemia, portarias do Ministério da Saúde burocratizaram ainda mais o acesso ao serviço de aborto legal, de oferta já minguante nos hospitais públicos.

Ao destrinchar a aliança entre conservadorismo e neoliberalismo, Wendy Brown (2019) chama a atenção para o papel estratégico do mercado e da moral diante da retirada do Estado. A defesa da família tradicional anda de mãos dadas com a privatização e o desinvestimento em políticas de saúde, seguridade social e educação.

Na comemoração do “Dia Nacional da Família”, a secretária nacional de Família expôs publicamente a adesão a tal estratégia: a “cultura da família vai se expandindo”, ao passo que “o Estado protetor desincha e diminui o gasto público”. Afinal, “as políticas públicas familiares custam pouco e podem fazer muito”.

O pânico moral em torno da educação sexual e do aborto serve de cortina de fumaça para a falta de investimento em políticas públicas e para a negligência em relação à infância e adolescência de meninas. Serve ao aprofundamento da desigualdade e da pobreza feminina.

SUS revolucionou saúde brasileira, mesmo com má gestão e pouco dinheiro, por Dráuzio Varella.

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Dobre a língua antes de xingar o sistema público nacional, que oferece assistência médica como nenhum outro

Dráuzio Varella, Médico cancerologista, autor de “Estação Carandiru”.

Folha de São Paulo – 16/12/2021

Na abertura da Olimpíada de Londres, os britânicos colocaram três letras no centro do gramado: NHS. Referiam-se ao National Health Service, orgulho maior do país. Imagine as críticas, prezada leitora, se tivéssemos feito o mesmo: SUS, no meio do campo naquele espetáculo que foi cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos, no Rio de Janeiro.

O SUS é a instituição mais vilipendiada da vida brasileira. Só fizemos alguma ideia da sua importância quando nos demos conta de que sem ele a pandemia teria causado uma tragédia ainda mais devastadora.

O NHS, entretanto, é um sistema pequeno comparado ao SUS. É bem mais fácil organizar a saúde num país com 67 milhões de habitantes, dono de um império colonial até ontem, com um dos níveis educacionais mais altos do mundo e renda per capita quase quatro vezes superior à nossa.

Quero ver é levar a saúde para 213 milhões de pessoas, das quais, segundo o IBGE, 52 milhões são pobres e 13 milhões vivem abaixo da linha da pobreza, espalhadas por um território de dimensão continental, com desigualdades de renda abissais. Se somarmos os brasileiros pobres com os que estão na miséria, chegamos à população do Reino Unido.

Digo essas coisas, prezada leitora, por causa de uma reportagem que li no jornal The Guardian, cujo título é “Quase 6 milhões de pessoas estão na lista de espera por tratamento hospitalar na Inglaterra”.

A lista de espera por tratamentos não urgentes inclui cirurgias de joelhos, próteses de fêmur, cataratas e muitas outras. Em outubro último, havia 5.975.216 pessoas na fila, portanto um em cada dez cidadãos do Reino Unido.

Segundo a Constituição do NHS, não menos do que 92% dos pacientes devem ser hospitalizados no máximo em 18 semanas, contadas a partir do dia em que o médico generalista pediu a internação. No entanto, 34% (mais de 2 milhões) continuam à espera além desse prazo. Pior, 312 mil aguardam vaga há mais de um ano.

Os trabalhistas acusam o governo conservador de erros administrativos na condução do NHS, que teria entrado na pandemia já com déficit de 100 mil profissionais nos serviços de saúde e 112 mil na assistência social.

Associações que reúnem médicos, enfermeiras e gestores têm alertado que a segurança dos pacientes está em perigo. O Royal College of Emergency Medicine estima que ocorram 6.000 mortes anuais por atendimento inadequado, nos serviços de emergência superlotados. O número de pessoas obrigadas a aguardar mais de 12 horas para conseguir um leito nas emergências ultrapassa 10 mil.

Caro leitor, não apresento esses dados para desmerecer o sistema britânico, um dos melhores do mundo, que foi implementado há mais de 70 anos, mas para mostrar como é difícil oferecer como é difícil oferecer assistência hospitalar universal.

O Brasil dispõe de cerca de 500 mil leitos. No SUS, há dois leitos para cada mil habitantes; número que chega a 3,5 na Saúde Suplementar. Como a Organização Mundial da Saúde considera três leitos por mil habitantes o mínimo necessário, os técnicos calculam que faltam cerca de 150 mil leitos ao sistema público, enquanto sobram vagas nos hospitais particulares.

Internações custam caro e afastam os doentes dos familiares e da comunidade. A tendência moderna é a de investir na atenção primária, para evitar que as pessoas adoeçam e oferecer tratamento domiciliar para as que necessitarem.

O Brasil tem um dos programas de atenção primário mais elogiados do mundo: o Estratégia Saúde da Família, com mais de 42 mil equipes formadas por até 12 agentes de saúde, um auxiliar de enfermagem, um enfermeiro, um médico, um dentista ou técnico em saúde bucal.

Cerca de dois terços da população recebem visitas mensais dos 265 mil agentes de saúde que atendem de casa em casa. Temos mais agentes espalhados pelo país do que soldados nas Forças Armadas. Esse contingente, em contato com as 43 mil Unidades Básicas de Saúde, tem diminuído e poderá reduzir ainda mais o número de hospitalizações, problema que até um país rico como a Inglaterra não consegue resolver.

Com apenas 33 anos de vida, o SUS é o maior programa de distribuição de renda do país, diante dele o Bolsa Família é uma pequena ajuda.

É um sistema em construção que exige participação ativa de todos nós. Financiamento insuficiente, má gestão e problemas administrativos não lhe faltam, mas ele fez a maior revolução da história da medicina brasileira. Antes de xingá-lo, dobre a língua.

‘Auxílio Votos’, por Ricardo Viveiros.

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Fome eleitoral no Brasil é tão grande quanto a fome por comida

Folha de São Paulo – 15/12/2021

Ricardo Viveiros, Jornalista, professor e escritor, é doutor em educação, arte e história da cultura; autor, entre outros, de ‘A Vila que Descobriu o Brasil’ (Geração), ‘Justiça Seja Feita’ (Sesi) e ‘Pelos Caminhos da Educação’ (Azulsol)

Há um grave problema contra o qual vários países do mundo lutam: a fome. Embora o Brasil não sofra com terremotos, furacões, tsunamis, vulcões e guerras, tendo muitas terras agriculturáveis sob clima ainda favorável, grande parcela da sua população enfrenta a crueldade da fome.

Eis uma solução simples, digna e eficaz para o problema da segurança alimentar: cultura e educação. Proporcionando acesso a esses bens com qualidade, governos podem garantir que, por mérito próprio, as pessoas sustentem suas famílias. Sem a necessidade de qualquer tipo de assistência governamental ou privada.

Quando faltam cultura e educação, diante da realidade da fome faz-se necessário amparar os que são vítimas dessa desumana condição. Programas de transferências de renda são políticas sociais existentes em algumas partes do mundo para reduzir e combater a miséria. Não são “paternalismos”; são puro respeito humano. Como no poema “Trem da Leopoldina”, de Solano Trindade, a recomendação é: “Se tem gente com fome, dá de comer!”.

No final da década de 1990, apenas três países atuavam em programas assim: Bangladesh, México e Brasil. Depois, outras nações passaram a oferecer transferência de renda. Hoje há programas similares na Turquia, Camboja, Paquistão, Quênia, Etiópia, África do Sul, Gana, Indonésia e Egito.

Até em países supostamente ricos, como os EUA, encontramos programas de renda mínima, como o que existe desde 2007 em Nova York, o Opportunity. Inspirada no Bolsa Família do Brasil, a ação norte-americana inova ao estabelecer condicionalidades para que se rompa o ciclo da pobreza com dignidade, motivando os beneficiados para o crescimento social com ensino técnico e reciclagem profissional.

Tais programas não são novidade no Brasil, nem têm os “donos” políticos que a maioria imagina. No início dos anos 1950, o brasileiro Josué Apolônio de Castro, médico e nutrólogo pernambucano, tornou-se presidente do Conselho da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO).

Naquela oportunidade, disse: “No Brasil, ninguém dorme em razão da fome. Metade porque está com fome, e a outra metade porque tem medo de quem tem fome”. E sugeriu um programa contra o problema.

Quanto ao Bolsa Família, o idealizador do programa foi o sociólogo brasileiro Herbert José de Souza, o Betinho, inspirado em projeto anterior —o Bolsa Família (2001), criado pelo educador Cristovam Buarque quando governador do Distrito Federal (1995-1998). Os diferentes programas sociais “bolsa” foram unificados por Ruth Cardoso no governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e oficializados no governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Uma das principais promessas da campanha de Jair Bolsonaro (PL) quando disputou a Presidência da República era a de que não faria a “velha política”. Além de descumprir o prometido quando candidato, acaba de praticar um dos marcos da mais antiga ação eleitoreira: mudou o nome do Bolsa Família para Auxílio Brasil às vésperas de um ano eleitoral no qual pretende candidatar-se à reeleição.

Medida populista e inconsistente, sem clara fonte de recursos, será usada nas eleições para obter apoio dos menos esclarecidos. É o “Auxílio Votos”. A fome por votos é tão grande no Brasil quanto a fome por comida, que segue longe de ser zero…

Liberal de araque, por Lygia Maria.

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Se o Brasil tivesse investido mais em educação do que na Guerra às Drogas, não veríamos ministro e presidente falando bobagem sobre liberdade e liberalismo

Lygia Maria Mestre em Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Catarina e doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP

Folha de São Paulo – 15/12/2021

Ao justificar por que é contra a exigência de passaporte vacinal nos aeroportos do país, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, disse que é “melhor perder a vida do que a liberdade”. O presidente da República também já proferiu argumento semelhante, ao concordar com pessoas que não querem se vacinar, os chamados antivax.

Seria o caso, então, de perguntar ao ministro e ao presidente quando o governo legalizará as drogas. Afinal, não há lei que atente mais contra a liberdade do que aquela que proíbe o indivíduo de fazer o que quiser com seu próprio corpo.

O filósofo liberal John Stuart Mill (1806-1873) disse: “A respeito de si mesmo, sobre seu corpo e mente, o indivíduo é soberano”. Se o governo se coloca como arauto do liberalismo, não faz sentido manter a criminalização das drogas; ou melhor, só de algumas drogas, pois outras (álcool e tabaco) são comercializadas livremente. Ou seja, temos aqui um liberalismo de araque.

A frase de Mill não implica que não deva haver leis. Para o liberalismo, o indivíduo é soberano para fazer mal a si mesmo, não aos outros. Ora, esse é justamente o caso da vacina contra Covid-19 e da exigência do passaporte vacinal.

Estudos mostram que o risco de pessoas vacinadas transmitirem o vírus é até 70% menor do que o de pessoas não vacinadas. Logo, o indivíduo que não se vacina e o governo que não fiscaliza a vacinação nos aeroportos colocam a saúde e a vida das pessoas em risco. Não há nada de liberal em alegar liberdade para infectar alguém.

Já o uso de drogas prejudica apenas o usuário. Por isso, vários pesquisadores de vertente liberal são a favor da legalização. Por exemplo, o economista Milton Friedman —a propósito, muito citado por bolsonaristas ditos liberais— defendia a legalização das drogas desde os anos 70. Pode-se alegar que drogas geram violência, mas o que gera violência é o tráfico e esse surge com a ilegalidade.

Leis de mercado básicas: produtos proibidos ficam mais caros (durante a Lei Seca, por exemplo, o preço da cerveja subiu 600%, e o uísque, 310%); quanto maior o risco, maior o lucro; o risco leva à aquisição de armas e disputas de mercado entre facções rivais; o preço elevado não leva necessariamente à diminuição robusta do consumo pois há demandas elásticas e inelásticas.

Uma política pública deve ser uma alocação de recursos escassos com base em evidências. A pergunta básica é: para cada real gasto com a proibição das drogas, ganha-se um real de volta? Onde mais esse dinheiro poderia ser investido?

Talvez, se o Brasil tivesse investido mais em educação do que na Guerra as drogas, não veríamos um ministro e um presidente da República falando tanta bobagem sobre liberdade e liberalismo.

Financeirização

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A pandemia está gerando transformação no ambiente internacional, gerando questionamentos sobre a estrutura econômica das nações, o dinamismo de suas sociedades, a solidariedade entre os grupos sociais e as perspectivas para os próximos anos, marcados por inúmeros desafios, oportunidades e grandes mudanças no cenário global. Neste ambiente, a sociedade brasileira precisa repensar suas estratégias, buscando novos espaços de inserção na nova economia do conhecimento, construindo ativamente o desenvolvimento de tecnologias, planejando setores que contribuam para ultrapassar novas fronteiras tecnológicas e deixando de ser consumidora de produtos importados, cujos preços são elevados e contribuem para a perpetuação de uma dependência de outros países.

Até os anos 1980 a estrutura econômica e produtiva brasileira estava em grande ascensão, saímos de um país agroexportador, com baixa alfabetização e uma educação precária, baseada no meio rural, dependente de produtos primários de baixo valor agregado e nos tornamos uma economia em franco crescimento econômico, ganhando espaço no mercado internacional.

Desde então, a estrutura produtiva brasileira perdeu espaço no cenário global, países que viam o país como um exemplo de determinação e dinamismo econômicos superaram nosso país e ganharam espaços preciosos no altamente competitivo mercado global. Diante disso, a pergunta mais intrigante que precisamos responder é: o que aconteceu com a economia nacional nestes últimos trinta anos onde o país perdeu espaço e respeitabilidade no internacional?

Para responder esta indagação, precisamos perceber que a economia internacional, a partir dos anos 1980/1990, passou por grandes alterações, setores menos significativos perderam espaços na agenda econômica e se transformaram em setores dominantes, impondo seus interesses imediatos e altamente lucrativos, contribuindo para a desindustrialização de suas economias e garantindo altos ganhos na financeirização. Este cenário de crescimento das finanças da estrutura econômica garante altos lucros para poucos setores, mesmo nos momentos de crise econômica e de depressão, isso acontece porque estes setores vivem da intermediação de recursos e dependem das altas taxas de juros praticadas na economia, angariando bilhões de reais que garantem lucros elevados e usam sua estrutura política para garantir a isenção tributária, com isso, conseguimos compreender como os ricos ficam cada vez mais ricos, desde os períodos de bonança econômica até nos momentos de turbulência financeira, como vivemos no Brasil contemporâneo.

O assunto é árido e de difícil compreensão, diante disso, percebemos a dificuldade de analisar este fenômeno que não se restringe a países como o Brasil, mas perpassa a sociedade global, sendo que algumas nações já perceberam os impactos negativos da financeirização sobre a estrutura produtiva. Podemos definir a financeirização como um processo do capitalismo onde o dinheiro é usado como mercadoria, usando do dinheiro para fabricar dinheiro, levando ao processo de desindustrialização e da falta de desenvolvimento, onde a indústria se volta para as Bolsas de Valores e ao mercado financeiro, dominando a sociedade e impondo sua agenda, centrada no imediatismo, na instabilidade e nos lucros financeiros em detrimentos do emprego e do desenvolvimento da nação.

Existe uma alta correlação entre o crescimento da financeirização da economia e baixo crescimento econômico. Os países que cresceram no pós-1990 foram aqueles que conseguiram dominar os ganhos exagerados da intermediação financeira, em contrapartida, aqueles que se entregaram à sanha dos agentes financeiros, seu crescimento econômico reduziu expressamente, aumentando as desigualdades de renda e de oportunidades, gerando um retrocesso civilizacional de suas nações. O desenvolvimento econômico deve garantir uma melhora substancial na renda e na oportunidade de todos os cidadãos, garantindo melhoras para todos, não apenas para uma pequena casta de iluminados e dotados do “espírito empreendedor”.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 15/12/2021.

Bolsonaro usará STF e pauta moral em cruzada para se reeleger, diz cientista político

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Para Fernando Abrúcio, presidente trocou retórica de golpe por promessa de colocar ‘os nossos’ na corte

JOELMIR TAVARES – FOLHA DE SÃO PAULO, 14/12/2021

O cientista político e professor Fernando Abrucio relaciona a vitória de Jair Bolsonaro (PL) na indicação de André Mendonça para ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) com o tema central da campanha do presidente à reeleição em 2022.

“O STF será parte da chamada guerra cultural, com a defesa de valores e a discussão moral, que será uma das estratégias políticas do Bolsonaro”, afirma à Folha o acadêmico, que vê o uso político-eleitoral da corte como sinal de enfraquecimento da democracia.

Para Abrucio, o mandatário vai explorar a promessa de colocar no STF mais ministros cristãos e conservadores, no intuito de acenar ao eleitorado evangélico e reforçar o que chama de cruzada contra valores progressistas associados à esquerda.

O docente da FGV em São Paulo considera um segundo turno contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) o cenário mais provável, à luz do quadro atual e das pesquisas mais recentes. “O grande medo do Bolsonaro hoje é o Lula ganhar no primeiro turno”, diz.

Abrucio afirma que, se Bolsonaro vencer, será por uma margem apertada, o que o deixará enfraquecido já no início do eventual segundo mandato. Segundo o professor, isso abriria margem para o debate sobre o semipresidencialismo, sistema defendido pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL).

O que os bastidores da indicação de Mendonça antecipam sobre a campanha de Bolsonaro à reeleição? O STF será parte da chamada guerra cultural, com a defesa de valores e a discussão moral, que será uma das estratégias políticas do Bolsonaro. Um segundo vértice é o discurso de destruição do inimigo, e nisso a campanha vai ser muito pesada, atingindo várias frentes: comunismo, “extrema imprensa”, retorno da esquerda. E outro eixo serão as políticas públicas, mas o resultado nessa área é muito pequeno, com a crise econômica e social e as ações desastrosas de saúde e educação.

O STF então vira uma das trincheiras da campanha? Sim. Não é mais só dizer: “Vamos fechar o Supremo”, “o Supremo não deixa governar”. Isso fracassou, felizmente para o país. A estratégia agora é a ideia de colocar “os nossos” lá, os que defendam “os nossos valores”.

É um importante argumento eleitoral, possui algum grau de eficácia. Nos Estados Unidos, os republicanos vêm, até mesmo antes da eleição de Donald Trump, fazendo isso de usar a Suprema Corte [hoje com maioria conservadora entre os juízes].

Podemos nos preparar para uma eleição presidencial com o STF no foco? Sim, mas não o STF no sentido de Poder, algo institucional. Para Bolsonaro, o STF será uma espécie de símbolo. Tudo aquilo que ele puder usar para prometer avanço nessa agenda de valores em prol da pátria e da família, ele vai usar. O argumento dele se baseia na justificativa de que o Brasil é um país eminentemente cristão.

Bolsonaro confirmou essa estratégia ao dizer há alguns dias que, se for reeleito, indicará mais dois ministros evangélicos? Isso será constante agora e na campanha. Mas eu diria que essa fala é mais uma promessa do que uma possibilidade.

Por quê? Acho muito difícil que Bolsonaro consiga colocar no Supremo algum conservador muito radical. Não passa no Senado, em hipótese nenhuma. E acho que o Senado na próxima legislatura não vai estar muito diferente do que é hoje, ou seja, ele não terá maioria.

É preciso pontuar que Mendonça pertence a uma denominação moderada [Igreja Presbiteriana], e foi esse o perfil da atuação dele nos últimos anos em Brasília, talvez à exceção do período em que ele foi ministro da Justiça.

Mas, pensando na campanha, apelar para as questões religiosas e de comportamento funcionará para vencer? Ao pregar esse avanço sobre o STF, o argumento é o de que [os conservadores] precisam ter o domínio do controle das instituições. Esse jogo é até mais inteligente politicamente do que ter a Sara Winter pregando fechamento do Supremo. Vamos lembrar que o pessoal que propôs invadir o STF foi todo rifado pelo Bolsonaro.

É uma reciclagem da retórica que vigorou até o 7 de Setembro? É uma mudança, na verdade. Até o 7 de Setembro, era para dar o golpe. E o golpe fracassou. Não acho que o bolsonarismo raiz tenha desistido por completo do golpe. Eles guardaram na gaveta e podem ressuscitar algum dia.

A questão do Supremo hoje é uma estratégia eleitoral, e algo até mais racional do que a proposta de golpe. O objetivo é dizer que o presidente fará uma série de ações para fortalecer a maioria cristã do país.

Em que medida é legítimo levar ao Supremo representantes de segmentos? Não é um argumento ilegítimo, mas precisa estar associado a outra dimensão. O que se espera de um ministro do STF é que, independentemente de ser judeu, cristão ou ateu, ele seja um bom ministro. O aspecto religioso é irrelevante.

Algumas críticas feitas a André Mendonça foram equivocadas. O que deveria impedi-lo é a gestão dele como ministro da Justiça, que foi desastrada para a democracia, com autoritarismo e perseguições. Isso constitui falta de reputação ilibada, nos quesitos de comportamento ético e de respeito à democracia. Mas ele não tem menos qualificações técnicas do que outros ministros, como Dias Toffoli.

O STF também aparece na pré-campanha de Sergio Moro, mas pela via do combate à corrupção, com as críticas do ex-juiz a decisões da corte. A pauta da corrupção, aparentemente, não será relevante nesta eleição. Moro pode até crescer com esse discurso e chegar a uns 15%, mas esse pode ser o teto dele também.

As pessoas vão olhar e dizer: mas ele foi ministro do Bolsonaro, e ficou muito tempo [no governo]! Aliás, essa ligação entre eles será explorada ao máximo pelo Bolsonaro, que já o ridicularizou, por exemplo, por ficar calado nas reuniões de ministérios.

O que essa questão do STF como trincheira político-eleitoral revela sobre o sistema partidário e político brasileiro? Isso mostra um enfraquecimento da democracia brasileira. É um uso equivocado do sentido das instituições, e não é só com o STF.

Como o sr. avalia a relação hoje de Bolsonaro com os evangélicos? É bem provável que ele tenha menos voto dos evangélicos em 2022 do que teve em 2018, porque a crise econômica e social está brava, e o evangélico mediano é pobre e negro. Grande parte dessa fatia não vai votar no Bolsonaro.

No entanto, a situação dele para ir ao segundo turno é mais tranquila do que muitos imaginam. É preciso dizer que, caso ele ganhe a eleição, será por uma margem estreita. O grande medo do Bolsonaro hoje é o Lula ganhar no primeiro
turno.

A pauta moral será suficiente para Bolsonaro se manter competitivo? Ele vai fazer uma campanha, digamos, pró-cristãos. É um dos poucos argumentos do Bolsonaro que sobraram. Com essa linha, ele consegue manter uma quantidade de cristãos que se soma aos conservadores e armamentistas, totalizando algo em torno de 15%. Esse bolsonarismo raiz é o que ainda segura o presidente.

Se ele tiver mais 10%, distribuindo dinheiro, pagando Auxílio Brasil, com a capilaridade do centrão, ele está no segundo turno, que é o que ele quer. E aí no segundo turno é tudo ou nada, naquela cantilena já conhecida: “Lula é comunista”, “o país vai ser dominado pelos chineses” etc.

A guerra cultural será a tônica da campanha de Bolsonaro? É plataforma de campanha e de governo. Afinal, o que tem para mostrar? O Posto Ipiranga [ministro da Economia, Paulo Guedes], o que entregou? Na educação, o que se tem é a agenda evangélica, a batalha contra a tal ideologia de gênero. E na saúde? É liberdade para você morrer? Se fizer um balanço das políticas públicas, não tem nada, é zero. Ele não construiu, só destruiu.

O país está economicamente muito mal, e não acredito que vá melhorar tão cedo. Vai piorar, na verdade. Para quem está na pobreza e buscando formas de comer e sobreviver, os valores cristãos não vão adiantar [na hora de decidir voto].

Vê chances de Bolsonaro estar no segundo turno? Ele precisa de 25% para estar no segundo turno. E ir para o segundo turno contra Lula significará pintar o petista como a ameaça maior ao país. É algo como “Deus contra o Diabo”. É muito difícil que Lula, ainda que derrotado, tenha no segundo turno menos de 45% dos votos. Bolsonaro começaria o governo muito enfraquecido.

Ele fica refém do Congresso e, na primeira crise, instala-se o debate sobre o semipresencialismo. Essa é a ideia do Arthur Lira, que é hoje o homem mais importante da República. Lira sabe que um presidente fraco é bom para o Congresso.

O nível do debate em 2022 será assustador e violento. Vai ser uma campanha suja, no estilo das eleições mexicanas na época do PRI [Partido Revolucionário Institucional], com atentados, assassinatos de candidatos e clima de terror.

Existe alguma forma de evitar isso? Bolsonaro fará uma cruzada pela vitória. Isso é o que deveria dar mais juízo a Lula e à terceira via, no sentido de buscar uma frente ampla, a mais diversa possível, já que o que há do outro lado é alguém que pode, ganhando ou perdendo, dilacerar o país.

Quem assumir em 2023 pegará uma terra arrasada. É sobre isso que o país deveria pensar. As pessoas não estão percebendo o grau de desestruturação do tecido social nos últimos anos. É um declive muito acentuado, desde 2013, o impeachment [de Dilma] e a Lava Jato, acentuado superlativamente sob Bolsonaro. Para consertar, o Brasil vai precisar de mais gente unida do que desunida.

Vê chance de união na chamada terceira via, que ostenta o discurso da convergência? Acho difícil que essa unificação se dê em torno do Moro. Tanto Moro quanto João Dória são filhos da crise de 2013, que produziu a polarização entre Lula e Bolsonaro e acabou engolindo todo o resto.

RAIO-X
Fernando Luiz Abrucio, 52
Doutor em ciência política pela USP, é professor e pesquisador da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV-Eaesp) e foi pesquisador visitante no MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts). É autor dos livros “Barões da Federação: Os Governadores e a Redemocratização Brasileira” (1998) e, em parceria com B. Guy Peters e Eduardo Grin, “American Federal Systems and Covid-19” (2021)

Negacionismo na academia, por George Matsas

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Fecham-se os olhos diante de ‘questões mais urgentes’

Folha de São Paulo, 11/12/2021.

George Matsas, Professor do Instituto de Física Teórica da Unesp e membro titular da Academia de Ciência do Estado de São Paulo

Em níveis globais, a varíola foi erradicada, e a Aids, controlada. Para dar exemplo mais próximo a nós, segundo dados do IBGE, a expectativa de vida de brasileiros e brasileiras aumentou 30 anos em seis décadas. Portanto, diante destes e de tantos outros avanços científicos, é incompreensível que ainda haja negacionistas no mundo.

Ainda mais incompreensível (e tremendamente escandaloso) é o fato de eles grassarem por vielas escuras da academia.

Por mais incrível que pareça, a academia abriga negacionistas do aquecimento global, da eficiência das vacinas, da evolução das espécies e de sabe-se lá mais o quê. Isso seria anedótico não fosse o fato de que as universidades públicas são sustentadas pela sociedade para serem santuários da lógica e da razão.

No Brasil, argumentos sussurrados nos corredores da academia alegam que o acionamento dos comitês de ética para denunciar negacionistas —cujo papel se assemelha ao de uma quinta-coluna — poderia ser visto como “caça às bruxas”.

Afirmações descabidas, sem dúvida. Afinal, a Inquisição teve origem em preconceitos e crendices, não no pensamento racional.

Outro sofismo diversionista: comparar sanções de comitês de ética —órgãos democraticamente eleitos— a censuras arbitrárias decretadas por regimes ditatoriais. A liberdade acadêmica não é passaporte para negar a própria missão da universidade, e a academia não tem o direito de fechar os olhos para isso.

Então, o que explicaria a inação da academia?

Em primeiro lugar, o salário dos negacionistas não é pago pelos demais acadêmicos —ah, sim, porque a primeira coisa que qualquer um faria se descobrisse que a pessoa que pensou ter contratado como contador é, na verdade, um estelionatário seria demiti-la por justa causa.

Assim, não impactando no bolso destes, nem prejudicando a própria carreira e a de colegas, parece sempre conveniente recorrer a um lugar-comum: há outras questões mais urgentes. Ora, sempre há! No Brasil, autocrítica é matéria rara, e a academia, onde ela deveria ser exercida por dever de ofício, não é exceção. Em segundo lugar, há o instinto de corporativismo. A história tem mostrado que não é fácil lutar contra ele.

Como consequência do corporativismo, a academia é rápida em criticar cortes de verbas, usando o discurso coerente de que isso vai prejudicar a sociedade no curto e médio prazo. Também é ágil, por meios de suas sociedades representativas e profissionais, em criticar malfeitorias de outras instituições, corrupção na administração pública e maus políticos, por exemplo.

Mas é lenta em cortar na própria carne, por mais que isso seja igualmente necessário para defender a sociedade, a qual ela alega ser sua prioridade. Isso não está certo.

A permissividade da academia diante da existência de negacionistas confessos em suas fileiras é irracional do ponto de vista lógico e inaceitável do ponto de vista ético.

Mudanças climáticas são oportunidade de reformular política, diz historiadora

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Para Tatiana Roque, pactos entre ciência, sociedade e poder precisam ser refeitos

Cristiane Fontes
Marcelo Leite

Folha de São Paulo – 09/12/2021

OXFORD E SÃO PAULO
A matemática, filósofa e historiadora Tatiana Roque acaba de lançar “O Dia em que Voltamos de Marte: Uma História da Ciência e do Poder com Pistas para um Novo Presente”. No livro, ela detalha os avanços tecnológicos e disputas em torno dos paradigmas científicos nos últimos 400 anos.

“Nós vivemos tempos inéditos, tempos sem precedentes, que demandam respostas originais”, afirma. Para Roque, um dos principais problemas do neodesenvolvimentismo latino-americano, como no caso do PT, é o de se apoiar numa concepção historicamente datada, uma vez que a crise climática coloca em xeque justamente o modelo industrial do pós-guerra.

“Não é tanto pensar o que nós podemos fazer pelas mudanças climáticas e sim o que as mudanças climáticas podem fazer por nós”, defende. “Ver as mudanças climáticas como uma oportunidade de reformular completamente a nossa vida social e a nossa vida política, que, afinal de contas, não está funcionando tão bem.”

Para ela, o mais interessante da COP 26 (Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas) foi o contraponto de uma sociedade civil brasileira ativa a um governo catastrófico, com destaque para o movimento negro colocando o racismo ambiental como uma questão central.

A questão é como transformar essa movimentação social em renovação político-partidária, não só de pessoas, mas de agendas. “Vejam os discursos incríveis que Lula fez na Europa, mas, na hora de falar de desenvolvimento, ele falou do quê? De carro!”

O que levou você a escrever “O Dia em que Voltamos de Marte”? O que a história diz sobre os caminhos que nos trouxeram até aqui? Resolvi escrever um livro histórico, porque a história presente não encontra paralelos. Nós
vivemos tempos inéditos, tempos sem precedentes, que demandam respostas originais.

Esse é um dos argumentos principais do livro, tentar mostrar que nós vivemos tempos que não têm comparação com nada que a gente já viveu anteriormente e, portanto, esses pactos entre ciência e sociedade, entre ciência e poder, precisam ser refeitos e não vão mais se refazer imitando ou reproduzindo aquilo que foi feito em outros momentos históricos.

Portanto, não há paralelos. Mas aí, qual passa a ser o guia? Essa é uma dificuldade que a gente precisa reconhecer para encontrar soluções. No livro, uso muito o historiador Dipesh Chakrabarty, que fala sobre essa interseção entre duas histórias.

A gente sempre costumou pensar as mudanças atmosféricas e geológicas como mudanças que se localizavam num tempo muito longo, incompatível com o tempo da vida humana. Agora, a gente está vendo esses dois tempos se cruzarem, e o homem passou a ser uma força geológica. Como se servir de guias do passado quando a gente vive esse momento em que a vida humana está ameaçada de extinção pela ação da própria humanidade?

Você diz no livro que é preciso repensarmos a vida na Terra. A partir de que pistas a gente tem de enfrentar essa empreitada? O principal guia é o combate às mudanças climáticas. Não é tanto pensar o que nós podemos fazer pelas mudanças climáticas e sim o que as mudanças climáticas podem fazer por nós.

Ou seja, não é ver as mudanças climáticas como um empecilho, como algo que a gente precisa ultrapassar para continuar vivendo como sempre viveu, é ver as mudanças climáticas como uma oportunidade de reformular completamente a nossa vida social e a nossa vida política, que, afinal de contas, não está funcionando tão bem.

Como agir no presente para cuidar do futuro considerando uma sociedade como a brasileira, que tem enormes desigualdades sociais e grave e longa crise política e econômica? O Brasil se identificou bastante e por muito tempo com esse mito do país do futuro. Isso nos atrapalha muito, porque as soluções são sempre jogadas para depois.

Existe uma relação com o tempo que acaba nos impedindo de resolver esses problemas, porque a questão da desigualdade depende de alguma coisa por vir, não é o desafio principal presente.

A gente precisa inverter essa temporalidade e pensar que a gente tem de, primeiro, combater as desigualdades e pensar a partir daí em um novo modelo de desenvolvimento.

O que saiu de mais interessante na COP6, e o que mais preocupa no que foi discutido e definido em Glasgow? No caso do Brasil, a gente mostrou que tem uma sociedade civil ativa, apesar de o governo ser uma catástrofe. Do ponto de vista das negociações, acho que é muito aquém daquilo que a gente precisa. Temos um problema de governança global, não é só na COP, e quase todo mundo reconhece isso.

Esse modelo em que tomadores de decisão assumem compromissos voluntários, em que eles podem cumprir ou não, em que não há nenhuma forma de regulação, é algo que já mostrou bastante insuficiente.

Quais são os temas mais urgentes para o Brasil, considerando as eleições presidenciais do próximo ano? Pensar um modelo de desenvolvimento que não deixe a questão climática e ambiental em segundo plano. A gente tem um longo caminho para renovação da esquerda brasileira e latino-americana. A esquerda tem uma tendência a ser um pouco nostálgica do paradigma do New Deal.

Como recuperar um paradigma industrialista e baseado em um Estado de bem-estar social que funcionou em algumas partes do mundo e não funcionou totalmente nos países do sul? Como recuperar esse paradigma em um momento de crise climática, que coloca em xeque o modelo industrial do pós-guerra? Acho que o problema do neodesenvolvimentismo é justamente se apoiar em uma concepção historicamente datada em face da questão climática.

A ciência continua sendo fundamental para a superação de qualquer crise, especialmente, da crise climática. Como restabelecer a confiança na ciência dentro do fortalecimento do negacionismo e do desmantelamento das políticas públicas de ciência e inovação no Brasil? Acredito que, no Brasil, a crise da confiança na ciência não seja muito profunda. O exemplo das vacinas é muito bom. A gente tem grande confiança nas vacinas, justamente porque as políticas públicas de vacinação têm histórias de sucesso, das campanhas atingirem muita gente, disso ser algo reconhecido pela população.

A confiança na ciência não se dá no vazio. Essa valorização depende de como as pessoas enxergam o impacto da ciência nas suas vidas. Algumas pesquisas sobre confiança na ciência com as quais venho trabalhando mostram justamente isso, que a confiança tem uma correlação com o impacto que as pessoas percebem ou não no seu cotidiano.

Talvez a gente precise se mirar nisso para tratar a ciência de um modo mais implicado na sociedade.

A crise climática finalmente deixou de ser um assunto só da ciência e agora é também um assunto político, econômico, das artes. Quais as pistas para o novo modelo que você aponta? No Brasil, sem dúvida alguma, quem aponta novos paradigmas são os povos indígenas, que apresentam outros modos de vida e formulações muito impactantes, como as que estão no livro “A Queda do Céu”, do [Davi] Kopenawa ou “Ideias para Adiar o Fim do Mundo”, do Aílton Krenak.

Fora isso, tem toda a organização da sociedade civil, o movimento negro, os quilombolas, se organizando e trazendo o racismo ambiental como questão essencial para organizar essas agendas.

O que falta é a gente saber como essa mobilização social e as contribuições científicas, que no Brasil são muitas e muito importante para a questão climática, podem servir para uma renovação política. Ela não vai acontecer sem uma renovação político-partidária, e isso tem de chegar nas agendas dos candidatos, dos partidos.

O campo que tem condições de produzir essas transformações é o da esquerda, mas a gente ainda não conseguiu renovar as nossas lideranças. Vejam os discursos que Lula fez na Europa, incríveis sob muitos pontos de vista, mas, na hora de falar de desenvolvimento, ele falou do quê? De carro! Falou da nossa produção de automóveis e nem mencionou transição energética, carro elétrico, nada disso.

RAIO-X
Tatiana Roque, 51
Professora de matemática, história das ciências e filosofia da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), coordenadora do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ. Vice-presidente da Rede Brasileira de Renda Básica, foi presidente do sindicato docente da UFRJ e liderou campanhas contra os cortes de verbas para as universidades e a ciência. Foi candidata a deputada federal pelo PSOL em 2018.

Fome é produto de um governo que junta incompetência e improviso, por Bruno Boghossian.

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Gestão Bolsonaro desmonta programas e recorre a gambiarras para combater problema crônico

Bruno Boghossian Jornalista, foi repórter da Sucursal de Brasília. É mestre em ciência política pela Universidade Columbia (EUA).

Folha de São Paulo, 08/12/2021

No início de maio, alguém avisou a Jair Bolsonaro que o país atravessaria um período de estiagem aguda. O presidente olhou para os reservatórios das usinas hidrelétricas e soltou um lamento. “Estamos vivendo a maior crise hidrológica da história. Eletricidade. Vai ter dor de cabeça”, avisou a seus apoiadores.

Duzentos e onze dias depois, o Brasil parece ter superado o risco imediato de um apagão, mas há gente correndo atrás de lagartos para não passar fome no Rio Grande do Norte. Reportagem da Folha mostrou que metade do estado enfrenta uma situação de “seca grave”, expondo uma população desamparada por um governo incapaz de fazer o mínimo para enfrentar a miséria.

Nessa área, a gestão Bolsonaro exibe uma rara união entre incompetência, desinteresse e improviso. O presidente e seus auxiliares fazem definhar programas consolidados, ignoram consequências visíveis da crise econômica e recorrem a gambiarras para combater um problema crônico como a pobreza.

Em busca de dividendos eleitorais, Bolsonaro rebatizou o Bolsa Família e inventou um benefício adicional que pode valer apenas até o fim de seu mandato. Para completar, o governo barrou uma articulação que acabaria com a fila de espera do programa. Com a manobra, pelo menos 3 milhões de famílias pobres ou miseráveis devem continuar sem receber os pagamentos.

A gestão Bolsonaro ainda fez murchar um programa de enfrentamento à seca que chegou a instalar 100 mil cisternas num único ano. Agora, o governo se arrasta para chegar à marca de 3.000 unidades em 2021, enquanto a estiagem agrava a fome no semiárido. Entidades estimam que mais de 350 mil famílias da região ainda precisam ser atendidas.

A falta de uma rede de proteção social oferecida pelo governo faz com que a fome e a seca voltem a ser problemas políticos. Além das preocupações abrangentes com “a economia”, o país chegará ao debate eleitoral de 2022 diante da miséria que atinge muitos brasileiros.

Políticas Públicas

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A pandemia está gerando grandes transformações para a sociedade brasileira, criando novos desafios e oportunidades que exigem comportamentos variados, diagnósticos precisos, capital humano altamente qualificado, políticas públicas universais, investimentos maciços em ciência e tecnologia, construção de consensos políticos, investimentos estatais e planejamentos públicos. Sem estas agendas, o país tende a amargar mais um período de baixo crescimento econômico com piora dos indicadores sociais e os custos sanitários tendem a disseminar para toda a coletividade, impactando sobre os grupos mais fragilizados, perpetuando as desigualdades que assolam a sociedade nacional.

Neste momento, precisamos repensar as políticas públicas implantadas na sociedade, analisando os custos e os benefícios destas políticas, reestruturando-as quando os objetivos não forem alcançadas, tributando de forma mais equitativa os agentes produtivos, revendo as isenções de tributos para setores que pouco contribuem para o crescimento da coletividade e revendo todos os instrumentos de regulação da economia, evitando os grupos de lobbies que auferem rendas sobre os setores mais degradados da sociedade.

A pandemia nos mostrou a importância das políticas públicas para o desenvolvimento da sociedade, onde destacamos o Sistema Único de Saúde, o SUS, modelo de atendimento universal criado nos anos 1980, cujos desafios são gigantescos, diante disso, fica a pergunta: como seria o país sem este sistema de saúde pública universal num momento de destruição e devastação gerado pela pandemia? Sabemos que o SUS tem muitas dificuldades e limitações, mas deve ser reformulado e melhorado continuadamente, atualizando os serviços, ampliando os atendimentos, remunerando melhor os atores integrados e desenvolvendo novos instrumentos de gestão centrados na eficiência, na transparência e na satisfação da população.

Embora muitas pessoas não conheçam o potencial do SUS, precisamos compreender a dimensão desta política pública, que não se restringe às consultas, exames e atendimentos, o Sistema Único de Saúde é muito mais complexo, abrangendo desde emergência, pesquisa, ensino, pesquisa científica, doação de sangue, pandemia, vacinação, transplantes, SAMU, saúde da família, centro de atenção psicossocial (CAPs), Anvisa, dentre outros. A dimensão do Sistema Único de Saúde é uma política exitosa e de grande relevância para a sociedade brasileira, responsável por atendimentos variados e dotados de profissionais de grande competência técnica que devem ser exaltados, respeitados e valorizados.

Outra política pública relevante para a sociedade brasileira é o Programa Bolsa Família, cujos objetivos devem ser exaltados, melhorados e fortalecidos, que contribuíram para auxiliar na retirada de milhões de famílias do mapa da pobreza, criando novas oportunidades de sobrevivência para grupos sociais vistos como invisíveis, relegados ao esquecimento de uma parte substancial da sociedade. Embora saibamos que essa política apresenta deficiências que devem ser superadas, o modelo é exitoso e deve ser consolidado e aperfeiçoado, ainda mais quando percebemos que este modelo de combate da miséria recebeu elogios de reputadas instituições internacionais que foram recomendadas para inúmeras nações por pesquisadores independentes e com vinculações ideológicas variadas.

A pandemia exige a consolidação de políticas públicas exitosas e reconhecidas nacional e internacionalmente, como as duas citadas anteriormente, ambas foram aprovadas pela sociedade brasileira e devem ser fortalecidas, como forma de capacitar a população para superar os desafios contemporâneos. A pandemia exige o retorno do Estado planejador e empreendedor, como está acontecendo em todas as regiões do mundo, desde os países desenvolvidos como os EUA, a Europa, a China, a Coréia, dentre outros. Infelizmente, o complexo de vira lata persiste na sociedade brasileira, continua insistindo num liberalismo ortodoxo e atrasado, onde mesmo os defensores destas ideias e teorias já evoluíram e abandonaram estes preceitos atrasados e reacionários.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 08/12/2021.

O declínio, por Leandro Karnal.

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Após quase 200 anos de crescimento da população, números desaceleram na maioria dos países

Leandro Karnal – O Estado de São Paulo, 05/12/2021

No século 18, a população humana se aproximava de um bilhão de pessoas. Levamos milhares de séculos para atingir esse número. De repente, um salto: em pouco mais de 200 anos chegamos a 7,5 bilhões de indivíduos. O ano de 1800 é, simbolicamente, o momento da virada.

O salto começou nas Ilhas Britânicas. Morriam menos crianças e a longevidade aumentou. O padrão médio de vida sofreu uma elevação quase contínua. Ao mesmo tempo, fruto da urbanização e até da alfabetização das mulheres, o número médio de filhos foi decaindo. O “termômetro demográfico” pode ser simbolizado na família real. A rainha inglesa Ana (morreu em 1714) teve 18 gestações. Nenhum filho sobreviveu. Vitória, no século seguinte, teve nove filhos. Todos chegaram à idade adulta. O rei George VI e sua esposa Elizabeth, mãe da atual soberana britânica, tiveram duas filhas no século 20. É uma mudança notável.

Paul Morland escreveu A Maré Humana (subtítulo: A Fantástica História das Mudanças Demográficas e Migrações Que Fizeram e Desfizeram Nações, Continentes e Impérios – editora Zahar, tradução de Maria Luiza Borges). Seu objetivo é analisar a demografia como fator histórico. Exemplo: a resistência russa à invasão nazista sempre é explicada em termos militares ou de nacionalismo eslavo. Porém, para o autor, ela nasce da revolução demográfica russa iniciada no século 19 e que dava a possibilidade de substituir os muitos soldados mortos por novos contingentes humanos.

Para Morland, os nascimentos explicam tanto como as estratégias militares. Nascimentos, sobrevivência de crianças, diminuição da mortalidade e aumento da expectativa média de vida, somados a migrações, explicam uma maré montante ou em refluxo que estaria, para o autor, na base de muitos fenômenos históricos. Existe um outro fator: populações muito jovens são mais agressivas e aderem com maior facilidade a projetos militaristas dos seus respectivos governos. Populações envelhecidas são menos dadas a aventuras imperialistas ou agressivas. Esse seria outro fator para explicar a Grande Guerra, por exemplo, ocorrida quando a Europa Ocidental estava tomada de jovens crescidos da revolução demográfica anterior. Da mesma forma, a Intifada Palestina de 1987 tinha uma população com idade média de 15 anos. A idade aumentou muito nos territórios palestinos e sempre atribuímos um relativo declínio das intifadas a fatores políticos ou econômicos.

Para o autor, devemos levar em conta o envelhecimento. O “bolsão de juventude”, acompanhado de sentimentos de injustiça e desemprego, é terreno bom para fundamentalismos religiosos.

O reverendo Malthus alertou: crescimento geométrico da população levará à fome. Ele trabalhou com os dados disponíveis na época. Em quase todos os países, o baby boom dá origem ao baby bust e passamos da explosão ao declínio generalizado. As linhas não são sempre contínuas. Os EUA, por exemplo, deram um salto no século 19 em função de aumento interno e migrações externas. Depois, nas primeiras décadas do século 20, diminui a taxa de crescimento interno e termina o fluxo imigratório nos moldes massivos. A partir da Segunda Guerra Mundial, ocorre novo crescimento que volta a diminuir a partir dos anos 1960.

O fenômeno demográfico é mundial e o autor quer destacá-lo como player fundamental no jogo de poder. Primavera árabe a partir de 2010? Pode ser relacionada ao crescimento de jovens liderados por políticos idosos no mundo islâmico do Norte da África. Os deslocamentos internos de sunitas para a capital Damasco, por exemplo, desestabilizaram o delicado equilíbrio de poder sírio. As migrações são fundamentais. Morland destaca que não existiria Israel sem maciços aportes populacionais judaicos no século 20. Para o autor, a demografia da faixa de Gaza afastou Ariel Sharon da tentativa de controle do local: a população ali nunca poderia ser superada pelos colonos israelenses.

Analisando gráficos e dados, o pesquisador inglês acha a política chinesa de um filho por casal desnecessária. A urbanização e o crescimento econômico já agiriam mesmo sem a ação de Deng Xiaoping. Os japoneses também envelhecem com menos filhos. Depois de quase 200 anos de crescimento médio global, os números desaceleram na maioria dos países. Em alguns casos, como o citado arquipélago japonês, o envelhecimento preocupa muito.

Há indicativos de menor interesse de jovens por famílias com filhos e até um crescente desinteresse dos jovens por sexo em muitos países. O Brasil, que Paul Morland trata em poucos parágrafos, também está envelhecendo, o que torna nosso censo demográfico necessário de forma quase desesperada. Como lidar com as mudanças que atingem todos? Como a previdência vai sobreviver com a diminuição da base da pirâmide populacional e aumento dos mais velhos? O livro se encerra refletindo que “a demografia moldará o curso da história, enquanto nascimento, morte, casamento e migração continuarem a ser os eventos mais fundamentais das nossas vidas” (pág. 320). Quer ter uma amostra pessoal para encerrar: quantos filhos tiveram sua avó, sua mãe e você? Por quê? Aqui começa um debate sobre crianças e demografia que, como sabemos, são parte da nossa esperança de futuro.

Convite a politizar o mal-estar, por Joaquín Fortanet.

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Neoliberalismo multiplica misérias e desilusões, mas as atribui ao “fracasso” e “inadaptação” de cada um. Desfazer este truque ideológico permite superar nossa vulnerabilidade, recobrar o ânimo de mudar o mundo e construir contracondutas

OUTRAS PALAVRAS – 03/12/2021

Por Joaquín Fortanet, em El Salto | Tradução: Vitor Costa | Imagem: Eric Drooker

Nos debates sobre o mal-estar, prevalecem considerações individuais a respeito, sejam elas éticas ou médicas. Diante das soluções individuais, é importante considerar sua relação com processos coletivos que podem permitir uma politização desse mal-estar.

Sentimos mal-estar de mil maneiras diferentes: não chegamos a lugar algum, não temos tempo, falhamos, achamos que nunca seremos os melhores, afundamos, desabamos, nos sentimos muito vulneráveis, exaustos, doentes, inadequados, como se o contorno de nossas mentes e corpos fosse de plástico, moldável por uma realidade inapelável que sempre marca o ritmo acelerado do que é, do que somos e do que deveríamos ser. Até que essa dureza nos quebre e tudo se
torne líquido como se tivessem instalado em nós a necessidade imanente de continuar, de nunca parar, de não chegar.

E, diante de tal interpelação, nossa resposta é roubada, oprimida pela tarefa impossível. Somos incapazes de formular outra coisa senão o silêncio e a prisão.

Owen Jones, em seu Chavs: The Demonization of the Working Class, questionou o significado e o alcance do que chamou de “demonização da classe trabalhadora”, ou seja, o processo pelo qual o pertencimento à classe trabalhadora começou a ser desacreditado e esvaziado até os dias de hoje. Em certo sentido, a reflexão de Jones tem a ver com o perigo de abandonar a noção de classe e a urgência de revisitá-la em resposta às diferenças específicas que a compõem. Mas, ao mesmo tempo, seu texto contém outra reflexão paralela relacionada ao processo concreto pelo qual o neoliberalismo se desenvolveu a partir da era Thatcher e estabeleceu as condições para a possibilidade do desaparecimento da noção de classe trabalhadora. E grande parte dessas estratégias derivam, segundo Jones, dos trabalhos realizados sobre a autopercepção do indivíduo e de seus processos de identificação subjetiva. Criou-se a ideia de que a pobreza, o desemprego, enfim, o fracasso do sonho do empreendedor se deviam a defeitos individuais.

Se as pessoas eram pobres ou desempregadas, a culpa seria delas, de seu caráter, de sua falta de aspirações, de sua má gestão: elas mereciam.

A responsabilidade individual pelo fracasso
Para Jones, esse processo quebrou a harmonia entre os processos de autoidentificação e os processos materiais. E, consequentemente, esvaziada a noção de classe operária, os integrantes dessa classe, que passaram a se identificar como classe média, carecem dos meios de proteção e de resposta política que a noção de classe conferia. De forma mais resumida: a classe se esvazia porque é um contrapeso à responsabilidade individual pela pobreza. A noção de classe trabalhadora impedia a compreensão de que a culpa da pobreza era meramente individual, que o desemprego se devia ao caráter ou à falta de gestão dos indivíduos. O que pode ser interessante, além da reflexão sobre o papel da classe no desenvolvimento neoliberal, é que Jones aponta a perda do senso de coletividade como uma das estratégias que leva à responsabilidade individual pelo fracasso e à proliferação do discurso de ódio contra essa classe, inclusive até mesmo entre seus membros. Ninguém quer ser considerado individualmente responsável pelo próprio fracasso. O ódio é a distância cínica dos perdedores.

Mas, apesar de tudo, perdemos nossos empregos, perdemos nossa saúde, perdemos a batalha contra as doenças, perdemos as competições e as oportunidades. Sempre perdemos. Uma vez que nos tornamos seres eletivos e com novas aspirações, a perda torna-se, por um lado, inaceitável sinal do fracasso individual e, por outro, inerente à nossa vida.

Vivemos aprisionados na contradição que existe entre o desejo de sermos os melhores indivíduos e as profundas e inexoráveis estruturas materiais que determinam tais posições. Competitividade, meritocracia ou excelência são palavras que orientam o funcionamento desse estranho cassino em que vivemos e que acaba por nos derrotar: por mais fichas que joguemos no tabuleiro, estaremos sozinhos perante a imensidão da banca.

Mudar as mentes
No final dos anos 1970, Stuart Hall traçou com precisão um horizonte teórico que, em certo sentido, ainda é o nosso. Expressando uma profunda preocupação teórica pela derrocada da esquerda inglesa contra o thatcherismo, ele reconheceu a grande capacidade do novo neoliberalismo de determinar o pensamento popular e alcançar uma posição hegemônica. A economia era apenas o método, mas se tratava de mudar mentes, afirmava Thatcher. Duas estratégias principais do neoliberalismo, identificadas por Hall, se relacionam, por um lado, com a proliferação do ódio a um suposto inimigo interno que se traduz na ideologia conservadora – nação, lei, tradição – e, por outro, com a criação de uma nova subjetividade baseada em um individualismo competitivo radical. Se fôssemos definir em duas grandes ideias essa nova subjetividade que vem moldando a hegemonia cultural neoliberal, essas poderiam ser a conversão do sujeito em empresário e a privatização da vida.

A nossa vida é nossa, é privada, nós usamos o tempo, fazemos as coisas funcionarem, trabalhamos a tal ponto que nada na nossa vida se torna alheio ao império do útil. Moldamos, sem estarmos muito conscientes disso, nossas ações, escolhas, nossos rumos, gestos e relações sociais como se fossem os investimentos do empresário que somos.

Submersos numa constante campanha de autopromoção, nossa relação com os outros é essencialmente competitiva, como se o reconhecimento impusesse com sucesso a nossa marca, como se agora fôssemos apenas essa marca, que deve esconder a sua fragilidade, que deve evitar as mil formas de insucesso com um cosmético perfeito. Mas o profundo mal-estar que se enraíza em nós e que nos parece uma ameaça é também o elemento mais adequado que se levanta contra essa vida, tentando interrompê-la, forçando-nos a parar. A rebelião da vida contra a nossa vida.

Em “Los fantasmas de mi vida”, Mark Fisher reflete sobre esse mal-estar liminar que parece ter se tornado um dos fantasmas que nos perseguem. Ele destaca o fato de o desconforto ser entendido por nós em termos de interioridade. Uma das estratégias bem-sucedidas da subjetividade neoliberal é, justamente, ter-nos imposto uma compreensão privada do mal-estar. Como se o estresse fosse apenas uma condição psicológica que não tivesse a raiz de sua compreensão do trabalho e nas condições sociais que nos cercam. A privatização do estresse, a privatização da doença, do mal-estar em geral são, para Fisher, o sinal da despolitização de nossos tempos. Os indivíduos se culpam mais do que culpam as estruturas sociais. E foram levados a acreditar que tais estruturas não têm função em uma vida, que tudo tornou-se apenas uma questão de atitude, de luta, de esforço, de competência. Portanto, o desconforto torna-se individual e deve ser tratado apenas de uma perspectiva interna: psicológica, farmacológica, mindfulness. No limite, é considerada responsabilidade do indivíduo, que é apresentado como culpado, ignorando as condições materiais de seu adoecimento.

Vulneráveis
Mas, como nos lembra Judith Butler em Repensando a vulnerabilidade e a resistência, a vulnerabilidade que acossa, que poderíamos relacionar com este mal-estar difuso, não é constitutiva do ser humano. Não pertence à nossa natureza nem é uma questão antropológica de primeira ordem. A vulnerabilidade só aparece no quadro de uma relação desigual de forças. A vulnerabilidade, assim como o mal-estar, é consequência de relações de poder nas quais estamos em uma posição de subordinação: diante da polícia, do judiciário, da medicina, dos professores. É, de certa forma, a marca que prefigura uma posição de resistência diante desta vida que arrastamos. O grande problema do mal-estar é que não podemos entendê-lo da perspectiva coletiva da relação de forças porque, precisamente, a ruptura de seu componente coletivo é a causa de ele se apresentar a nós como algo individual. E, portanto, ele torna-se um abismo intransponível para o qual apenas soluções comportamentais são oferecidas. Porém, por meio da análise material do mal-estar, pode ser possível encontrar outras causas, abrir caminho para sua coletivização, dar o passo para poder compartilhá-lo, entendê-lo como uma possível rede contra a conduta habitual.

Coletivizar o mal-estar não significa apenas encontrar as condições materiais de suas raízes. Coletivizar o mal-estar supõe entender que o fracasso nunca é algo meramente individual, mas coletivo. Ter uma coletividade que assuma o peso de um mal-estar específico significa compartilhar inquietações, dores, cuidados, diferenças, soluções, angústias. Coletivizar o mal-estar implicará politizá-lo e, politizando-o, também criticar a autoridade de todas as verdades e relações de força que nos forjaram, pedindo credenciais. É interromper coletivamente alguns mecanismos que promovem esse mal-estar. E também pode desativar algumas dessas inércias do ódio que são apenas o distanciamento cínico que nossa visão de empreendedores tenta impor em relação ao fracasso.

Piketty em busca da igualdade

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Economista francês lança novo livro que discute a história da busca por justiça social. Como a visão de bem público foi reabilitada na pandemia. Os danos gerados à economia pela concentração de renda – e a urgência da taxação global de fortunas

OUTRAS MÍDIAS – DESIGUALDADES

Por El País, 29/11/2021

Thomas Piketty, em entrevista ao El País Brasil.

Thomas Piketty (Clichy, França, 50 anos) conseguiu com seus tratados de mais de mil páginas algo que apenas um punhado de economistas conquistou na história: inserir seu tema de estudo acadêmico no centro das discussões políticas e das agendas internacionais. Seu tema é a desigualdade. Ou, dito de outra forma, a longa história do progresso em direção à igualdade. Porque o autor de O capital no século XXI e Capital e ideologia se declara otimista, embora possa não parecer: prefere ver o copo meio cheio da igualdade do que o meio vazio da desigualdade.

Agora Piketty publica Une brève histoire de l’égalité (Uma breve história da igualdade, publicado na Espanha pela Editora Deusto, tradução de Daniel Fuentes), uma síntese em menos de 300 páginas de suas ideias e propostas.
Piketty não pertence ao clube apocalíptico: ele acredita —e os dados assim lhe confirmam—que, apesar dos tropeços e contratempos, o mundo está melhor. E diz que, embora os partidos que defendem suas ideias sejam minoritários e que em muitos países, como o seu, as classes trabalhadoras votem em opções nacionalistas e populistas, ele não acredita que esteja pregando no deserto. “Desde a crise de 2008 se acelerou a consciência dos excessos da desregulamentação financeira das décadas de oitenta e noventa, e a covid-19 contribuiu para isso”, resume, em seu pequeno escritório na Escola de Economia de Paris. “As coisas evoluem um pouco no sentido que descrevo.”

Afinal de contas, o capitalismo não foi útil para melhorar a expectativa de vida e os padrões de vida, e para reduzir as desigualdades?
O que permitiu a prosperidade foi moderar o capitalismo do século XIX com uma economia do tipo social-democrata, uma economia mista em que uma parte da riqueza está socializada. E é preciso continuar com este movimento. O socialismo participativo, democrático e federal que eu desejo se insere na continuidade das já muito importantes transformações ocorridas. O sistema de economia mista social-democrata que temos hoje nos países da Europa Ocidental não tem muito a ver com o capitalismo colonial, patriarcal e autoritário de 1910. E o sistema que descrevo para o futuro não é mais diferente do sistema atual do que o sistema atual é em relação ao capitalismo de 1910.

As guerras, revoluções e catástrofes naturais foram necessárias para reduzir as desigualdades?
As revoluções nem sempre são catástrofes. Efetivamente, na história há movimentos políticos, mobilizações que permitem avançar em direção a uma maior igualdade. E insisto na mensagem positiva: há uma marcha para a igualdade que vem de longe, é um fenômeno de longo prazo e que às vezes se nutre de revoluções, mas, geralmente, mais de rebeliões, de pedidos de mais igualdade. É um movimento que começou no final do século XVIII, sobretudo com a Revolução Francesa e também com a rebelião dos escravos em Santo Domingo. Esses dois acontecimentos marcam o princípio do fim das sociedades privilegiadas, de um lado, e das sociedades escravistas, do outro.
Mas nem sempre se avança com revoltas ou revoluções.

Outro exemplo é a Suécia. Até o início do século XX foi um dos países com maior desigualdade na Europa e uma codificação institucional da desigualdade mais extrema do que no Antigo Regime francês ou nas monarquias censitárias da França ou da Espanha do século XIX. Apenas os 20% dos homens mais ricos tinham direito a voto, e dentro desses 20% poderia haver entre 1 ou 100 direitos de voto, dependendo se a pessoa era o mais rico dos ricos ou se era o menos. Mesmo as empresas tinham direito de voto com base no capital investido no município. As multinacionais gostariam de ter algo semelhante hoje! O que acontece a seguir é que há uma grande mobilização dos sindicatos e do partido social-democrata em um país com elevado nível educacional, e a classe trabalhadora toma o poder. Impõe-se, então, de forma relativamente pacífica.

A da Suécia foi uma revolução pacífica.

Sabe, esse tipo de transformação não pode ser feita respeitando as regras do regime precedente. Em um dado momento haverá uma ruptura institucional. É sempre assim. Quando a Administração Obama anuncia à Suíça que acabou o sigilo bancário e que, se a Suíça o mantiver, os Estados Unidos retirarão as licenças dos bancos suíços, não é algo que estava previsto nos tratados internacionais que organizavam a livre circulação dos capitais. Pois bem, acontece que esses tratados não impedem que em um dado momento um país diga: “Nós mudamos as regras”.

Os Estados Unidos são a primeira potência mundial. Outro país talvez não pudesse fazer o mesmo.
Mas é que a mudança histórica se alimenta de relações de força, seja em 1789 ou em 2020. Se se pede educadamente à nobreza que renuncie a seus privilégios, a coisa não funciona. Se se pede educadamente à Suíça e a Luxemburgo que deixem de ser paraísos fiscais, tampouco. E essas transformações costumam implicar transformações institucionais com mudanças nos tratados ou nas Constituições. Não quero dizer que o Estado de Direito não seja importante, mas não deve servir de pretexto para manter as posições adquiridas. Todas as transformações que descrevo foram realizadas derrubando o sistema legal precedente, mas com a finalidade de substituí-lo por um Estado de Direito mais justo, emancipatório e igualitário.

O mundo posterior à covid-19 será menos ou mais igualitário?
O primeiro efeito é de mais desigualdade. Primeiro, entre o norte e o sul. É escandaloso como os países do norte se recusaram a transformar as vacinas em um bem público mundial, uma oportunidade perdida. Também vemos que as grandes fortunas do planeta se enriqueceram. Todo o setor de alta tecnologia enriqueceu. Os mais pobres e frágeis são os que mais sofrem com a covid-19. Ao mesmo tempo, como acontece com todas as crises dessa natureza, a pandemia teve efeitos complexos, pois também contribuiu para reabilitar uma certa visão do serviço público, do hospital, do sistema de saúde, e isso também permite legitimar de novo uma política de reinvestimentos nos serviços públicos.

Estamos indo por um bom caminho?
Por enquanto, o progresso é lento. O nível de desigualdades é contraproducente. Ter 50% da população que não possui quase nada —na França e na Espanha, 50% possuem 5% dos ativos totais, enquanto os 10% mais ricos possuem 50%, 55%, 60%— não só é injusto, mas economicamente ineficaz. Os 50% mais pobres e seus filhos têm pelo menos tantas ideias e iniciativas quanto os filhos dos mais ricos. No longo prazo, significa uma perda coletiva limitar assim as oportunidades econômicas e as possibilidades de a economia se tornar mais dinâmica com uma maior circulação de riqueza, da propriedade e do poder.

Mas fica satisfeito com a adoção pela União Europeia de um acordo para pôr a dívida em comum e investir maciçamente, não?
Sou um federalista europeu. Tudo que vai nessa direção é bom. E endividar-se junto permitiu, pelo menos, ganhar tempo e salvar a ideia europeia. No entanto, eu teria preferido que o plano de recuperação fosse adotado por um grupo mais reduzido de países e com maior democratização das instituições europeias, e um voto por maioria e não por unanimidade. Imagine que em seis meses ou um ano precisemos de um novo endividamento e um novo plano de recuperação. Será preciso de novo a unanimidade dos 27? A solução é que os países que não queiram mais solidariedade fiquem de fora: não se deve forçar Holanda, Suécia, Dinamarca a participarem. Aqueles que querem uma
Europa mais unificada, que avancem. Para mim é uma ocasião perdida.

E o acordo para impor uma taxa mínima mundial às multinacionais?
Levanta dois problemas. O primeiro é que a alíquota de 15% é ridiculamente fraca. Uma PME (pequena e média empresa) ou uma família de classe média ou popular não pode, como se fosse algo simples, criar uma filial num paraíso fiscal para usufruir da alíquota de 15%. Na França, se você é o chefe de uma PME de reforma ou construção, entre imposto sobre os lucros, imposto de renda e contribuições sociais, você paga pelo menos 20% ou 30%, e com frequência mais para 30% ou 40%. Portanto, os 15% para as multinacionais com capacidade de criar subsidiárias em paraísos fiscais equivalem a criar um sistema derrogatório privilegiado para os atores mais poderosos. Receio que esta reforma com os 15% resulte em muito pouco dinheiro e só vá perpetuar uma enorme injustiça entre, por um lado, as multinacionais e os mais ricos, e de outro, as PME e as classes médias.

E o segundo problema que menciona?
É ainda mais grave que o primeiro. É que essa reforma foi concebida para os países do norte e não os do sul. Os países que obterão receita complementar são aqueles onde se localizam as sedes dessas multinacionais, ou seja, os mais ricos. Acreditamos que as crises no Mali ou no Afeganistão não nos concernem, mas a partir do momento em que há riquezas para explorar, como o urânio no Níger ou o cobre no Congo, as empresas ocidentais acorrem imediatamente, ou as chinesas, que fazem o mesmo. Ao mesmo tempo, as emissões cumulativas de CO₂ dos países europeus e dos Estados Unidos representarão um custo considerável em termos de subdesenvolvimento para os países do sul. E lembremos que não existem países ricos sem países pobres: todos os enriquecimentos da história são o resultado de um sistema de divisão internacional do trabalho e de uso e por vezes exploração dos recursos naturais e humanos do planeta, como a industrialização durante o colonialismo e a escravidão.

O que fazer?
A ideia de que tal país ou pessoa seja inteiramente responsável por sua riqueza e deveria mantê-la toda para si mesmo é uma construção intelectual nada convincente. É preciso imaginar um sistema de repartição das riquezas procedentes das receitas fiscais dos atores econômicos mais prósperos. Se pegássemos apenas uma pequena fração dos lucros das multinacionais e do patrimônio dos bilionários e os redistribuíssemos a todos os países, proporcionalmente à população desses países, os recursos para investir em educação e saúde seriam dez vezes maiores do que a suposta ajuda internacional, que na África é quatro vezes mais fraca do que os lucros das empresas ocidentais e chinesas. Estamos criando um sistema que explodirá na nossa cara.

Uma revolução?
Estamos numa situação não muito diferente daquela que levou à Revolução Francesa: há uma fuga para a dívida pública que se explica porque não se consegue fazer as classes privilegiadas pagarem. Na época era a nobreza que não queria pagar impostos. E como isso foi resolvido? Com uma crise política, com os Estados Gerais, a Assembleia Nacional e o fim dos privilégios da nobreza. Agora, de uma forma ou de outra, terminará do mesmo jeito. Quando há pouco eu falava que o sistema vai explodir na nossa cara, estava pensando no norte e no sul. E no norte? Podemos chamar de revolução. Sempre houve revoluções na história: assim foi 1968 ou 1945.

E agora?
A revolução de que falo consiste em fazer com que as maiores fortunas contribuam. Se se cria um sistema no qual você pode enriquecer usando a infraestrutura pública de um país, seu sistema educacional, seu sistema de saúde, e então, com o simples aperto de um botão, você pode transferir seus ativos para outra jurisdição sem que haja nada previsto para controlar isso, e depois você simplesmente pode deixar a conta para as classes média e popular que estão inertes e não podem sair do país … É um sistema insustentável. A pergunta é se o questionamento desse sistema será feito de forma desordenada ou apaziguada, como eu prefiro. Sou um intelectual: escolhi escrever livros, não ser guerrilheiro.