Privatizações de empresas estatais.

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Porque privatizações como a dos Correios e das refinarias da Petrobras não tem como dar certo.

A perda dos financiamentos baratos e da sinergia de estatais privatizadas levam a aumentos de custos, de tarifas e resultam em deterioração dos serviços, chama atenção economista

Revista Carta Capital – 20/08/2021.

Em especial as estatais lucrativas, como é o caso dos Correios, ao serem privatizadas deixam de ter o financiamento mais barato do mercado e no caso da venda das refinarias da Petrobras, sobressai a elevação dos custos impostas pela redução da sinergia da companhia, destaca o economista Pedro Paulo Zahluth Bastos, professor do Instituto de Economia da Unicamp, na entrevista abaixo:

CartaCapital: Privatizações como a dos Correios parecem dispensar critérios mínimos de racionalidade antes observados em desestatizações realizadas até mesmo no Brasil. O fato de os Correios serem lucrativos e eficientes como nenhuma organização privada conseguiria ser, com universalização do serviço prestado, parece não ter nenhuma importância, assim como não se dá atenção ao grave risco de desabastecimento de derivados de petróleo representado pela privatização das refinarias da Petrobras, conforme alertou até o próprio TCU. Como classificaria o processo em curso?

Pedro Paulo Zahluth Bastos: Um problema essencial das privatizações, que ficou claro no caso do Reino Unido, é que, em geral, as estatais que podem ser capitalizadas pelo Estado brasileiro, sobretudo quando são lucrativas, têm acesso a um custo de capital muito pequeno. Porque o Estado tem como capitalizá-las, por exemplo, lançando títulos públicos com o juro menor que existe no mercado. Portanto, quando uma empresa é privatizada, além de ela já ter sido amortizada, em geral ela é transferida para um grupo que tem um custo de endividamento muito maior do que o Estado. Então esse custo de endividamento vai implicar necessariamente uma elevação de receitas futuras das empresas, mesmo na suposição de uma mesma taxa de lucro, embora seja comum o grupo privatizador querer uma taxa de lucro maior. Então esse processo vai provocar um aumento do custo para os consumidores.

Outro aspecto é que os investidores privados não vão usar subsídios cruzados, que é a utilização das receitas obtidas com as partes lucrativas atendidas pelas empresas estatais para financiar serviços em áreas onde não há lucratividade, por serem muito distantes.

Com a privatização, o consumidor vai perder tanto por causa da elevação das tarifas quanto porque muitos dos serviços vão ser racionalizados. Em algumas localidades a correspondência ou encomenda não vai ser entregue ou isso será feito com espaçamento muito mais longo, de modo a reduzir os custos para as empresas.

CC: Como analisa a justificativa de que a privatização possibilita reduzir a dívida pública?

PPZB: O argumento de que isso vai abater a dívida pública é ridículo porque se o dinheiro entrar no caixa do governo, e se ele utilizá-lo para comprar títulos de dívida pública no mercado, os agentes que obtiverem esses recursos vão depositá-los no sistema bancário. Isso vai aumentar a liquidez do sistema bancário e jogará os juros para baixo. Para evitar que os juros caiam, o BC vai acabar emitindo títulos da dívida pública, nas chamadas operações compromissadas, consumando uma troca de dívida por dívida. É uma bobagem portanto também do ponto de vista financeiro, pois não produz nenhum tipo de redução da dívida pública.

CC: Qual o efeito no caixa do governo?

PPZB: Quanto ao aumento de recursos em caixa (conta única do Tesouro), não pode ser gasto por conta da Lei do Teto; a intenção declarada é comprar dívida, o que é absurdo por conta do aumento da liquidez. A liquidez e a riqueza que saem do mercado pela compra da estatal voltam pela recompra do título público, O excesso de liquidez é enxugado pelo BC e vira dívida compromissada de novo (ou empréstimo voluntário).

CC: Mas o que explica as atuais privatizações?

PPZB: Só se explicam por um objetivo de transferir recursos, bens, ativos e patrimônio públicos e capacidade de coordenação de políticas públicas por meio de empresas estatais, transferir tudo isso para os grandes investidores privados, financiadores que bancam politicamente a eleição de Jair Bolsonaro e que tem como representante ideológico o ministro da Economia Paulo Guedes.

CC: Qual outro caso exemplifica o problema das privatizações?

PPZB: O mesmo ocorre para as refinarias de petróleo, na verdade para o conjunto de empresas que tinham sinergia com a Petrobras. Além das oito refinarias que já se começou a vender, privatizaram 70 bilhões em ativos com muita sinergia. Ocorre que quando se perde sinergia em uma grande empresa, aumenta-se os custos. No caso das refinarias e outras estruturas, perde-se a sinergia da capacidade de distribuição que uma grande empresa tem. Então isso vai elevar os custos, ao invés de reduzi-los Além de que o custo de financiamento, que no caso de uma empresa como a Petrobras tende a ser muito menor que o de qualquer outra empresa que não tenha o mesmo porte nem o Estado brasileiro na retaguarda, se eleva. Na verdade, isso vai provocar uma elevação de custos que prejudicará os consumidores sem produzir nenhum impacto líquido sobre a dívida pública por causa do mecanismo que eu expliquei.

CC: A tendência é as privatizações continuarem?

PPZB: Se Bolsonaro se reeleger, provavelmente a Petrobras e os bancos públicos serão privatizados. Isso prejudica não só os consumidores pessoas físicas, mas as empresas privadas nacionais, sobretudo as menores, que dependem de crédito dos bancos públicos ou do Bndes e que contam com as encomendas das empresas estatais para eventualmente concorrer e crescer para competir no médio prazo em pé de igualdade com empresas estrangeiras. Esse movimento favorece muito, portanto, os grandes investidores privados e as empresas estrangeiras. É claro que ficam prejudicados ainda os fornecedores e os consumidores locais e também, evidentemente, os trabalhadores. Porque isso vem acompanhado de uma inflação dos derivados de petróleo, da energia elétrica, do gás e de outros preços administrados por conta da retirada de subsídios e da insistência de tratar as empresas, mesmo as estatais, como se fossem corporações privadas sujeitas a regras de maximização do valor das ações, sem nenhum controle dos preços e nenhum objetivo de mais longo prazo para a economia como um todo.

CC: Qual o risco de comprometimento de uma retomada do desenvolvimento em uma economia subtraída de estatais como Correios, Eletrobras, refinarias da Petrobras, BR Distribuidora, entre outras?

PPZB: Eu diria que o risco de comprometimento do desenvolvimento é a dificuldade de você coordenar investimentos que tem de ser feitos, muitas vezes, antes do investimento privado, não só para estimulá-lo como também para criar condições para que o investimento privado se realize na medida em que antes se disponha de infraestrutura ou insumos básicos para que ele não seja barrado por pontos de estrangulamento.

Isso é ainda mais grave por conta das necessidades de conversão energética. Essa conversão para uma transição verde conta em todos os principais países do mundo com grande importância dada à política pública, e o Brasil teria uma vantagem, contando com Eletrobras e Petrobras conjuntamente, para realizar essas políticas orientadas para a conversão verde. Acrescente-se que foi inteiramente desbaratado aquilo que a Petrobras pesquisava nessa direção, depois do golpe de 2016. Por exemplo, parques eólicos no oceano, diferentes formas de produção de hidrogênio, eventualmente até investimentos conjuntos das duas empresas em energia eólica ou solar. Tudo isso, que vai ser fundamental para a indústria e a matriz energética do futuro, e que precisa ser planejado pelo Estado, se coloca em risco diante da questão mais grave da história da humanidade, a possibilidade de extinção associada à mudança climática, por conta dos eventuais ganhos de curto prazo. Os recursos obtidos não são nem para abater da dívida pública, são basicamente para os financiadores do governo Bolsonaro.

Bolsonaro nunca foi o candidato ideal da nova direita, diz cientista política

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Para Camila Rocha, presidente pode se ‘divorciar’ de Paulo Guedes e ideias liberais para se manter no poder

EDUARDO CUCOLO – FOLHA DE SÃO PAULO – 20/08/2021

“Menos Marx, Mais Mises”, publicado neste ano pela cientista política Camila Rocha 37, é resultado do trabalho iniciado em 2015 de pesquisa e entrevistas com diversos expoentes desse grupo.

Em entrevista à Folha, ela afirma que Jair Bolsonaro nunca foi o candidato ideal da nova direita e que o atual presidente não hesitará em abandonar as ideias desse grupo, principalmente na área econômica, se isso aumentar suas chances de reeleição.

Ela também tem realizado pesquisas qualitativas com grupos do que chama de “bolsonarismo popular moderado” e que mostram piora acentuada na imagem do presidente, inclusive com pessoas que já cogitam votar no PT.

A nova direita brasileira
A direita tradicional é aquela que vinha atuando dentro dos parâmetros do pacto democrático de 1988 e também do que se convencionou chamar de presidencialismo de coalizão.

Essa nova direita vem para romper com os limites desse pacto, querendo falar que a Constituição de 1988 já não serviria mais, romper com as ideias que estavam ali e também com o próprio presidencialismo de coalização.

Pensamento econômico da nova direita
Essa nova direita se afirma muito mais abertamente a favor de um radicalismo de livre mercado, que eu e várias pessoas chamamos de ultraliberalismo. E eles fazem isso a partir, principalmente, da releitura de diversas obras, principalmente do economista austríaco Ludwig von Mises.

A defesa desse radicalismo de livre mercado é uma coisa nova no Brasil, combinada, em variados graus, com a defesa de um conservadorismo mais programático. Não que a direita tradicional não fosse conservadora, mas ela era muito mais reativa e muito pouco propositiva.

No Brasil, principalmente a partir da década de 1980, quando a difusão do neoliberalismo ficou mais acentuada, a discussão toda era feita muito mais em coisas como controle da inflação e toda essa questão do tripé macroeconômico.

Essa nova direita vem com um radicalismo de discutir coisas que não eram postas em discussão pelos economistas neoliberais. Educação pública, saúde pública, privatizar determinadas empresas no Brasil era algo que não era posto em discussão ou a discussão era muito ainda obstaculizada por certo consenso de que em certas coisas você não iria mexer. E a nova direita vem para romper com isso.

Conservador nos costumes
Há pessoas, eu diria que é uma minoria no conjunto de forças que compõem essa nova direita, que, ao mesmo tempo que defendem um radicalismo de mercado, também defendem liberalização de substância ilícitas, de aborto, de propriedade intelectual, até de doação de órgãos, tudo isso sem regulação estatal.

A questão Bolsonaro
A formação dessa nova direita antecede em muitos anos a emergência do bolsonarismo. Quando Bolsonaro se torna pré-candidato, uma liderança com apelo popular, ela já está razoavelmente organizada.

Só que a grande dificuldade da nova direita é encontrar lideranças com apelo popular. Aí o Jair Bolsonaro aparece como uma liderança política que tinha um apelo popular muito grande, principalmente surfando na onda do lavajatismo. Na época, ele não tinha sido formalmente acusado de se envolver em esquema de corrupção.

Porque o próprio Bolsonaro passou a sinalizar com a possibilidade de incorporar esse programa da nova direita, e, também para tirar o PT do poder, as pessoas acabaram apoiando [a candidatura]. A indicação de Paulo Guedes para ser ministro também foi fundamental.

Decepção com o governo
Decepcionados talvez não seja o melhor termo, porque Bolsonaro nunca foi o candidato ideal da nova direita. Quando eu estava fazendo a minha pesquisa, as pessoas já reclamavam bastante, inclusive o desprezavam em certo sentido como político. Foi um apoio a contragosto. Esperava-se que, com Guedes, fosse possível avançar no âmbito da economia.

Hoje, de um lado, tem gente que acredita que o governo poderia ter avançado mais nas privatizações, em toda essa agenda. Outros fazem uma leitura mais otimista, de que teve a crise pandêmica no meio disso tudo que atrapalhou, que o governo teve alguns avanços, sim, nessa agenda de reformas econômicas. Talvez não como seria esperado.

Divórcio
Esse casamento entre a nova direita e Bolsonaro sempre foi muito frágil. Bolsonaro e o grupo mais próximo dele na verdade não estão tão interessados nessa defesa do livre mercado. Tanto que por anos ele defendeu a orientação econômica da ditadura militar.

Se ele tiver de fazer uma alteração brusca nesse sentido para se manter no poder, é o que vai fazer. Se tiver de se divorciar de Guedes, vai fazer, como já fez com outros ministros.

O bolsonarismo é um fenômeno diferente disse que eu estou chamando de nova direita. Bolsonaro não é dessa nova direita. É outra coisa, um fenômeno de extrema direita, que muitas pessoas entendem como populista.

Voto no PT
No início, esse grupo [bolsonaristas moderados] tinha muita esperança de que ele fosse fazer muitas mudanças, a economia fosse melhorar. Passada a pandemia, a maioria das pessoas se sente hoje muito decepcionada, em maior ou menor grau, com a atuação do governo e do próprio Bolsonaro.

As pessoas dizem que até poderiam votar nele novamente, mas como uma alternativa menos ruim, principalmente para quem não quer votar no PT de jeito nenhum.

Outras pessoas já estão começando a se afastar e, eventualmente, até cogitando votar no PT. A gente tem notado muito uma tendência, nesse segmento que a gente chama de moderado, de as pessoas irem desembarcando do bolsonarismo.

‘MENOS MARX, MAIS MISES – O LIBERALISMO E A NOVA DIREITA NO BRASIL’
Preço R$ 69,90 (impresso) e R$ 44,90 (ebook)
Autor Camila Rocha
Editora Todavia

Banco Central errou a mão nos juros e Bolsonaro precisa começar a governar, diz Affonso Pastore

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Para ex-presidente do BC, Selic deveria ter sido revista antes para conter a inflação e crescimento fraco em 2022 é inevitável

Douglas Gavras – Folha de São Paulo, 20/08/2021 – SÃO PAULO

Para o ex-presidente do Banco Central Affonso Celso Pastore, o BC errou ao demorar a subir a Selic, o que vai custar uma desaceleração do crescimento no ano que vem, que já é notada nas revisões pessimistas para o PIB (Produto Interno Bruto) de 2022.

Na avaliação do economista, os ataques do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) ao sistema democrático e ministros do Supremo Tribunal Federal só servem para piorar um cenário que já é complicado, afastando investimentos e mergulhando o país em mais insegurança –e o presidente precisa começar a governar.

Ele ressalta que a alta de juros demora de três a seis meses para começar a fazer efeito na atividade econômica, ou seja, o impacto dos aumentos da Selic só vai se dar no ano que vem. “O próximo ano será de crescimento abaixo de 2%, e as pessoas já estão percebendo isso.”

As revisões mais pessimistas dos indicadores, em um momento de avanço da vacinação, mostram que os problemas do país iam além do que a pandemia causou? Isso tem a ver com a política monetária e com o fato de o Banco Central ter ficado atrás da curva. Ele colocou estímulos demais na pandemia. Quando a crise sanitária começou, o Brasil entrou em recessão e era preciso tomar duas medidas. [A primeira era] combater a pandemia para normalizar a mobilidade social. E a segunda coisa era dar duas ordens de estímulos: uma, por meio de crédito, para evitar que as empresas quebrassem e evitar um desemprego maior; e outro estímulo para dar renda para as classes mais baixas. Tudo isso foi feito em 2020. Além disso, o BC reduziu a taxa de juros, como deveria mesmo ter feito e todos os bancos centrais do mundo fizeram.

Além disso, estamos passando por choques de inflação desde que a economia começou a reagir, certo? Conforme a economia foi se recuperando, começamos a ter choques inflacionários. O primeiro deles veio do câmbio, que gerou aumento de alimentos, junto com uma alta do preço das commodities. Quando se tem um choque, não dá para ir contra ele, mas acomodar a política monetária a uma nova realidade. É preciso calibrar a taxa de juros para cima, para evitar que isso se propague para outros bens. Então, veio um segundo choque, que atingiu os preços administrados. O preço do petróleo subiu, o do gás também. O BC acomoda esse choque e calibra os juros.

Depois, veio um terceiro choque, nas cadeias de suprimento. Não adianta dar estímulo monetário para as pessoas comprarem mais automóveis, se você não consegue aumentar a produção por não ter a parte eletrônica, que não pode ser produzida pela falta de oferta de semicondutores. Com o estímulo, as pessoas querem comprar automóveis e não há veículos para entregar, isso tem o efeito de aumento de preços.

Estamos sofrendo os efeitos da desorganização das cadeias de produção? Os dados de confiança da indústria que a FGV [Fundação Getulio Vargas] capta mostram que a produção está sendo limitada por falta de matéria-prima. A pandemia produziu o rompimento de cadeias de suprimentos no mundo inteiro. O BC só resolveu subir os juros agora, depois que a inflação já deu 9% ao ano. Ele desancorou as expectativas, aumenta a inércia inflacionária e ele é obrigado a subir o juro real de mercado acima do juro neutro. Em vez de crescer, acaba reduzindo o PIB [Produto Interno Bruto]. Quando chegamos neste estágio, somos obrigado a reduzir o crescimento econômico. Tudo isso tem a ver com um erro de política monetária e com um erro de política fiscal. Já está determinado, não tem o que fazer, agora é aguentar as consequências.

Isso é um reflexo da política do Banco Central? Quem está tomando a atitude de reduzir o crescimento é o Brasil e ele está fazendo isso por ter ficado sem alternativa. Ele se preocupou demais com a atividade econômica durante a pandemia, não com a meta de inflação. E agora ele vai ter de produzir uma desaceleração de crescimento do PIB.

Acontece que a defasagem de política monetária é longa e ainda não chegamos acima dos juros neutros [estimados hoje em 6,5% ao ano], deve atingir isso no fim desse ciclo de alta dos juros. Isso demora de três a seis meses para começar a fazer efeito na atividade econômica, ou seja, esse efeito só vai se dar no ano que vem. O ano que vem será de crescimento abaixo de 2%, e as pessoas já estão percebendo isso e revendo o crescimento.

Esse clima ruim já é um reflexo do aumento de gastos com a aproximação da eleição do ano que vem? O câmbio no Brasil depreciou mais do que em outros países e mesmo quando aumentou, a valorização foi menor do que em países.

Isso é um prêmio de risco que vem do risco fiscal. Há uns quatro meses, quando a inflação começou a subir, ela fez aumentar o PIB nominal. Quando sobem os preços, aumenta a arrecadação e reduziu o deficit primário. O lado fiscal melhorou, por ter inflação. Vamos chegar no fim do ano com a dívida/PIB entre 81% e 83% do PIB, um patamar muito menor do que se imaginava no começo do ano.

A inflação causou uma falsa sensação de que a questão fiscal estava encaminhada? Em um certo momento, as pessoas olharam e acharam que o risco fiscal tinha caído. Agora, elas percebem que isso derivou da inflação. É como uma maré que subiu, com a inflação, e agora baixou —e agora a gente consegue ver quem estava nadando sem calção. No ano que vem, tem uma eleição e o governo não tem espaço no teto. Existe uma probabilidade de que o governo aumente gastos para ganhar a eleição, já que a economia vai estar crescendo pouco e temos um desemprego ainda alto e que não vai cair tão cedo.

As pessoas que julgavam que a valorização do câmbio poderia ajudar a inflação a cair agora estão vendo que tem um risco razoável de mais gastos públicos no ano que vem, o que reforça a ideia de que o BC vai ter de manter os juros reais altos e que o crescimento do ano que vem será menor.

A folga no teto de gastos, com a inflação mais alta, para a área social também é menor do que se imaginava? A folga se dá da seguinte forma: o teto deste ano é corrigido pela inflação de junho, para gerar o teto do ano que vem. A inflação foi de 8,3%. Todo mundo ficou contente, com uma folga estimada em R$ 120 bilhões. Mas acontece que os gastos sociais também são corrigidos pela inflação, mas não pelo índice de junho e nem pelo IPCA [Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo, considerado a inflação oficial]. Os gastos sociais são corrigidos pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor, o INPC, de dezembro, e todas as projeções são de que ele deve ficar em torno de 7,5%.

Quando se corrigir os gastos sociais, aquela projeção de R$ 120 bilhões de folga virarão R$ 30 bilhões. O governo agora tenta aprovar uma PEC dos precatórios, que joga um pedaço de gastos para reabrir uma folga no teto, que não é grande, mas tem de acomodar os gastos com o novo Bolsa Família que o governo nem divulgou quanto vai custar. A confiança no governo caiu e o risco vai aparecendo –a taxa de juros longos já está refletindo isso.

A crise política provocada pelos ataques do presidente Jair Bolsonaro ao sistema eleitoral e a investida contra ministros do Supremo pode atrapalhar ainda mais o crescimento da economia? Ele está provocando uma crise institucional, que obviamente aumenta os riscos e ficamos com um ambiente de negócios que não estimula investimentos e piora o quadro atual, que já é difícil.

E tem alguma coisa que o governo poderia fazer para melhorar o crescimento no ano que vem? Sim, começar a governar. Se eles começarem a governar, as coisas melhoram. Mas se continuarem criando esses confrontos desnecessários, contra as instituições, a começar pelo presidente da República, que é o maior iludido com regimes autoritários, não tem como dar certo.

RAIO-X
AFFONSO CELSO PASTORE, 82
Formado economia pela Universidade de São Paulo, foi assessor do secretário da Fazenda do Estado de São Paulo e presidente do Banco Central. Hoje é consultor na Pastore & Associados.

Ciência e Tecnologia

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Numa sociedade marcada por grandes transformações tecnológicas, percebemos que as alterações recentes estão gerando grandes oportunidades e desafios, neste ambiente, os investimentos em ciência e tecnologia ganham espaços nas economias como forma de melhorar os indicadores sociais e o bem-estar da coletividade. Os investimentos em ciência e tecnologia são cruciais para aumentar a autonomia e a soberania nacionais, num momento de conflitos geopolíticos, econômicos e financeiros.

Ao analisar os países desenvolvidos percebemos fortes investimentos pregressos em capital humano, pesquisa, ciência e tecnologia, melhorando as estruturas produtivas, aumentando a produtividade e incrementando o bem-estar da população. Os países subdesenvolvidos ou periféricos, carecem de investimentos em capital humano, com isso, constroem sociedades atrasadas socialmente e frágeis estruturas econômicas, perpetuando atraso e degradações.

Os investimentos em ciência e tecnologia, centrados em inovação exigem a construção de consensos sociais e políticos, colocando os investimentos produtivos, tanto público quanto privado, em ascensão, estimulando a produção científica das universidades, das faculdades e dos centros de pesquisas, agentes centrais do desenvolvimento de novas tecnologias, contribuindo para a capacitação dos setores produtivos para a competição da contemporaneidade.

Os países que se desenvolveram economicamente conseguiram alçar novos degraus tecnológicos, construíram sólidos espaços de inovação e fortes instrumentos de fomento a ciência e a tecnologia, onde destacamos os países asiáticos, que conseguiram angariar novas posições na concorrência global, construindo indústrias de ponta e desenvolveram novos modelos de negócios que revolucionaram o cenário global, levando estes países para o centro das inovações globais.

As inovações foram motivadas por fortes e consistentes projetos nacionais, centrados em planejamento, com políticas efetivas de inovação, cobranças por retornos no longo prazo, financiamento fartos e taxas de juros baixas, compras governamentais, proteção de setores estratégicos e fortes investimentos em educação, desde as tenras idades até as universidades, construindo centros de pesquisas e laboratórios de inovação e de empreendedorismo, criando um ambiente de cooperação entre os setores privados e os órgãos governamentais.

Os investimentos em educação geram grandes retornos econômicos e sociais para a coletividade, exigindo um direcionamento da sociedade para a construção de setores produtivos dinâmicos, eficientes e flexíveis, garantindo a atração de profissionais de alta qualificação, garantindo salários elevados e estímulos crescentes para o mercado consumidor.

Sabemos que os investimentos em inovação são altamente arriscados e são marcados por grandes riscos. Os recursos são vultosos e as perdas são imensas, os países que conseguiram construir grandes setores produtivos tiveram altas perdas na caminhada, mas conseguiram construir novos empreendedores, novos modelos de negócios e lucros extraordinários. Uma das empresas mais admiradas da sociedade global, a norte-americana Apple, foi construída não apenas pela genialidade de seu criador, mas contou por investimentos vultosos do governo dos Estados Unidos, além de pesquisas desenvolvidas pelas forças armadas e pelos órgãos de pesquisas oficiais. Diante disso, percebemos que a inovação é um investimento de longo prazo, cujos recursos iniciais foram iniciados pelos governos nacionais, sem estes, estas tecnologias dificilmente existiriam.

Na contramão dos países desenvolvidos, que construíram uma ampla discussão política entre os atores econômicos e produtivos, o Brasil materializa seu atraso no ranking internacional da educação, das ciências e das tecnologias. Na ausência de estratégias claras e eficientes, sem planejamento e coordenação do Estado Nacional, estamos condenando o futuro do país a ser uma economia exportadora de produtos agrícolas e extrativos de baixo valor agregado. Estamos rifando o futuro do país e perpetuando a subserviência econômica e política de outras nações que, anteriormente, conseguiram investir em inovação e passaram a dominar as cadeias globais de tecnologia.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno de Economia, 18/08/2021.

Ensino híbrido não vai resolver um ano e meio sem escola, diz professor brasileiro de Columbia

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Para Paulo Blikstein, pandemia trouxe uma ideia “messiânica” sobre tecnologia na educação e é preciso se preocupar com empresas tendo acesso a notas e outros dados de alunos. Ele diz ainda que o foco do ensino tem que continuar no professor

Paulo Blikstein professor da Universidade Columbia

Renata Cafardo – O Estado de São Paulo, 15/08/2021

Apesar de dedicar toda a sua carreira à pesquisa do uso da tecnologia na educação, Paulo Blikstein acha que a lição da pandemia é valorizar mais o professor. Não que o especialista em Educação e Ciência da Computação da Universidade Columbia, em Nova York, defenda crianças em bolhas analógicas. “A tecnologia é uma ferramenta muito poderosa de criação, de motivação, de empoderamento”, explica ele, que é o criador do primeiro programa acadêmico de educação maker do mundo, o FabLearn. “Mas não adianta pegar uma aula tradicional, que o aluno já não gosta muito, e colocar isso numa telinha de celular de 10 centímetros”.

Ele está convencido de que não existe mais a discussão sobre se a tecnologia vai estar na escola e, sim, como. E a resposta são vídeos que as crianças possam fazer com celular sobre problemas da sua comunidade, fotos da vegetação da região, entrevistas com a família, projetos de robótica e programação. “Tem essa coisa messiânica de o ensino híbrido vai nos salvar, que vai recuperar um ano e meio fora da escola. O que vai realmente recuperar é o contato dos alunos com professores, a ressocialização na escola”, diz ele, que assina um relatório sobre o assunto feito para uma parceria entre o grupo D3e, Todos Pela Educação e laboratório Transformative Learning Technology, de Columbia.

Blikstein diz ainda se preocupar com a segurança dos dados dos estudantes, já que grandes empresas de tecnologia entraram em massa nas escolas durante a pandemia, sem legislação no País. “Imagina se tivesse um sujeito da empresa X sentado em cada sala de aula, anotando tudo o que acontece com as crianças, tirando foto delas, vendo suas notas, seria um escândalo. Mas como é tudo pelo computador, a gente acha que tudo bem.”

Com a volta às aulas neste segundo semestre, a tecnologia vai estar cada vez mais presente na escola?
No Brasil, alunos de escolas particulares e de algumas regiões voltam em situação melhor, por estarem em situação de privilégio, tiveram aprendizado diferente com pais, família e internet. Mas tem um contingente muito grande de crianças em situação diferente. Sem condições de conectividade, sem um lugar pra estudar, não tinham quarto, uma mesa, computador, estavam assistindo aulas em condições precárias. Eles voltam não só tendo perdido o ano como esquecido muitas coisas e até com experiências traumáticas. São necessárias políticas públicas bem planejadas e realistas para recuperar. Vejo muito essa visão messiânica, milagrosa, dizendo que a gente vai usar o ensino híbrido para recuperar perdas de um ano e meio. Não tem tecnologia nenhuma que vai recuperar estar longe da escola.

E, sim, o contato dos alunos com professores, a ressocialização na escola. Se for a criança da escola particular, um ou dois dias em casa, estudando no computador, no quarto, com os pais ajudando, talvez até funcione. Mas a gente está falando de um país de desigualdades gigantescas. Achar que uma criança de uma comunidade de baixa renda vai ficar três dias por semana em casa, calmamente, sentada num lugar estudando, é completamente fora da realidade.

O ensino híbrido não funciona?
O ensino híbrido virou uma jabuticaba, ninguém sabe definir e as pessoas estão fazendo uma grande confusão. Tem algumas modalidades híbridas de educação que funcionam, por exemplo, fazer projetos na sua comunidade, na sua casa, trazer dados de fora para a escola, assistir um vídeo ou até uma aula numa quantidade em torno de 10% do tempo da presencial. O dia em casa é pra fazer projetos, coletar dados, não pra ficar assistindo aula em casa. Entrevistar pessoas na sua casa ou pelo zoom, fazer projetos em casa. Se for um ensino criativo e híbrido, tudo bem, mas se for mais do mesmo, um pouco online e outro na sala de aula, não tem sentido nenhum. Infelizmente tem muita conversa de ensino híbrido que é só fazer mais do mesmo, mas um pouco mais virtual. Acho complicado confiar tanto na tecnologia sem ter evidência de que funciona. Essas soluções funcionam quando são guiadas pelo professor.

Qual seria a saída para essas crianças então, se todas ainda não puderem estar na escola todos os dias por causa dos protocolos?
Deveríamos estar pensando em fazer projetos, vamos pedir para a criança usar o celular para tirar fotos da comunidade, fazer um vídeo dos problemas, tirar foto da vegetação da região, fazer um filme sobre os pratos que sua família cozinha, fazer projetos com tecnologia, usando várias mídias, projetos interessantes pra criança, que dialoguem com a vida dela, dos familiares. Nas redes sociais, em vez de postar memes, postar uma entrevista com o avô, um vídeo sobre o córrego da comunidade, o trânsito? Há mil possibilidades de uma educação mais relevante, que também usa tecnologia e está pouco aproveitada. Ao contrário, o que se está fazendo é pegar a aula tradicional, que o aluno já não gosta muito, e colocar numa telinha de 10 centímetros do celular. Mandar o aluno ficar horas vendo isso e depois fazer um monte de exercícios é pedir para ele se desmotivar, sair da escola.

Em seu relatório mais recente você fala justamente disso: que não se discute mais se a tecnologia vai estar na escola, mas, sim, como. É disso que está falando?
Sim. Antigamente, o computador entrava na escola quando o governo falava que ia fazer salas de informática, o governo tinha esse monopólio de colocar a tecnologia, hoje ela já está na escola, ou por alunos que já têm celular ou por empresas que fazem projetos com escolas. Não é mais o “se”, não tem mais sentido criar uma bolha e dizer: aqui não entra tecnologia, é só livro, papel e caneta. Mas tem que pensar no “como”. Os alunos têm celular, então vamos mandar fazer pesquisas de campo. Também não pode dar tablet para as crianças e esperar um milagre. Tem que ter currículos que vão usar isso de forma interessante, não é pra ler PDF ou fazer prova de múltipla escolha no tablet em vez do papel, que é a mesma coisa, mas com verniz digital.

Mas os professores muitas vezes não têm formação para isso.

A gente não pode colocar nas costas do professor e professora a responsabilidade de saber usar a tecnologia de uma forma interessante, mas as redes precisam criar estrutura para dar suporte a eles. Tem redes que criaram equipes de tecnologia pedagógica, não é o cara da TI, é uma pessoa que entende de redesenho curricular com tecnologia. Em Sobral, colocaram um professor a mais por escola, que senta com o professor e ensina a transformar a unidade curricular com tecnologia. Aí ele dá uma aula de biologia, usando robótica, programação. O professor contribui com a experiência que ele tem de sala de aula e o novo professor, de tecnologia, com ideias de como fazer aquilo mais interessante. Claro que tem custo. Mas acho melhor contratar um professor a mais por escola do que comprar 30 lousas eletrônicas que ninguém vai saber usar.

E as crianças precisam ter computador para fazer essas novas aulas?
Num país como o Brasil não se pode esperar que toda criança vai ter um celular com internet ilimitada. Então, assim como o Estado provê carteira, livro, mesa, ele tem que prover acesso à internet e aos dispositivos. Celular e tablet não são a melhor forma, não tem teclado, a tela é pequena. Tem que ter salas para as crianças usarem computadores, laptops que podem ser compartilhados. Tem que encarar esses materiais como básicos. Há computadores de baixo custo. A USP tem um projeto que produz um computador de 40 dólares, sem monitor, que funciona para as coisas básicas de educação. Há várias soluções para universalizar o acesso que não são comprando um Macbook para 1 milhão de crianças.

Na pandemia, empresas como o Google entraram fortemente nas escolas. O que acha disso?
Sem citar nomes, é muito preocupante elas entrarem sem um referencial de legislação. É claro que tinha uma emergência e que bom que muitas ajudaram, forneceram gratuitamente, mas quando começa a se tornar permanente é difícil. É preciso pensar sobre a proteção dos dados das crianças, onde eles estão, os pais podem requisitar, apagar, o que acontece se a empresa for vendida? A gente não tem nada equacionado. Esses dados estão sendo fornecidos para essas empresas sem que os pais e as redes de ensino tenham controle nenhum disso. Imagina se tivesse um sujeito da empresa X sentado em cada sala de aula anotando tudo o que acontece com as crianças, tirando foto delas, anotando se elas estão estressadas, vendo suas notas, seria um escândalo. Mas como é tudo pelo computador, a gente acha que tudo bem. Há uma tentativa de mistificar a tecnologia, como se ela fosse claramente benéfica e transformadora.

Além dos dados, há outros benefícios para as empresas.
Sim. Tem uma base de usuários de graça, faz uma geração de crianças que usam a ferramenta X da empresa X, com benefícios financeiros a longo prazo. É um oportunismo na pandemia. Claro que as empresas ajudam, não é para acabar com tudo, mas isso tem que ser regulado. Tem empresa que chegou nas prefeituras e deu produto de graça, não precisa de concorrência. Há também questões ligadas ao Estatuto da Criança e do Adolescente, da publicidade infantil.

Escolas com logotipo da empresa pintado na escola, nos materiais online. Como não pode ter na escola propaganda de um brinquedo, isso também não pode. Existe um discurso de falar que professor é tudo velho, o computador é muito mais personalizado, mas o professor é muito mais personalizado que um vídeo, que uma aula digital. Falam em educação 4.0, híbrida, tudo é uma cortina de fumaça para as pessoas engolirem essa presença das empresas sem controle.

Tem também o outro lado, dos pais que agora não querem mais nada de tecnologia na escola pelo tempo que o filho passou usando.

Tem o tipo de tecnologia que tem que ser controlado, quando a criança fica jogando, vendo vídeo, sendo sugado pelas telas, que foram desenhadas com esse objetivo. Ou as redes sociais, que realmente são coisas que até os adultos têm problemas em se controlar. Eu não acho que a criança tem que ir pra escola e ficar na frente de um computador, mas tem um outro tipo de tecnologia. Como ir ao laboratório de ciência e usar um computador para fazer o experimento, colocar os dados, fazer um projeto de robótica, de ativismo digital, de arte interativa. A tecnologia como matéria prima para construir coisas. É um uso muito diferente, instrumental, que não é esse viciante que a gente conhece.

Essa ideia de colocar a criança numa bolha sem tecnologia é um problema, é você tirar dela uma ferramenta muito poderosa de criação.

O que fica de lição da pandemia para a tecnologia?
O que fica de lição é, primeiro, tem que levar a sério essa desigualdade de conectividade e acesso. A escola não tinha internet, mas isso nunca tinha sido posto à prova. É uma lição de casa enorme conseguir oferecer para as crianças o mesmo ponto de partida. Mas também mostrou para algumas empresas que achavam que as crianças iam ficar em casa e aprender no seu próprio ritmo…isso foi um desastre. A gente não quer esse mundo dos utopistas da tecnologia, a gente quer o mundo que as crianças vão pra escola, se sujem e convivam, aprendam de outras pessoas, conversem com outras crianças. A escola não é só lugar de aprender o conteúdo, mas de ser cidadão, ser gente, ser amigo, todas essas coisas que se achava que era secundário. Outra lição é como é importante investir no professor.

Nos sistemas em que a tecnologia na educação funciona melhor, ela sempre funciona como ferramenta que é colocada na mão do professor. É algo como o médico usa a tecnologia, ele tem que saber medicina, mas às vezes ele usa uma máquina pra fazer raio x, ressonância, mas o médico tá no controle.

Caindo na real, por Afonso Celso Pastore.

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Por conta da alta dos juros para segurar a inflação, no início de 2022 ficará claro que o crescimento do PIB será bem menos do que 2%

Afonso Celso Pastore – O Estado de São Paulo, 15/08/2021

Para quem ainda não se deu conta do significado da expressão “taxa de juros acima da neutra”, usada pelo Banco Central a partir de quando começou a reconhecer o descontrole da inflação, aqui vai a definição: é uma política monetária restritiva, que faz com que o crescimento do PIB atual se mantenha abaixo do seu potencial, alargando um hiato que já é negativo. Ou seja, para iniciar uma lenta e penosa convergência da inflação para a meta, o Banco Central terá de manter a taxa real de juros suficientemente elevada para provocar uma contração da demanda agregada, produzindo sensível redução do crescimento econômico.

Como as defasagens da política monetária são longas, nos próximos meses ainda não deverá ocorrer um encolhimento do PIB, mantendo-se a ilusão de um crescimento forte em 2022. Porém, já no início do próximo ano ficará claro que o crescimento será bem menor do que 2%, que era a estimativa de crescimento do PIB potencial antes da pandemia. Em 2022, teremos inflações e taxas reais de juros altas, com um crescimento medíocre do PIB, sem que se possa descartar uma queda em um ou outro trimestre.

Para minha surpresa, quando eu esboço esse quadro, a reação frequente do interlocutor é um par de olhos arregalados. Talvez isso se deva à ilusão de que a inflação seria apenas a consequência de uma sucessão de choques de oferta, independentes entre si, que se dissipariam sozinhos, sem contaminar as expectativas. Não é o que está escrito no primeiro capítulo do Manual do Regime de Metas de Inflação, que recomenda que, embora o Banco Central deva acomodar o efeito primário de um choque de oferta, tem de elevar a taxa de juros para dissipar seus efeitos secundários, o que não vinha sendo feito nos últimos 18 meses.

A segunda surpresa foi o otimismo do mercado quando o aumento da inflação gerou a ilusão de queda do risco fiscal. Reconheço que desta vez a ajuda não se deu através do imposto inflacionário, e sim por seu efeito sobre o crescimento da receita, que reduziu o déficit primário abaixo de 1,5% do PIB. Se a inflação não fosse tão alta, não teria ocorrido um crescimento do PIB nominal bem acima da dívida nominal, provocando em 2021 uma queda significativa da relação dívida/PIB. Contudo, ainda que isto não revelasse a melhora da política fiscal, provocou um rally nos preços dos ativos, com uma valorização temporária do real e do Ibovespa.

A ilusão de que tudo estaria bem impediu que se prestasse atenção aos efeitos de um aumento da taxa real de juros sobre o crescimento. Talvez isso se deva à expectativa de que a queda do risco fiscal, associada à taxa de juros mais alta, atrairia capitais que valorizariam o real, que poderia chegar a R$ 4,70/US$ ao final de 2021, contribuindo para a queda da inflação. Com isso, a perspectiva era de um retorno mais rápido da inflação à meta, com um sacrifício pequeno em termos de perda de produto.

Antes do alerta de que os gastos sociais também são reajustados pela inflação, acreditava-se que o IPCA de 8,3% em junho de 2021 teria gerado, em 2022, um aumento de R$ 120 bilhões dos gastos primários dentro do teto. A ilusão de que haveria uma gordura que permitiria aumentar os gastos desapareceu com a lembrança de que os gastos sociais têm de ser corrigidos pelo INPC de dezembro, o que come ¾ da suposta folga no teto, e a surpresa dos precatórios acentuou as preocupações. Ainda que a PEC dos precatórios aumente um espaço residual para acomodar o projeto do novo Bolsa Família, a incerteza já provocou efeitos, levando o real de volta aos R$ 5,20/US$.

Entraremos em 2022 com um crescimento econômico abaixo do potencial, com a taxa de desemprego alta e uma piora na distribuição de rendas. Com os EUA, Europa e China voltando a crescer perto dos respectivos potenciais, não teremos mais o impulso do comércio exterior e dos preços de commodities, que se soma ao desestímulo da taxa real de juros no campo restritivo da atividade econômica.

Crescimento econômico baixo reduz a popularidade do presidente, o que pode forçá-lo a optar pelo aumento nos gastos, excedendo o teto, com sua vida sendo facilitada pela aliança com o Centrão, que não tem a mínima preocupação com a responsabilidade fiscal. A piora da situação fiscal acentua a depreciação cambial, que aumenta a inflação, restando ao Banco Central a opção entre aumentar ainda mais a taxa de juros, reduzindo o crescimento, ou acomodar a política monetária, elevando a inflação. Tudo isso em um ano de eleição…

EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA A.C. PASTORE & ASSOCIADOS. ESCREVE QUINZENALMENTE

Livro traça o pensamento econômico de 17 ministros da Fazenda de 1889 a 1985

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Admiração por ideias liberais é ponto comum a quase todos os biografados, assim como é constante a dificuldades em colocá-las em prática

EDUARDO CUCOLO – FOLHA DE SÃO PAULO, 14/08/2021.

De Rui Barbosa a Ernane Galvêas, o livro “Os Homens do Cofre – O que pensavam os ministros da Fazenda do Brasil republicano” discorre sobre o pensamento econômico de 17 ministros da Fazenda que comandaram a economia do país da Proclamação da República (1889) até o fim da Ditadura Militar, em 1985.

Os nomes selecionados, entre os quase cem titulares da pasta nesse período, incluem dois presidentes da República, Rodrigues Alves e Getúlio Vargas, além de figuras históricas como José Maria Whitaker, Oswaldo Aranha, Horácio Lafer e Eugênio Gudin.

Como destacam os autores, nenhum desses era economista de formação, embora tivessem vasto conhecimento sobre as teorias do liberalismo clássico e os debates econômicos da época nas economias mais avançadas.

Só a partir de 1964 o ministério passaria a ser comandado predominantemente por economistas, classe que assumiria ascendência sobre a administração do país com status que não haviam ostentado até então, segundo o organizador da obra, o professor do Departamento de Economia da Universidade Federal do Paraná Ivan Colangelo Salomão.

Desse período mais recente, foram selecionados Octávio Gouveia de Bulhões, Antonio Delfim Netto (que assina o prefácio do livro), Mario Henrique Simonsen e Ernane Galvêas.

Segundo o organizador, foram escolhidos os 17 ministros com maior destaque no cenário público brasileiro desse período, independentemente do tempo em que atuaram. Rui Barbosa, Getulio e Moreira Salles, por exemplo, ficaram pouco mais de um ano no cargo.

Também foram considerados nomes a respeito dos quais houvesse documentação disponível. Buscou-se ainda distribuir os nomes de forma uniforme por esse período.

A admiração pelas ideias liberais é ponto comum a quase todos os biografados, assim como é constante a dificuldades em colocá-las em prática diante de interesses políticos e econômicos —e da realidade de uma economia periférica e ainda em processo de industrialização.

Também não são poucos os que, tendo criticado a leniência dos antecessores com a inflação e os déficits públicos crônicos, acabam por ver frustradas suas tentativas de mudar os rumos da economia brasileira.

Uma economia ainda dependente do setor primário e do crédito internacional, com um sistema cambial instável e uma dívida externa sendo constantemente renegociada também compõe o cenário da maior parte desses quase cem anos iniciais da República.

O livro também mapeia o surgimento do pensamento desenvolvimentista. Primeiro ministro da Fazenda da República, Rui Barbosa é apresentado como um intelectual de formação ortodoxa que acaba por adotar políticas econômicas classificadas pelos autores como um ensaio do desenvolvimentismo que surgiria quatro décadas depois, a partir da Era Vargas.

Um exemplo da aplicação desse pensamento é o capítulo dedicado ao mais longevo ministro da Fazenda da história brasileira, Artur de Souza Costa, que ocupou a cadeira por 11 anos e três meses (de julho de 1934 a outubro de 1945).

No prefácio, o ex-ministro e colunista da Folha Delfim Netto afirma que o Brasil não se saiu tão mal, a despeito de tantas e tão variadas experiências no comando da economia desses anos: no período, o PIB real do país cresceu aproximadamente 5% ao ano, mais do que a média mundial. Situação que, aliás, não voltaria a se repetir nos 35 anos seguintes.

Escrito por diversos autores, alguns capítulos apresentam uma linguagem mais atrativa e uma narrativa mais dinâmica que outros.

Destinado ao público mais especializado em temas econômicos, o livro alcança os objetivos propostos, se dividindo entre o aspecto biográfico e a história do pensamento de cada personagem, usando como referência ampla bibliografia sobre o período.

OS HOMENS DO COFRE: O QUE PENSAVAM OS MINISTROS DA FAZENDA DO BRASIL REPUBLICANO (1889-1985)
Preço R$ 67
Autor Ivan Colangelo Salomão (Org.)
Editora Editora Unesp (520 págs.)

A China adotaria barreiras ao agro brasileiro por motivos climáticos? por Tatiana Prazeres

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Cálculo político sobre restrições comerciais pode mudar à medida que China reduza emissões

Tatiana Prazeres Senior fellow na Universidade de Negócios Internacionais e Economia, em Pequim, foi secretária de comércio exterior e conselheira sênior na direção-geral da OMC.

Folha de São Paulo, 13/08/2021

A China, destino de um terço das exportações do agronegócio brasileiro, poderia lhe impor barreiras comerciais por razões climáticas?

Pois não é descabida a pergunta, ainda que a agenda de sustentabilidade da China represente também uma oportunidade para o agro brasileiro.

Em julho, Pequim colocou em funcionamento o mercado nacional de crédito de carbono, que imporá um custo às empresas chinesas em função de suas emissões.

Na União Europeia, esse mesmo tipo de mercado levou a que, hoje, o bloco queira implementar um imposto de importação por motivos climáticos, teoricamente estendendo aos importados os custos que passaram a recair sobre produtos europeus.

Meu palpite? No curto prazo é improvável que a China adote esse mesmo caminho de restrições comerciais por razões climáticas. Mais importante: o cálculo político pode mudar à medida que a China avance rumo à neutralidade de carbono.

A lógica remete à atitude chinesa diante de propriedade intelectual. Enquanto o país basicamente copiava, a agenda de proteger conhecimento não convinha. Agora que inova, a conversa é outra.

Igualmente importante: antes de barreiras comerciais, instrumentos menos evidentes mas poderosos, como financiamento atrelado a metas de sustentabilidade, terão impacto nas importações chinesas do agro brasileiro.

Neste momento, no entanto, Pequim tem motivos econômicos e políticos para evitar barreiras comerciais.

A China é o maior emissor de carbono e também o maior exportador de bens do mundo. Com esse duplo título, o país antes receia se tornar alvo de barreiras ao comércio por motivos climáticos. Ao adotar obstáculos comerciais, estaria especialmente vulnerável a respostas equivalentes.

No entanto, à medida que os custos da transição climática do país pesem sobre as empresas chinesas, uma nova conta se impõe a Pequim. Se as exportações chinesas sofrerem barreiras por motivos ambientais, idem.

Especificamente em relação ao agro brasileiro, o argumento da segurança alimentar na China joga contra a adoção de restrições. Dos alimentos que importa, 18% vêm do Brasil.

Ocorre que, do universo de itens do agro exportados para o país asiático, apenas na soja e no suco de laranja há uma grande dependência do fornecimento do Brasil no consumo doméstico chinês. E suco de laranja, convenhamos, não ameaça a segurança alimentar de ninguém. Soja é outra história.

Nos casos em que há grande produção na China e mercados fornecedores alternativos, o argumento da segurança alimentar não oferece blindagem segura contra barreiras.

Há ainda motivos políticos para a China resistir a essas restrições comerciais. O país valoriza a não-interferência em assuntos internos —inclusive porque não quer ingerência externa aqui. A lógica de realpolitik seria, digamos, tratar Amazônia e Xinjiang como assuntos domésticos.

Se hoje barreiras ao agro brasileiro por motivos climáticos parecem improváveis, não custa lembrar a velocidade com que o cálculo de Pequim pode mudar. O vendaval regulatório que acaba de atingir setores de tecnologia e educação privada na China serve de lembrete.

Num cenário de políticas inadequadas no Brasil e, na China, de reais esforços climáticos e inclinações protecionistas, é possível que empresas brasileiras venham a enfrentar barreiras ao comércio por razões ambientais.

Mas o processo seria sutil. Longe de banir importações, o movimento começaria, por exemplo, com certificações climáticas não-obrigatórias —e o sarrafo poderia subir.

Antes mesmo de barreiras comerciais, incentivos reputacionais e financeiros para empresas importadoras, investidores, bancos e fundos chineses terão impacto no agro brasileiro. A China não quer ser vista, por exemplo, como responsável por desmatamento na Amazônica pelas importações de carne.

Menos óbvios que barreiras comerciais, esses incentivos podem ser igualmente poderosos e, principalmente, chegarão primeiro ao agro do Brasil.

‘Há outros vírus só esperando para emergir’, afirma Jared Diamond

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Pesquisador da Universidade da Califórnia abre série de conferências Fronteiras do Pensamento, em formato virtual

REINALDO JOSÉ LOPES – FOLHA DE SÃO PAULO, 11/08/2021

Para quem tinha alguma esperança de que a Covid-19 seria o tipo de evento que só acontece uma vez a cada século, o biogeógrafo americano Jared Diamond, 83, tem uma má notícia.

“Eu diria que a Covid-19 é o começo do futuro”, afirmou Diamond, autor do clássico “Armas, Germes e Aço”, em entrevista à Folha por vídeo. “Está mais claro do estava um ano atrás que a atual pandemia é um evento único sem precedentes no passado, mas que terá muitos imitadores a partir de agora. Ou seja, a Covid-19 é a primeira pandemia realmente global graças à sua capacidade de se espalhar por aviões a jato, embora a pandemia de gripe espanhola de 1918 tenha chegado perto.”

O pesquisador da Universidade da Califórnia em Los Angeles é o primeiro convidado deste ano da série de conferências Fronteiras do Pensamento, que acontece em formato virtual. Sua palestra para o público brasileiro acontece no dia 25 de agosto.

Diamond se notabilizou pela capacidade de sintetizar uma imensa gama de informações biológicas, geográficas, arqueológicas e antropológicas para tentar encontrar os grandes fios da meada da história humana. Uma das constantes, segundo ele, é o papel das doenças infecciosas, como sugere a palavra “germes” no título de seu principal livro —foram eles os principais responsáveis pela relativa facilidade com que os europeus dominaram as populações nativas de continentes como a América e a Oceania.

As civilizações da Europa e da Ásia contaram com essa vantagem em relação a indígenas americanos e aborígines australianos graças, em grande parte, aos seus rebanhos de animais domésticos, que eram raros ou inexistentes nos locais invadidos.

Os micróbios e vírus dos bichos passaram milhares de anos saltando para seus donos e adaptando-se a eles em território europeu, enquanto nenhum processo parecido se deu entre os nativos do Brasil, dos EUA ou da Austrália.

Com isso, essas populações não tinham nenhuma resistência natural a moléstias como sarampo, varíola e gripe, frequentemente sendo dizimadas pelos germes sem que fosse preciso disparar um só tiro.

A semelhança com o novo coronavírus, contra o qual nenhum ser humano tinha resistência natural quando ele começou a se espalhar no fim de 2019, não é mera coincidência.

“Há outros vírus só esperando para emergir. Temos algo como 30 milhões de espécies de animais por aí, e cada um desses animais têm suas próprias doenças”, aponta Diamond. “Pegamos febre amarela de macacos, malária de primatas do Velho Mundo, pegamos a Sars [doença causada por outro coronavírus no começo dos anos 2000] de animais do Sudeste Asiático. Portanto, você pode apostar que elas vão continuar aparecendo enquanto os seres humanos tiverem contato com animais.”

A relação entre animais domésticos, doenças infeciosas e conquista europeia exemplifica o enfoque dado pelo especialista a suas análises da história humana. Para Diamond, as grandes linhas dos confrontos entre civilizações foram definidas por condições ambientais de cada continente e região, as quais muito raramente estão sob controle de cada povo.

Essa é uma das razões pelas quais ele é um adversário ferrenho da ideia de que supostas diferenças genéticas entre raças ou grupos étnicas, em especial as que afetariam a inteligência, teriam levado ao triunfo de certos povos sobre outros.

“É claro que existem algumas diferenças genéticas entre as populações de cada continente, que possuem razões ambientais sólidas para existir. Os habitantes das regiões tropicais do Velho Mundo, por exemplo, têm genes de resistência à malária porque passaram milênios enfrentando a doença, coisa que os suecos não têm. Já os habitantes do norte da Europa, que consomem leite há milhares de anos, carregam mutações que permitem que os adultos sejam capazes de digerir os açúcares do leite. Mas, no que diz respeito à capacidade do cérebro, não há evidência nenhuma de diferenças”, destaca ele.

“Com base na minha experiência na Nova Guiné, onde faço meu trabalho de campo, posso dizer que os americanos burros conseguem não apenas sobreviver como até acabam indo votar”, ironiza. “Já um nativo da Nova Guiné burro não sobrevive o suficiente para se reproduzir.”

As décadas de contato com as sociedades tradicionais da ilha do Pacífico é uma das bases de outro de seus livros, “O mundo Até Ontem”, no qual Diamond mostra o que é possível aprender com populações que ainda vivem de maneira muito parecida com nossos ancestrais de 10 mil anos ou 5.000 anos atrás. Para o pesquisador, tais grupos abrem uma janela para estratégias de interação social e desenvolvimento humano que continuam sendo valiosas.

“Os povos indígenas têm sociedades que são o resultado de centenas de milhares de anos de evolução e 75 mil anos da evolução dos seres humanos modernos. Eles têm muitas maneiras de criar seus filhos, muitas maneiras de cuidar dos idosos, muitas maneiras de aprender habilidades sociais. Na Nova Guiné, fiquei muito impressionado quando vi que crianças de cinco anos de idade conseguem negociar com adultos como eu muito melhor do que americanos de cinco anos”, conta ele. “Imagino que os brasileiros com mais de 70 anos ou 80 anos em geral estão muito infelizes, tal como os americanos com essa idade. Sentem e conversem com os povos da floresta sobre como eles enfrentam a velhice.”

Ensaio sobre prisões na pandemia implica quem ‘não tem nada a ver com isso’

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Juliana Borges desmantela engrenagens que forjaram terceira maior população prisional do planeta

FERNANDA MENA – FOLHA DE SÃO PAULO, 11/08/2021

O silêncio sobre contradições fundamenta mitos. Essa afirmação da intelectual brasileira Lélia Gonzalez é evocada pela escritora e pesquisadora de política criminal Juliana Borges em seu contundente ensaio “Prisões: Espelhos de Nós”.

Em cinco capítulos, Borges faz uma ampla análise das engrenagens do sistema de justiça criminal brasileiro e de seu resultado — a terceira maior população carcerária do planeta em estabelecimentos precários e superlotados— sob a luz, ou melhor, sob as trevas da pandemia da Covid 19.

Atrás apenas de Estados Unidos e da China, o Brasil chegou a cerca de 760 mil pessoas privadas de liberdade em junho de 2020, segundo dados do Depen, abusando do instituto da prisão provisória, aquela que ocorre antes do julgamento e da sentença e sob a qual estão detidos cerca de 35%do total de presos e presas do país.

Mais do que isso, Borges desmantela os mecanismos que entrelaçam nossas violentas heranças colonial e escravagista para evidenciar de que maneira elas determinam quem são os “cidadãos de bem” e quem são os “inimigos da sociedade”.

Sintetizada naquilo que hoje reconhecemos como racismo estrutural opera uma máquina de prender pessoas jovens (55% da população prisional), negras (64%), pobres e de baixa escolaridade (51% não possuem o ensino fundamental), como demonstra a autora.

“A construção da figura do criminoso na sociedade brasileira é um processo totalmente atravessado pelo racismo”, escreve ela, que é também consultora do Núcleo de Enfrentamento, Monitoramento e Memória de Combate à Violência, da OAB-SP e conselheira da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas e da Plataforma Brasileira de Política de Drogas.

Borges articula filósofos e intelectuais peso-pesado, como Frantz Fanon, Grada Kilomba, Abdias do Nascimento, Pierre Bourdieu, Angela Davis e Michel Foucault, autor do clássico dos estudos sobre prisões “Vigiar e Punir”.

A escritora, que também é autora do livro “Encarceramento em Massa” (Jandaíra), retoma as políticas de embranquecimento da sociedade brasileira e a marginalização da população negra enquanto projeto, a criminalizada por sua condição social de abandono a partir de institutos como a lei da vadiagem, que colocava atrás das grades aqueles que não tinham destino certo que não as ruas da cidade.

A seletividade das prisões em flagrante, responsáveis por parcela importante da população prisional, é uma espécie de atualização informal desses institutos: só são presos aqueles que estão nas ruas e, portanto, podem ser abordados pela polícia. Em geral, homens jovens, negros e periféricos são desproporcionalmente considerados como suspeitos.

Com a chegada da pandemia, penitenciárias superlotadas, onde violações de direitos fundamentais são regra, e não exceção, passaram por um processo de prisão dentro da prisão, e de abandono sobre abandono.

As visitas foram suspensas, assim como as poucas atividades de trabalho e educação. Em muitos casos, até o banho de sol foi cancelado ou ainda mais restrito. Pesquisa da Fundação Getúlio Vargas apontou que 7 de cada 10 famílias de pessoas presas ouvidas afirmaram não ter acesso a qualquer informação sobre seus parentes durante a pandemia. As medidas, defende a autora, transformaram presídios em caixa-preta.

Soma-se a isso a questão do descumprimento da recomendação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), evidenciado no relatório do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), que aponta que 3 de cada 4 pessoas que poderiam ter deixado a prisão na pandemia foram mantidas atrás das grades por juízes de São Paulo.

Ao denunciar os motores do encarceramento em massa, o combustível da negação de direitos fora e dentro dos muros e o negacionismo de parte do Judiciário brasileiro no contexto da pandemia, Juliana Borges ajuda a romper o tal silêncio sobre contradições que fundamentam mitos. Com isso, cria o desconforto necessário à responsabilização. O maior mito deles é talvez o mais recorrente e reconfortante: a falsa ideia de que não temos nada a ver com isso.

PRISÕES – ESPELHOS DE NÓS
Preço R$ 30 (56 págs).
Autor Juliana Borges
Editora Todavia

Recuperação ameaçada

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A pandemia gerou graves constrangimentos na sociedade global, afetando comportamentos, alterando hábitos, crises econômicas, desemprego em ascensão, desesperanças e perspectivas preocupantes, levando os governos a atuações mais intensas em seus sistemas econômicos e produtivos, injetando recursos, protegendo setores, aumentando os investimentos em políticas sociais, retomando planejamento e políticas intervencionistas.

Diante deste ambiente, muitos analistas econômicos, defendiam a tese de que a economia brasileira estava em recuperação, construindo uma narrativa de que o pior teria ficado para trás. A recuperação era vista como sólida e consistente, motivando os investimentos, a geração de empregos e perspectivas de melhorias no incremento da renda, dos salários e do consumo. Infelizmente, as perspectivas positivas estão se mostrando exageradas e a recuperação econômica está se mostrando fraca e limitada.

O cenário do segundo semestre vai ficando turvo para a economia brasileira diante do crescimento de múltiplos riscos: inflação persistente, seca histórica que compromete o abastecimento de energia elétrica e do agronegócio, altas de juros e desarranjo fiscal somado à deterioração do ambiente político e institucional. A recuperação em V tão alardeada pelos integrantes da equipe econômica nos parece bastante distante da realidade do país, com graves constrangimentos para o equilíbrio político, social e institucional.

A recuperação econômica, depois de uma queda elevada no ano passado, pressupõe uma política consistente e organizada, onde os setores econômicos precisam de um ambiente centrado na confiança e no aumento da credibilidade, criando os consensos necessários e imprescindíveis para que os investimentos produtivos voltem a estimular o crescimento econômico. Sem investimentos produtivos não teremos recuperação econômica.

Falar em recuperação econômica com quase 15 milhões de desempregados, 6 milhões de desalentados e 20 milhões de subempregados é uma temeridade e uma verdadeira irresponsabilidade, contribuindo para criar uma narrativa inconsistente que não tem lastro na realidade. O combate ao desemprego deve ser visto como uma prioridade nacional, a geração de emprego prescinde de investimentos em obras públicas e centrados na economia verde e, infelizmente, as discussões se concentram em políticas para reduzir os benefícios sociais que estimulam empregos degradados e a diminuição da renda do trabalhador que contribui para este cenário de desalento e desesperança.

Destacamos ainda o crescimento da inflação que levou o governo a aumentar as taxas de juros na economia, cujos impactos são negativos sobre a renda da população, diminuindo os investimentos produtivos e elevando as dívidas das famílias. Tudo isso contribuiu enormemente para a degradação econômica e fragiliza o discurso da recuperação da economia, que esconde inoperância e a ausência de um projeto nacional consistente.

As contas públicas sempre geraram instabilidades na economia brasileira, no começo do ano muitas previsões de especialistas era que caminhávamos para uma escalada na dívida pública. A relação dívida/PIB se reduziu, gerando expectativas positivas, mas isso não ocorreu por alguma reforma fiscal, a reversão aconteceu em decorrência do incremento da inflação que escondeu parte do problema e, posteriormente, voltará a aparecer quando a inflação diminuir.

Para contribuir negativamente, a crise de energia e a variante Delta geram mais incertezas e instabilidades, impactando sobre a recuperação econômica, afastando investimentos internos e estrangeiros e postergando a construção de um ciclo de crescimento econômico. Nos países avançados, a recuperação econômica está centrada em dois elementos fundamentais: a vacinação, com a economia voltando a um nível de normalidade e estímulos fiscais. Sem estas medidas efetivas de incentivos econômicos e do incremento da imunização, a economia brasileira não conseguirá se reerguer, o cenário permanecerá instável e as narrativas de recuperação se mostrarão cada vez mais reduzidas e limitadas.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário. Artigo publicado no Jornal da Região, Caderno Economia, 11/08/2021.

A tributação no Brasil incentiva o que deve ser evitado

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Fim da isenção sobre lucros e dividendos produzirá mais justiça fiscal

Rodrigo Spada, Presidente da Febrafite (Federação Brasileira de Associações de Fiscais de Tributos Estaduais)

Jefferson Valentin, Agente fiscal de rendas do estado de São Paulo
Folha de São Paulo, 09/08/2021

A disfuncionalidade do sistema tributário brasileiro faz com que sejam incentivadas práticas que em outros países são combatidas. Aqui, por exemplo, quem ganha menos paga proporcionalmente mais impostos do que quem ganha mais.
Outro ponto que escancara nossos problemas tributários é o fato de ser mais lucrativo ao empresário retirar dinheiro de sua empresa do que reinvesti-lo, fortalecendo a companhia e a economia nacional.

O lobby político explica, em boa parte, o fato de a regressividade dos tributos sobre o consumo beirar o limite do insuportável e de o imposto sobre a renda ser mais um exemplo de regressividade, sobretudo por conta da isenção atribuída à distribuição de lucros e dividendos. Entre as maiores economias do mundo, o Brasil é o único país no qual essa distribuição é isenta. Será que nós estamos certos e o resto do mundo está errado?

Os defensores da isenção argumentam que as empresas já pagam alíquotas de Imposto de Renda mais altas que em outros países. Falam em 34%, dos quais seriam 25% de IR e 9% de CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido). O argumento é falacioso por uma série de fatores, mas principalmente porque há diferenças na tributação dos diversos países, e uma comparação só seria razoável se partisse de uma alíquota efetiva média. Há diversos mecanismos que reduzem a alíquota efetiva do IRPJ (Imposto de Renda Pessoa Jurídica) nacional.

É comum encontrar, no Brasil, empregados que pagam mais IR que o proprietário da empresa. Para se ter uma ideia do desatino, segundo dados da Receita Federal, em 2018, 26.099 pessoas físicas declararam rendimentos acima de 320 salários mínimos. Destas, apenas 2.364 foram tributadas normalmente, enquanto 4.257 foram tributadas exclusivamente na fonte (ganhos de capital, aplicações financeiras etc.) e 19.478 receberam rendimentos isentos. Ou seja, cerca de 75% dos maiores rendimentos recebidos por pessoas físicas foram isentos.

Em 2019, R$ 359,15 bilhões foram pagos a pessoas físicas sócias de empresas optantes pelo lucro real ou presumido, e outros R$ 120,51 bilhões foram pagos por empresas optantes do Simples Nacional. Somados, quase meio trilhão de reais totalmente isento de Imposto de Renda enquanto a tabela progressiva está há anos sem correção, avançando cada vez mais sobre o trabalhador de mais baixa renda.

Se a empresa retém lucros para investimentos, gerando mais emprego e renda, aumenta o valor de mercado de suas ações ou quotas —e, caso o empresário venda tais participações por valor maior do que as comprou, pagará Imposto de Renda sobre ganho de capital. Por outro lado, se a empresa distribui os dividendos em vez de investi-los, o empresário os receberá livre de tributação. A isenção sobre lucros e dividendos, portanto, representa um incentivo para que o empresário retire dinheiro da empresa.

Diante disso, concluímos que, neste ponto, a proposta do governo, no projeto de lei 2.337/202, caminha na direção correta, pois, ao acabar com a isenção sobre lucros e dividendos, melhora a progressividade do IR e gera mais justiça fiscal à matriz tributária brasileira. E é exatamente por isso que a proposta sofrerá poderosos ataques de uma elite empresarial que, longe de querer o desenvolvimento do país, preocupa-se exclusivamente com seus privilégios.

O futuro da nova direita brasileira, por Camila Rocha

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Recondução de Bolsonaro ao poder seria fatal

Camila Rocha Cientista política, é autora de ‘Menos Marx, Mais Mises – O Liberalismo e a Nova Direita no Brasil’ (editora Todavia) e co-autora de ‘The Bolsonaro Paradox – The Public Sphere and Right Wing Counterpublicity in Contemporary Brazil’ (Springer-Nature, 2021).

Folha de São Paulo, 08/08/2021

Ainda é frequente no debate público brasileiro igualar fenômenos políticos como extrema direita, fascismo, direita radical e nova direita. Outro lugar-comum é destacar semelhanças entre o Brasil e outros países, ou entre tempos diferentes, sem maiores mediações. No entanto, deixar de reconhecer especificidades, tons de cinza e novidades neste campo do espectro político não apenas é um equívoco acadêmico, mas político. E, nesse sentido, nomes importam.

Em 2015, em meio a uma pesquisa documental junto ao Instituto Liberal, fundado na metade dos anos 1980 no Rio de Janeiro, me deparei com um novo fenômeno. Acidentalmente descobri que integrantes do instituto, assim como vários de seus conhecidos, participavam de discussões em antigos fóruns de internet em meio ao primeiro governo Lula (PT).

A despeito das muitas divergências existentes entre grupos e tendências diversas, que abrangiam de anarcocapitalistas a monarquistas, havia um “ar de família” que remetia a um novo “ecossistema” em formação, nas palavras do jornalista Lucas Berlanza, atual presidente do instituto. Uma “nova direita” emergia, turbinada pela reeleição de Dilma Rousseff (PT) e pelas manifestações que demandavam seu impedimento. Porém, a nova força política se consolidou de fato apenas com as eleições de 2018, quando vários de seus membros foram alçados à política institucional, seja por meio do voto, seja por indicação política de quem se elegeu.

Sua principal novidade em relação à direita tradicional é o desejo de romper com o pacto democrático de 1988. Se desde a redemocratização a direita tradicional vem atuando, em maior ou menor grau, dentro dos marcos estabelecidos pelo pacto (Constituição de 1988 + presidencialismo de coalizão), a intenção da nova direita é substituir seu substrato progressista, oriundo de algumas vitórias de grupos oprimidos e movimentos sociais, por uma combinação entre conservadorismo programático e radicalismo de mercado, sintetizado no mote “privatiza tudo’”. Porém, se seus fins são radicais, os meios não o são. O ranço com a ditadura militar, associado a uma herança autoritária e a um estatismo pós-Castelo Branco, é frequente entre seus integrantes. Mas em seu caminho havia Jair Bolsonaro.

O apoio à extrema direita no segundo turno das eleições de 2018 foi justificado pelo pragmatismo e por uma sinalização favorável às principais pautas da nova direita. Nas palavras de um de seus integrantes, sabia-se do “risco janista”, mas a maioria optou por pagar para ver. Hoje o balanço da gestão iniciada em 2019 ainda é alvo de discussões. Por um lado lamenta-se que as esperadas grandes privatizações não vieram. Outros entendem que o saldo não é tão negativo. Ainda que a pandemia tenha “tumultuado o meio de campo”, haveria sinais de recuperação econômica, o governo estaria inaugurando obras paradas há muito tempo e a vacinação só não seria mais rápida por conta da grande concorrência e porque apenas um país seria produtor dos insumos.

A despeito disso, a vontade de se desassociar do bolsonarismo não é minoritária. Várias lideranças apoiaram recentemente o impedimento do presidente. E, mesmo quem prefere aguardar as eleições de 2022, aposta em uma terceira via —ainda que não publicamente, dado que muitos partidos e políticos continuam “fechados com Bolsonaro”.

O desembarque se justificaria, para além das discordâncias em relação à condução (ou falta dela) da pandemia, por conta do estilo político do capitão reformado, tido como “histriônico”; da ausência de espaço para a pluralidade e as dissonâncias existentes no campo das direitas; e do comportamento de parte das Forças Armadas, que estaria “bolsonarizada”.

Diante das diversas possibilidades existentes até o presente, apenas um cenário político seria de fato fatal para a nova direita em 2022: a permanência de Bolsonaro no poder. No mais, caso a nova direita pretenda manter o nome e, como afirmou uma de suas lideranças anos atrás, continuar a conquistar corações e mentes, ficam as palavras de um assessor político que contribuiu com este artigo: “A nova direita agora precisa se reorganizar. Voltar para um trabalho que não deveria ter interrompido e retornar à penetração de base: igrejas, bairros, associações, universidade e opinião pública”.

Polícia foi criada para controlar pessoas negras e pobres, diz capitão da PM.

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Fábio França critica treinamento e analisa raízes colonialistas da segurança pública brasileira

MARCELO AZEVEDO
MATHEUS ROCHA
FOLHA DE SÃO PAULO, 03/08/2021

A VIOLÊNCIA POLICIAL CONTRA PESSOAS NEGRAS é herança da escravidão, aponta o capitão da PM Fábio França. Doutor em sociologia pela Universidade Federal da Paraíba, ele explica que, no século 19, a família real montou o primeiro aparato de segurança do país para manter o domínio da elite branca. “A polícia foi criada, obviamente, para controlar a população negra e pobre.”

Na corporação, França é uma voz crítica por identificar na formação policial uma “pedagogia do sofrimento”. Para uma pesquisa, ele colheu depoimentos de alunos que participaram do Estágio de Operações Táticas com Apoio de Motocicletas da PM, e constatou humilhações e agressões físicas praticadas no curso. Como resultado, analisa, os agentes reproduzem a violência sofrida no treinamento quando vão atuar no policiamento urbano.

França diz ainda que o currículo de formação impede mudanças efetivas. As tentativas de humanizar a instituição existem, mas esbarram no militarismo praticado nos treinamentos. Para ele, enquanto não abrirmos mão de um currículo que adestra o ser humano para aceitar a lógica militar, a formação estará subordinada a isso. “Será forçada nas regras militares.”

Qual o tema de sua pesquisa acadêmica? Na dissertação, trabalhei a ideia de humanização da Polícia Militar. Já no doutorado, levantei a tese de que programas de policiamento comunitário como as UPPs, Unidades de Polícia Pacificadora, no Rio, tinham um discurso que criava “sociabilidade estratégica”. A ideia era fazer com que o Estado conseguisse entrar com forças repressivas nas periferias e nos grandes centros urbanos.

Minha hipótese é a de que há convencimento através de um discurso de humanização. As pessoas das periferias se convencem de que é necessário a polícia estar lá para representar o Estado. Isso gera um controle social muito mais sofisticado, que não busca usar a violência direta, mas sim a violência simbólica.

O que é violência simbólica e como ela se manifesta? É uma maneira de fazer com que o dominado aceite o discurso do dominador sem resistência, acreditando que tudo aquilo é bom para ele. O objetivo é mostrar que as formas de dominar o outro são tão inteligentes que os grupos dominantes não precisam fazer nenhum esforço. Basta utilizar o discurso adequado para o convencimento acontecer.

Com essa mudança de discurso por meio de encontros entre pessoas das comunidades e policiais, por exemplo, cria-se a visão de que as coisas estão acontecendo, facilitando a entrada dos agentes. Mas o que não percebem é que os policiais, por estarem sempre presentes, acabam controlando e vigiando melhor.

Quais são as características do policiamento comunitário? O policiamento comunitário geralmente funciona com um curso que dura entre uma e duas semanas. Já o curso de policial militar normal dura em média de seis meses a um ano, enquanto para oficial são três anos, de maneira geral. Como podemos falar de uma internalização de princípios humanitários e comunitários para um policial que passa apenas 15 dias num banco escolar vendo esses princípios?

Qualquer tipo de política pública implementada dessa forma vai ser um fracasso.

Quando o projeto das UPPs foi lançado, eu sabia que daria em fracasso. Nós sabíamos que era um projeto para organizar a Copa e as Olimpíadas. Depois, ia acabar se extinguindo.

Qual é a origem da violência nos treinamentos da polícia? Existe essa ideia de que o sofrimento é necessário dentro da cultura militar, porque na rua haverá algo parecido. O policial precisaria estar preparado para isso. Mas essa perspectiva é um tanto contraditória, porque ela vem de uma cultura militarizada, que prepara o indivíduo das Forças Armadas para a guerra. Se ocorresse uma guerra no país, eles teriam que estar preparados para matar e naturalizar a morte, como se fosse produto do trabalho.

As polícias militares são as únicas forjadas com base na hierarquia e na disciplina do Exército e que, no contato com as pessoas, podem produzir violência física ou simbólica. Existe essa correlação entre violência e formação.

Mas, quando entra a humanização, alguns questionamentos devem ser feitos. Enquanto não abrirmos mão de um currículo que adestra o ser humano para aceitar a lógica militar, a humanização estará subordinada a isso. Será forçada nas regras militares.

Se esse treinamento gera tanto prejuízo, por que não há um debate amplo para reformulá-lo? Os gestores policiais não trabalham com dados técnicos. Tem-se a ideia, joga-se e implementa-se. Não há um estudo básico sobre nada.

Durante a pesquisa no curso de força tática, vi que os alunos passaram por situações como privação de sono, humilhação, comida servida misturada com mão suja. São testes de sobrevivência que vêm do período militar, ideias da cultura beligerante do Exército que chegam a essas instituições. E as pessoas simplesmente reproduzem.

No caso das polícias militares, é como se fosse um modismo, porque nem eles sabem explicar tecnicamente para que serve, mas sabem que devem fazer aquilo. O grande problema é: e quando alguém morre, o que fazer? Existem vários desses casos no Brasil. É o que eu chamo de “pedagogia do sofrimento”.

Por que pessoas negras são mais abordadas e mortas pela polícia? Quando a família real veio para o Brasil, montou o primeiro aparato de segurança pública do país. Já em 1831, as guardas municipais permanentes foram criadas. À época, a ideia era a elite branca controlar a grande maioria de escravizados, alforriados, fugitivos e brancos pobres. Não era permitido, por exemplo, reuniões de três a cinco pessoas de pele negra. Elas poderiam ser presas ou açoitadas por isso. A polícia foi, obviamente, criada para controlar a população negra e pobre. Isso é um fato que ninguém aceita no campo da Polícia Militar, até porque eles nem sabem disso.

Além de a população negra sofrer com esse aparato, ainda há o fato de que negros se tornam policiais e não têm essa perspectiva. Nos cursos de formação, não existe um debate sobre a origem e a história das polícias militares.

Livro relaciona ação na segurança pública à volta dos militares à política

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‘Dano Colateral’ examina erros de GLOs, mas não convence ao ligá-las ao governo Bolsonaro

Igor Gielow

DANO COLATERAL – A INTERVENÇÃO DOS MILITARES NA SEGURANÇA PÚBLICA

Autor Natalia Viana – Editora Objetiva (352 páginas) – R$ 59,9

A volta dos militares ao centro do debate público é um dos fatores mais notáveis, por repetitivo na vida republicana desde 1889, da história recente do Brasil.

Ao tentar mapear a cronologia do processo, que culmina na presença ostensiva de generais e de outras patentes no governo do capitão reformado do Exército Jair Bolsonaro, a jornalista Natalia Viana optou por um caminho de duas mãos.

Fundadora da Agência Pública, ela acaba de lançar “Dano Colateral – A Intervenção Militar na Segurança Pública” (Ed. Objetiva, 352 págs.).

Um dos pilares da obra é boa reportagem, focada no objeto do subtítulo do livro. Viana analisa 35 mortes de civis em conflitos com forças militares brasileiras nas chamadas GLOs (Operações de Garantia da Lei e da Ordem).

Instituídas há quase 30 anos para garantir o sossego de dignitários na Rio-92, as GLOs foram um instrumento abusado por presidentes ao longo do tempo. Fernando Henrique Cardoso (PSDB) chegou a ter 11 dessas ações em curso em um só ano, 2000.

Elas ajudaram a cimentar a fama de “posto Ipiranga” dos fardados e ganharam destaque principalmente ao lidar com questões de violência urbana, 16% das 144 operações de lá para cá, e com a segurança de grandes eventos como a Copa-2014 e as Olimpíadas-2016 (27% do total).

Ao mesmo tempo, as GLOs recebiam duras críticas de militares e especialistas civis pela inadequação de usar em policiamento os soldados treinados para a guerra.

Aqui, o pilar reportagem do livro se sustenta bem. O leitor é apresentado ao conceito de Apop (agente provocador da ordem pública), termo que na prática coloca traficantes armados até os dentes e inocentes no mesmo balaio.

Viana bebe na fonte que gerou clássicos como “Rota 66 – A História da Polícia que Mata”, de Caco Barcellos (1992), e reconta histórias das vítimas e de como as Forças Armadas trabalham um ciclo de impunidade na apuração dos incidentes.

De forma notável em um texto com viés esquerdista, há espaço também para os soldados do outro lado e para o contraditório vindo principalmente de uma conversa com um general central deste período, Sérgio Etchegoyen, chefe do Gabinete de Segurança Institucional de Michel Temer (MDB).

Há lacunas, contudo, que parecem querer reforçar a tese central do livro: aquela segundo a qual as crescentes intervenções militares, somadas à experiência dos fardados na chefia da longa missão de paz das Nações Unidas no Haiti (2004-17), deitaram os trilhos para o trem cheio de militares chegar à Esplanada de Bolsonaro.

Todo o emprego das GLOs no governo FHC, por exemplo, que foi o que mais lançou mão do recurso (5,9 ações por ano, em média), passa em branco.

Na cronologia de Viana, tudo começa com a malfadada Operação Arcanjo, que de certa forma trouxe a experiência haitiana para o Complexo do Alemão, em 2010, com os resultados conhecidos.

Ela ainda acerta ao apontar a degradação sugerida do contato das tropas com a criminalidade, até mesmo do ponto de vista operacional, com a desastrosa ação que culminou nas mortes do músico Evaldo Rosa dos Santos e do catador Luciano Macedo em 2019, já em pleno governo Bolsonaro.

Mas há também generalizações sem prova que são lugares-comuns nos grupos que lidam com o assunto e redes sociais à esquerda. Mesmo Viana reconhece que o universo de problemas com os militares é ínfimo, por exemplo, se comparado com o das polícias estaduais.

O livro tem menos sucesso, contudo, ao tentar caracterizar as GLOs e o Haiti como berços do militarismo do governo federal.

Há evidentes pontos em comum: 6 dos 9 comandantes de força brasileiros tem alguma cadeira pública de relevo sob Bolsonaro, e o ministro da Defesa é o general Walter Braga Netto, ex-interventor federal na segurança do Rio em 2018.

A ideia de que os militares gostariam de ampliar seu raio de ação por terem sido empregados em tais ações tem sentido, mas o fato é que a realidade é mais nuançada, até porque Haiti e GLOs foram mais sintomas do que causas.

A ideia que falta desenvolver em “Dano Colateral” é acerca da tibieza do poder político brasileiro ao lidar com os fardados, motivo da desenvoltura da caserna já no enfraquecido governo Temer e da debacle na relação com os governos do PT.

Foi o poder civil que, ao fim, convidou os fardados para a festa ao ignorar a necessidade de debater defesa nacional nos anos pós-ditadura.

O recente livro-depoimento do então comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas, é bastante mais elucidativo acerca dos desígnios da turma —ainda que, natural numa elegia, arrogue para si o caráter de “estar fazendo o correto”.

Viana elenca vários elementos, mas sua análise não os amarra de forma límpida. A prosa, algo truncada, é pontuada por algumas simplificações que não ajudam a iluminar o contexto, como na unidimensionalidade nas citações ao impeachment de Dilma Rousseff (PT).

Isso dito, a obra vai na linha correta ao constatar a tutela presumida dos militares, que encontra eco em episódios ao longo da história da República, com a ditadura de 1964 como seu exemplo mais claro.

Um símbolo disso é o famoso artigo 142 da Constituição de 1988. A autora reconta o vaivém que manteve os militares com papel na tal “lei e ordem”, definido no texto, e lembra como Bolsonaro torce a interpretação do texto sempre que lhe convém.

Como todo livro-reportagem feito a quente, “Dano Colateral” tem a favor e contra si o fato de comentar um processo ainda inconcluso. Seu maior mérito, contudo, reside no que tem de mais factual e objetivo do que na especulação e análise apresentadas.

O que ensina a Venezuela, por Maria Hermínia Tavares

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A presença de militares na política tem custos altos e reversão difícil

Maria Hermínia Tavares Professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.

Folha de São Paulo, 05/08;2021

Mais de uma vez, ao desfechar ataques desvairados às instituições que garantem a democracia no país, Bolsonaro invocou o “meu Exército”, sugerindo que conta com o apoio das Forças Armadas para levar a cabo seus intentos liberticidas.

Até aqui, parece haver antes farolagem do que fundamento nessas falas. Ainda assim, é nítido que desde a ditadura de 1964-1985 os militares brasileiros nunca estiveram tão perto de cruzar a linha que separa seu papel constitucional do engajamento aberto na disputa política.

A história nunca se repete ao pé da letra; e experiências de outros países costumam viajar mal. Ressalvas feitas, há muito que aprender com o artigo do cientista político americano Harold Trinkunas”. As Forças Armadas Bolivarianas da Venezuela: medo e interesse face à mudança política”, recém-publicado pelo Woodrow Wilson Center de Washington.

O estudo trata da politização das instituições militares sob Hugo Chávez e Nicolás Maduro e de sua subordinação aos governos populistas da dupla.

De um lado, isso implicou na doutrinação ideológica nas academias militares, em sistemas de promoção e atribuição de missões que favoreceram o oficialato leal ao chavismo; na reestruturação das Forças com a inclusão formal da Milícia Bolivariana diretamente afeta ao presidente; e no fortalecimento de um vasto sistema de contrainteligência militar que vigia os suspeitos de deslealdade ao regime. De outro lado, vieram as recompensas.

Em especial sob Maduro, militares ocuparam o centro do poder. Comandam ministérios, governam estados e controlam setores econômicos estratégicos, como parte da indústria petrolífera, a mineração de ouro e a distribuição de alimentos. Gerem também o multimilionário comércio de armas com a Rússia e a China. E não é propriamente um segredo em Caracas que oficiais de alta patente têm parte com o tráfico internacional de drogas e o contrabando de mercadorias.

Maduro, ele sim, diz a verdade ao proclamar que o politizado Exército do país é seu. E este, cúmplice do desastre nacional que o populismo chavista promoveu, compartilha com o autocrata a responsabilidade pela destruição de uma democracia que já foi forte o suficiente para vencer a guerrilha revolucionária e ficar ao largo da onda de autoritarismo que sufocou a região nos anos 1960-70.

Acima de tudo, os fuzis são hoje o principal obstáculo para a Venezuela voltar por meios pacíficos à normalidade democrática. Por atraente que possa parecer aos brasileiros desiludidos com o sistema, a presença dos militares na política tem custos altos e reversão difícil.

A Casa do Povo, por Cida Bento.

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Reforma eleitoral expõe os perigos de um Parlamento com pouca diversidade

Cida Bento Diretora-executiva do CEERT (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades), é doutora em psicologia pela USP

Folha de São Paulo, 05/08/2021

O Congresso Nacional é conhecido como “a Casa do Povo”. Quando olhamos o perfil de quem “habita” essa Casa do Povo, vemos que é majoritariamente constituído de homens brancos, empresários, de classe alta, com ensino superior completo, de meia-idade e a maioria deles reeleita; ou seja, “políticos de carreira”.

Já o povo brasileiro é majoritariamente negro (54%), feminino (51%), 42,4% têm menos de 30 anos, e apenas 48,8% de pessoas com 25 anos ou mais finalizaram a educação básica obrigatória (IBGE). E a classe baixa subiu de 38%, em 2010, para os atuais 47% (Instituto Locomotiva).

Dessa forma, parece que o Congresso Nacional não é mesmo a Casa do Povo. Pois é, esse Congresso está propondo uma reforma eleitoral perigosa para a democracia, que caminha rapidamente sem transparência e sem debate social.

Dentre tantas reações da sociedade civil diante dessa violência, um “Manifesto Contra a Reforma Eleitoral em Curso” foi lançado pela Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político.

O manifesto denuncia que a reforma modifica o sistema eleitoral para o modelo mais caro e individualista do mundo: o distritão, sistema considerado por cientistas políticos como antidemocrático e ineficiente.

A reforma desconsidera a desigualdade étnico-racial na disputa eleitoral e desmantela estruturas de ação afirmativa para fortalecimento político e econômico de mulheres candidatas, como a obrigação de preencher o mínimo 30% de candidaturas femininas, com igual percentual de tempo de rádio e TV e de financiamento público.

“No caso de mulheres negras, que são mais subfinanciadas e sub-representadas na política, os impactos serão extremamente nocivos. Teremos ainda menos mulheres negras nos espaços de decisão política do país”, diz a historiadora Giselle dos Anjos, integrante da Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político.

A reforma altera ainda o sistema de eleição, estabelecendo o voto impresso. Diminui punições pelo mau uso de verbas públicas no período eleitoral e anistia os partidos políticos que não cumpriram a distribuição financeira com equidade de raça e as cotas de financiamento de gênero.

Está sendo necessária uma grande luta para impedir os retrocessos e a destruição do que já foi conquistado no sentido de trazer mais diversidade para o Parlamento.

A Coalizão Negra Por Direitos, que congrega mais de 200 organizações, está à frente de um amplo movimento para ocupar o Twiter usando a hashtag #ReformaRacistaNão.

Diversos coletivos de organizações da sociedade civil estão se mobilizando contra o absurdo que caracteriza essa reforma ou golpe eleitoral. A articulação apressada é para que as novas regras tenham validade já nas eleições de 2022.

Sem dúvida é mais um passo na escalada antidemocrática que o Brasil vem vivendo e expõe os perigos de um Parlamento com pouca diversidade como o brasileiro e que quer se manter no poder a qualquer custo. E com muito dinheiro, que, aliás, é dinheiro do povo brasileiro, pois propuseram que seja triplicado o valor do fundo eleitoral.

Eles fizeram um radical pacto narcísico de permanecer no poder ou de só deixar que outros venham, se tiverem o mesmo perfil. E a sociedade civil há muito se movimenta para que o Congresso Nacional se
constitua verdadeiramente na Casa do Povo, ou seja, que focalize o combate às desigualdades e assegure que os perfis dos parlamentares sejam tão diversos quanto é diversa a sociedade brasileira.

Por isso é urgente provocar a sociedade a participar das discussões e interditar a aprovação desse projeto, pressionando o Congresso e enviando mensagens aos parlamentares envolvidos na votação. Sigamos, pois, lutando por um parlamento menos monolítico que colabore na construção de um Brasil mais justo e igualitário

Se os americanos pensassem o impensável, fariam o oposto do que estão fazendo

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Primazia americana é assunto intocável, porque, para os EUA, país sempre estará em primeiro lugar

Tatiana Prazeres Senior fellow na Universidade de Negócios Internacionais e Economia, em Pequim, foi secretária de comércio exterior e conselheira sênior na direção-geral da OMC.

Folha de São Paulo, 02/07/2020

A despeito de a sociedade americana ser bastante aberta, ela ainda tem seus tabus. A primazia americana é um desses assuntos intocáveis. Para os americanos, os EUA estarão para sempre em primeiro lugar.

Questionar isso é antipatriótico, derrotista, argumenta Kishore Mahbubani, em seu recém-lançado livro, “A China Venceu? O Desafio Chinês à Primazia Americana”.

Há uns dias, conversei com o professor e ex-diplomata de Singapura via Zoom. Mahbubani está convencido da necessidade de abrir os olhos dos americanos para o momento —inescapável— em que a China se tornará a primeira economia do mundo.

Claro, ser a primeira economia do mundo não significa ser a maior potência mundial, porque o poder tem outras dimensões. Mas é inegável que a economia importa.

Os americanos estariam cometendo um erro elementar de geopolítica —não estariam trabalhando com o cenário realista, argumenta.

Afirma, aliás, que o maior erro dos EUA em relação à China seria o de ter se lançado numa ampla disputa geopolítica sem antes conceber uma estratégia adequada.

Isso passaria necessariamente por reconhecer a realidade e se preparar para descer do Olimpo ou, ao menos, para dividir o pódio.

Alguns discordam de Mahbubani. Dizem que os EUA têm sim uma estratégia em relação à China, que seria chamado “decoupling”.

Para os seus defensores, o desentranhamento da economia americana em relação à chinesa —com a redução dos vínculos comerciais, tecnológicos, financeiros, acadêmicos etc.— teria o poder de conter a China e assegurar a primazia americana.

O problema não é apenas o grande tiro no pé que isso significa para os EUA, mas também o fato de que, para funcionar, terceiros países precisariam tomar partido dos americanos —e isso está longe de ser garantido, especialmente com Donald Trump no poder.

Conter e isolar a China é tudo menos trivial. Por exemplo, 127 países têm mais comércio com a China do que com os EUA. Se durante a Guerra Fria muitos escolheram um lado com convicção, hoje a maioria prefere ser poupada da rivalidade entre os grandes. Quem puder e tiver juízo, resistirá a tomar partido.

Perguntei a Mahbubani como será o mundo com a China como a maior economia. Depende de como se lida com a China enquanto ela cresce, respondeu. Quanto mais os EUA tentarem empurrá-la para baixo, mais ela emergirá como uma potência raivosa.

O melhor para os EUA, diz, seria construir um entendimento enquanto ela ainda não está no topo, definindo parâmetros de convivência enquanto os americanos ainda estão numa posição melhor.

O ideal seria reformar regras existentes que, afinal, foram desenhadas pelo Ocidente e não pela China —em vez de simplesmente descartar organizações e acordos internacionais.

A destruição promovida por Trump abre espaço para o avanço geopolítico chinês. Como resumiu Mahbubani, cada brecha que os EUA criam para eles hoje é uma brecha que abrem para a China amanhã.

Ironicamente, caso os EUA se permitissem pensar o impensável à respeito da China, chegariam à conclusão de que deveriam fazer o oposto do que estão fazendo.

Estariam se preparando para o futuro ao reformar e fortalecer as regras do jogo. Estariam reforçando vínculos com seus aliados, em vez de maltratá-los. Com isso, criariam balizas e constrangimentos ao poder da China.

Pode-se discordar dos argumentos de Mahbubani, mas ele tem um mérito inquestionável. O de forçar os americanos a encarar a complacência intelectual e questionar a visão inabalável de que os EUA sempre vencem.

Para ele, mais importante que saber se a China ganhou, é forçar as pessoas a pensarem no outro lado da moeda: os EUA podem perder?

A convergência chinesa, por Cecília Machado.

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Liderança em medalhas põe disputa olímpica no patamar da guerra econômica entre China e EUA

Cecília Machado

Folha de São Paulo, 02/08/2021

Hoje, China e Estados Unidos disputam cabeça a cabeça a liderança do quadro de medalhas. Nas Olimpíadas anteriores, em 2016, os EUA levaram a melhor tanto pelo número de ouros (46) quanto pelo número total de medalhas (126). Mas em 1988, nas Olimpíadas de Seul, as primeiras após os boicotes aos Jogos de Moscou (1980) e de Los Angeles (1984), a China ficou em 11º lugar, com apenas cinco ouros. A evolução olímpica chinesa nestes últimos 33 anos impressiona.
Na economia não foi diferente. O êxito econômico da China nas últimas décadas é percebido a olhos nus em múltiplos indicadores, seja nas taxas de crescimento, seja nas reduções das desigualdades, seja na inclusão produtiva da população pobre ou mesmo na relevância do país para o comércio global.

De 1980 a 2019, a taxa média de crescimento da China foi de 9,4%, chegando a alcançar 15% em 1984. Esse crescimento foi distribuído à população e tem se convertido em melhorias de diversos indicadores de bem-estar dos chineses.
O fim da pobreza extrema foi anunciado neste ano: a proporção de pessoas vivendo em extrema pobreza (US$ 2,3 por dia em poder paridade de compra, PPP, de 2011) caiu de 96,2%, em 1978, para 0,6%, em 2019, o que representa a ascensão de 765 milhões de pessoas a condições mínimas de subsistência (Banco Mundial, 2021).

Desde 1985, quando foi estabelecida a primeira linha de pobreza para a China, foram feitas mais duas atualizações, refletindo novos padrões de desenvolvimento do país, moderadamente mais próspero. Pelo critério utilizado por países de renda média —US$ 5,5 por dia em PPP 2011—, a pobreza ainda incide em 18,9% da população chinesa, equivalente ao número que temos para o Brasil (19,8% em 2019).

A redução da pobreza segue como meta, mas corresponde a apenas um dos diversos outros objetivos do ambicioso 14º Plano Quinquenal, recentemente divulgado. O plano estabelece diretrizes para o desempenho da China para os anos de 2021 a 2025 em quatro grandes áreas —redução das desigualdades urbano-rural, crescimento, ambiente e consumo interno— e destaca a importância da inovação, do uso de tecnologia e da renovação da matriz energética como os pilares para o crescimento sustentável de longo prazo.

Desde a crise de 2008, os EUA têm visto seu modelo econômico ser desafiado pela potência chinesa, a ponto de iniciar uma enorme guerra comercial contra a China no governo Trump —o que está sendo mantido pelo governo Biden – com efeitos na balança comercial da China que foram bastante mitigados pelo fato de o país contar com outros parceiros.

Na arena do comércio exterior, a ascensão meteórica da China é recente: em 2000, antes de ingressar na Organização Mundial do Comércio, a participação no país comércio mundial era pequena. Hoje, a China ocupa o primeiro lugar nas exportações globais, com participação de 13% em 2020 (um ponto percentual acima da participação em 2019).
Já entre os principais países nas importações chinesas, o bloco asiático Asean lidera (15%), seguido pela União Europeia (14%) e pelo Japão (8%). A América Latina participa com outros 8% e viu sua importância crescer nas últimas duas décadas (2,4% em 1980). Os EUA participam com apenas 8%. Janet Yellen, secretária do Tesouro americano, resgatou o bom senso da discussão, ao afirmar que as tarifas impostas à China retaliam os próprios consumidores americanos.

A China avançou, mas ainda existem outros hiatos a serem fechados. O PIB per capita da China segue equivalente a 1/6 do americano, apesar de ter aumentado por um fator de 50 nas últimas quatro décadas.
No livro “A China Venceu?”, de Kishore Mahbubani, entrevistado também nesta Folha, há uma interessante análise sobre o desafio chinês à supremacia americana. Vindo de uma perspectiva oriental, traz elementos originais e pouco
óbvios sobre a disputa entre EUA e China.

Se há entre nós, ocidentais, a presunção de virtude da economia americana —já que abraça valores democráticos e de liberdade—, do ponto de vista oriental, a estabilidade política que vem de um partido único comunista traz maiores chances para um planejamento econômico de longo prazo, com metas progressista e líderes pragmáticos, distante do comunismo praticado na Guerra Fria.

Ainda é cedo para saber quem vai levar o ouro, mas as condições para um confronto geopolítico entre as duas potências estão dadas. No que tange o desempenho econômico, a convergência da China é inquestionável.

Desenvolvimento Econômico

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A economia vem passando por grandes transformações nos últimos anos, gerando alterações estruturais e conjunturais em todas as nações, aumentando os desafios e criando oportunidades. A pandemia gerou muito mal-estar na civilização, exigindo novas posturas, novos comportamentos e novos consensos políticos e institucionais, além de liderança, competência e diagnósticos precisos.

Dentre os novos desafios da sociedade, é fundamental que as nações passem a repensar suas estruturas econômicas e produtivas, analisando para onde os países estão caminhando e quais rumos da sociedade para os próximos anos, criando os consensos necessários num momento de instabilidade e desafios crescentes, individuais e coletivos, somados as novidades, ainda desconhecida, no mundo pós-pandemia.

Neste momento, percebemos inúmeros países repensando suas economias, reconvertendo projetos institucionais, priorizando investimentos sociais e construindo consensos centrais para estimular o desenvolvimento econômico. A sociedade brasileira passou por um grande salto produtivo no século XX, saímos de uma economia agrícola, dependente de produtos primários de baixa valor agregado para uma economia marcada por setores industriais de média complexidade e um setor do agronegócio pujante e com forte capacidade produtiva.

Desde os anos 80 a economia brasileira perdeu dinamismo e o sonho do desenvolvimento econômico ficou mais distante, com impactos negativos na sociedade, baixa produtividade e perda de mercados externos. A pandemia pode nos trazer novas perspectivas para a economia brasileira, diante disso, faz-se necessário a construção de consensos internos e crescentes investimentos em capital humano. Os países que conseguiram ultrapassar a renda média garantiram grandes investimentos em setores produtivos estratégicos, centrados num projeto nacional que atraia todos os atores econômicos em prol do incremento da produtividade da economia.

O crescimento é fundamental para a construção do desenvolvimento econômico, mas insuficiente se este crescimento não for dividido para toda a coletividade, para que isso aconteça, é fundamental a construção de um projeto político que perpasse um governo, mas deve ser visto como um projeto de Estado, cujos setores dinâmicos participem ativamente desta empreitada, contribuindo para o tão sonhado desenvolvimento econômico, que inclua a população, preserve a meio ambiente e a melhoria do bem-estar social da coletividade.

O desenvolvimento econômico é um projeto político que envolve todos os setores econômicos, sociais e políticos, investindo fortemente na formação de capital humano, fortalecendo os centros de pesquisas, priorizando gastos nas universidades, fomentando centros de inovação, estimulando um ambiente de cooperação e parceria entre os setores produtivos.

O desenvolvimento econômico pressupõe uma associação entre os setores industriais e produtivos com as universidades e os centros de pesquisa, motivando o ensino da ciência e da tecnologia, angariando trabalhadores altamente capacitados, com salários elevados e impulsionando o mercado consumidor e estimulando o aumento da demanda, dinamizando a economia, o emprego e os investimentos produtivos.

Nesta construção do desenvolvimento econômico, faz-se necessário recursos para financiar os investimentos em infraestrutura física e imaterial, políticas públicas, pesquisa científica e tecnológica e maciços recursos em formação de capital humano. Os recursos devem ser extraídos de uma ampla mudança da estrutura tributária, alterando as bases dos tributos, reduzindo a excessiva desoneração que poucos ganhos trouxeram para a sociedade, tributando as propriedades, o patrimônio, os lucros e os dividendos, e desestimulando o capital financeiro improdutivo em detrimento de consumo e da produção.

O desenvolvimento econômico exige maturidade dos setores políticos e econômicos, além de liderança, planejamento e estratégias definidas, sem projetos econômicos e políticos consistentes, estaremos nos distanciando do desenvolvimento e caminhando, a passos longos, a estagnação e a desintegração social.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 04/08/2021.