Perspectivas

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Estamos chegando o final de mais um ano, o ano de 2020 está acabando, trazendo inúmeras dificuldades, desafios e desequilíbrios. Dentre as grandes deficiências geradas pelo ano, é importante destacar as dores geradas pela pandemia, com destruições generalizadas, mortes, degradações e deixando claro nossas deficiências mais íntimas, desnudando nossas desigualdades, limitações e dificuldades em todos os campos, desde o econômico, o político, o social, o emocional, o psicológico e cultural.

No campo econômico percebemos nossa desigualdade mais íntima, nossa sociedade se caracteriza por inúmeras estruturas sociais, uma pequena parte se caracteriza por uma rápida adaptação, flexível e dinâmica, dotada de máquinas e equipamentos sofisticados características do mundo do conhecimento, aptos pelo trabalho remoto, com home office, protegido e isolados. De outra lado, percebemos uma parcela significativa da sociedade que carece de saneamento básico, sem água encanada, sem empregos, sem internet, sem iluminação decente e sem perspectivas de sobrevivência digna, desta forma, grande parte da sociedade tem dificuldade para fazer isolamento social. Vivemos em um ambiente marcado pelo desenvolvimento da tecnologia, onde o conhecimento se tornou o grande ativo social, neste ambiente percebemos que estamos longe do mundo da informação, gerando graves atrasos do capital humano na nação, salários baixos e produtividade reduzida no trabalho.

Neste momento de pandemia, de incertezas e de instabilidades crescentes, a sociedade precisa construir um novo projeto de desenvolvimento econômico, priorizando os setores reais da economia, a geração de emprego e o incremento da renda agregada, aproveitando o grande contingente de trabalhadores que foram alijados dos setores produtivos, dinamizando a economia nacional, reduzindo as desigualdades regionais, investindo em ciência, pesquisa e tecnologia e garantindo novos investimentos produtivos, aumentando a arrecadação de impostos, dos tributos e ampliando os recursos do Estado, garantindo ampliar os direitos e os deveres da sociedade.

A pandemia pode estimular novas reflexões, o desenvolvimento pode ser incrementado através de um projeto nacional, concatenado entre todos os setores econômicos, financeiros e produtivos, deixando de lado interesses imediatos e individuais, construindo um modelo de desenvolvimento que una os setores industriais, o agronegócio, as universidades públicas e privadas, os centros de pesquisas, os sindicatos, os trabalhadores, os setores do comércio e dos serviços, além de bancos e financeiras. Neste momento, para o desenvolvimento econômico é necessário um projeto que una a sociedade em prol do crescimento econômico que vise a construção da nação, evitando e superando um modelo predatório como utilizado atualmente, atrasado, concentrador de renda, baseado em taxas de juros escorchantes, centrado na tributação do consumo, que garanta benesses a um pequeno grupo de endinheirados em prol da miséria de uma grande parcela da sociedade, reconhecendo que temos potencial para sermos uma economia empreendedora, soberana e autônoma.

Estamos num momento crucial para a sociedade, garantindo novos investimentos do meio ambiente e na diversidade cultural, precisamos tomar as rédeas do crescimento econômico e, com isso, construir o desenvolvimento da nação. Precisamos construir um futuro consciente, sabendo das potencialidades e das dificuldades e dos desafios, melhorando as vantagens comparativas e garantindo novos espaços para a atuação da população, construindo empregos dignos e investimentos produtivos, reduzindo as desigualdades sociais, diminuindo os hiatos existentes na educação, melhorando as oportunidades e garantindo para todos os trabalhadores um verdadeiro discurso da meritocracia.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre e Doutor em Sociologia/Unesp Araraquara, Professor Universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 30/12/2020.

Medos

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O mundo vem passando por grandes transformações, de um lado percebemos alterações profundas nas estruturas econômica e produtiva, aumento da tecnologia, fortalecimento dos setores financeiros, aumento do desemprego, novas exigências nos mercados, incremento dos conflitos culturais e degradação do meio ambiente, de outro, uma pandemia que espalha destruição em todos os continentes, mortes, medos e preocupações generalizadas, cujos impactos são os desequilíbrios emocionais, afetivos, financeiros e psicológicos, diante disso, percebemos a necessidade de reconstruir as bases da sociedade global.

O crescimento tecnológico ganhou espaço em todas as sociedades, as máquinas aumentam a produtividade do trabalho, garantem o crescimento das riquezas, o mercado de consumo passa por mudanças variadas, consolidando os mercados virtuais, as compras geram novos prazeres e satisfações, criando novas necessidades e aquisições, levando aos indivíduos os sabores do consumo desenfreado.

A tecnologia deve ser vista como uma grande conquista para a civilização, os benefícios devem ser socializados para todas as comunidades, enquanto estes frutos do conhecimento ficarem restritos a pequenos grupos da sociedade, os conflitos tendem a crescer de forma acelerada, gerando pulsões de medos e ressentimentos e, num período posterior podem gerar degradações e violências.

Nesta sociedade, os conflitos estão aumentando, os medos estão se mostrando cada mais evidentes, os grupos sociais estão em confrontos, todos buscando seus interesses imediatos, defendendo seus grupos sociais e esquecendo os interesses maiores da sociedade. Neste momento, muitos grupos sociais carecem de condições mínimas de sobrevivência, o desemprego e o subemprego crescem de forma acelerada, criando uma massa crescente de indignidade, consolidando um caldo de desesperança e de revolta. Numa sociedade, como a brasileira, percebemos que mais de cem milhões de pessoas não possuem saneamento básico, ruas sem asfaltos, água encanada e muito menos acesso a internet, uma coletividade que vive no século XXI mas traz, para seu desespero geral, o atraso e a degradação do século XIX, com isso, os medos contemporâneos alimentam as violências e as desesperanças.

Na pandemia, percebemos a importância da ciência, do conhecimento e da pesquisa, neste momento de medos que consumiram mais de 6 milhões de pessoas na sociedade mundial, um dos maiores aprendizados da sociedade contemporânea foi a união dos cientistas e pesquisadores de inúmeras nacionalidades, que conseguiram responder rapidamente com uma vacina em período recorde de tempo, mostrando a todos a relevância da união de esforços em prol da comunidade.

A pandemia está nos trazendo vários ensinamentos valiosos para a comunidade internacional, dentre elas, destacamos a união dos povos, das comunidades científicas e pesquisadores, viabilizando a vacina e combater os males do coronavírus, um desafio global que exigem dedicação e investimentos de todos os governos, superando este modelo centrado na concorrência e na competição, substituindo por novos paradigmas de cooperação e de auxílios, deixando de lado os interesses mesquinhos e imediatos em prol de uma sociedade mais igualitária, mais civilizada, onde todos os cidadãos possam participar dos frutos do progresso pela tecnologia, transformando os medos contemporâneos e as desesperanças em espaços de esperança e de solidariedade.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre e Doutor em Sociologia/Unesp, Professor Universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 23/12/2020.

Fábricas são escolas produtivas, por Paulo Gala.

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21/12/2020 Paulo Gala

Entrevista para a revista da Confederação Nacional das Indústrias (CNI)

1) Como você visualiza a política industrial do Brasil?
Erros de política industrial não significam que a política industrial não funciona. O fato de o Brasil não ter conseguido avançar mais no mercado mundial significa apenas que não executou essas políticas de maneira adequada. Eu destacaria: metas de exportação, metas de sofisticação tecnológica e metas de conquista de mercados mundiais. Tudo isso a Ásia do leste fez com maestria. Taiwan, Singapura, Corei do Sul e hoje China. Foram milagres produzidos por políticas industriais bem feitas. No Brasil não conseguimos avançar tanto quanto eles e jogamos a toalha a partir dos anos 90. Abrir mão de políticas industriais significa abrir mão da possibilidade de se desenvolver.

2) Em que medida o sistema financeiro pode potencializar a atividade industrial no país?
O salto de escala e tecnológico das indústrias de países pobres e de renda média não vai ocorrer sem políticas adequadas que recuperem o papel dos bancos públicos como por exemplo o BNDES. A experiência asiática da segunda metade do século XX demonstra que é incontornável a constituição de um sistema financeiro formado pela interação virtuosa entre grandes bancos comerciais públicos e privados. Bancos de desenvolvimento de grande porte são necessários para desenvolver instrumentos financeiros destinados ao crédito de longo prazo. É bastante reconhecida entre economistas a necessidade da intervenção do Estado em processos que envolvam externalidades positivas e negativas, informação assimétrica, incerteza, risco elevado e concentração do poder econômico. Entre as externalidades positivas estão a construção de infraestrutura e outros bens públicos, como a geração de conhecimento científico e tecnológico, papel que muitas vezes cabe ao investimento público e apoio de bancos públicos.

3) Uma das demandas do setor é o prolongamento dos programas emergenciais de financiamento e da política de expansão de crédito. Como você visualiza essa demanda?
A implosão da economia brasileira em 2014 e 2015 arrastou nossa indústria para uma monumental queda até hoje não recuperada. O desaparecimento do crédito e da demanda interna tiveram efeitos diretos e violentos na produção doméstica de carros, motos, caminhões, moveis, eletrodomésticos, bens de consumo em geral, matérias da construção civil, aço, entre outros. Nossa produção industrial colapsou com queda de 20% entre 2014 e 2016; e lá ficou até hoje. Nossa retomada econômica desde então foi muito tênue. O pouco que crescemos foi baseado em serviços de baixa qualidade; novos empregos com salários menores e mais precários foram gerados. O pouco nível de proteção que ainda existe para nossa indústria nacional também não resolveu o problema. O auxílio de emergência somado a uma taxa de câmbio mais desvalorizada e juros SELIC na mínima trouxeram novas perspectivas. A transferência de renda via auxílio de emergência representará algo como 6% do PIB, com transbordamento de demanda para indústria. A SELIC em mínima histórica e juros reais negativos trouxeram importante impulso ao setor de construção civil que aumentou a demanda por bens industriais. A taxa de câmbio acima de R$5 aumento muito a competividade de nossa produção
industrial aqui e lá fora. Tudo isso deveria ser mantido em 2021, claro que com níveis menores do auxílio emergencial. Seriam ótimas e novas notícias para o setor. Ainda num contexto de pandemia o BNDES deveria ser usado para assumir riscos que bancos privados não aceitam. Isso ocorreu em parte com o fundo público criado pelo governo para socorrer pequenas e médias empresas, o PRONAMPE. Essas medidas deveriam ser mantidas a meu ver.

4) Você costuma dizer que “a indústria é a escola produtiva da economia”. O que isso significa exatamente?
O conhecimento formal codificado (alfabetização, conhecimento matemático e científico) é importante para adquirir habilidades específicas necessárias à prática profissional. Mas é na prática profissional que o conhecimento do tipo não codificado, que se manifesta no “know-how” embutido em rotinas inconscientes e muitas vezes complexas, é compreendido e internalizado. Isso ocorre em geral no setor manufatureiro e de serviços complexos atrelados. A indústria converte o capital humano aprendido nas escolas em produtos e serviços de alto valor agregado. Estudos da OCDE mostram que de todos os setores de uma economia as manufaturas são sempre os setores que mais gastam em pesquisa e desenvolvimento como proporção de suas vendas e valor adicionado.

5) E como o setor industrial contribui para a formação desse conhecimento?
Embora muitas empresas de países em desenvolvimento possam adquirir máquinas para atividades básicas de produção e contem com razoável disponibilidade de trabalhadores qualificados, falta-lhes a capacidade de produzir novas tecnologias e novas máquinas. Tecnologias essas que demandam um complexo processo de aprendizagem produtiva em empresas que tem marcas e processos proprietários, patentes e know how diferenciado. Esse tipo de dinâmica de inovação e aprendizagem se encontra na maioria das vezes no setor industrial. Países hoje emergentes apenas usam as máquinas, países ricos produzem as máquinas no coração de seus sistemas industriais.

6) Um dos problemas do país é a baixa escolaridade da população. Em que medida reverter esse cenário vai contribuir para o crescimento da produtividade industrial?
É ilusório acreditar que a mera escolarização da população será capaz de elevar a produtividade aos níveis requeridos pela competitividade nos mercados internacionais. A transformação estrutural em tempos de acelerada evolução tecnológica requer uma estratégia de aprendizagem tecnológica eficaz. Para tanto, é preciso identificar os hiatos de conhecimento relevantes em diversas industriais e as políticas que podem ser implementadas de maneira correta para lidar com essas deficiências. Os mercados mundiais para produtos nobres do ponto de vista tecnológicos são naturalmente concentrados. A inovação e o domínio tecnológico criam barreiras à entrada nos mercados, o que por sua vez cria poder de monopólio para as empresas. Existe enorme assimetria no comercio global que não poderá ser apenas compensada com investimento em educação. Políticas públicas precisam ser desenhadas em países emergentes para que se possa nivelar esse campo de jogo inclinado em favor de países hoje desenvolvidos.

7) Qual a relevância da indústria para o desenvolvimento econômico de uma nação?
Desenvolvimento econômico é acúmulo de capital humano, de conhecimento de uma sociedade que se traduz na capacidade de produzir bens e serviços complexos que geram altos lucros e salários. Para isso não basta que um país invista em educação. Precisa cultivar a indústria. O setor industrial é o único capaz de converter o acúmulo de conhecimento em produtos e serviços que geram a riqueza das nações. O processo de desenvolvimento econômico pode ser entendido como uma industrialização rumo a fronteira tecnológica mundial. Os países hoje ricos mantem a produção manufatureira de altíssimo conteúdo tecnológico em seu território junto com serviços empresariais complexos associados a essa produção. Transferem para países pobres as fábricas poluidoras e de baixo valor adicionado. Quando um país enriquece a indústria perde participação absoluta no PIB mas continua enorme em termos absolutos. Países hoje ricos tem a maior produção industrial do mundo tanto em termos absolutos quanto per capita. Não existe desenvolvimento econômico sem um setor industrial pujante.

Home office já tinha vantagens até no século 18

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Mesmo com poucos dados da época, é possível perceber que existem paralelos surpreendentes com os dias de hoje
The Economist, O Estado de S. Paulo / 20 de dezembro de 2020

Sally Brown, que nasceu em Vermont no início dos anos 1800, tinha uma rotina típica para uma trabalhadora da época.

Como mostra seu diário, um dia ela está terminando de fazer as meias; no outro, está ordenhando a vaca; no terceiro, tecendo lã. Todos os seus trabalhos eram feitos em casa.

A mudança dos escritórios para as mesas de cozinha das casas dos trabalhadores de colarinho branco em 2020 parece não ter precedentes e só foi possível com o Slack e o Zoom. Mas não é nada novo. Na verdade, a história do trabalho de casa sugere alguns paralelos surpreendentes com os dias de hoje.

O surgimento do capitalismo na Grã-Bretanha e em outros lugares de 1600 a meados do século 19 não ocorreu fundamentalmente nas fábricas, mas, sim, nas casas das pessoas. Em suas cozinhas ou quartos os trabalhadores faziam de tudo, de vestidos a sapatos e caixas de fósforos.

Quando Adam Smith escreveu A Riqueza das Nações em 1776 era perfeitamente comum trabalhar em casa. Smith descreveu a famosa operação da divisão do trabalho na fabricação de alfinetes, não em algum moinho escuro e infernal. Ele falou sobre uma “pequena manufatura” de umas dez pessoas – que poderia muito bem estar dentro ou anexada à casa de alguém.

Não é fácil estabelecer números exatos de quantas pessoas trabalharam em casa durante os diferentes períodos históricos. Até mesmo na Grã-Bretanha, onde os dados econômicos são mais extensos que em qualquer outro país, existem poucos dados confiáveis sobre a força de trabalho até meados do século 19. Mas outras fontes deixaram algumas pistas. Uma delas diz respeito ao significado da palavra house (casa, em inglês).

Hoje, o termo conota domesticidade. Mas, até o século 19, tinha uma definição muito mais ampla, com o sufixo – house abrangendo também a produção econômica. Em Uma Canção de Natal”, Scrooge trabalha numa counting-house, ou seja, uma “casa de contabilidade”. A arquitetura oferece outras dicas. Na Grã-Bretanha, muitas casas do século 18 ainda têm as janelas do andar superior excepcionalmente grandes, porque os tecelões que trabalhavam nesses espaços precisavam do máximo de luz possível.

Por volta de 1900, administradores franceses tomaram a iniciativa de perguntar às pessoas sobre seu local de trabalho, não apenas sobre o que faziam. Eles descobriram que um terço da força de trabalho industrial da França trabalhava em casa. Pesquisas dinamarquesas da mesma época revelaram que um décimo da mão de obra total o fazia em casa, em tempo integral.

Esses esforços de pesquisa ocorreram no auge do sistema de produção fabril; nas décadas anteriores, a parcela de trabalho realizado em casa deve ter sido muito maior. De acordo com uma estimativa feita para os Estados Unidos, a partir de dados oficiais, mais de 40% da mão de obra total trabalhava em casa no início do século 19. Somente em 1914 a maioria da força de trabalho passou a trabalhar em fábricas ou escritórios.

O surgimento dessa mão de obra industrial trabalhando de casa teve duas causas principais. O crescimento do comércio global e o aumento da renda per capita a partir de 1600 aumentaram a demanda por produtos manufaturados, como lãs e relógios. Mas a nova tecnologia emergente era mais adequada para o trabalho em pequena escala do que para as fábricas de grande escala (o tear jenny, a máquina que disparou a revolução industrial, só foi inventada na década de 1760). As casas eram o lugar óbvio para se estar.

O que surgiu foi chamado de “sistema putting-out”, ou sistema de produção domiciliar. Os trabalhadores retiravam matérias-primas e, às vezes, equipamentos de um depósito central. Eles voltavam para casa e produziam as mercadorias por alguns dias, antes de devolver os artigos prontos e receber o pagamento. Os trabalhadores eram contratados independentes: recebiam por peça, não por hora, e tinham pouca ou nenhuma garantia de trabalho de uma semana a outra.

Os relatos de como era trabalhar em casa nos séculos 18 e 19 são poucos e esparsos. Boa parte da força de trabalho do sistema putting-out era constituída por mulheres, que tinham menos chance de escrever autobiografias (o predomínio de mulheres no sistema putting-out também explica por que gerações de historiadores não lhe deram muita atenção).

Apesar disso, algumas características emergem dos arquivos. A jornada média de trabalho era mais longa. Ao contrário dos dias de hoje, quando a maioria das pessoas tem emprego, as pessoas saltavam de um trabalho a outro, dependendo de onde podiam ganhar dinheiro, como Sally Brown.

Com os dedos cansados e feridos

Alguns historiadores da economia sugerem que os trabalhadores eram impiedosamente explorados sob o sistema putting-out. Aqueles que possuíam as máquinas e matérias-primas gozavam de enorme poder sobre seus empregados. Com os trabalhadores espalhados por todo um condado, era difícil que eles se unissem contra patrões exploradores para exigir melhores salários – quanto mais formar sindicatos.

Os chefes “podiam facilmente se unir contra o fiador, que enfrentava uma oferta de trabalho do tipo pegar-ou-largar”, argumentam Jane Humphries e Ben Schneider, da Universidade de Oxford, em um artigo de 2019. Alguns trabalhadores realmente enfrentaram dificuldades. O poema de Thomas Hood “The Song of the Shirt” evoca uma trabalhadora que labuta na pobreza.

Como resultado, alguns historiadores aplaudem o desenvolvimento do sistema fabril a partir do final do século 18. Os trabalhadores se mudaram de um lugar onde a vida doméstica se misturava livremente à produção econômica para um lugar exclusivamente dedicado à busca da eficiência.

Não é de surpreender que a produtividade do trabalho fosse mais alta na fábrica, nem que o sistema fabril aos poucos tenha superado e substituído o sistema putting-out. Amontoados na fábrica, os trabalhadores podiam se juntar para pedir salários mais altos; e os sindicatos começaram a crescer a partir da década de 1850. Segundo dados ingleses, os trabalhadores fabris recebiam de 10 a 20% mais do que os trabalhadores que trabalhavam em casa.

Mas a história não para por aí. Alguns trabalhadores que trabalhavam em casa resistiram à mudança para o sistema fabril – sobretudo se unindo aos Luditas, uma sociedade de trabalhadores têxteis ingleses do século 19 que destruíam máquinas, pois sentiam que elas estavam tomando seu trabalho. Outra explicação é que os proprietários das fábricas, pelo menos no curto prazo, tiveram pouca opção a não ser oferecer salários mais altos para atrair os trabalhadores de suas casas. Isto sugere que trabalhar em casa tinha suas vantagens.

Uma dessas vantagens era econômica. Os trabalhadores que trabalhavam em casa talvez recebessem menos que os trabalhadores fabris, mas podiam ganhar renda por outros meios. Os trabalhadores de casa da indústria de lã recebiam uma determinada quantidade de matéria-prima e precisavam devolver o mesmo peso do material transformado em meias. Mas, ao expor a lã ao vapor, ela pesava mais, permitindo que os trabalhadores ficassem com uma parte da matéria-prima.

Esta não era a única vantagem. Trabalhadores que trabalhavam em casa nas áreas rurais ou semirrurais podiam obter lenha e alimentos e, assim, aumentar suas rendas escassas. Em 1813, um observador notou, com desdém, que as mulheres em Surrey, condado próximo a Londres, ganhavam 3 xelins por semana lavrando brejos para fazer vassouras – “produções miseráveis e empregos sem valor”, em sua opinião. Mas 3 xelins por semana não estava muito longe da média de ganhos femininos na época.

Os trabalhadores que trabalhavam em casa também tinham mais controle sobre seu tempo. Contanto que o trabalho fosse realizado de acordo com o padrão exigido e dentro do prazo, eles não eram obrigados a fazê-lo de determinada maneira. Isto contrastava fortemente com a fábrica, onde cada aspecto da vida era planejado com antecedência e os trabalhadores eram monitorados de perto.

E os trabalhadores de casa podiam decidir a combinação exata entre trabalho e lazer – em contraste com os trabalhadores fabris, que ou trabalhavam as jornadas de 12 ou 14 horas estipuladas pelo proprietário da fábrica, ou não tinham trabalho nenhum. A jornada de trabalho média no século 18 era mais curta do que viria a ser no século 19. Depois de beber um tanto na noite de domingo, os trabalhadores domésticos muitas vezes tiravam o dia de folga antes de voltarem “relutantemente ao trabalho na terça-feira, aquecerem-se para a labuta na quarta-feira e trabalharem furiosamente na quinta e na sexta-feira”, como escreveu David Landes, historiador da economia da Universidade de Harvard. As pessoas também dormiam mais.

Essa maior autonomia era especialmente importante para as mães. Num mundo em que os homens pouco faziam no trabalho familiar, as mulheres podiam combinar o cuidado dos filhos com a contribuição para a renda da família. Não era nada fácil. Às vezes, as mulheres davam a seus bebês o Godfrey’s Cordial, uma mistura de xarope de açúcar e láudano, para deixá-los desacordados por um tempo. Mas trabalhar de casa possibilitava conciliar o trabalho remunerado com o trabalho familiar de uma forma que o sistema fabril não permitia. Com a expansão das fábricas, a participação feminina na força de trabalho caiu.

Em 1920, o sociólogo alemão Max Weber argumentou que a separação do trabalhador de sua casa teve consequências de “alcance extraordinário”. A fábrica era mais eficiente que o sistema doméstico que a precedeu – mas também era um espaço em que os trabalhadores tinham menos controle sobre suas vidas e onde se divertiam muito menos. Dependendo de quão permanente seja, a mudança de volta para casa induzida pela pandemia de hoje pode ter efeitos de longo alcance semelhantes. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

O lucro das grandes S.A. e o interesse público, por Celso Ming.

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Cada vez mais grandes corporações maximizam seus lucros operando contra o interesse público e contra o interesse do consumidor

Estado de São Paulo, 20/12/2020

Os governos dos países mais avançados economicamente estão assustados com o crescimento do poder econômico e político das big techs.

Elas não apenas produzem lucros impressionantes, como, também, controlam praticamente metade da população mundial.

Sabem tudo sobre os hábitos de cada um, o que veste, o que come, o que faz nas horas de trabalho ou de lazer, qual orientação política segue e, obviamente, o que pretende comprar. E como esse controle vale muito dinheiro, somam mais riquezas às muitas que já possuem.

Além disso, manobram para acabar com a concorrência, desestimulam o desenvolvimento de outras empresas que rodeiam seu terreiro, pagam o mínimo de impostos onde atuam e contratam os melhores escritórios de advocacia para enfrentar qualquer pendenga judicial…

Há duas semanas, o mais prestigiado colunista econômico do mundo, o inglês Martin Wolf, do Financial Times, escreveu artigo em que demonstra que um dos maiores economistas do século 20, o norte-americano Milton Friedman, da Universidade de Chicago, estava totalmente equivocado quando em publicação de 1970 escreveu que “a responsabilidade social da empresa consiste em aumentar seus lucros”.

O ponto de vista de Friedman é o de que os bons lucros são as melhores indicações de que uma empresa atende ao interesse público. Se vende mais e lucra mais é porque responde adequadamente às necessidades do consumidor. Se deixasse de suprir o consumidor, seus produtos ou serviços encalhariam, a empresa deixaria de faturar e acabaria por ser alijada do mercado. Ela só tem de respeitar os reguladores e os contratos e seguir apresentando resultados para seus acionistas.

Martin Wolf aponta para outra direção. E, para isso, se apoia num livro recente publicado por Stigler Center (Milton Friedman, 50 years later), no qual fica demonstrado que as grandes empresas aumentam, sim, cada vez mais seus lucros, mas operam contra o interesse público e contra o interesse do consumidor.

Apenas em reforço ao que ficou dito acima, elas destroem o ambiente competitivo; ganham enormes economias de escala e, nessas condições, impõem seus preços; têm acesso às fontes mais baratas de capital; fogem o quanto podem do recolhimento de tributos e das regulações, na medida em que transferem suas sedes para paraísos fiscais, contratam os melhores especialistas em administração tributária e impõem cláusulas draconianas nos seus contratos.

Ainda passaram a ter importante controle sobre as regras do jogo, ao passo em que lobbies poderosos trabalham para moldar as leis e regulamentações a seu favor. E, porque contribuem copiosamente para financiamentos de campanha ou conseguem corromper funcionários públicos, passam a ter imenso poder político.

Se estivesse vivo, muito provavelmente Milton Friedman acabaria por rever sua tese que tanto impacto teve nos empresários. Mas dificilmente apresentaria recomendações de fácil implantação para mudar as regras desse jogo desigual, que eleva as grandes corporações para níveis que pairam acima do bem e do mal.

Na teoria, a proposta para começar a virar esse jogo talvez não esteja tão distante. Trata-se de levar os Estados a exercer o controle sobre essas fontes de poder que tendem a sabotar a própria capacidade de governar.

O problema é que nenhum governo sozinho seria capaz de impor suas condições. Antes mesmo da crise de 2008, as grandes corporações financeiras fizeram o diabo com as aplicações dos seus clientes, sem que nenhum organismo regulador interviesse nas pirâmides financeiras que empobreceram as classes médias. Até agora, nenhum país conseguiu cobrar impostos sobre as operações das gigantes de tecnologia.

Há anos, o G-20 tenta um acordo mínimo sobre a tributação desses capitais colossais, mas não consegue avançar. Os países são, por exemplo, contra a existência e a atuação dos paraísos fiscais dos outros países, mas não contra as de seus próprios. Os Estados Unidos não aceitam a taxação de suas big techs, pois entendem que invadiria seu próprio espaço tributário.

Ou seja, enquanto não houver amplo acordo entre governos, parece improvável que essas S.A., as gigantescas corporações e outras mais, possam ser controladas pelo poder público.

CELSO MING É COMENTARISTA DE ECONOMIA

Educação: a aposta radical do oficinar, por Antonio Lafuente

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Outras Palavras, 11/12/2020.

Contra a alienação do ensino taylorista, surgem dinâmicas que buscam valorizar múltiplos saberes, desierarquizá-los e quebrar fronteiras entre eles. Mas há riscos: superficialidade, performismo e menosprezo pela reflexão e pela crítica

Taylorizar um projeto supõe separá-lo em tantas partes quanto possível e, em seguida, designar a elas uma posição em uma cadeia de eventos sucessivos e, paralelamente, em outra cadeia de valor. Assim, cada fragmento tem sua hierarquia, seu responsável e seu momento em uma cadeia de produção e reprodução. Taylorizar é colocar cada um em seu lugar e criar um lugar para cada um. A finalidade de tudo é melhorar a eficiência do sistema e aproveitar melhor os tempos. Não importam as habilidades dos integrantes da cadeia porque, ao serem separadas as funções, basta que seja cumprida aquela que lhe foi designada. Nada é híbrido (mistura de culturas), aleatório (deixado à improvisação) ou insuficiente (aberto à adaptação). Tudo deve se encaixar em uma cadeia de causas-efeitos que funcione sem conflitos, sem ajustes, sem equívocos. Tudo deve ficar no nível de máxima operacionalidade.

A taylorização cria especialistas programados, funções fixas, margens vigiadas, concepções próprias, práticas submissas e culturas fechadas. Em oposição à taylorização estão as iniciativas hacker, os arranjos do bricoleur, os protótipos abertos, os coletivos amadores, os hábitos populares e todas essas formas de codificar o conhecimento dividido que implicam em truques, artimanhas e improvisações. Os espaços DIY [do it yourself, ou “faça você mesmo”], os movimentos táticos, os projetos makers ou os grupos de amantes das plantas, a cozinha e o patchwork, todos em seu conjunto, encarnam e mobilizam uma cultura que quer ser diferente. Uma cultura que é contra-hegemônica e que quer ser chamada de radical.

Contra-hegemônica e radical, mas não necessariamente esquerdista. Capaz de visualizar outro mundo possível, mas crítica com a ideia de que a divisão nas classes possa explicar todos os conflitos que enfrentamos. Radical porque aponta para todas as direções e contra todas as dicotomias que criam falsos e desnecessários lugares de passagem entre fronteiras imaginárias. Radical porque os rompimentos entre antigo e moderno, entre funcional e obsoleto, entre velho e jovem ou entre passado e futuro são tão artificiais quanto interessados no serviço de um mundo que vê empecilhos em tudo o que não pode instrumentalizar sem descanso. E junto com as formas mencionadas de territorializar o tempo, também há outras maneiras de habitar a urbe que levam a negar a pertinência dessas dicotomias que querem uma tensão extrema entre o privado e público, entre a tecnologia e o artesanato, entre o amador e o profissional ou entre a produção e a reprodução. Combater esses encerramentos da inteligência e da vida é apostar no radical, sem a necessidade de ser esquerdista, sem necessidade de colocar todos os ovos na mesma cesta ou, em outras palavras, sendo um pouco mais pós-moderno e um pouco menos universal.

Temos que distinguir entre taylorização e granularização. Fragmentar os projetos em partes é atribuir ao seu desenvolvimento etapas intermediárias a serem alcançadas. Há muita sabedoria em construir os projetos para que uma sequência de pequenas metas intermediárias estimule sua continuidade, aproveitando assim essa condição evolutiva do cérebro que premia essas simples vitórias com liberações de endorfina. A fragmentação então é uma estratégia que coloca os atores em primeiro plano, tanto porque é uma forma de fazer seu trabalho de maneira mais agradável e produtiva, como também porque é uma garantia de hospitalidade a quem possa se interessar pelo que fazemos. A descomposição em fragmentos dos projetos favorece a incorporação de interessados, tanto os que têm muito tempo, quanto os que apenas podem desviar algum momento esporádico e intermitente. Os projetos granulares criam espaços comuns, os taylorizados destroem a comunidade. A taylorização é um gesto vertical, autoritário, arrogante e fechado: se antepõe ao rendimento, nega a participação, ignora as “outras“ habilidades do trabalhador e é, em consequência, duplamente alienante, pois separa o trabalhador do fruto de seu trabalho, além de separá-lo também de suas habilidades cognitivas.

A taylorização do trabalho favorece sua mercantilização e nos transforma em dispensáveis, contingentes e dóceis. É a estrada que conduz à precarização. É a estrutura que confunde as organizações com seu organograma e que faz do trabalhador um escravo da máquina. Taylorizar a cultura é transformá-la em informação para que logo o mercado a transforme em um recurso. E aqui cabe, tomara que não aconteça tão logo, perguntar quem ganha e quem perde cada vez que tais dispositivos se mobilizam. Se você considerar o lado mau da equação, nunca encontrará respostas suficientemente satisfatórias. Se considerar o outro, não deveria descansar em paz. Por isso precisamos de mais conceitos para incluir no repertório de instrumentos com os quais podemos entender e mudar o mundo. Temos que aprender a trabalhar no modo oficina.

Oficinar a cultura ou a educação implica em suspeitar de todas as tentativas de descompor o aprendizado em seções, níveis, objetivos, provas e qualificações. Também supõe discutir a divisão por disciplinas, áreas, matérias ou conhecimentos. E, desde cedo, desrespeitar essas fronteiras que querem separar o formal do informal, ou o acadêmico do urbano, o objetivo do político, o tecnológico do artesanal e o cultural do científico. Nenhum estudo confiável que tenha se aproximado o suficiente dessas divisões deixou de nos explicar as muitas formas de atravessá-las, especialmente pelas pessoas que são seus vizinhos e que as suportam. Oficinar a educação implica então em apostar em outros modos de fazer com que seja diminuída a distância entre o que se ensina e o que se aprende, entre o que chamamos de saber e o que entendemos por fazer, entre ser original e ser um bom DJ, entre produzir e compartilhar, entre argumentar e visualizar. A oficina parece o instrumento adequado para a implementação do design thinking ou é o caminho necessário das palavras aos atos, o que é o mesmo que dizer que se configura como um excelente recurso para promover uma cultura socialmente colaborativa, juridicamente aberta, politicamente radical e epistemicamente plural. Sim, oficinar a educação é uma forma de “hackeá-la”.

Temos confiado tanto em seminários, simpósios ou congressos que nos surpreende sua ampla ascendência e seu rápido envelhecimento. É inevitável que acabem sendo a expressão genuína de uma cultura elitista e entediante. A oficina, o festival e a unconference continuam crescendo como formas mais abertas e praticáveis de troca de experiências e conhecimentos. Não se trata de mudar as palavras, mas as culturas. Ninguém mais quer escutar brilhantes ladainhas. Não se trata de se misturar com os mais inteligentes, mas de inaugurar outros processos. Não tem mais mérito quem sabe mais, mas quem mais (se) oferece. Não se trata de esclarecer, desvendar ou revelar nada, mas de escutarmos, dividirmos e cuidarmos. O mérito não é de quem assina primeiro, mas de quem cuida melhor. E cuidar é fazer as coisas juntos. A oficina é o novo espaço que precisamos? Será a oficina o lugar da crítica?

A cultura deve ser crítica. A cultura deve resistir a qualquer precipitação e estar atenta às muitas tentativas de simplificação. Ser crítico implica não se resignar aos modelos reducionistas. Ser culto não é saber fazer as coisas. Não basta dispor de um livro de receitas a partir do qual resolver (nossos) problemas. A cultura não deve ser só funcional. Melhor que o seja, mas não é suficiente. Para ser culto não basta mapear os problemas, os territórios ou os conflitos de forma verossímil, contrastada e normalizada. Ser culto não é o mesmo que ser científico. Uma cultura é crítica quando sabe medir as consequências das coisas. Uma pessoa culta sabe ver a face oculta da Lua. Não se contenta com as realizações, também quer avaliar os danos colaterais. Uma pessoa culta sabe que é impossível iluminar um objeto sem criar uma sombra. Uma pessoa crítica sabe que na sombra se acumula muita dor, muita exclusão e muita mentira criadas com o mesmo gesto que buscava a felicidade, a democracia e a justiça. Não há uma sem a outra e, portanto, não há cultura sem contracultura.

A oficina tem seus monstros: o imperativo do oficinismo e o mal da oficinite. Há pouco tempo, senti essa consequência que impõe um só modo de compartilhar conhecimento: o oficinismo. O oficinismo tem fácil explicação. Consiste em admitir que na sala de aula se vai desenhar, discutir, compartilhar ou trocar receitas. Tudo o que não cabe em uma receita é especulativo, discursivo, unidirecional e antigo. Temos que falar de coisas práticas, rápidas, replicáveis e divertidas. Sem uma apresentação na tela, um pacote de post-its coloridos, um momento de trabalho em círculo e algum contraste dramatizado de critérios, os conteúdos ficarão obsoletos, suas aulas serão interrompidas e os professores perderão o direito à cidade. Educar é ensinar, mas aprender junto. E aprender poderia se transformar em acumular habilidades: cultivar plantas, tocar piano, trocar conteúdos, recodificar algoritmos, narrar histórias e percorrer o mundo. Bonito sonho, e necessário.

Recapitulemos um instante. No modo oficina, o professor já não se imagina como docente, mas como um facilitador, mediador, treinador, acompanhante… Um coach, dizem as escolas de negócios. Para realizar um seminário, é preciso conhecer muito sobre o tema, mas para abrir uma oficina, é preciso ter outras habilidades, como a de ser versátil, espirituoso e sociável, assim como não exagerar no rigor, não manifestar erudição, não se envolver em virtuosismos dialéticos ou não exigir leituras exageradas. Alguém que trabalha nas oficinas, o oficinista opera como uma espécie de cola social e é o artista da sociabilidade. Conforme a maneira como o vemos, dependendo de onde o consideramos, o oficinista poderia ser um ator imprescindível, sempre atento ao cuidado dos afetos e efeitos que se mobilizam no espaço da oficina. Se o público já é social entertainment, a oficina poderia se transformar em terapia social. Na oficina, fazemos coisas, mas sobretudo as fazemos juntos e isso parece acalmar a ansiedade de muitos. Me parece que não é suficiente e que falta alguma coisa. Falta alguma coisa?

No modelo oficina, se lê pouco e com pressa. Se discute menos do que se fala. O objetivo não é problematizar nossos conceitos, nossas práticas, nossos códigos ou nossas tecnologias. O objetivo é adequá-los rapidamente e transformá-los em um tutorial. Sempre há muita documentação. Tudo deve ser registrado e postado na rede. O esforço documental é admirável e ensina o caminho a uma cultura mais aberta e participativa. Sempre há uma infinidade de fotos, vídeos, desenhos, mapas mentais e outros trabalhos manuais. Em uma oficina, sempre há tempo para criar, processar e pós-produzir resultados. Todos fazem tudo. Não há divisão especializada do trabalho. Há um preço a ser pago por tudo isso, pois o modo oficina consome muito tempo e, consequentemente, os processos que ele inicia devem ser concentrados e curtos. Enfim, não há tempo para tentativas, o incerto ou o imperfeito.

Em sua forma mais paródica, as oficinas são um espaço de estagnação, onde se forma gente obediente e conformista: exploradores de salão, não de campo; cozinheiros de domingo, não diários; redatores de críticas, não leitores. Engrandecer uma receita supõe implementar práticas móveis entre diferentes domínios do saber, pois implica em contrastar experiências, estabelecer termos ou trabalhar colaborativamente. Entretanto, destacar-se exige um compromisso de maiores riscos como, por exemplo, aceitar que a verdade certamente estará bastante dividida e que todos, incluindo os que creem ter razão, devem renunciar a sua imposição. Não se trata de convencer, mas de conviver: fazer o possível para a vida em comum. O gesto crítico implica escutar pontos de vista muito diferentes e, fugindo do consenso que sempre foi a forma na qual as maiorias se impuseram frente às minorias, construir narrativas que não sejam alérgicas ao frágil, ao contraditório, ao dividido e, enfim, ao plural. Ser crítico é criar mecanismos que evitem a produção de mais excluídos, mais minorias, mais periferias, mais invisíveis… Os muitos arredores com os quais convivemos.

Se a taylorização nos fez eficientes e alienados, a oficinização poderia nos fazer funcionais e estúpidos. E a essa nova doença poderíamos chamar de oficinite. Sofrem dessa doença as pessoas que já não confiam nas tradições dialógicas e que fogem das tensões, dos interstícios e das sombras.

ANTONIO LAFUENTE
Físico, pesquisador do Centro de Ciências Humanas e Sociais do Conselho Superior de Investigações Científicas (CSIC) da Espanha, na área de estudos da ciência. Seu interesse pela relação entre tecnologia, patrimônio e bens comuns desembocou nos laboratórios cidadãos, na inovação social e na cultura do prototipado.

O fundamentalismo de mercado, por Robert Reich

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Para reverter a desigualdade, precisamos desconstruir o mito do “livre mercado”
Como pôde um punhado considerável de bilionários – cujas vastas fortunas se multiplicaram mesmo durante a pandemia – convencer a vasta maioria do público de que sua riqueza não deve ser taxada para sustentar o bem comum?
Eles empregaram um dos mais antigos métodos usados pelos mais ricos para manter a riqueza e o poder – um sistema de crenças em que a riqueza e o poder nas mãos de poucos aparecem como natural e inevitável.

Séculos atrás, ele era o dito “direito divino dos reis”. O rei James I da Inglaterra e o rei Luís XIV da França, dentre outros monarcas, asseguravam que os reis recebiam sua autoridade de Deus e, portanto, não deviam prestar contas a seus súditos terrenos. Essa doutrina viu seu fim com a Revolução Gloriosa do século XVII e com as Revoluções Americana e Francesa do século XVIII.

Seu equivalente moderno pode ser chamado de “fundamentalismo de mercado”, uma crença que tem sido promovida pelos super ricos de hoje com o mesmo entusiasmo que a velha aristocracia tinha pelo seu direito divino. De acordo com ela, o que você recebe é simplesmente uma medida do que você vale em dinheiro.

Se você acumula um bilhão de dólares, certamente o mereceu, pois tal quantia foi um prêmio recebido do mercado. Se você mal sobrevive, a culpa é toda sua. Se milhões de pessoas estão desempregadas ou se seus salários estão encolhendo, ou elas têm que ter dois ou três empregos e não possuem a menor ideia do que receberão no mês seguinte ou, até mesmo, na próxima semana, é uma pena, mas este é o resultado das forças do mercado.

Essa visão predominante é absolutamente falsa. Um “livre mercado” não pode existir sem um governo. Um mercado – qualquer mercado – precisa de um governo para criar e garantir as regras do jogo. Na maioria das democracias, tais regras emanam das legislaturas, das agências e cortes administrativas. O governo não “interfere” no “livre mercado”. Ele cria e mantém o mercado.

As regras do mercado não são neutras nem universais. Elas parcialmente refletem as normas e os valores da sociedade. Elas também refletem quem, na sociedade, tem o maior poder de criar ou influenciar as regras tácitas do mercado.

O debate interminável sobre se o “livre mercado” é melhor do que o “governo” torna impossível o exame de quem exerce tal poder, como eles se beneficiam disso e se tais regras devem ser alteradas para que mais pessoas se beneficiem delas. O mito do fundamentalismo de mercado é, portanto, extremamente útil àqueles que não querem que tal exame seja realizado.

Não é nenhum acidente que aqueles com influência desproporcional sobre as regras do mercado – que são os maiores beneficiários da criação e adaptação destas regras – também são aqueles que apoiam de forma mais veemente o “livre mercado”, e são os mais fervorosos defensores da superioridade relativa do mercado sobre o governo.

O debate mercado vs. governo serve apenas para distrair o público da realidade subterrânea de como as regras são geradas e alteradas, do poder nos interesses dos endinheirados sobre este processo, e a extensão de seus ganhos resultantes disso. Em outras palavras, estes defensores do “livre mercado” não apenas querem que o público concorde com eles acercada superioridade do mercado, mas também sobre a importância central do debate interminável sobre quem – o mercado ou o governo – deve prevalecer.

É por isso que é tão importante expor a estrutura subjacente ao dito “livre mercado” e mostrar como e onde o poder se exerce sobre ele.

Desigualdades de renda, de riqueza e de poder político continuam a aumentar em todas as economias avançadas. Essa não é a única realidade possível. Mas para revertê-la, precisamos de um público informado capaz de ver através das mitologias que protegem e preservam os super ricos de hoje, assim como o Direito Divino dos Reis de séculos atrás.
*Robert Reich é professor de políticas públicas na Universidade da Califórnia-Berkeley. Foi Secretário do Trabalho dos Estados Unidos durante os governos de Bill Clinton (1993-1997).

“Moralmente, não estávamos preparados para esta pandemia”, afirma Michael Sandel.

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IHU, 16/12/2020

Michael Sandel tem muito a dizer e sabe como dizer. Professor de filosofia política na Universidade Harvard, sua condição de intelectual não o impede de ser um rockestar do pensamento contemporâneo: suas aulas são televisionadas, enche estádios, as pessoas fazem filas para o escutar.

A reportagem é de Elba Astorga, publicada por Telos, 14-12-2020. A tradução é do Cepat.

Sua mensagem não é complacente, há tempo está preocupado com as armadilhas da meritocracia: a globalização, o pensamento neoliberal, a tecnocracia. Seu ideário filosófico se baseia na consecução do bem comum: esse ponto onde confluem pessoas de todas as classes, todas as raças, todos os níveis de formação e o resultado (ideal) é a melhora de todos. Não se trata de uma busca romântica de igualdade, mas do interesse genuíno em que o conjunto da sociedade seja capaz de apreciar a diferença entre valor social e valor econômico.

Sandel participou da II edição do Fórum Telos, organizado pela Fundação Telefónica. Desta vez não encheu auditórios, mas pudemos vê-lo e escutá-lo através da tela, como se falasse só para nós. A mensagem é alta, clara, direta: é preciso valorizar as pessoas pela contribuição que fazem ao bem comum.

Solidariedade e pandemia

“Moralmente, não estávamos preparados para esta pandemia”, afirma Sandel. É que esses meses de emergência sanitária manifestaram a tremenda desigualdade econômica que ocorreu nas últimas décadas.

Esta lacuna, unida à produzida pela meritocracia, parece ter fechado os “vencedores” da corrida pelo mérito em uma bolha que invisibiliza aqueles que estão passando mal e torna a solidariedade um deus menor no panteão do capitalismo neoliberal. Daí a acusação de Sandel da perda dos princípios morais necessários para enfrentar esta pandemia.

Lamenta também que durante estes meses os famosos do mundo, de políticos a celebridades, lançaram uma mensagem perfeita como #hashtag em qualquer rede social: “Estamos juntos nisto”, uma frase que soa reconfortante para os ouvidos de qualquer um, mas que, quando se analisa um pouco, revela-se vazia de conteúdo, pois não descreve a sociedade atual, tão desigual e indiferente.

Ainda em março, nos primeiros meses deste choque global, a outra versão que circulava era: “estamos todos no mesmo barco”, que também soava legal até que alguém apontou, “no mesmo barco não, estamos todos no mesmo mar, mas uns vão de iate, outros em lancha, outros em barco”. E também existem aqueles que vão segurando em uma tábua, podemos acrescentar. É dessa desigualdade que Sandel fala.

Pode ser que o exemplo mais patente da desigualdade, nestes meses distópicos de 2020, tenha sido a divisão do trabalho. A grande distância entre aqueles que podem conservar seu emprego e trabalhar de casa, sem exposição, nem risco, e os que pela natureza de suas funções não tiveram outra opção a não ser ir para a rua e se expor ao vírus (e os que ficaram sem trabalho). Sendo assim, esse yin-yang perverso de vencedores-perdedores econômicos se tornou agora mais real e evidente.

A questão é que, segundo Sandel, neste tempo, vimos que sem profissionais da saúde, trabalhadores industriais, entregadores, repositores, assistentes, caminhoneiros e muitos outros saindo de suas casas para trabalhar, a vida em uma cidade, de um país, pode parar. O paradoxo é que, além de geralmente não ser bem remunerados, esses trabalhos são pouco reconhecidos. E agora ocorre que são essenciais.

Talento, ajuda e sorte

É aqui que nos deparamos com a última pedrinha que Sandel colocou em nossos sapatos: suas dúvidas acerca da idoneidade da meritocracia como método para estabelecer uma escala de valor social, sua certeza de que a meritocracia “é corrosiva para o bem comum”. De fato, é o tema central de seu último livro: A tirania do mérito: o que aconteceu com o bem comum? (Civilização Brasileira, 2020).

A meritocracia parte da ideia de que, em igualdade de condições, os que triunfam são os melhores. Soa tão atrativa que, durante anos, partidos de diferentes tipos, em diferentes países, a tornaram parte de seu projeto.

Para Sandel, o problema está em que ninguém coloca em dúvida a promessa de que “se você se esforça, terá êxito”. E, assim, os que triunfam acreditam que é porque conseguiram sozinhos e merecem todas as recompensas recebidas, ao passo que os que ficam para trás se dizem: “Não fui capaz, sou um fracasso”. Estas crenças geram arrogância em alguns, desmoralização em outros, e contribuem para a indignação e a rejeição às elites meritocráticas.

Sandel aprofunda os fatores para o êxito que a meritocracia não vê: além do talento, também contam (e como!), a ajuda, a sorte. É realmente coisa de quem triunfa que possua os talentos que a sociedade valoriza e premia, ou é questão de boa sorte? E o que há de dívida com aqueles que o ajudam, com sua família, seus amigos, a comunidade e inclusive a época em que vive?

Sua impressão é que seria necessário refletir sobre o papel da sorte e a ajuda recebida no êxito pessoal para poder olhar para os menos afortunados e pensar: “Se não fosse por meu direito de nascimento, pela graça de Deus ou pela simples sorte, eu poderia estar aí”. Seria uma boa maneira para neutralizar a atitude tóxica em direção ao êxito da sociedade atual.

Incertezas Econômicas

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A sociedade mundial vem passando por momentos de grandes inquietações e incertezas em decorrência da pandemia, os desafios são gigantes e exigem líderes capacitados para compreender o momento que estamos vivendo e que consigam repensar as bases da economia e da sociedade. Cabem as lideranças encontrar novas oportunidades e caminhos, construindo esperanças e perspectivas para o futuro imediato. Ao mesmo tempo a pandemia nos mostra que está surgindo uma nova sociedade, a anterior está ficando para trás, precisamos reconstruir a economia em novas bases, criando empregos, melhorando as condições sociais e investindo em uma nova sociedade, vendo as tecnologias como aliadas, abrindo novas possibilidades e criando esperanças.

A economia prescinde de regras claras e de instituições estáveis. Os investimentos produtivos precisam de um ambiente de confiança e de perspectivas positivas. Sem estabilidade não conseguimos despertar o espirito animal dos empresários, como relatado pelo economista austríaco Joseph Schumpeter, cujas contribuições para o desenvolvimento econômico foram fundamentais, mostrando a relevância do empreendedorismo, da inovação e daquilo que chamou de destruição criadora, um momento dinâmico onde novos paradigmas superam estruturas ultrapassadas, destruindo negócios e criando novas oportunidades.

Neste momento, percebemos que as incertezas crescem em todos os países. Os indicadores negativos pressionam os governos e os mercados, de um lado, percebemos as dificuldades da pandemia e, de outro lado, vislumbramos a degradação dos indicadores sociais. Diante deste momento precisamos construir novos consensos, fortalecendo a economia e as estruturas produtivas, criando estabilidade e confiança, sem elas não teremos investimentos produtivos, incremento do desemprego e aumento da instabilidade política.

A economia brasileira vem apresentando performance medíocre, taxas reduzidas de crescimento econômico, perspectivas de inflação, incremento da dívida pública, aumento das desigualdades, degradação das condições sociais e incrementando a violência urbana. A economia precisa diminuir as incertezas, precisamos construir consensos políticos e estabilidades, sem regras consistentes, sem equilíbrio orçamentário, com inseguranças na condução econômica, dificilmente o país conseguirá galgar novos espaços de crescimento nos próximos anos.

Diante deste cenário de incertezas, marcadas por pandemias e instabilidades, percebemos mudanças inimagináveis, instituições tradicionalmente ortodoxas e críticas dos investimentos estatais, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, estão sugerindo novos investimentos governamentais para superar este momento de fragilidades estruturais. Sem os investimentos públicos como alavanca econômica, os custos sociais aumentarão imensamente, gerando impactos políticos e instabilidades, aprofundando os fossos entre as classes sociais.

Os investimentos privados são fundamentais na recuperação econômica, o espírito animal dos empreendedores é imprescindível, para isso, faz-se necessário que o Estado defina uma agenda de prioridades econômicas e políticas. Intervenções devem ser pactuadas, as agendas de emprego são urgentes e emergenciais, cabendo ao Estado definir as políticas públicas dos próximos anos. Sem elas, corremos o risco de mergulharmos numa situação de deflagração social que jamais imaginamos. Neste momento de grandes incertezas e instabilidades, precisamos lembrar o grande mestre o economista Celso Furtado, que numa de suas obras destacou que os grandes problemas brasileiros não são econômicos, como muitos acreditam, mas sim os problemas políticos.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre e Doutor em Sociologia/Unesp, Professor Universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 16/12/2020.

Milton Friedman estava errado sobre as corporações, por Martin Wolf.

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Folha de São Paulo, 09/12/2020.

Mas como H.L. Mencken supostamente disse (embora talvez não o tenha feito), para cada problema complexo existe uma resposta simples, clara e errada

Qual deveria ser o objetivo de uma corporação de negócios? Por muito tempo, a opinião prevalecente, nos países de fala inglesa e, cada vez mais, em outras regiões, foi a defendida pelo economista Milton Friedman em um artigo para o The New York Times, intitulado “a responsabilidade social das empresas é elevar seus lucros”, publicado em setembro de 1970. Eu costumava acreditar nisso, igualmente. Mas estava errado.
O artigo merece ser lido na íntegra. Mas o cerne daquilo que ele defende surge na conclusão:

“Existe uma e apenas uma responsabilidade social para as empresas: usar os recursos de que dispõem e se engajar em atividades concebidas para aumentar seus lucros, desde que respeitem as regras do jogo, ou seja, se engajem em competição livre e aberta, sem trapaça ou fraude”.

As implicações dessa posição são simples e claras. Essa é sua principal virtude. Mas como H.L. Mencken supostamente disse (embora talvez não o tenha feito), “para cada problema complexo existe uma resposta simples, clara e errada”. E a conclusão citada acima é um exemplo poderoso de como isso é verdade.

Passados 50 anos, a doutrina precisa ser reavaliada. Apropriadamente, se considerarmos a conexão entre Friedman e a Universidade de Chicago, o Centro Stigler, da Escola Booth de Administração de Empresas, parte daquela instituição, acaba de publicar um livro eletrônico, “Milton Friedman 50 Years Later”, que contém opiniões variadas a respeito do assunto.

No excelente artigo que conclui o volume, Luigi Zingales, que promoveu o debate, tenta oferecer uma avaliação balanceada. Mas, em minha opinião, sua análise é devastadora. Zingales propõe uma pergunta simples: “Sob que condições é socialmente eficiente que os gestores se concentrem apenas em maximizar o valor para os acionistas?”
A resposta dele tem três pontos. “Primeiro, companhias devem operar em um ambiente competitivo, que definirei como um ambiente no qual as empresas acatam preços e acatam regras. Segundo, não deve haver externalidades (ou o governo precisa ter a capacidade de tratar com perfeição dessas externalidades por meio de regulamentação e tributação). Terceiro, os contratos devem ser completos, no sentido de que todas as contingências relevantes possam ser especificadas no contrato, sem custos”.

É desnecessário dizer que nenhuma dessas condições se aplica. De fato, a existência mesmo das corporações demonstra que não se aplicam. A invenção da corporação permitiu a criação de entidades imensas a fim de explorar as vantagens da economia de escala. E levando em conta essa escala, a ideia de que as empresas acatem preços é absurda. Externalidades, muitas delas de alcance mundial, são onipresentes. E as corporações também existem porque os contratos são incompletos. Se fosse possível escrever contratos que especifiquem todas as eventualidades, a capacidade dos gestores para responder ao inesperado seria redundante. Acima de tudo, as corporações não acatam regras, e sim as fazem. Envolvem-se em jogos na criação de cujas regras elas têm um papel importante, via política.

Minha contribuição para o livro enfatiza esse último ponto, ao questionar o que constituiria um bom “jogo”. Argumento que “seria um jogo no qual as companhias não promoveriam falsa ciência sobre o clima e o meio ambiente; em que companhias não matariam centenas de milhares de pessoas, ao promover o vício em opioides; em que as companhias não fariam lobby por sistemas tributários que permitem que estacionem boa proporção de seus lucros em paraísos fiscais; em que o setor financeiro não faria lobby por regras de capitalização insuficientes que causam imensas crises; em que companhias não fariam lobby para buscar castrar uma política efetiva de defesa da competição; em que companhias não pressionariam vigorosamente contra os esforços para limitar as consequências sociais adversas do trabalho precário; e assim por diante”.

É verdade, como argumentam muitos dos autores que contribuíram para o compêndio, que a corporação por cotas de responsabilidade limitada foi (e continua a ser) uma brilhante inovação. Também é verdade que tornar mais complexos os objetivos corporativos podem ser problemáticos. Assim, quando Steve Kaplan, da Escola Booth, pergunta de que maneira as corporações deveriam calcular as vantagens e desvantagens relativas de muitos objetivos diferentes, ele conta com minha simpatia. De forma semelhante, quando líderes empresariais nos dizem que a partir de agora atenderão às necessidades mais amplas da sociedade, eu me pergunto: primeiro, devo acreditar que o farão? Segundo, devo acreditar que sabem como fazê-lo? E, por fim, quem os elegeu para essa função?

E, no entanto, os problemas que o grave desequilíbrio econômico, social e de poder político inerente à situação atual gera são vastos. Quando a isso, a contribuição de Anat Admati, da Universidade Stanford, é convincente. Ela aponta que as corporações obtiveram muitos direitos políticos e civis mas que não estão sujeitas a obrigações correspondentes. Entre outras coisas, é raro que pessoas sejam responsabilizadas individualmente por crimes corporativos. A Purdue Pharma, agora insolvente, se admitiu culpada por acusações criminais relacionadas à maneira pela qual trabalhou com o medicamento OxyContin, que viciou um número imenso de pessoas. Indivíduos são presos rotineiramente por comerciar drogas ilegais, mas, como ela aponta, “nenhum indivíduo da Purdue foi parar na cadeia”.

O poder corporativo irrestrito vem sendo, além disso, um fator importante para a ascensão do populismo, especialmente o populismo de direita. Considere a maneira pela qual alguém age ao tentar convencer as pessoas a aceitar as ideias econômicas libertárias de Friedman. Em uma democracia dotada de sufrágio universal, a tarefa é realmente difícil. Para vencer, os libertários precisam se aliar aos defensores de outras causas – guerra cultural, racismo, misoginia, nativismo, xenofobia e nacionalismo. Mas boa parte disso acontece, é claro, por baixo dos panos, de forma a permitir que as conexões sejam negadas plausivelmente.

A crise financeira de 2008, e o resgate subsequente àqueles cujo comportamento a causou, tornaram ainda mais difícil vender a ideia de um mercado livre e desregulamentado. Assim, se tornou politicamente essencial para os libertários apostar ainda mais nas causas acessórias. Trump não era a pessoa que eles desejavam: ele é errático e desprovido de princípios, mas é um empreendedor político que parecia um candidato adequado para conquistar a presidência. E ele deu aos libertários o que mais desejavam: desregulamentação e cortes de impostos.
Há muita discussão a realizar sobre como as corporações deveriam mudar. Mas a maior questão, por larga margem, é como criar boas regras para o jogo em termos de competição, normas trabalhistas, meio ambiente, tributação, e assim por diante. Friedman presumia que nada disso importasse, ou que uma democracia funcional sobreviveria a ataque prolongado por pessoas que pensavam como ele. Nenhuma dessas suposições se provou correta. O desafio é criar boas regras do jogo, por via política. E hoje isso não é possível.

Financial Times, tradução de Paulo Migliacci

Martin Wolf
Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.

‘Apressar a austeridade não é o modo de assegurar crescimento’ diz OCDE.

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Aumento de gastos públicos na quarentena e de impostos sobre os mais ricos no pós-pandemia. A receita fiscal que a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) tem dado para os países serve também para o Brasil, ainda que seja preciso dosá-la com mais cuidado, diz o diretor do Centro de Política e Administração tributária do órgão, Pascal Saint-Amans.

“Não quero parecer ingênuo. Tenho completa noção de que países ricos podem ter um nível de dívida alto e que países como o Brasil são muito mais frágeis. Então, o “custe o que custar” (nos gastos) talvez possa requerer mais foco”, diz ele. 

Depois, acrescenta: “O melhor modo para resolver a sustentabilidade da dívida e para assegurar crescimento é não apressar a austeridade.”

A OCDE recomendou que os governos continuem gastando para impulsionar suas economias. Mesmo o Brasil, que tem dívida elevada, deve fazer isso? 

Sim, estamos recomendando essa política no pico da crise. Apoiamos completamente os governos para que adotem políticas para compensar os impactos negativos da covid. Em termos de política tributária, também é preciso dar suporte para a economia, concedendo isenções sobre contribuições sociais e para pequenos negócios. Uma vez que o país deixa o pico da pandemia, nosso conselho é não se apressar com a consolidação fiscal. Porque o que aconteceu em 2008 e em 2009 foi que os governos encararam a crise e rapidamente voltaram para as políticas de austeridade. A Europa sofreu com essa política ruim, foi por isso que teve a crise grega. Então, é preciso ser cuidadoso na consolidação fiscal. Quando você está na fase de recuperação, você pode deixar o ‘custe o que custar’ para melhorar o direcionamento das políticas. Focar naqueles que vão precisar mais. Por exemplo, em um país como o Brasil, direcionar os gastos aos mais vulneráveis, porque o país tem uma desigualdade muito elevada e uma parte muito grande da população extremamente vulnerável. No que diz respeito aos impostos, não se apressem para aumentá-los. Na terceira fase, quando as coisas estiverem estabilizadas, aí vocês terão de aumentar os impostos.

A carga tributária brasileira é elevada quando comparada a de outros países emergentes. Isso também serve para o Brasil? 

O Brasil, quando você o compara com o restante da América Latina, tem uma carga tributária bastante elevada. Mas, ainda assim, provavelmente será necessário aumentar os impostos para fortalecer a política tributária. Aqui há dúvidas não só de qual o nível ideal, mas também em relação à estrutura do sistema tributário. Mas o que dizemos é que essa crise é grande demais para ser desperdiçada em termos de revisão de políticas tributárias. Vocês precisarão revisá-las seriamente. Façam isso de modo que se possa reduzir desigualdades. No Brasil, isso serve em relação à questão de taxar renda do capital, renda do capital em termos de imposto sobre pessoa física e sobre pessoa jurídica, imposto sobre herança… São áreas que nos últimos 30 anos tiveram, em todo o mundo, políticas generosas que precisam ser revisadas. Também recomendamos políticas ambientais. Isso vai trazer vocês para uma reflexão de que é preciso taxar mais emissões de carbono – e, sim, o Brasil precisa taxar muito mais, apesar de vocês terem a Amazônia para absorver parte do excesso do carbono no mundo. Mas vocês terão de fazer isso. Estamos cientes de que o Brasil, como outras economias emergentes, têm subsídios para combustíveis fósseis e, se vocês cortarem esses subsídios, terão de compensar os mais vulneráveis. Mas isso significa que vocês terão de fazer uma revisão séria da política tributária no médio prazo.

Essas mudanças devem incluir alteração no teto do Imposto de Renda, como alguns defendem?

Não sei de cor os detalhes do sistema tributário brasileiro. Mas um teto de 27,5% para a população mais rica é bastante baixo. Especialmente em um país onde você tem uma concentração de riqueza, receita e renda nos 10% mais ricos. Definitivamente é muito baixo. Mas esse tipo de reforma tem de ser feita de forma global, com todos os outros elementos do sistema tributário.

E as medidas de ampliação de gasto público também são aplicáveis ao País, ainda que a relação dívida/PIB já seja alta?

Não quero parecer muito ingênuo. Tenho completa noção de que países ricos podem ter um nível de dívida alto e que países como o Brasil, economias emergentes, são muito mais frágeis, especialmente com taxas de juros muito baixas. O fluxo de capital não os ajuda muito. Então, provavelmente, o “custe o que custar” talvez possa requerer algum foco. Deve-se manter uma política tributária mais generosa durante a recuperação, mas talvez não tão generosa. E depois (da crise), reconstruir o sistema melhor, esse é o mantra hoje no G-20. Construir melhor a política tributária, com descarbonização, redução de desigualdades, taxação de renda de capital. Não só reconstruir melhor, mas também mais em termos de aumento de receita para enfrentar o crescimento da dívida. 

A discussão sobre aumento de progressividade de tributos parece não ecoar muito ainda no Brasil. O que pode acontecer se o mundo avançar nessa direção, menos o Brasil?

Política tributária é uma questão doméstica. Cada país escolhe seu sistema. Na questão de progressividade, é uma questão social de vocês. Se os brasileiros estão felizes com uma sociedade extremamente desigual e com políticas tributárias a favor dos ricos, isso é problema dos brasileiros. Um modo em que pode haver respingos (da tendência mundial no País) é na tributação de emissão de carbono. É com ela que você atinge o Acordo de Paris. Se alguns países não participarem, então suas ações domésticas podem ter impacto no bem coletivo. Veremos nos próximos anos qual será a dinâmica da luta contra as mudanças no clima e qual será o papel do Brasil no jogo, que pode mudar com os EUA voltando ao debate em janeiro (quando Joe Biden assume a Casa Branca).

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

Amin Maalouf: ‘O mundo está sem uma bússola moral’ 

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Em entrevista ao ‘Estadão’, escritor fala sobre ausência de lideranças no cenário internacional
Entrevista com
Amin Maalouf, escritor libanês, membro da Academia Francesa

Paulo Beraldo, O Estado de S.Paulo 
06 de dezembro de 2020

A nova guerra fria entre Estados Unidos e China o crescimento do ódio e da violência em diferentes partes do mundo e uma “floresta Amazônica de informação”, em referência à quantidade de notícias que inundam o cotidiano nos tempos atuais. Esses são alguns exemplos que o escritor libanês Amin Maalouf usa para descrever o momento pelo qual passa o mundo.  
Esta semana, Maalouf fez uma palestra no Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri). Depois, concedeu entrevista ao Estadão, na qual abordou a disputa entre China e EUA, a ausência de liderança internacional, o futuro do populismo e até o lugar do Brasil no mundo.  

Para onde o mundo caminha no cenário atual? 
Meu sentimento é de que existem dois riscos principais: a incapacidade de lidar com várias crises, em todos os níveis, e o fato de estarmos caminhando em direção a uma nova guerra fria. Se olharmos para a pandemia, não há resposta mundial. Se pegarmos as preocupações ambientais e todos os fenômenos ligados ao meio ambiente, não há uma mobilização global para enfrentá-las. Enquanto isso, caminhamos para uma nova corrida armamentista, agora entre EUA e China. No momento, vivemos sob a neblina da pandemia. Não temos uma bússola moral. Mas este momento em que o mundo parou é o correto para fazer uma reflexão sobre para onde estamos indo e como corrigir o rumo. 

Como o sr. descreveria essa nova guerra fria?
Temos um poder que ainda é o principal, os EUA, militarmente, economicamente e também tecnologicamente. A China vem atrás, mas muito rápido e com muitas cartas na mesa. Claro que também tem fraquezas, mas há realmente um risco de colisão e conflitos em todas as formas: comerciais, tecnológicas, políticas. Provavelmente, haverá uma corrida armamentista, já existe uma disputa para conquistar aliados. Está claro que existe alguma aliança entre China e Rússia, e uma coalizão de países que temem a expansão chinesa, como Japão, Austrália e Índia. Há muitos países e movimentos interessados em ter uma relação forte com a China. E é preciso lembrar que o mundo hoje não é governado por uma ordem global. Tudo hoje é mais fluido e ambíguo. A China não carrega uma ideologia, como a União Soviética tinha, mas há claramente um modelo de sociedade e de escolhas políticas. O que é novo é a posição econômica da China, sem as fraquezas soviéticas, que pode ter um papel que a URSS não conseguiu ter.
  
Voltando à ideia da bússola moral. Por que ela acabou?
Um dos elementos é a ausência de liderança. Não acho que os EUA ofereceram um exemplo de liderança moral nos últimos anos. Ainda há o elemento da democracia, mas a credibilidade não está lá. E a Europa não está tendo esse papel. Ela não teve capacidade e poder para exercer esse papel. Então, ninguém o exerce. É muito difícil enxergar onde estão os valores. De certo modo, é uma lei da selva. Olhe o que ocorreu no Cáucaso, entre Armênia e Azerbaijão, uma guerra sem intervenção de nenhuma autoridade internacional. Há ausência de uma autoridade que evite guerras e resolva problemas.  

Quando Hungria e Polônia desafiam a democracia podemos dizer que a UE está em crise? 
A construção do bloco atravessa um momento difícil. O que aconteceu com o Brexit é um alarme real que pode ocorrer em outros países. Ela deveria ter sido construída sobre uma base mais sólida, quase como uma federação, que elegesse o seu presidente por voto popular, que tivesse um chefe do Executivo. Ela precisa da capacidade real de ter um papel e tomar decisões. Mas, infelizmente, é impossível.
  
Qual o papel da ONU? 
No mundo ideal, a ONU deveria ter um papel mais importante, o que não é o caso hoje. Muitos fatores contribuem para seu enfraquecimento. Mas acredito que a ONU seja a única autoridade possível. Uma ONU revigorada, com mais poderes, capaz de intervir de maneira eficiente para resolver problemas. Mas isso depende dos principais poderes. É preciso reformar a ONU, torná-la menos burocrática, revisar seus métodos de tomada de decisão. Ela ainda é um organismo muito interessante.  

Como o sr. avalia o aumento da radicalização islâmica? 
É muito preocupante. Esse fenômeno está mudando a atmosfera política e intelectual de muitos países na Europa. Países que já tiveram atitudes tolerantes, como Holanda, Dinamarca, Suécia, agora têm certa impaciência com o que está acontecendo. São problemas que estão ficando maiores e ninguém parece ter a solução. A radicalização, por si só, é mais fraca do que já foi há 10 anos, mas há uma violência residual muito difícil de parar. Um jovem influenciado por propaganda, pega uma faca, sai à rua e mata alguém. É difícil evitar isso, mesmo com a melhor polícia e a melhor inteligência.
 
O sr. diz que a derrota de Trump não foi uma derrota do populismo. Pode explicar melhor? 
Fiquei satisfeito de ver que muitos americanos decidiram mudar de governo, pois estava desconfortável com Trump, principalmente por sua personalidade. Mas é preciso olhar a realidade com objetividade: o apoio a Trump foi muito importante. Ele perdeu depois da pandemia e da crise econômica que destruiu tudo o que ele conquistou. Não fossem esses dois fatores, ele provavelmente teria vencido. Então, apresentar o que aconteceu como uma histórica derrota do populismo não parece verdadeiro. Foi um revés para um presidente cujo estilo não agrada a todos, que enfrentou uma situação única. O que ocorreu nos EUA não será determinante para o desaparecimento do populismo. 

O sr. diz que vivemos em uma “floresta Amazônica de informação”. Como sobreviver nessa selva? 
É difícil distinguir o que é verdadeiro do que não é. Hoje, todo mundo pode se expressar e alcançar milhões. O único controle possível é pela educação, para permitir a uma pessoa olhar para uma informação e ter a capacidade de julgar se aquilo é sério ou não. É uma luta que temos de engajar as próximas gerações, pois não será decidida por governos e nem de uma vez por todas.  

Qual a posição do Brasil no mundo hoje? 
O Brasil tem uma posição interessante e um futuro brilhante. Ele está longe dos conflitos, não é afetado pelas disputas do mundo árabe. É um dos países emergentes que não é puxado por conflitos entre potências e é capaz de manter boas relações com ocidentais e países da Ásia. O Brasil pode evitar pagar o preço de conflitos e tem dimensões que lhe permitem isso, assim como reconstruir sua economia e avançar. Poucos países no mundo têm as vantagens geopolíticas do Brasil. 

Economia Pós-pandemia

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A economia brasileira vem passando por grandes desequilíbrios macroeconômicos nos últimos anos, crescimento do desemprego, redução no investimento produtivo, diminuição da renda agregada e baixa capacidade de investimentos produtivos externos, para piorar estes desequilíbrios, percebemos repiques inflacionários e o crescimento da dívida pública. Estamos passando por momentos de incertezas crescentes, cujos impactos são o aumento dos desequilíbrios sociais, econômicos, empregos precários e o incremento da desesperança.

Neste momento, marcado por uma nova economia internacional centrada na concorrência e no aumento da competição entre as nações, as empresas e os indivíduos, as sociedades precisam construir agendas mais consistentes de redução das desigualdades sociais, do incremento dos investimentos públicos, melhoras da saúde, da eficiência dos indicadores da educação e da segurança, construindo uma sociedade que garanta a todos os cidadãos oportunidades e renove as esperanças de um futuro melhor.

O pós-pandemia prescinde de novos investimentos públicos e privados, sem estes recursos a economia terá grandes dificuldades para estimular novos espaços de crescimento econômico, incrementando maiores oportunidades de emprego, melhoras das rendas e dos salários agregados. Historicamente, em momentos de instabilidades e crises econômicas, os investimentos privados se retraem imediatamente, diante disso, como destacou o economista britânico John Maynard Keynes, faz-se necessário a atuação dos investimentos públicos. Sem estes recursos estatais, as condições sociais devem se degradar de forma acelerada, aumentando a violência urbana e a exclusão social, com o incremento do racismo, do aumento da pobreza e da redução das oportunidades para as classes mais vulneráveis, reduzindo as esperanças e incrementando os conflitos distributivos.

Neste momento, as decisões contemporâneas terão impactos para toda a coletividade, os desafios são enormes, as escolhas políticas prescindem de maturidade, a sociedade precisa optar por investimentos seguros, estimulando os setores da educação, capacitando o capital humano para os desafios da sociedade do conhecimento, construindo e viabilizando projetos futuros, viáveis e cujos retornos serão colhidos em anos, ou mesmo em décadas. Neste momento precisamos pensar no longo prazo, garantindo novas oportunidades e reduzindo os privilégios que perpetuam a pobreza e a degradação social.

Vivemos um momento peculiar no Brasil e na sociedade global, nestes momentos os governos devem mostrar caminhos para a reconstrução das nações, como aconteceu na crise de 1929, quando os governos passaram a intervir diretamente para alavancar os sistemas econômicas. Atualmente, cabe a sociedade global agir rapidamente, importando ideias parecidas como o Green New Deal Global, como ventilado nos círculos políticos e acadêmicos, neste momento de reconstrução precisamos estimular investimentos verdes, a humanidade deve diminuir a queima de combustíveis fósseis nos próximos trinta anos, e deve fazê-lo de modo a melhorar o padrão de vida e as oportunidades para os trabalhadores.

Na pandemia precisamos repensar o modelo econômico e social dominante da sociedade mundial, melhorar os indicadores sociais é fundamental para que garanta melhorias para todos os agentes sociais, sem estas mudanças a sociedade caminha por um período de grandes conflagrações e degradações para todos os indivíduos, pensemos sobre o assunto, a pandemia nos traz a oportunidade de evoluirmos como civilização e como seres humanos.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre e Doutor em Sociologia/Unesp, Professor Universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 02 de dezembro de 2020.

“Investimento público é mais importante que juro baixo tanto para atenuar os efeitos da recessão como no longo prazo”, segundo Lara Resende.

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Para economista, é preciso superar o arcabouço analítico anacrônico e equivocado que impõe o equilíbrio fiscal como o único objetivo de política econômica

Adriana Fernandes
26 de novembro de 2020 |O Estado de São Paulo

O economista André Lara Resende é hoje uma voz dissonante do pensamento econômico dominante no Brasil. Quinto entrevistado da série do Estadão “Saídas para a Crise Fiscal”, Lara Resende afirma que o investimento público é hoje muito mais importante do que a política de juros como resposta para a retomada econômica após a pandemia do coronavírus e também para o desenvolvimento de longo prazo do País.

Um dos formuladores do Plano Real e com a experiência de ter trabalhado mais de 30 anos no mercado financeiro, Lara Resende propõe a criação de um órgão, protegido de “pressões políticas ilegítimas”, para definir os investimentos públicos. Para ele, essa é hoje uma medida mais valiosa do que um Banco Central Independente.

O economista alerta que até agora não houve uma única iniciativa, nem mesmo propostas, de políticas públicas para garantir uma recuperação sustentada, uma vez superada a pandemia. Ambientalista, Lara Resende diz que é incompreensível a postura do governo Jair Bolsonaro em relação à questão ambiental, considerada por ele o mais grave problema a ser enfrentado pela humanidade, e que compromete o Brasil no exterior.

● Como o sr. avalia a resposta do governo à pandemia da covid-19?
A resposta à pandemia foi conturbada, incompetente e negacionista no todo. Quanto à política econômica, apesar de alguma hesitação inicial, com o auxílio de emergência, o governo acabou por dar uma resposta que aliviou temporariamente a situação dos que perderam o emprego ou a renda. O auxílio emergencial foi fundamental para aliviar a recessão e a crise social provocada pela pandemia. Até agora não houve uma única iniciativa, nem mesmo propostas, de políticas públicas para garantir uma recuperação sustentada, uma vez superada a pandemia. Quando a pandemia parece recrudescer, volta-se a falar na necessidade de encerrar o auxílio em nome do equilíbrio fiscal. Mais uma demonstração clara de que o governo continua dominado por restrições ideológicas.

● Uma das preocupações no Brasil é justamente o crescimento da dívida, que caminha para 100% do PIB. É um problema?
Trata-se de uma preocupação infundada. Em várias ocasiões na história, sobretudo depois de guerras ou catástrofes, inúmeros países tiveram dívidas superiores ao PIB. Hoje, Japão, EUA, Itália, entre outros, têm dívida superior ao PIB. A dívida pública não pode ter uma trajetória explosiva, mas, desde que o seu crescimento acelerado seja transitório, que passada a crise, com as contas reequilibradas e restaurado o crescimento da economia, a relação entre dívida e PIB volte a cair, não há qualquer problema em ultrapassar os 100% do PIB.

● Existe um limite para a dívida?
Não existe um limite intransponível para a dívida interna e o PIB. O endividamento externo, que depende de financiamento do exterior em moeda estrangeira, é sim perigoso. Como aprendemos com as sucessivas crises da dívida externa no século passado, quando os credores internacionais passam a ter dúvida sobre a capacidade do País de honrar seus compromissos em moeda estrangeira, a súbita interrupção do fluxo de financiamento pode provocar crises gravíssimas. No século passado, o Brasil era importador líquido de petróleo e derivados, assim como de trigo e outras commodities (produtos classificados como básicos por não ter tecnologia envolvida ou acabamento). Precisava de financiamento externo para cobrir o déficit com o resto do mundo. Hoje, somos autossuficientes em petróleo, exportadores líquidos de commodities e temos um setor agropecuário altamente superavitário. O Brasil de hoje não tem dívida pública externa, ao contrário, tem quase 30% do PIB em reservas internacionais A nossa dívida é interna, do Estado com os brasileiros.

● Em entrevista recente ao ‘Financial Times’, a economista-chefe do FMI, Gita Gopinath, disse que os países precisam evitar o erro de retirar prematuramente os estímulos fiscais, como ocorreu na crise financeira. Ela chama atenção que há formas de investimento público que podem criar empregos e aumentar a atividade econômica e, ao mesmo tempo, serem fiscalmente responsáveis para sair da crise. Como conciliar essas coisas?
Gita Gopinath disse apenas o que se sabe desde a publicação do livro de John M. Keynes (1883-1946, defensor de maior intervenção do governo na economia para estimular o crescimento) na década de 1930. Gopinath não é uma heterodoxa irresponsável, mas economista-chefe do FMI, doutora pela Universidade de Princeton, onde teve como orientadores Ben Bernanke, ex-presidente do Fed, e Ken Rogoff, professor da Universidade Harvard, dois expoentes da ortodoxia econômica. A política fiscal, sobretudo investimentos públicos que aumentem a produtividade e o poder aquisitivo da população, é o mais poderoso instrumento, tanto para se sair de uma recessão como para garantir a retomada do crescimento sustentado. A pergunta mais complicada de ser respondida é por que hoje no Brasil a opinião dos economistas que aparecem na imprensa, assim como a da própria imprensa, regrediu para o que era a ortodoxia do século XIX na Inglaterra? A chamada “Visão do Tesouro”, que sustentava a necessidade de sempre equilibrar as contas públicas, depois duramente criticada por Keynes, deixou de ser levada a sério.

● O Brasil, que tinha uma situação fiscal frágil e déficits há sete anos e com previsão de resultados negativos até 2028, pode seguir essa recomendação do FMI em 2021?
É verdade que há mais de duas décadas a relação dívida e PIB do Brasil tem aumentado, mas não temos uma situação fiscal frágil. A carga fiscal do Brasil é de quase 35% do PIB, muito alta para um país de renda média. Apesar da alta carga fiscal, não conseguimos controlar o crescimento da dívida. A razão é que a taxa de juros foi extraordinariamente alta até muito recentemente. Com taxas de juros que chegaram a mais de 25% ao ano e um crescimento medíocre da economia, o resultado é inexorável: a relação dívida/PIB cresce. O Estado brasileiro custa muito e gasta mal? Com certeza, mas não é essa a razão do crescimento da dívida. A política de taxa de juros do Banco Central, do real até muito recentemente, foi um gravíssimo equívoco. A história irá deixar claro o preço de uma política de juros extraordinariamente altos, associada a uma pesada e kafkiana carga fiscal.

● Qual a saída a seguir?
Antes de mais nada, é preciso superar a camisa de força imposta por um arcabouço analítico anacrônico e equivocado que impõe o equilíbrio fiscal como o único objetivo de política econômica. Dizem que com equilíbrio fiscal todos nossos problemas estarão milagrosamente resolvidos. Sem ele, caminhamos a passos largos para o abismo. Nada mais falso. Precisamos urgentemente voltar a ter um projeto para o País, ter objetivos de políticas públicas que balizem os investimentos públicos e privados, que norteiem a transição para uma matriz energética limpa e não nos deixe perder o bonde da revolução digital em curso. Precisamos refletir sobre as políticas de emprego, saúde e educação neste novo mundo do século XXI.
● Por que o sr. considera ser uma falácia o argumento de que o governo não tem dinheiro para investimento?
Porque é falso. O governo não tem recursos para investir porque adotamos restrições legais-administrativas que deixam relativamente livres os gastos correntes e impõem limites ao total dos gastos. O teto dos gastos (regra que proíbe que as despesas cresçam em ritmo superior à inflação) é exemplar: se mantido, vai levar ao colapso completo do investimento público. O governo que emite sua moeda fiduciária (documento que possa ser aceito como pagamento, como as notas de real), como é o nosso caso, não tem restrição financeira, pois, quando gasta, necessariamente, emite moeda. A decisão de obrigar o governo a retirar a moeda emitida, seja através da cobrança de impostos ou da emissão de dívida, é uma decisão político-administrativa. Pode se justificar para impedir que o governo gaste de forma irresponsável e incompetente, mas não é uma restrição real.

● É mais eficiente deixar os investimentos fora do teto?
Sim. O teto pode até ser uma restrição importante para impedir um Estado inchado, que gaste muito na sua própria operação, mas não faz sentido ter um teto com os gastos correntes não controlados. O resultado é a inviabilização dos investimentos. Os investimentos públicos são muito mais importantes do que juro básico baixo tanto para atenuar os efeitos da recessão quanto para o desenvolvimento de longo prazo. É mais importante ter um órgão sério e competente, protegido das pressões políticas ilegítimas, para definir os investimentos públicos, do que um Banco Central independente.

● É possível fazer uma recuperação econômica verde e sustentável pós-pandemia?
Infelizmente, o governo Bolsonaro está na contramão de uma política ambiental sustentável. A incompreensível postura do governo em relação à questão ambiental, hoje considerado o mais grave problema a ser enfrentado pela humanidade, compromete o Brasil no exterior, prejudica nossas exportações e reduz os investimentos externos. Além de fazer a coisa certa, teríamos muito a ganhar com uma política ambiental inteligente e responsável, que poderia servir de balizador de uma nova etapa de nosso desenvolvimento.

● Qual o papel das reformas administrativa e tributária para destravar o crescimento?
Me parece que uma reforma tributária cujos objetivos fossem a simplificação, a racionalização e a equidade, não o equilíbrio a qualquer custo, e que nos livrasse do atual cipoal tributário, seria um passo importante para nos tirar do atoleiro em que nos metemos. Mais do que uma reforma administrativa, nome que se dá ao que é apenas mais uma tentativa de reduzir os salários e os benefícios do funcionalismo, precisamos modernizar a governança do País, inclusive o sistema político, que caminha a passos largos para se tornar disfuncional e corre o risco de perder legitimidade.

“O racismo estrutura a sociedade brasileira, está em todo lugar”, diz Djamila Ribeiro

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Edson Veiga, MSN Notícias

Em entrevista, a filósofa e escritora fala sobre heranças da escravidão no Brasil e afirma que, com o caso Beto Freitas, a revolta negra historicamente sufocada encontrou “coro para ecoar pelo país”.

Foi pelas redes sociais que, na manhã de 20 de novembro, data em que o Brasil celebra o Dia da Consciência Negra, a filósofa, escritora e feminista negra Djamila Ribeiro soube do espancamento e assassinato de João Alberto Freitas, ocorrido em um supermercado Carrefour de Porto Alegre. “Fui ver a fundo do que se tratava e não consegui assistir ao vídeo”, conta. “Até hoje não assisti.”

Autora dos livros Lugar de Fala, Quem Tem Medo do Feminismo Negro e Pequeno Manual Antirracista, Ribeiro disse que conversou com a militante e teórica do feminismo negro Carla Akotirene sobre o caso. E a conclusão foi que toda vez que um negro vê outra pessoa negra sofrendo uma agressão, uma violência, este revisita “o trauma do colonialismo e de tudo o que as pessoas negras sofreram neste país”. No entendimento de ambas, é evidente que “uma pessoa branca consciente” também se choca com fatos assim; mas para um negro esse sofrimento assume proporções muito maiores.
Ao analisar o assassinato de Beto Freitas, ela recorda outras mortes que despertaram a raiva da população negra recentemente. Como a do adolescente João Pedro, baleado em operação policial, a da vereadora Marielle Franco, assassinada em março de 2018, e a da auxiliar de serviços Cláudia Silva Ferreira, baleada quando ia comprar pão para sua família, em março de 2014.

O caso Beto Freitas, no entanto, está sendo um marco no país, aponta. “Gerou uma onda de protestos contra o racismo que é, de certa forma, inédita. Uma revolta que foi ao longo da história sufocada, encontrou coro para ecoar pelo país”, afirma em entrevista à DW Brasil.

Mestra em Filosofia Política pela Universidade Federal de São Paulo, Ribeiro é colunista do jornal Folha de S.Paulo e da revista ELLE Brasil e professora convidada da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Em 2016, foi secretária adjunta de Direitos Humanos de São Paulo. No ano passado, recebeu do Reino dos Países Baixos o Prêmio Prince Claus, por conta do seu ativismo.

Na entrevista a seguir, ela também fala sobre as heranças da escravidão e a falta de inclusão das populações negras. “O racismo estrutura a sociedade e, assim sendo, está em todo o lugar”, afirma.

DW Brasil: Em seu livro Pequeno Manual Antirracista um dos pontos que você aborda é justamente combater a violência racial. Em casos extremos como o ocorrido na última semana em Porto Alegre, qual seria a melhor resposta antirracista?

Djamila Ribeiro: Nesse capítulo do meu livro, aponto a violência racial por diversos meios: pela morte em massa dos corpos negros por uma polícia militarista, num país onde a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado; pelo Poder Judiciário ser uma extensão da viatura de polícia, aceitando ralas “provas” como suficientes para condenar alguém, isso quando muito verificam.

Em geral, apenas a palavra do policial é o suficiente para condenar por anos à prisão, e aí eu me pergunto: como seria se não tivesse uma câmera lá? Se não houvesse uma demonstração cabal do assassinato?

Ora, um dos responsáveis é um policial militar e, não fosse a manifestação evidente de prova, a palavra dele seria suficiente para que Beto Freitas fosse um assassino, e o policial, uma potencial vítima em legítima defesa. Isso é a manifestação de um sistema que foi desenhado para operar dessa forma, uma forma que continua a alimentar o projeto racial supremacista branco. Precisamos nos questionar sobre qual formação tem sido dada aos agentes de segurança no país, bem como sua estrutura em si. Uma polícia militarizada, em guerra, na qual morrem predominantemente pessoas negras, qual projeto é esse? Ao fundo, estamos diante da estrutura racista. […]

Independentemente disso, penso também que a empresa deve uma indenização por danos morais coletivos à população negra, em um valor tão alto para que seja desinteressante ignorar as demandas históricas antirracistas, como essa em particular tem feito. Trata-se de uma empresa com um preocupante histórico de violência com pessoas negras no Brasil e funciona numa lógica colonial profunda.

Veja, a matriz do Carrefour está no Norte global, e para lá é enviada boa parte do lucro que aufere no Sul. Não sei qual discurso é feito na Europa, mas a sua filial brasileira vem se alinhando aos projetos políticos que têm promovido o desmonte dos direitos sociais no país. Reforma trabalhista, previdenciária, entre outras estão alinhadas com um discurso que nega humanidade. Então, é de se questionar o choque da matriz quando há a materialização do ranço colonial que tem promovido mortes. É preciso insistir em um debate honesto sobre a postura de empresas transnacionais em suas filiais abaixo da linha do Equador e cobrar indenizações por isso.

Declarações tanto do vice-presidente, Hamilton Mourão quanto do presidente Jair Bolsonaro buscaram negar a existência do racismo no Brasil e ainda dizer que a sociedade estaria “importando” uma questão dos EUA. De que maneira esse tipo de declaração aumenta o problema?

Não é surpresa para quem acompanhou a trajetória do homem que está hoje na Presidência do Brasil que tanto ele quanto seu vice digam algo nesse sentido. Eles representam um projeto político que fez do racismo a base do seu meio de produção econômica e de suas relações sociais e, a serviço desse projeto, eles continuarão seu discurso e sua prática. E é evidente que estão a dizer uma grande falácia.

O Brasil é a maior nação negra fora da África, somando 54% da população, e mesmo sendo maioria, [os negros] estão fora dos lugares de poder e experimentam em larga maioria os piores índices de desenvolvimento humano. Foram quase quatro séculos de escravidão em pouco mais de cinco séculos de chegada dos colonos.

Em 1888 houve a abolição formal, mas nenhuma política de inclusão das pessoas negras, pelo contrário. Ao passo que foi estimulada a vinda de imigrantes europeus, que receberam terras e oportunidades, pessoas negras foram marginalizadas de qualquer contato com o poder econômico e destinadas a serem base de exploração que, no caso das mulheres negras, se somam ao patriarcado. Nas palavras de Carla Akotirene, mulheres negras são a matriz geradora pois parem as vidas que serão a base do sistema.

Para aqueles que negam a existência do racismo no Brasil, como explicar ou mostrar que, sim, há muito racismo na sociedade?

Ao longo da história, o projeto de miscigenação foi romanceado no país, como manifestação sublime da democracia racial, pensamento do [sociólogo] Gilberto Freyre, no sentido de que no Brasil teria havido a transcendência racial com a convivência harmoniosa entre brancos, negros e indígenas. Ou seja, de acordo com esse pensamento, não existe racismo no Brasil, apenas desigualdade entre ricos e pobres. As mulheres negras brasileiras são as mulatas que sambam e estão sempre disponíveis sexualmente. Trata-se de algo entranhado no pensamento brasileiro e na organização social do país, algo que os movimentos negros ao longo de muitas décadas vêm denunciando e combatendo.
É uma construção supremacista histórica e vejo o Brasil exportá-la para o Norte global como se fosse cana-de-açúcar. Está na escola, nas famílias, no discurso midiático, em todo lugar. Então muitas pessoas negras não sabem que são negras, não têm sequer condições materiais para formular algo nesse sentido. Então, o que nos resta é lutar por políticas públicas, de educação, assistência social e apoiar projetos políticos nesse sentido. Isso em um sentido coletivo.

O que é racismo estrutural?

Olhar a história do Brasil desde a escravização até a falta de inclusão das populações negras. Entender que foram criados mecanismos legais para afastar pessoas negras de possibilidades de emancipação social. São vários os exemplos: a Constituição Federal de 1824 vedava o acesso de pessoas negras à educação, a Lei de Terras de 1850 condicionava o acesso a terras à compra e venda, e naquele contexto nenhuma pessoa escravizada estava apta a possuir uma propriedade, entre tantas leis de escravização.

Com o fim formal da escravidão, houve um processo de criminalização de pessoas negras, sobretudo homens, alvos de leis como a vadiagem, que determinava a prisão de pessoas “sem ocupação”, numa época de alto desemprego para os homens negros. As mulheres negras foram destinadas ao trabalho doméstico, uma herança presente até hoje. Atualmente, estima-se que mais de 6 milhões de mulheres negras são empregadas [domésticas] no país, e a lei que regulamenta a profissão somente foi aprovada em 2013, sob intensos protestos do sistema que se beneficiou historicamente desse trabalho.

Então, estamos dizendo que o racismo estrutura as relações raciais no Brasil. Uma estrutura presente antes mesmo de nós termos nascidos. No Brasil é comum entrarmos em restaurantes e não encontrar nenhuma pessoa negra no local – nem como garçom ou garçonete. Quem vai a shopping terá dificuldade de encontrar uma vendedora de lojas negra. Isso, vale frisar, em um país com 54% da população negra. Ou seja, o racismo estrutura a sociedade e, assim sendo, está em todo o lugar.

Como você avalia os protestos que pipocaram pelo país a partir do conhecimento público do recente assassinato ocorrido no Carrefour?

Penso que está sendo um marco no país, pois gerou uma onda de protestos contra o racismo que é, de certa forma, inédita. Há pouco mais de dois anos, Marielle Franco, mulher negra vereadora no Rio de Janeiro e grande promessa para a política nacional, foi assassinada em um contexto até hoje não revelado, porém com fortes ligações com a milícia que atua em favor do chefe do executivo nacional. Naquela época chegou a haver uma comoção nacional e internacional, pela brutalidade com a qual Marielle foi morta. Aquele contexto era de um assassinato com fins políticos, pelo que ela representava de potencial para o país, bem como por ser uma figura completamente antagônica ao projeto miliciano que se instaurou no poder. No caso de Beto Freitas, uma revolta que foi ao longo da história sufocada, encontrou coro para ecoar pelo país.

A polícia brasileira é a polícia com o mais alto índice de letalidade: em um ano, somente a polícia do estado do Rio de Janeiro mata mais que a polícia de todos os Estados Unidos. Então podemos ter uma dimensão de quantas vidas negras foram ceifadas no país, quantas mães enterraram seus filhos. Alguns casos despertaram a raiva da população negra ao trauma do colonialismo.

Não há como não citar o menino João Pedro, de pouco mais de 14 anos, que estava brincando em sua casa, durante o isolamento do coronavírus, quando a polícia disparou mais de 70 vezes sobre a residência em que ele estava, na qual não tinha ninguém sequer investigado. São tantos casos que podemos citar… Claudia Silva Ferreira, em 2014, mulher negra, mãe, que foi morta numa ação policial no Rio de Janeiro. Sem qualquer cerimônia, seu corpo foi jogado no porta-malas da viatura. Na saída da comunidade, o porta-malas abriu, e ela foi sendo arrastada pelo chão. Uma cena que nenhuma de nós jamais esqueceu, mas que para muitos é assunto do passado. Então, esse país deve muito à população negra, e o despertar está sendo na medida da dívida.

Desafios contemporâneos

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Vivemos momentos de grandes incertezas na sociedade global, definidas pelo grande sociólogo polonês Zygmunt Bauman como um mundo líquido, caracterizado por grandes instabilidades, volatilidades e grandes transformações. Para piorar o momento atual, vivenciamos uma grande crise sanitária, uma crise global com impactos sobre todas as regiões do mundo, gerando incremento dos infectados, mortes e degradações variadas.

Dentre os grandes desafios da sociedade contemporânea, destacamos os desequilíbrios climáticos, desemprego elevado, endividamento crescente, incremento das desigualdades sociais, além de conflitos políticos, raciais e culturais, além de violências, intolerâncias e desequilíbrios emocionais e psicológicas. Neste momento, a pandemia global se tornou o maior desafio mundial, cujos impactos destrutivos crescem aceleradamente, gerando medos, desesperanças e crueldades, contabilizando mais de 1 milhão de mortos, degradação econômica, insegurança e violências generalizadas.

Vivemos em uma sociedade marcada por variadas contradições, de um lado, percebemos tantas inovações tecnológicas, novos conhecimentos, novas ciências, novos materiais, novas descobertas que retardam o envelhecimento e melhoram a qualidade de vida e propiciam ao indivíduo mais bem-estar social. De outro lado, percebemos um mundo marcado por conflitos étnicos, desigualdades em ascensão, riquezas concentradas, pobrezas crescentes e instabilidades, depressões e violências generalizadas.

O incremento da ciência, do conhecimento e da tecnologia foram fundamentais para o crescimento da economia global, mas ao mesmo tempo percebemos que o crescimento da tecnologia não foi capaz de transformar os valores da sociedade, muito pelo contrário, os novos valores estão todos se concentrando nos valores do capital, do dinheiro, da ostentação e da acumulação. Estamos vivendo um descompasso entre valores, na contemporaneidade estamos construindo uma sociedade marcada por valores éticos e morais centrados nas incertezas e nas instabilidades, ao mesmo tempo, perdemos as referências da convivência social, da comunidade, da empatia e da solidariedade.

Os desafios são prementes, percebemos uma ausência de líderes mundiais capacitados para compreender a contemporaneidade, demonstrar conhecimentos técnicos e agilidade política para costurar novos espaços para a superação deste momento de grandes dificuldades e incertezas. Necessitamos de líderes ousados, criativos e solidários, com ideias dinâmicas e flexíveis, deixando de lado pensamentos atrasados, retrógrados e pouco eficientes. Neste momento de desagregação social, crises econômicas e conflitos políticos, estas lideranças devem deixar de lado crenças ultrapassadas, fortalecer a ciência, adotar políticas pragmáticas, centradas nas pesquisas científicas, estimulando os investimentos no conhecimento, na democratização dos ganhos e políticas de inclusão social, sem estas políticas dificilmente vamos conseguir dar passos mais eficientes para o desenvolvimento da civilização.

Neste momento, as políticas da contemporaneidade devem construir uma nova coletividade, mais inclusiva, mais reflexiva e verdadeiramente plural, sem o predomínio do individualismo e da concorrência degradante, fazendo com que a tecnologia e a ciência sirvam para o bem-estar de todos os grupos sociais ao invés de um pequeno grupo de privilegiados e num ambiente marcado por pobrezas e degradações, como estamos visualizando na sociedade contemporânea.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre e Doutor em Sociologia/Unesp, Professor Universitário.
contato@aryramos.pro.br. Diário da Região, 25 de novembro de 2020, Caderno Economia.

A Nova Economia

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A sociedade internacional está passando por grandes transformações em todas as áreas e setores, estas alterações estão gerando impactos generalizados, neste momento as bases da economia estão passando por construções ou por reconstruções. Neste momento, percebemos o nascimento de uma Nova Economia, gerando novos atores sociais, políticos e culturais, com isso, percebemos novos desafios e novas oportunidades, trazendo medos e esperanças e, ao mesmo tempo, novos comportamentos, concorrências e riscos crescentes, estamos numa outra sociedade, numa nova coletividade e construindo novos modelos de civilizações.

Como destacou o criador do Fórum Econômico Mundial, Klaus Chwab, a Nova Economia traz novos conceitos para a economia contemporânea, como Indústria 4.0, Inteligência Artificial, Internet das coisas, robótica, civilização digital, Startups, 5G, computação quântica, biotecnologias, dentre outras. Estes novos conceitos estão transformando todas as economias, desafiando as nações, criando um mundo cheio de oportunidades, mas ao mesmo tempo percebemos grandes instabilidades, inseguranças e desesperanças.

A Nova economia está exigindo uma constante transformação cotidiana, os trabalhadores devem incorporar novas inovações, as invenções devem impulsionar a coletividade, os desafios devem ser crescentes, as atividades repetitivas do mundo do trabalho devem ser repassadas para as máquinas. Os trabalhadores devem ser estimulados para o pensamento crítico, exigindo novas mentalidades e a construção de novos equilíbrios emocional e espiritual, sem estes equilíbrios não conseguirão se adaptar a esta nova sociedade, marcadas por incertezas crescentes, instabilidades gerais, volatilidades, complexidades e transformações constantes. Destes desafios, destacando os modelos educacionais, das escolas e das universidades, que prescindem de novas metodologias para a construção dos novos conhecimentos, se a sociedade demanda cidadãos conscientes e críticos, os novos modelos de ensino devem capacitar para a construção dos trabalhadores do século XXII, deixando de lado os modelos repetitivos, superficiais e baseados nas decorebas constantes, criando novos modelos dinâmicos e reflexivos para auxiliar na construção da nova economia contemporânea.

Os novos modelos de negócios atuam na construção de ecossistemas de empreendimentos, tais como startups, empresas de tecnologias e marcadas pelo crescimento das inovações, com suas mentalidades dinâmicas, com seus comportamentos marcados pela ambiguidade, por modelos revolucionários de negócios, mais marcados pela flexibilidade, pelo dinamismo e menos burocracias, dominados por aplicativos e produtos intangíveis. Neste novo modelo de organização, encontramos o cenário da nova economia, centrados nas incertezas e constantes mudanças, esta nova sociedade pode ser definida pela disrupção, que tem como base um rompimento com o velho marcado e abertura para o novo, mais tecnológico, flexível e prático.

A sociedade mundial se caracteriza por grandes transformações, a rapidez destas alterações cresce de forma acelerada. Neste ambiente, os indivíduos estão atordoados, assustados, os trabalhos estão se tornando escassos, com isso, o mundo de trabalho está gerando instabilidades, desesperanças, depressões e ansiedades. Neste mundo contemporâneo, a tecnologia acelera rapidamente, neste ambiente, enquanto os indivíduos não conseguem acompanhar estas transformações impulsionadas pelas novas tecnologias, vivemos um grande paradoxo, os consumidores percebem inúmeras mercadorias disponíveis no mercado, mas de outro lado percebem seus rendimentos se reduzindo, seus salários diminuem e as perspectivas de sobrevivência dignas diminuem de forma acelerada, impulsionando conflitos, violências e a convivência social, neste momento, percebemos a importância de uma discussão maior sobre os rumos da sociedade mundial.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre e Doutor em Sociologia/Unesp, Professor Universitário Unirp e Fatec. Diário da Região, 18 de novembro de 2020, Caderno Economia.

O fim do auxílio emergencial, por Cecília Machado.

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É possível fazer mais, melhor e com muito menos recursos

Folha de São Paulo, 24/11/2020

Falta pouco mais de um mês para o fim do auxílio emergencial. Mas o calendário de vacinação no Brasil permanece incerto, e uma segunda onda da pandemia, à luz do que vem ocorrendo no hemisfério Norte, é dada como cada vez mais provável também aqui.

Na ausência de um plano para a manutenção da renda dos pobres e trabalhadores informais nos próximos meses, volta a ser posta em discussão a prorrogação do auxílio emergencial.

É claro que o auxílio foi importante para garantir a renda de diversas famílias, especialmente no início da pandemia. Mas também é verdade que, por ter sido estabelecido em caráter de urgência, buscando alcançar muitas pessoas e em curto espaço de tempo, várias regras e parâmetros do programa ficaram bastante aquém do ideal.

Hoje, a manutenção do auxílio, tal qual desenhado, exibe diversas ineficiências, além de um custo fiscal insustentável, caso ele venha a se tornar uma assistência de caráter mais permanente, o que sucessivas prorrogações poderiam indicar.

A dimensão e os números do programa são impressionantes. O auxílio corresponde a 56% do Orçamento de Guerra. Desde seu início, em abril, até agora, o auxílio emergencial beneficiou 118 milhões de pessoas de forma direta ou indireta, 56% da população brasileira.

Ao todo, foram 68 milhões de beneficiários, totalizando R$ 258 bilhões em transferências. Entre os benefícios, 19,2 milhões são do Bolsa Família, e outros 10,5 milhões estão no Cadastro Único.

A maior parte dos beneficiários, 38,1 milhões de pessoas, corresponde a novos registros, ou seja, são trabalhadores informais em sua maioria, mas também pessoas fora da força de trabalho ou desempregadas, “invisíveis” até então. A incidência em base ampla e o valor estabelecido para as parcelas permitiram que o programa alcançasse muito mais do que a simples reposição de rendas perdidas.

Até o fim do ano, o orçamento do programa deve alcançar R$ 300 bilhões. Não é pouco. Em perspectiva comparada, esse valor corresponde a dez vezes o orçamento anual do Bolsa Família. Ou então cinco vezes o orçamento anual do Benefício de Prestação Continuada. Ou 15 anos inteiros do orçamento com o abono salarial.

Não custa lembrar que o orçamento inicial do programa, R$ 98,2 bilhões para os três meses que foram previstos, é um terço do valor que agora observamos.

Entre as ineficiências do programa, estão os chamados erros de inclusão e de exclusão do programa. Ou seja, pessoas que receberam, mas não deveriam; e pessoas que não receberam, mas deveriam.

O TCU (Tribunal de Contas da União) identificou, por exemplo, 439 mil beneficiários que receberam benefícios indevidos em auditoria dos quatro primeiros meses do programa, totalizando R$ 813 milhões. Uma estimativa obviamente subestimada dos pagamentos indevidos, já que os critérios utilizados pelo TCU são bastante conservadores e usam informações de cadastros e registros administrativos do governo, onde não há informações sobre as rendas do setor informal e evasões fiscais.

Mais importante é o diagnóstico sobre as deficiências de controle e as inúmeras dificuldades na verificação dos critérios legais de qualificação ao programa. Entre eles, chama a atenção o caráter declaratório da composição da família, que impacta diretamente a elegibilidade ao programa, através da renda per capita da família, assim como o número de benefícios que um núcleo familiar pode receber.

O relatório do TCU identificou limitações de controle associadas à identificação de vínculos familiares (cônjuges e filhos), à multiplicidade de documentos legais que atestam a identidade de um cidadão e à dificuldade em estabelecer unidades domiciliares a partir dos endereços informados nos registros.

Não surpreende a baixa focalização do programa quando sua incidência é analisada em inquéritos populacionais que levam em conta o correto conceito de domicílio e família e que conseguem identificar todas as rendas que são de fato recebidas pelas pessoas.

Apenas pouco mais de 50% do auxílio emergencial incidiu sobre os 30% mais pobres da população. Já a metade mais rica da nossa população recebeu 25% do auxílio. E, entre os 10% mais ricos, 6% receberam o auxílio.

Embora sejam legítimas as ponderações acerca do ineditismo e da urgência na implementação do auxílio emergencial, é inegável a existência de inúmeras margens de ajuste que podem tornar o auxílio uma política pública mais efetiva. É possível fazer mais, melhor e com muito menos recursos.

Cecilia Machado
Economista, é professora da EPGE (Escola Brasileira de Economia e Finanças) da FGV.

“Auxílio emergencial foi ajuda significativa, mas seu fim deixará desigualdade como herança”, diz L. Carvalho.

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Laura Carvalho:

Economista e professora da FEA-USP explica por que a perspectiva de recuperação econômica do Brasil é ruim e defende um novo modelo que combine crescimento econômico com inclusão e sustentabilidade

Jornal GGN, 21/11/202

O auxílio emergencial representou uma ajuda significativa para os brasileiros durante a pandemia e preveniu uma queda ainda maior no PIB do país, mas a falta de um plano de recuperação econômica é preocupante, e a volta ao nível de renda pré-crise pode levar até duas décadas. Esse é o panorama traçado por Laura Carvalho, economista e professora da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA-USP) e autora do recém-lançado livro Curto-circuito: o vírus e a volta do Estado.

Em entrevista exclusiva à Agência Pública, Laura Carvalho explica que, quando a pandemia chegou, as famílias mais pobres ainda estavam sofrendo os efeitos da recessão de 2015 e 2016, como a perda de renda, o desemprego e a precariedade no mercado de trabalho. “Graças à aprovação desse programa substancial de transferência de renda, você tem essa situação paradoxal em que, mesmo com uma crise muito profunda, os níveis de pobreza caem para os seus menores patamares da história e a desigualdade chega a cair”, explica.

No entanto, ela ressalta que esse efeito positivo tem data para acabar. “Com o fim do auxílio e com a impossibilidade de se compatibilizar novos programas generosos de proteção social com o atual desenho do teto de gastos, essas desigualdades – que na verdade subiram, mas foram neutralizadas pelo auxílio – vão aparecer, vão vir à tona”, diz. Como o patamar de renda dos brasileiros está ainda menor devido às crises sucessivas, ela acredita que levará duas décadas para recuperarmos a renda média que tínhamos em 2014.

Mas nem tudo é tragédia. Para a economista, essa é uma ótima oportunidade para passarmos a financiar políticas sociais com um imposto de renda mais alto para os ricos e a adotar um modelo econômico mais digno e sustentável – alinhado com a chamada “retomada verde” que diversos países ao redor do mundo estão propondo. “É perfeitamente possível desenhar um modelo que envolva o próprio combate às desigualdades de renda e de acesso a serviços, uma série de lacunas que a gente nunca superou, como um vetor de geração de empregos e de novas tecnologias. Não se trata de não ter crescimento econômico, mas de se ter um outro tipo de crescimento econômico que beneficie a maioria da população, não só alguns, e que não destrua o meio ambiente”, argumenta.
Laura Carvalho foi escolhida para esta entrevista pelos Aliados da Pública e, durante a conversa, respondeu a várias das perguntas que eles enviaram anteriormente. Se você quer escolher quem a Pública vai entrevistar, seja nosso Aliado.

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Em maio, você disse que a recessão causada pela pandemia devia ser enfrentada em duas fases. Primeiro com medidas para combater a pandemia em si e garantir a sobrevivência das famílias e empresas. Só depois, quando os números da doença estivessem menores, seria possível tomar medidas macroeconômicas. Como você avalia a resposta do governo Bolsonaro para lidar com a economia na pandemia? Estava de acordo com essas recomendações? 

Na primeira fase, nem é possível nem desejável que a economia seja reativada completamente, porque a ideia é justamente controlar a causa do problema, que é o próprio contágio pelo vírus. Na área econômica estritamente – deixando de lado a área da saúde, que foi um desastre –, há três eixos: um eixo voltado para a sobrevivência das famílias, com transferência de renda; um eixo voltado para a sobrevivência das empresas, que tem a ver com medidas para o crédito e adiamento do pagamento de impostos; e o terceiro, que é o eixo para preservação dos empregos, voltado para evitar as demissões e proteger os trabalhadores formais.
O primeiro [da sobrevivência das famílias] é o eixo mais bem-sucedido. Não foi uma iniciativa do governo, inclusive o programa aprovado foi muito maior em valor e em número de beneficiários do que aquilo que estava proposto inicialmente pela equipe econômica do governo. Mas o auxílio emergencial foi capaz de evitar uma perda de renda para a metade mais pobre da população brasileira durante essa que é a mais profunda recessão de que temos notícia. Então, houve, sim, uma perda de renda maior para os mais pobres quando a gente pensa em renda do trabalho, mas, quando a gente soma o auxílio emergencial, o índice de Gini, que mede a desigualdade, até cai durante a pandemia por conta desse programa. Ou seja, o auxílio foi capaz de neutralizar completamente o aumento da desigualdade que houve no mercado de trabalho durante a pandemia.
O segundo eixo, que é o de proteção às empresas, é o mais fracassado dos três, onde os impactos foram desastrosos. As linhas de crédito desenhadas pelo governo não chegaram na ponta, tampouco tiveram volume suficiente liberado. Isso até foi melhorando, outras linhas foram sendo criadas e expandidas, mas o desenho inicial exigia contrapartidas demais das empresas e também não cobria o risco dos bancos; então, os bancos não tiveram interesse em realizar as operações. E isso fez com que, até a metade de julho, 716 mil empresas fechassem definitivamente as portas no Brasil, das quais 99,8% tinham até 49 empregados. Os pequenos negócios, que, claro, têm muito mais dificuldade de sobrevivência, fecharam as portas. E são um negócio que emprega muita gente; portanto, isso também repercute nos empregos e nas nossas perspectivas de recuperação. O desastre foi quase tão grande quanto o da área da saúde, que também não teve nenhum sucesso.
O terceiro eixo, de preservação dos empregos exclusivamente, eu diria que está no meio do caminho, porque empregos foram preservados com a possibilidade de manter os empregados sem o custo total. A medida provisória que foi aprovada para a suspensão de contratos e redução da jornada de trabalho não foi desenhada de forma tão generosa quanto o que foi feito em alguns outros países, como o Reino Unido, que preservaram quase toda a renda dos trabalhadores que tiveram seus contratos de trabalho reduzidos. No caso brasileiro, a primeira versão era um desastre, nem previa nenhum tipo de remuneração para os trabalhadores que tivessem o contrato suspenso, mas aí isso gerou uma polêmica, a medida foi revista, e a segunda versão da medida prevê o pagamento de uma parte do seguro-desemprego para os trabalhadores nessa situação. Isso protegeu os trabalhadores com renda mais baixa, mas o seguro-desemprego tem um teto de R$ 1.813, então os trabalhadores que ganham mais de dois salários-mínimos e meio ainda tiveram uma perda de renda muito significativa.

Pensando naquela dicotomia que o governo colocava entre salvar vidas e salvar a economia, na realidade ele não conseguiu salvar vidas e só salvou parte da economia? 
Na verdade, era uma falsa dicotomia já na origem. A recuperação da economia depende do controle da pandemia. Isso está cada vez mais claro nos dados que saíram desde então, referentes a diferentes países. Os países que não conseguiram [controlar a pandemia] estão tendo quedas de PIB maiores. No caso brasileiro, o auxílio emergencial acabou conseguindo atenuar a queda do PIB. Ele deu tão certo que evitou a perda de renda da metade mais pobre da população e manteve os níveis de consumo, particularmente em municípios mais pobres do Norte e Nordeste do país. Isso contribui para que o Brasil não tenha uma das recessões mais profundas, mas, por outro lado, pelo fato de não termos controlado a pandemia e pensando que esse auxílio emergencial será encerrado no fim deste ano, as nossas perspectivas de recuperação são, sem dúvida, muito ruins se comparadas à economia global.

Em um texto recente para o Nexo, você fala que a recuperação econômica do Brasil vai ser em K, ou seja, ela será mais rápida para os ricos e mais lenta para os pobres. Mas você ressalta que a gente já estava em uma trajetória de recuperação em K da crise anterior, de 2015 e 2016. O que isso significa na prática para a população?

Quando se fala em recuperação em K, a ideia é um cenário em que a recuperação dos níveis de renda pré-crise será muito mais rápida para quem está no topo da pirâmide do que para quem está na base. Por isso, o formato da letra K ajudaria a ilustrar – na verdade, os mais pobres até continuariam perdendo renda enquanto os mais ricos já estariam se recuperando. Isso é exatamente o que víamos depois de 2017, quando começa a recuperação da última recessão no Brasil: o topo e o meio da pirâmide recuperavam a renda lentamente, mas os mais pobres ainda estavam perdendo renda.
Os mais pobres ainda estavam em recessão – com perda de renda, aumento da informalidade, precariedade cada vez maior no mercado de trabalho e taxas de desemprego ainda muito elevadas – quando a pandemia chegou. Graças à aprovação desse programa substancial de transferência de renda, você tem essa situação paradoxal em que, mesmo com uma crise muito profunda, os níveis de pobreza caem para os seus menores patamares da história e a desigualdade chega a cair. Se você olha para os 30% mais pobres, você vê que há até um ganho de renda em relação ao que era antes.
Mas com o fim desse auxílio e com a impossibilidade de se compatibilizar novos programas generosos de proteção social com o atual desenho do teto de gastos, essas desigualdades – que na verdade subiram, mas foram neutralizadas – vão aparecer, vão vir à tona. Isso pode nos levar a basicamente retomar a trajetória anterior de aumento da desigualdade e de perda de renda na base, mas partindo de um nível ainda menor de renda, porque agora estamos atravessando mais uma recessão. Então, isso tudo tende a criar um quadro que vai até prejudicar as nossas possibilidades de recuperação, porque já há muitas evidências de que no Brasil esse aumento da desigualdade funciona como uma âncora que impede a economia de crescer mais rapidamente.

O horizonte que estamos vendo é o de duas décadas perdidas?
Se a gente olha para o que ocorreu de 2017 até o início da pandemia, a gente vê que a recuperação era tão lenta que a gente levaria uma década para recuperar o nível de renda per capita que a gente tinha em 2014. E aí vem a pandemia. Se a gente olha para o que seria necessário o Brasil crescer para que seja apenas uma década perdida, já está claro que é impossível. A gente teria que crescer a um ritmo muito acima do que já crescemos em todos os períodos da história, o que não parece ser o caso, considerando tanto o cenário internacional quanto o da política doméstica. Simulando diferentes cenários, parece que a gente está muito mais perto de demorar duas décadas para voltar àquela renda per capita média de 2014 do que apenas uma década.

Estamos observando um aumento significativo no preço dos alimentos e até no aluguel. Se as coisas estão caras e as pessoas estão perdendo o emprego, por que a aprovação ao governo continua alta? 
É claro que a situação dos alimentos de fato tem um efeito desproporcional na cesta de consumo dos mais pobres. É um tipo de inflação que tem mais a ver com os efeitos da desvalorização do real somados ao aumento de preços de alimentos nos mercados internacionais. E o índice que reajusta o aluguel é muito sensível também a variações do câmbio e nos preços de alimentos.
Mas o fato é que, mesmo com esse aumento da inflação, com a perda de empregos e de renda durante a pandemia – que também afeta desproporcionalmente os trabalhadores menos escolarizados – ainda assim houve um ganho de renda para os 30% mais pobres. Se a gente olha para os 50% mais pobres, o auxílio compensa inteiramente a perda de renda. E isso é muito significativo. A gente está falando de metade da população brasileira tendo preservado sua renda na pandemia e parte delas até tendo aumentado sua renda graças a esse auxílio de R$ 600. Para muita gente parece pouco, mas para os níveis de renda no Brasil é muito significativo. Não quer dizer que seja o único fator a explicar a popularidade do governo, mas esse é um dos fatores, sim.

Muitos leitores perguntaram se é verdade que não existem recursos para bancar o auxílio emergencial durante mais tempo ou se é só uma questão de prioridades do governo. 
O atual teto de gastos vai mesmo diminuindo o espaço para despesas não obrigatórias ao longo tempo. As despesas com a Previdência, por exemplo, continuam crescendo mesmo com a reforma e, como o teto fica parado no mesmo lugar, ele só é reajustado pela inflação. Isso faz com que o espaço para o resto vá ficando cada vez menor.
Com esse contexto do teto, fica mesmo impraticável pensar em uma expansão significativa de gastos sociais. No entanto, há soluções alternativas, como, por exemplo, a tributação da renda dos mais ricos – que a gente sabe que pagam pouco imposto de renda da pessoa física no Brasil por causa de uma série de isenções e também de uma alíquota máxima baixa para padrões internacionais. A transferência, por exemplo, dessa arrecadação extra para programas de transferência de renda é algo que é perfeitamente possível. Já há simulações que mostram que daria para financiar um programa bastante generoso com medidas que não são nada radicais, que só tornam um pouco mais justo o nosso sistema tributário.
Mas isso também é inviável hoje com o teto de gastos porque a forma como ele é desenhado impede que se arrecade mais e se gaste mais. Os gastos estão parados no mesmo lugar independentemente do nível de arrecadação de impostos. Isso impossibilita que nós debatamos soluções alternativas, pois envolveriam um redesenho do teto que o tornasse mais alinhado com a experiência internacional, em que o limite para o crescimento dos gastos é atrelado a quanto cresce a economia e a arrecadação.

A dívida pública foi o principal assunto nas perguntas enviadas pelos leitores, especialmente no que diz respeito à alta porcentagem do orçamento federal que está comprometida com o pagamento da dívida. Alguns cálculos mostram que quase 40% do orçamento vai para pagar juros e amortizações da dívida. Quanto disso é verdade e quanto é exagero?
Em geral, esses números confundem um pouco o que de fato é o pagamento de juros com o que é uma rolagem da dívida pública, que é quando o governo emite dívida para pagar os juros sobre a dívida anterior. Esse é um procedimento normal, que todas as economias do mundo realizam.
Há muita confusão nesse debate. Não é correto dizer que é por conta do pagamento de juros que o orçamento público está restrito para outras áreas. Esse raciocínio mistura coisas muito diferentes em uma mesma conta. Na prática, o que restringe o orçamento público brasileiro são as regras fiscais que a gente adota. A meta de resultado primário faz com que, quando a economia cresce menos e arrecada menos, a gente seja obrigada a cortar gastos. O teto de gastos fixa o valor total dos gastos públicos.
A nossa capacidade de financiamento por meio da dívida pública permite que, em situações de emergência, a gente gaste mais para estabilizar a economia e evitar os efeitos socioeconômicos de um choque. É assim mesmo que deveria funcionar o sistema. O mito de que o país tinha quebrado e não tinha qualquer possibilidade de gastos adicionais se desfez a olho nu na pandemia. Esse ano, o Brasil gastou mais de 8% do PIB com medidas de combate à pandemia, e a maior parte disso foi justamente para o auxílio emergencial por meio da emissão de dívida pública. Não tivemos que recorrer, por exemplo, a dívidas em dólar, a empréstimos do FMI – como a Argentina e outros países do hemisfério sul. Agora, isso não significa que a gente queira ir para qualquer patamar de dívida pública e torná-la explosiva para todo o sempre.
O indicador que importa é o que relaciona a dívida pública com o PIB. E ele não depende só do quanto o governo está gastando, depende também do quanto a economia está crescendo, do próprio PIB, e do quanto o governo está arrecadando. Então, não é um cálculo estático, é um cálculo dinâmico.
No caso brasileiro, de um lado, dá para pensar em um caminho em que a gente tenta estabilizar a dívida e redistribuir os custos dessa crise por meio de uma tributação maior sobre altas rendas e patrimônios. E, de outro, a gente também toma medidas que estimulem o crescimento econômico para que a arrecadação de impostos volte, para que o PIB cresça, e essa dívida então deixe de pesar tanto assim em relação ao PIB.
Mas algum tipo de atuação pontual é necessária, já que há projeções mostrando que a dívida pode chegar até 100% do PIB em 2020.
Sim, mas o que se demanda para estabilizar a dívida pública é que é a grande controvérsia. Uma atuação que signifique cortar gastos em todas as áreas em meio a um quadro de crise econômica, que é o quadro que a gente tem no ano que vem, é justamente o que o FMI alerta que pode acabar sendo contraproducente porque isso prejudica a recuperação em tal nível que a dívida pode, ao invés de cair, subir em relação ao PIB, como, aliás, ocorreu no Brasil. Desde que começou o ajuste fiscal em 2015, a dívida pública só subiu em relação ao PIB porque a economia ficou estagnada.
Então, tem que ter muito cuidado com a composição desse ajuste para não prejudicar a própria retomada. E também é necessário considerar essa relação entre taxa de juros e taxa de crescimento econômico para projetar o que é essa dinâmica da dívida ao longo do tempo. O orçamento público não é como o orçamento familiar, em que você simplesmente não tem qualquer poder sobre quanto recebe. Ao gastar, o governo também pode estimular uma economia, que por sua vez cresce, o que gera arrecadação de impostos. Então, tudo isso não é uma matemática tão exata. A gente não pode correr o risco de precipitadamente tirar todo e qualquer estímulo da economia e, com isso, acabar sofrendo uma recessão ainda mais longa e uma dificuldade ainda maior de recuperar a arrecadação e estabilizar a dívida.

Você defendeu que a renda emergencial deveria ser permanente no pós-pandemia. Por quê? Essa é a melhor forma de reduzir a desigualdade no país? 
Quando eu falo em tornar permanente algum sistema mais amplo de proteção social, estou falando de criar uma renda básica, não de tornar permanente o atual formato do auxílio. Mas está claro que a precarização, a volatilidade da renda na base da pirâmide e outros desafios que o mercado de trabalho do século XXI vem apresentando – como relações de trabalho que não são sindicalizadas, e por isso trabalhadores não têm poder de negociação sobre quanto ganham, acabam aceitando jornadas indignas, salários indignos –, isso tudo justifica que a gente repense a rede de proteção social e expanda esses mecanismos de transferência de renda.
Acho que isso tem que vir em um pacote que tira de cima para dar para os mais pobres. Então, de um lado, a tributação progressiva da renda financia um programa mais amplo de transferência de renda do outro lado. E isso tem impactos significativos sobre a desigualdade. O Made [Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades], da Faculdade de Economia da USP, do qual faço parte, está lançando uma nota em que fica muito claro que uma tributação sobre os mais ricos no Brasil hoje é capaz de financiar um programa bastante generoso que atinja os 50% mais pobres da população com um benefício per capita bastante superior ao atual Bolsa Família. E isso teria um impacto muito significativo na desigualdade. A gente inclusive compara [essa proposta] com as propostas que foram feitas pelo governo, que remanejam recursos dos programas sociais existentes e, com isso, têm um impacto muito menor na desigualdade. É perfeitamente possível. Mas, claro, esbarra em restrições que são predominantemente políticas, não econômicas.
Com o fechamento de mais de 700 mil empresas pequenas e médias durante a pandemia, o desemprego também bateu recorde. Você disse que esse foi o eixo de medidas econômicas que menos deu certo, então qual seria o caminho para recuperar esses empregos?
Essa é a tarefa mais difícil porque empresas que fecham não necessariamente reabrem, empresas grandes que sobrevivem acabam dominando esses mercados, o que leva a uma concentração maior de riqueza e de poder de mercado na mão de poucos e destrói empregos, porque as pequenas empresas são as maiores empregadoras. Quase metade dos empregos no Brasil são de pequenas empresas, sobretudo em setores de serviço e de comércio que foram muito afetados por essa crise e que empregam muita gente da base da pirâmide e com menor grau de instrução. Então, isso é um problema de difícil solução porque, para que essas empresas voltem ou que outras as substituam gerando empregos, a gente precisa que a economia cresça. E esse crescimento econômico não pode ficar restrito ao topo da distribuição, porque a gente está falando de lojas, comércios e serviços em geral ao redor do Brasil, em todos os bairros, em municípios mais pobres, não só de quem serve às elites econômicas.
Esse crescimento robusto e essa retomada mais inclusiva exigiriam um plano de recuperação, como, aliás, vários países da Europa estão anunciando, desenhando, formulando. O debate hoje em países europeus e em alguns países asiáticos é justamente sobre planos de recuperação pós-pandemia que sejam inclusivos e sustentáveis e gerem empregos. O debate aqui no Brasil é sobre onde nós vamos cortar mais gastos no ano que vem, não sobre um plano de recuperação econômica. De alguma forma, a gente está completamente descolado dos desafios que estão colocados pela frente. Isso pode tornar permanente o fechamento das empresas e essa redução do número de ocupações na economia brasileira.
Além disso, a resposta muitas vezes são as reformas…
As reformas estão sendo pensadas sempre como “onde cortar” e “quantos bilhões de economia elas vão gerar”, o que também é uma maneira equivocada de pensar as próprias reformas. As reformas que estão sendo discutidas, como a reforma administrativa e a reforma tributária, são importantes para seus propósitos. Então, a reforma administrativa é importante para reestruturar as carreiras de maneira que os servidores públicos realizem o trabalho de forma mais eficiente para melhorar a qualidade dos serviços públicos para a população. Mas não é isso que acaba pautando o debate sobre a reforma.
A reforma no atual contexto, inclusive, não é favorável para esse tipo de discussão, porque as preocupações mais de curto prazo dominam – quase 14% de desemprego, desigualdade crescente, um auxílio emergencial que está chegando ao fim e que vai deixar desigualdades como herança, uma crise econômica que ainda não chegou ao fim, um problema na área da saúde, problemas na área de educação… E a discussão é sobre uma reforma administrativa que visa apenas gerar não sei quantos bilhões de economia. Essa não é a maneira de pensar o debate. Enquanto isso, a gente não tem nenhum plano de recuperação econômica.

Houve uma pergunta também sobre o Paulo Guedes, que não tem entregado nada do que prometeu. No primeiro ano de governo houve um crescimento pífio, durante a pandemia a proposta era um auxílio de R$ 200, e a única reforma que saiu do papel foi graças ao Congresso. O que ainda sustenta o Guedes no governo?
O governo foi eleito com essa plataforma que combina uma parte de conservadorismo e autoritarismo com esse fundamentalismo de mercado que o Paulo Guedes representa. Essa combinação nem é tão comum nesses novos movimentos de extrema direita ao redor do mundo, como na Hungria e nos Estados Unidos. E isso gera contradições crescentes.
Por um lado, isso ajudou a eleger o Bolsonaro porque garantiu o apoio de elites econômicas e reforçou o discurso de que a corrupção e o establishment políticos eram culpados pela crise econômica, então era melhor o estado não atrapalhar. Mas isso também é uma fraqueza do projeto bolsonarista que a gente viu durante a pandemia: o projeto não é capaz de lidar com o que a realidade impõe, não entrega resultados à população. O fato de, durante a pandemia, terem se aliviado as restrições e ter havido a possibilidade de fazer o auxílio emergencial acabou até ajudando o governo Bolsonaro e indo totalmente contra a agenda econômica difundida pelo Paulo Guedes.
Então, não sabemos o quanto essa contradição, que só vai aumentar, vai mudar o rumo da política econômica. É possível que o próprio Paulo Guedes altere esse rumo, como fez esse ano, ou talvez ele se torne incompatível com a continuidade do projeto.
O fato é que o Paulo Guedes em si também tem uma postura de não estar exatamente interessado em governar. O discurso e a mobilização da base acabam sendo muito mais importantes do que a formulação e a aprovação das políticas, e isso está muito em linha com a postura do governo Bolsonaro em geral. Veremos o que vai falar mais alto.

Você falou um pouco sobre uma retomada mais inclusiva e sustentável, a chamada “retomada verde“. Essa é uma possibilidade real no Brasil ou ainda estamos muito atrelados a correntes muito tradicionais e a um embate cristalizado no governo entre o liberalismo do Guedes e o desenvolvimentismo do Bolsonaro e dos militares?
Eu gosto de pensar que a gente tem todas as condições de formular um plano baseado em um novo modelo de desenvolvimento que seja inclusivo e sustentável e que não tenha a ver com esse desenvolvimentismo experimentado nos anos 1960 e 1970, que foi concentrador de renda e que também não tinha qualquer preocupação com os danos ambientais. Eu acho que é perfeitamente possível desenhar um modelo que envolva o próprio combate às desigualdades de renda e de acesso a serviços, uma série de lacunas que a gente nunca superou, como um vetor de geração de empregos e geração de novas tecnologias. Não se trata de não ter crescimento econômico, mas de se ter um outro tipo de crescimento econômico que beneficie a maioria da população, não só alguns, e que não destrua o meio ambiente.
A gente tem que articular um plano que envolva não só o setor público, mas o setor privado, as universidades, os institutos de pesquisa, e que seja orientado por essas missões de combate às nossas desigualdades e lacunas. Por exemplo, saneamento básico é uma área que a gente nunca resolveu. Uma parte do país não tem acesso a água e esgoto tratados. A área da educação, a da saúde que tem desigualdades enormes, que a gente viu agora concretamente, são áreas que claramente têm demandas urgentes da sociedade para a resolução desses problemas de infraestrutura ou de acesso a serviços e que têm um potencial enorme, se bem articulados, de mobilizar recursos que permitam o desenvolvimento de produtos e tecnologias locais que a gente possa potencialmente exportar. É possível inverter a lógica: não ser uma política industrial, voltada para os setores X ou Y da indústria, e sim ser uma política voltada para resolver os problemas da população que engendre efeitos para pequenos e médios produtores que tenham capacidade de gerar tecnologia e que possam ser mobilizados em uma estratégia assim, a partir das compras do governo, do BNDES e do setor privado.

Outra pergunta muito interessante que recebemos é quais são as alternativas para projetos de desenvolvimento econômico que levem em conta comunidades que não têm o lucro como objetivo? Onde cabem as lutas e os sonhos dessas populações?
Essa ideia de desenvolvimento que é pensada de maneira quase oposta à preservação ambiental, à sobrevivência das populações indígenas, que enxerga essas populações muitas vezes como um custo nesse processo, é justamente para onde não queremos ir. Inclusive, é uma oposição que é falsa.
Uma maneira muito mais interessante de pensar é o que eu estava descrevendo antes: partir das necessidades, das desigualdades e das demandas para gerar crescimento econômico inclusivo e ambientalmente sustentável. A economia solidária, circular, é plenamente compatível com um modelo assim. É evidente que no sistema capitalista sempre vai haver a tentativa de destruir e absorver esse tipo de iniciativa, e por isso é necessário que sejam formuladas políticas que preservem esse caráter. Mas isso não significa abrir mão do desenvolvimento econômico de maneira nenhuma.
No bioma amazônico, existe uma série de tecnologias que podem surgir justamente da sabedoria das populações indígenas e que têm que ser pensadas para serem compatíveis com o modo de vida dessas populações. Esse caminho também pode levar a aumentos de renda e à melhora de qualidade de vida para essas populações e para o Brasil em geral.
Essa ideia das missões sociais e ambientais como motores do crescimento econômico e desenvolvimento é uma inversão de lógica que é muito mais interessante para a gente pensar a estrutura produtiva do século 21, e não pensar em como retornar para estrutura produtiva do século 20.

‘O maior erro dos investidores é excesso de confiança’ segundo Richard Thaler.

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Expoente da economia comportamental diz que maior perigo é quando as pessoas acreditam que podem ‘bater o mercado’

Entrevista com Richard Thaler, Estado de São Paulo, 22/11/2020.

O economista americano Richard Thaler, de 75 anos, prêmio Nobel de Economia em 2017, é um dos expoentes da chamada “economia comportamental’, a corrente que estuda os efeitos da psicologia nas decisões econômicas. No best-seller Nudge – Um Pequeno Empurrão, escrito em parceria com o jurista Cass Sunstein e publicado em 2009, Thaler questiona a premissa de que os indivíduos tomam decisões econômicas de forma racional – adotada como verdade absoluta pelos economistas clássicos e neoclássicos – e apresenta um roteiro para ajudar a prevenir as escolhas erradas que fazemos em nossas vidas.
Nesta entrevista ao Estadão, realizada por e-mail, Thaler fala sobre como a pandemia está mudando o comportamento das pessoas e como isso vai moldar o mundo daqui para a frente. Fala também sobre os erros cometidos pelos investidores e sobre o que fazer para evitá-los. “O maior erro que os investidores cometem é o excesso de confiança”, afirma Thaler, que dará uma palestra por vídeoconferência amanhã, no Congresso Brasileiro de Mercado de Capitais, promovido pela B3 e pela Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiros e de Capitais (Anbima).

Como a pandemia afetou o nosso comportamento econômico e social e de que forma isso pode moldar as nossas vidas no futuro?
A pandemia é um momento determinante para o mundo. Desde o começo de março, a vida mudou para a maioria de nós. Tornou-se um teste para todos. Eu mesmo fui atingido em muitos aspectos por ela. Primeiro, a doença está tornando as nossas sociedades já desiguais ainda mais assimétricas. Nos Estados Unidos, as classes mais educadas não estão sofrendo muito, a não ser quando contraem a doença. As pessoas estão trabalhando em casa e lutando para educar os próprios filhos e cozinhar as suas próprias refeições. Mas, para a maioria, os meios de vida não foram ameaçados. Os mais abonados estão até reforçando a poupança, porque não têm em que gastar seu dinheiro.

No caso dos menos privilegiados, como foi o impacto da pandemia?
Os que trabalham na área de serviços, especialmente em restaurantes, hotéis e companhias aéreas, sofreram um duro golpe financeiro, e os profissionais de saúde que estão atuando na linha de frente da pandemia estão arriscando as suas vidas diariamente para cuidar dos doentes. Com certeza, trata-se de um grande teste para qualquer líder político e alguns estão claramente se dando melhor do que outros. Não consigo me lembrar de outra época em que tenha havido tanta incerteza. Todos nós estamos vivendo um dia de cada vez – e é provável que continue assim pelo menos por mais um ano, até surgirem vacinas para combater o vírus. São tempos assustadores.
O que mais chamou a sua atenção em termos de comportamento econômico na pandemia?
Em muitos casos, o comportamento mudou bem antes da adoção das medidas de isolamento social. A frequência a restaurantes e a realização de reservas aéreas, por exemplo, caíram rapidamente em meados de março, bem antes de as empresas fecharem. As pessoas têm bom senso. Bom, ao menos algumas pessoas têm.

Ao contrário do que diz a teoria econômica clássica e neoclássica, o sr. afirma que, muitas vezes, as nossas decisões econômicas são irracionais. Como isso afeta as pessoas, os mercados e os países?
Eu não gosto muito de usar a palavra “irracional”. Ser racional tem um significado especial em economia e o primeiro problema foi com os modelos que se baseiam em suposições irrealistas sobre comportamento. É claro que muitas pessoas são ingênuas sobre muitos aspectos de seu bem estar financeiro. Por isso, é importante que a gente as ajude sempre que possível. Mas algumas vezes, as pessoas pensam que eu estou criticando os seres humanos. É uma interpretação equivocada. Não é que as pessoas são burras. O mundo é que é duro.

Como a gente pode se proteger contra a nossa própria irracionalidade econômica?
Há muitas coisas que podemos fazer para nos proteger de nossas falhas. Todo mundo sabe que, às vezes, nós esquecemos das coisas. Por isso, fazemos listas. Colocamos alarmes para nos acordar e escrevemos compromissos importantes nos nossos calendários, para não perdê-los. Em questões financeiras, muitas famílias podem se beneficiar se fizerem as coisas de forma automática. Para muita gente, a melhor e talvez a única forma de poupar é se o dinheiro for tirado diretamente de seus contracheques antes que tenham a chance de gastá-lo. Os governos podem ajudar ao criar mecanismos que permitam que cada trabalhador possa direcionar diretamente uma parte de seu salário para a poupança. Também é importante oferecer estratégias sensatas de investimento, para que as pessoas não tenham de se tornar gestoras de seus próprios portfólios. Nós não fazemos cirurgias em nós mesmos. Chamamos médicos para fazê-las para nós. Com o nosso dinheiro, deveria acontecer a mesma coisa.

O professor Robert Schiller, também Prêmio Nobel de Economia, certa vez afirmou que ‘é o espírito animal que faz a economia andar’ e que tomamos decisões com base na intuição, e não na razão. Como isso se encaixa na sua teoria sobre os erros que cometemos nas nossas decisões?
Espírito animal é um termo confuso. Eu prefiro pular esta pergunta.

Se o sr. pudesse fazer uma única recomendação relacionada ao comportamento dos investidores no mercado, qual seria ela? Por quê?
O maior erro que os investidores cometem é o excesso de confiança. O maior perigo é quando as pessoas acham que podem selecionar uma ação específica para tentar “bater o mercado”. Os fatos mostram que a maioria dos gestores ativos (que selecionam papéis específicos para investir, em vez de montar uma carteira que espelhe os índices de mercado) fracassa ao fazer isso. É difícil. Sou diretor de uma empresa de gestão de recursos que adota uma estratégia ativa no mercado, mas nós contratamos pessoas muito inteligentes, damos a elas acesso a toneladas de informação e – mais importante – disciplina, para conseguir bons resultados. Quando falo em disciplina, quero dizer que nós tentamos apostar nos erros previsíveis dos outros. Isso é mais fácil do que tentar evitar os próprios erros.

Na prática, o que isso significa?
Por exemplo: pode haver uma estrada com uma curva perigosa. Prever que haverá colisões ali é fácil. Agora, se você receber um empurrão ou um estímulo, talvez possa evitar de se envolver em batidas. Nos Estados Unidos, muitas pessoas começaram a negociar por conta própria na Bolsa durante a pandemia. Pode se que tenham feito isso porque estavam entediadas e porque, durante um tempo, as apostas na área esportiva estavam suspensas. Ao longo desse período, o mercado subiu na maior parte do tempo, especialmente os papéis das grandes empresas de tecnologia, que são populares com pessoas físicas. Isso elevou o risco de haver excesso de confiança. Será que elas saberão quando chegar a hora de vender e sair do mercado? Eu duvido.

Numa escala de irracionalidade nas decisões econômicas de países, em qual posição o sr. colocaria o Brasil?
Dada a situação política no meu país, não me sinto credenciado a fazer julgamentos sobre governos de outras nações. Vamos apenas dizer que nenhum dos nossos governos está indo bem em lidar com a covid-19, especialmente em comparação com países como a Nova Zelândia.

O sr. investiria seu dinheiro no Brasil agora? Em qual ativo?
Eu não faço previsões sobre países.
O sr. está escrevendo um novo livro? Sobre o que será?

Sim. Quer dizer, mais ou menos um novo livro. O Cass Sunstein e eu estamos terminando agora uma grande revisão do nosso livro Nudge – Um Pequeno Empurrão. O título será Nudge – A Edição Final. Deve ser publicado no próximo verão (inverno no Brasil). Eu diria que será um livro, no mínimo, 50% novo. Terá muitos tópicos totalmente novos, incluindo um sobre o Sludge, que é o empurrão do mal. Este tem sido o meu projeto na pandemia.

Que livros o sr. está lendo agora?
Comecei a ouvir o áudio do novo livro do (ex-presidente) Barack Obama, que é narrado por ele mesmo. É muito agradável.