A grande mentira, por Antônio Prata.

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O sistema imunológico da democracia foi minado por ela mesma

Antonio Prata Escritor e roteirista, autor de “Nu, de Botas”.

Folha de São Paulo, 03;07/2021

Na revista piauí de junho, Roberto Andrés discute o ousado pontapé inicial do governo Biden. O presidente americano irá injetar trilhões de dólares na economia, estendendo o cobertor do bem-estar social e investindo pesado para reduzir emissões de carbono. O cavalo de pau foi dado, entre outras razões, pela constatação de que o trumpismo e demais arroubos antidemocráticos mundo afora só foram possíveis pois o discurso das democracias liberais estava fazendo água havia tempo.

Como as pessoas podem acreditar que a terra é plana? Como podem acreditar que a vacina vai instalar um chip em seus corpos? Como puderam acreditar nas mentiras do Trump e seguem acreditando nas do Bolsonaro, do Qanon, do Olavo de Carvalho? Bem, tanto nos EUA quanto no Brasil essas pessoas passaram décadas crendo numa mentira não menos gigante: que as democracias liberais, este nosso mundo com eleições, Netflix, cartão de crédito, Peppa Pig, politicamente correto, cross-fit, Carteira de Trabalho, McFlurry, habeas corpus, Fuvest e afins iria melhorar suas vidas, garantir seus direitos básicos e introduzi-las numa sociedade justa, onde todos teriam as mesmas oportunidades. Balela.

No longevo reinado de quase meio seculo do neoliberalismo, enquanto o estado do bem-estar social ia sendo desmantelado mundo afora, a distância entre o 1% e os 99% crescia. As pessoas se sentiram enganadas –e foram. (Sobre este processo, vale ler “A consciência de um liberal”, do Paul Krugman, e os contos “O cobrador”, do Rubem Fonseca, e “O espremedor de culhões”, do Bukowski).

Não adianta virem os Stevens Pinkers da vida mostrar que o capitalismo melhorou as condições dos pobres nos últimos 250 anos. O motoboy que se arrisca todo dia sob sol e chuva pra levar refeições valendo metade do seu salário não quer saber dos últimos 250 anos, quer saber do mês seguinte. Quer ter um trabalho que curta e seja bem pago, quer ser olhado com desejo pela moça bonita do Shopping Higienópolis e não com desconfiança pelos frequentadores e seguranças. Quer ser admirado pelos filhos e comer sua picanha com cerveja no domingo.

As pessoas não são burras. O motoboy olha pela fresta da porta na casa chique e sabe que é o mais próximo que vai chegar daquela sala, embora o discurso reinante seja o de que se ele se esforçar bastante, prosperará. Se isso não é fake news, não sei o que é.

O bolsonarismo e o trumpismo são infecções oportunistas: alastraram-se porque o sistema imunológico da democracia foi minado por ela mesma. Essa picaretagem de prometer aos pobres propaganda de margarina e entregar gás lacrimogêneo aguenta só até certo ponto. Quando a mentira cai de madura, a dissonância cognitiva deixa na cabeça dos desiludidos um rombo pelo qual entra todo o tipo de terraplanismo.

Não vamos vencer o fascismo fazendo jogral com artistas no Facebook nem escrevendo colunas argumentando que a democracia é a melhor forma de governo –tenho lugar de fala, de jogral e de coluna neste assunto. A melhor saída, a única eficaz e justa, é construirmos uma democracia que seja radicalmente inclusiva. Do contrário, na hora de escolher entre ser engambelado pela conversa pra boi dormir ou se tornar gado no estouro da boiada, as pessoas seguirão optando pelo segundo. Ou o Brasil paga o que deve à maioria dos brasileiros ou em breve não serão de polegares e indicadores as armas apontadas pela turba enfurecida. Pensando melhor: já não são.

Tempestade perfeita

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Numa sociedade marcada por tantas instabilidades, onde as tecnologias ganham espaços crescentes, onde a pandemia ainda gera grandes destruições, onde a concorrência cresce de forma acelerada, onde as transformações no mundo do trabalho crescem rapidamente, gerando desempregos e subempregos, neste mundo de tantas iniquidades, sentimos mais uma outra crise, vivemos num momento de novas instabilidades, novos conflitos políticos, percebemos, literalmente que estamos sem rumo, sem perspectivas e os presságios são ruins e preocupantes.

Neste ambiente, as previsões otimistas são limitadas e centradas nas crenças dos financistas, os bons números da Bolsa de Valores e do mercado financeiro contrastam com os quase 15 milhões de desempregados, onde a fome cresce de forma acelerada, investigações políticas, promessas de melhoras sem lastro e credibilidade. Estamos vivendo uma verdadeira tempestade perfeita, criamos fantasmas, inimigos imaginários, os confrontos se espalham pelas redes sociais e, neste ambiente, o mundo civilizado se recupera, suas economias mostram sinal de melhora e a população começa a enxergar novos movimentos de crescimento econômico. Neste ambiente, estamos aguardando horizontes positivos, mas ao mesmo tempo enxergamos apenas bizarrices, xingamentos, grosserias e contradições crescentes.

A pandemia está em curso, neste ambiente percebemos cenário de algum crescimento econômico, motivado pela economia global, alguns países estão se mostrando mais resilientes, motivados pelas intervenções econômicas agressivas, investimentos em infraestrutura e fortes recursos em ciência e tecnologia, impulsionando o consumo interno e impactando aos países em desenvolvimento. O Brasil está sentindo o estímulo adotado pelos países desenvolvidos, como exportadores de produtos primários, a economia senti as demandas externas, aumentando as vendas externas e melhorando as contas internas, atraindo moeda forte e valorizando a moeda nacional. Estes movimentos positivos devem ser vistos como um momento de adotar políticas efetivas para melhorar os indicadores econômicos e a adoção de políticas públicas para reduzir os desequilíbrios sociais, melhorando o ambiente interno e contribuindo para a construção de um cenário marcado por credibilidade e confiança, fundamentais para aumentar o investimento produtivo e estimular novos empreendimentos.

Os desafios da sociedade brasileira são imensos, estamos convivendo com crises conjuntas com impactos desastrosos para a sociedade, gerando mais desemprego e crescimento das falências e desestruturação dos setores econômicos e produtivos. Neste ambiente, percebemos a importância do direcionamento do Estado, como ator central nas políticas públicas, mas num ambiente de instabilidades crescentes, faz-se necessário a atuação conjunta com os mercados, construindo novos espaços de confiança mútua, sem credibilidade os agentes econômicos não investem no crescimento econômico de forma sólida, consistente e duradouro.

Neste ambiente, vivemos um momento de união de todos os atores sociais, as dificuldades crescem pelo ambiente de conflagração crescente que percebemos na sociedade nacional, mostrando que os agentes econômicos se voltam para seus interesses imediatos e particulares, sem pensar na coletividade e esquecendo do planejamento estratégico, instrumentos fundamentais para a construção de uma nação.

As dificuldades existentes na sociedade brasileira mostram as fragilidades da construção política, neste cenário os agentes políticos e econômicos precisam refletir sobre os resultados conseguidos, esta análise deve ser feita de forma racional e abrangente, percebendo os equívocos e reconstruindo espaços e caminhos mais consistentes.

Vivemos num ambiente de tempestade perfeita, muitos desafios estão acontecendo ao mesmo tempo, a pandemia matou mais de quinhentos mil brasileiros, a crise econômica está gerando desagregação de comunidades inteiras e as crises políticas podem levar o país ao caos generalizado, levando o país a um retrocesso enorme e exigindo das gerações futuras desafios sobre humanos, evitemos esta destruição, pois a história será implacável.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 07/07/2021.

‘20 mil recebem R$ 230 bi sem pagar Imposto de Renda’, diz secretário especial da Receita

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José Tostes rebate as críticas ao projeto que estabelece a volta da taxação sobre dividendos de empresas

Entrevista com José Tostes, secretário especial da Receita Federal

Adriana Fernandes e Idiana Tomazelli, O Estado de S. Paulo – 03/07/2021

BRASÍLIA – Diante da acusação de empresários de que a reforma do Imposto de Renda apresentada pelo governo elevaria a carga tributária, o secretário especial da Receita Federal, José Tostes, afirma que não se pode misturar a tributação de empresas com a de pessoas físicas e cita uma distorção na isenção de lucros e dividendos.

“Temos aqui apenas 20.858 pessoas, numa população de 210 milhões, que receberam R$ 230 bilhões sem pagar imposto”, afirma. Essas pessoas pagaram só 1,8% de todo o rendimento que receberam, argumenta Tostes.

Confira os principais trechos da entrevista:

A carga tributária do Brasil está em torno de 31%. A maior crítica é de que a Receita colocou muita gordura na proposta para aumentar a arrecadação.

Não concordamos com essa avaliação. Fizemos uma proposta para ter equilíbrio entre medidas que aumentam e que reduzem a arrecadação. Esses argumentos de que haverá aumento, precisamos avaliar de que forma estão sendo calculados. O não aumento da carga tributária é um princípio que o ministro Paulo Guedes colocou no início do seu trabalho.

A carga não aumenta?
De fato, a carga tributária não aumentou. Se essas medidas agora possibilitarem algum aumento de carga, não será por conta delas em si, porque, como nós estamos vendo, está havendo um aumento de arrecadação este ano que poderá ser utilizado para reduzir incidências tributárias no próximo ano. Estamos com resultados bastante auspiciosos de arrecadação este ano, e que não têm nada a ver com o aumento de impostos, de alíquotas ou alterações nas regras tributárias.

O sr. falou que não tem como saber como está sendo feita a conta do aumento de carga. A Receita também divulgou apenas parcialmente os números. Eles serão detalhados?
Sim. Estamos preparando uma nota exaustivamente detalhada, inclusive quanto a parâmetros, quanto às variáveis, quanto à metodologia utilizada. Veja que, por exemplo, a alíquota da pessoa jurídica está sendo reduzida para 29%, e está sendo extinta a isenção do Imposto de Renda incidente sobre a distribuição dos dividendos, com uma alíquota de 20%. Muitos comentários que revelam a preocupação com o aumento de carga tributária somando as duas alíquotas.

Completamente errado esse cálculo. Não posso somar os 29% da pessoa jurídica com os 20% da distribuição dos dividendos. São tributos que incidem sobre contribuintes distintos, pessoa jurídica e pessoa física.

Mesmo assim, fica em 43%, o que os críticos acham alto.

Exatamente a mediana dos países da OCDE. É 43,75%. E aí você vai ver: os 29% que incidem sobre o lucro da pessoa jurídica estão um pouco acima da média da OCDE, e os 20% na distribuição de dividendos estão bem abaixo.

O sr. pode dizer onde está o caráter distributivo da proposta?
As empresas estão tendo uma redução de impostos, de 34% para 29%. Isso é uma brutal redução de alíquota que incide sobre o setor produtivo. O que está sendo criado, como nova incidência, é sobre uma renda de pessoa física, sócio de pessoa jurídica, que é isento até hoje e vai passar a ser tributado em 20%, o que absolutamente não é novidade na maioria dos países. O Brasil antes de 1995 tinha exatamente este modelo de tributar a pessoa jurídica e tributar também a distribuição na pessoa física. Em 1995, optou por tributar só na jurídica e isentar a pessoa física.

Agora, estamos avaliando voltar à situação anterior, usada hoje na maioria dos países.
Há uma confusão entre empresa e pessoa física?
Claro. Se a pessoa jurídica obtiver um lucro, vai pagar pela proposta 29%. Se reinvestir no próprio negócio os seus lucros, se capitalizar, se expandir em termos de investimentos com o seu próprio lucro, a tributação acabou aí. Só vai haver a incidência dos 20% se este lucro for distribuído como rendimento à pessoa física do sócio. Se ela reinvestir o lucro no próprio negócio, na expansão empresarial, na geração de empregos, não vai haver tributação dos 20%. Então, é uma medida que estimula o reinvestimento na própria empresa.

Quem hoje recebe na pessoa física esses lucros e dividendos e por que há essa grita diante da proposta de tributação?
Os que recebem acima de 320 salários mínimos (mais de R$ 352 mil por mês). São 20.858, que recebem de rendimentos isentos R$ 230,81 bilhões. Não preciso dizer muito mais para identificar quem vai deixar de ser isento e vai pagar imposto a partir de agora. E mais ainda: se você somar os rendimentos tributáveis dessas 20.858 pessoas, que são apenas R$ 18 milhões tributados como salário e como rendimentos de trabalho, e os R$ 230 bilhões como dividendos e rendimentos isentos, essas 20.858 pessoas terminam por ter uma alíquota média de imposto de 1,8%. Ou seja, considerando todos os rendimentos que receberam, o imposto que elas pagaram representa 1,8%. Vamos mostrar os números e ver de fato quem vai ser afetado com esta medida. Nós temos aqui apenas 20.858 pessoas, numa população de 210 milhões, que receberam R$ 230 bilhões sem pagar imposto. Isentos de acordo com a legislação atual, não tem nada de ilegal aqui.

E o caso de contribuintes que detêm ações de empresas, estão na faixa até R$ 20 mil por mês, mas não terão isenção porque o incentivo só valerá para micro e pequenas empresas?

Esse público existe, mas sem dúvida é muito reduzido em relação ao conjunto. É um tema que estamos discutindo, e podemos fazer ajustes para aperfeiçoar a proposta.

Não há a preocupação de o projeto ficar uma “emenda pior do que o soneto”, como aconteceu com a MP da Eletrobrás?
Estamos já em interação com o Congresso. É claro que isso ainda vai ter desdobramentos na votação a partir das emendas que forem apresentadas, existe naturalmente a possibilidade de o texto ser alterado. Mas estamos na expectativa de que os princípios gerais e as regras mais importantes do projeto possam ter a aprovação no Congresso.

‘Apagão de mão de obra pode se tornar uma deficiência crônica’, alerta economista Ricardo Henriques

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Especialista foi um dos criadores do Bolsa Família diz que a sociedade tem que eleger a educação como prioridade absoluta, uma ‘escolha que nunca fez’

Cássia Almeida – O Globo, 04/07/2021

Se a sociedade brasileira não der prioridade absoluta à educação, o Brasil vai patinar por muito tempo como um país de renda média, com desemprego estrutural maior, mesmo se houver crescimento da economia, alerta o superintendente do Instituto Unibanco, Ricardo Henriques, que foi um dos criadores do Bolsa Família.

Em entrevista ao GLOBO, ele alerta que ainda é possível recuperar o tempo perdido, mesmo com retrocesso que a pandemia provocou, deixando a educação “de joelhos”.

Aumentou a exigência de qualificação?
Reconfiguração do mundo do trabalho, automação, inteligência artificial e a quarta revolução industrial geram a necessidade de aumentar a qualidade da qualificação média da população no ensino básico e superior massivamente.

O risco é que o desemprego de longa duração se perpetue, e o apagão de mão de obra virar uma noite longa. Pode se tornar uma deficiência crônica de mão obra que esteja adaptada à sociedade contemporânea.

Como enfrentar esse apagão?
O ensino técnico precisa sair desse patamar de 2 milhões para 3, 4, 5 milhões, que é a meta do Plano Nacional de Educação para 2024. Não vamos conseguir cumprir essa meta. Podemos aproveitar a janela da reforma do ensino médio, de ter saído da armadilha gerada pelo conteudismo irrelevante que distanciou a formação daquilo que é necessário para sociedade contemporânea.

Por isso, jovens não viam sentido nesse ensino médio. O ensino técnico abre oportunidade real de dar conta das competências e habilidades necessárias ao mundo de hoje.

Quais habilidades?
O mundo está reduzindo demandas física e manual, indo cada vez mais para a cognitiva avançada, a tecnologia, a habilidade socioemocional. Caminhar para habilidades que não estão associadas a um campo específico, mas que são fundamentais: empatia, gestão de estresse, trabalho em grupo, criatividade, comunicação, negociação, que vão servir para qualquer configuração do mundo do trabalho.

E adquirir competência digital básica, tecnologia digital avançada, processamento de informações complexas, análise de dados, pesquisa cientifica, gestão de projetos.

Mas não avançamos na educação?
Os inegáveis avanços na educação nos últimos 30 anos não foram suficientes. Continuamos patinando como um país de renda média. E a pandemia deixou a educação de joelhos.

A sociedade precisa reconhecer esse desafio e dizer que a educação é prioridade absoluta. O Brasil nunca fez isso. Não será fácil e nem imediato. Esse novo mundo exige que a sociedade brasileira faça a escolha que nunca fez.

A educação de mais qualidade para poucos é suficiente para fazer o país crescer?
Até bem pouco tempo atrás, uma elite, um grupo pequeno com alta inserção no mundo tecnológico conseguia que o país se movesse como um todo.

Na atual situação, todos precisam ter altas expectativas de educação, a performance de alta qualidade precisa ser massificada. Para que o país se mova, integrada ao circuito contemporâneo, a grande maioria da população, principalmente os jovens, precisa ter qualificação de alta de qualidade.

Se não houver alta expectativa para todos desde a primeira infância, aumenta-se o potencial do ressentimento na sociedade. Altas expectativas inibem os espaços de ressentimento, aumentam a probabilidade de harmonia. É essa utopia que sociedade deveria perseguir.

Milton Santos, morto há 20 anos, nos convida a construir uma outra globalização, por Itamar Vieira Júnior.

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Geógrafo apontou caminhos para um projeto humanitário que se contraponha ao poder totalitário do dinheiro

Itamar Vieira Júnior, geógrafo e escritor, autor de “Torto Arado”

Folha de São Paulo, 25/06/2021.

Há 20 anos, Milton Santos, um dos maiores pensadores brasileiros do século 20, nos deixava.
Nascido em 1926 no município de Brotas de Macaúbas, região da Chapada Diamantina, Santos migrou com a família para Salvador ainda na infância, onde concluiu o ensino fundamental e ingressou no curso de direito da Universidade Federal da Bahia.

Embora tenha se tornado bacharel, Santos se sentia vocacionado mesmo para a pesquisa e o ensino da geografia, sua grande paixão, o que fez com que se tornasse professor do colégio municipal de Ilhéus. Lá, passou a colaborar como correspondente do jornal A Tarde, de Salvador, atividade da qual nunca se afastou em definitivo, tendo inclusive escrito regularmente para esta Folha.

De volta à capital, tornou-se professor da Universidade Católica e, pouco tempo depois, seguiu para seu doutoramento em Estrasburgo, na França, sob a orientação do geógrafo Jean Tricart.

De volta ao Brasil, fundou o Laboratório de Geomorfologia e Estudos Regionais. Continuou atuando como professor, pesquisador e jornalista. Perseguido após o golpe de 1964, Santos foi preso por subversão e logo depois se exilou na França, tornando-se professor de algumas universidades do país —Toulouse, Bordeaux, Sorbonne—, além de outras nas Américas e na África, como MIT, Toronto, Columbia, Stanford e Dar es Salaam.

Em Dar es Salaam, pôde estabelecer um contraponto à sua formação predominantemente europeia, deixando-se influenciar por grandes pensadores do pós-colonialismo e incorporando ao seu pensamento marxista perspectivas do socialismo africano, alicerçado em valores caros ao continente, como o coletivismo, o humanismo e a sociabilidade.

Essa influência surgiu com força em seus escritos que interpretavam os desafios da descolonização e do neocolonialismo.

Milton Santos foi um dos grandes expoentes da renovação da geografia no final da década de 1970. Seu livro “Por uma Geografia Nova” contribuiu de forma definitiva para as bases da renovação crítica metodológica e epistemológica da disciplina.

A partir de então, aprofundou ainda mais seus estudos epistêmicos em livros como “O Espaço do Cidadão”, “A Natureza do Espaço”, “Espaço e Método”, “Metamorfose do Espaço Habitado”, na mesma medida em que avançava em sua análise para a compreensão do Brasil e do mundo em desenvolvimento ante os processos de globalização cada vez mais radicais e que têm ampliado, sobretudo, as desigualdades de forma jamais vista na história. Em 1994, foi agraciado com o Prêmio Internacional Vautrin Lud, considerado o Nobel da geografia.

A obra de Milton Santos é o reflexo de seu pensamento humanístico, crítico, político e solidário. Em “Por uma Outra Globalização”, publicado um ano antes de sua morte, Santos ilumina com suas reflexões os fenômenos sociais e econômicos de nosso tempo. Com sua análise acurada, ele anteviu a possibilidade de uma outra globalização, quiçá solidária, nascida das camadas mais desfavorecidas da sociedade.

Nesse livro, ele se antecipa no tempo ao descrever o poder totalitário do dinheiro, da monetização dos afetos e de um mundo cada vez mais subjugado pelo imperativo da informação. Mas, além de refletir sobre a “globalização perversa” ou “globalitarismo” que nos é imposto, Santos nos convida a construir uma outra globalização, como projeto humanitário a se contrapor às normas hegemônicas e predatórias das grandes corporações e dos Estados nacionais.

Assim como Milton Santos, estudei na Universidade Federal da Bahia, onde segui da graduação à pós-graduação. Logo após sua morte, Maria Auxiliadora da Silva, professora da universidade, e a viúva de Santos, Marie-Hélène, resgataram um antigo desejo dele: subsidiar a formação de alunos carentes.

Com recursos próprios, a família Santos tornou real esse propósito e, desde então, tem colaborado com a formação de estudantes de baixa renda através de bolsas de iniciação científica que levam o seu nome, projeto já institucionalizado pela universidade e que em 2022 completa 20 anos.

Foi assim que me tornei o primeiro “bolsista Milton Santos”, fato fundamental para que pudesse prosseguir com meus estudos universitários e que contribuiu, sem nenhuma dúvida, para minha formação superior. Hoje, já são dezenas de alunos egressos do mesmo programa, e nesse gesto altruísta podemos entrever a práxis de uma cidadania solidária.

Em um país de pouca memória, haveremos sempre de contar e recontar as histórias dos nossos, daqueles que não apenas sonharam com um lugar mais justo e humano, mas também se dedicaram a apontar os caminhos para alcançá-lo.

Nos EUA, nova maioria democrática precisa de uma nova economia, por Stepnhen Marglin

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Mesmo retirando as verrugas do capitalismo, você ainda terá um sistema que não possui mecanismos para produzir os empregos necessários

Stephen Marglin, Professor de economia da cadeira Walter S Barker da Universidade Harvard, é autor de “Raising Keynes: A Twenty-First-Century General Theory” (Ressuscitando Keynes: Uma Teoria Geral do Século 21, sem tradução para o português)

Não adianta procurar uma filosofia que oriente a economia do Partido Republicano além de “quero meu pedaço”. Mas qual é exatamente a filosofia dos democratas? É fácil deixar de perceber a divisão profunda entre a velha economia que guiou o Partido Democrata por uma geração e uma nova economia emergente.

A velha economia se baseia na crença de que a intervenção do governo, como o aborto, deve ser segura, legal e —acima de tudo— rara. O governo é necessário para lidar com verrugas periódicas que aparecem no corpo do capitalismo, mas tudo o que os curativos de curto prazo do governo podem fazer é acelerar o poder natural de cura inerente a uma economia de mercado.

Melhor ainda, são as medidas para remover as verrugas de uma vez por todas, para transformar a economia à imagem do modelo clássico de competição perfeita. Essa filosofia atingiu seu apogeu sob Clinton, culminando no seu caso de amor com a desregulamentação, particularmente do setor financeiro.

Sabemos como isso terminou. Alan Greenspan —discípulo de uma versão extrema dessa filosofia consagrada na ficção para jovens adultos de Ayn Rand— presidiu o Fed de 1987 a 2006, saindo logo antes da merda no ventilador, diante da qual declarou-se “chocado! chocado! chocado!” ao descobrir que a autorregulação do sistema financeiro não era tão confiável.

A crise de 2008 e a recessão que se seguiu foram um sinal de alerta, e Greenspan não foi o único que acordou —pelo menos momentaneamente. Pareceu por um tempo que a economia ortodoxa poderia estar aberta a novas ideias.

Infelizmente, a profissão rapidamente cerrou fileiras e vozes dissidentes foram, mais uma vez, marginalizadas.

A visão de que o problema são as verrugas, e não o próprio capitalismo, continua a dominar na academia. Mas a heterodoxia começa a fazer ondas. Economistas heterodoxos oferecem entendimentos alternativos de mudança climática, criação de dinheiro, banco central, desigualdade de renda e macroeconomia.

Ironicamente, a macroeconomia surgiu do trabalho do proeminente economista do século 20 John Maynard Keynes. Com o tempo, o radical e heterodoxo Keynes de “A Teoria Geral do Emprego, Juros e Dinheiro” foi transformado pela velha ortodoxia em um teórico supersofisticado das verrugas, especificamente, um teórico de como o capitalismo pode travar se os salários forem insuficientemente flexíveis.

A teoria das verrugas permitiu que os economistas aceitassem alguns dos insights de política de Keynes, em particular as limitações da política monetária e a necessidade de uma política fiscal anticíclica “in extremis”, enquanto rejeitava a ideia de que há alguma falha mais séria que as próprias verrugas. E, extremamente importante, restringir o papel do governo ao alívio das verrugas como esforço estritamente de curto prazo e limitado.

Minha própria contribuição para um crescente corpo de trabalhos heterodoxos, “Raising Keynes”, mostra como e por que a leitura ortodoxa de Keynes está errada e apresenta uma teoria que fundamenta o insight do economista de que, mesmo retirando as verrugas do capitalismo, você ainda terá um sistema que não possui mecanismos confiáveis para produzir os empregos necessários para os que desejam trabalhar.

Você precisa do governo, não de forma ocasional e intermitente, nas emergências, mas o tempo todo, tanto a longo prazo como nas emergências.

A seção de relevância mais imediata para a batalha pela alma econômica do Partido Democrata é a estrutura que apresento para compreender os meandros dos déficits e dívidas. Não só a política fiscal anticíclica mas também os déficits no contexto de uma economia com alto índice de empregos, quando não há mais o almoço grátis possibilitado pela simples combinação de homens e mulheres ociosos às máquinas ociosas. Em que medida a dívida pública deve restringir nossas escolhas?

Está começando a ser entendido que, além das áreas tradicionais de gastos do governo, a economia do século 21 deve incluir a provisão do governo para creches, para idosos e, talvez o mais importante, para uma transição para energias renováveis. Quanto desses bens é suficiente, e quanto devemos nos preocupar com qualquer dívida adicional que um governo robusto possa acarretar?

O governo Biden e a ala Sandres /Warren/ Ocasio-Cortez do Partido Democrata substituíram a abordagem apologética dos anos Obama por um compromisso ousado de mobilizar o governo para fazer o que for preciso para fornecer um futuro sustentável e equitativo. Tal como acontece com as iniciativas políticas de Franklin Roosevelt, a ação não esperou a teoria.

Mas as teorias econômicas e a prática política sobem e descem juntas. Keynes e a coalizão do New Deal nos EUA e a social-democracia na Europa apoiaram-se mutuamente; Milton Friedman e outros teóricos de direita e a política antigovernamental Reagan-Thatcher também.

Chegou a hora de uma simbiose de uma nova economia, em que a bideneconomia realmente faça sentido, com a política de uma nova maioria democrata.

Tradução de Joaquim Andrade

Concentração de renda

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A pandemia está desnudando inúmeras realidades em curso na sociedade brasileira. Com este momento de crise sanitária, somados as dificuldades econômicas e políticas, estamos percebendo algumas características que muitos indivíduos não querem acreditar. Precisamos refletir sobre nossas indignidades e nos prepararmos para os desafios contemporâneos, uma sociedade cada vez mais interconectada, marcada pelo crescimento da tecnologia e da automação, centrada na concorrência crescente, mais imediatista, mais caracterizada pelo pragmatismo e, na estrutura, uma sociedade mais desigual, centrada no racismo, nos preconceitos e na exclusão social.

Os dados recentes divulgados pelo Relatório de Riqueza Global do Banco Credit Suisse, mostram que 1% da população brasileira, algo em torno de 2 milhões de afortunados concentram mais de 49,6% da riqueza nacional. Estes números são vergonhosos e, mais ainda, quando analisamos os dados em retrospecto, percebemos que em 2010 os valores eram de 40,5%, quase dez pontos percentuais, um verdadeiro escândalo. Os dados apresentados pelo banco mostram que, na comparação entre dez países, apenas o topo da pirâmide da Rússia conseguiu concentrar mais riqueza do que a elite no Brasil.

Estas feridas foram desnudadas pela pandemia, deixando exposta a pobreza da sociedade brasileira, que sempre foi encoberta pelos grupos dominantes, que evitaram a construção de políticas efetivas para uma sociedade mais igualitária. Muitos grupos econômicos e políticos difundem conceitos de meritocracia e empreendedorismo como forma de acobertar as parcas possibilidades de ascensão social, criando expectativas positivas de melhorias de vida e progresso social e profissional.

Neste ambiente, percebemos que nos últimos quarenta anos a economia brasileira perdeu a capacidade de geração de riquezas para a grande parte da sociedade, perdemos dinamismo industrial e a capacidade produtiva inovadora e passamos a adorar os valores da especulação financeira, enriquecendo um pequeno grupo de sábios e financistas que vivem e, enriquecendo, gerindo fortunas em um ambiente marcados por taxas de juros escorchantes e taxas de câmbio valorizado, que garantem lucros extraordinários para um pequeno grupo sem preocupação com os rumos da sociedade brasileira. Vivemos numa sociedade marcada por tributação regressista, onde os que ganham mais pagam menos impostos, nossa estrutura tributária castiga o consumo e a produção e alivia a propriedade e isentam lucros e dividendos, um escárnio mundial, garantindo benefícios para os afortunados em detrimentos dos mais pobres e dos miseráveis, contribuindo para o quadro destacado pelo Banco Credit Suisse.

Neste momento, a FGV Social acaba de publicar o Atlas das Juventudes e de novos estudos, destacando a existência de 50 milhões de brasileiros entre 15 a 29 anos decepcionados, sem perspectivas de trabalho e insatisfeitos com a condução do país. Se pudessem, quase a metade (47%) dos jovens brasileiros deixariam o país. A pesquisa nos mostra, que se este quadro não for alterado, o cenário do mercado de trabalho para essa juventude configurará o desperdício do maior potencial histórico em termos de crescimento e produtividade brasileiros.

O mundo pós-pandemia vai exigir políticas mais efetivas dos Estados Nacionais, investimentos maciços em capital humano, em pesquisas científicas e mais consciência dos grupos dominantes e reflexões críticas pelas elites intelectuais. Estas medidas estão sendo construídas nos países desenvolvidos, vide o intervencionismo estatal no Plano Biden. Está na hora ou melhor, já passando da hora, de seguirmos os caminhos do desenvolvimento e do bem-estar da sociedade brasileira, abandonando os caminhos da insegurança jurídica, adotando políticas tributárias progressistas, melhorando as políticas públicas e ações que estimulem o desenvolvimento, deixando para trás os dados descritos pelo relatório do banco suíço.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 30/06/2021.

A desigualdade e o IR, por Folha de São Paulo.

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Busca por carga total mais justa deveria balizar a reforma do Imposto de Renda

EDITORIAL: Texto não assinado que expressa a opinião da Folha

23/06/2021

Os últimos anos foram de más notícias para o enfrentamento da infame desigualdade social brasileira. Na década passada, caiu por terra a convicção de que a distância entre ricos e pobres estava em retração; agora, teme-se que ela cresça com os impactos da pandemia.

Dados que apontavam melhora a partir dos anos 2000, com base nos rendimentos do mercado de trabalho, foram posteriormente contestados por estudos mais amplos, amparados nas estatísticas do Imposto de Renda, que contemplavam também ganhos de capital como os oriundos de lucros, aluguéis e aplicações financeiras.

A Covid-19 agrava um quadro já dramático na América Latina, como aponta relatório recém-publicado pela ONU. Em particular, porque as medidas imperativas de restrição às atividades prejudicam mais os estudantes e trabalhadores dos estratos mais carentes.

Fenômeno complexo, a desigualdade se apresenta de múltiplas maneiras. Há discrepâncias salariais entre homens e mulheres; há discriminação de pessoas LGBT no mercado; negros têm muito menos acesso que os brancos às benesses do desenvolvimento, como mostra o índice de equilíbrio racial (Ifer) lançado por esta Folha.

Destaque no grupo de países mais desiguais do mundo, o Brasil tomou providências para lidar com essa chaga —a mais importante delas foi instituir um aparato de seguridade de dimensões raras no mundo emergente.

O vultoso gasto social tem sua eficácia comprometida, porém, quando o mesmo poder público falha em prover educação de qualidade e, mais ainda, insiste em conceder privilégios a setores influentes da burocracia e do empresariado.

O Estado brasileiro realimenta a desigualdade, ainda, ao tributar de modo iníquo, com muito mais ênfase na taxação do consumo, o que onera em excesso os mais pobres, que na da renda.

O tema volta à pauta com a proposta de reforma do IR mais uma vez ensaiada pelo governo Jair Bolsonaro —e mais uma vez motivo de resistências antecipadas e pressões de natureza política.

Há muito a fazer para tornar a carga de impostos mais progressiva, sem elevá-la além de seu patamar já exagerado. Rever subsídios, tributar dividendos (com ajuste no gravame dos lucros) e até majorar alíquotas sobre rendimentos altos se mostram caminhos viáveis.

Infelizmente, o debate corre o risco de ser contaminado pelo imediatismo eleitoral e pela promessa demagógica de Bolsonaro de ampliar a faixa de isenção. Mesmo forças à esquerda, aliás, relutam em abraçar propostas mais ambiciosas para o IR, dados os interesses dos sindicatos de categorias mais bem situadas na pirâmide social.

Recuperação econômica

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A economia brasileira está passando por momentos de incertezas, marcados pelos impactos crescentes da pandemia, que diminuiu o crescimento econômico, aumentou as instabilidades e gerou quebras nas cadeias produtivas e, para piorar, estamos percebendo os ecos do incremento dos preços, a tão preocupante inflação, cujos constrangimentos perduraram até os anos 90.

O crescimento dos preços é patente para todos os grupos sociais, cujos impactos são maiores sobre os setores de baixa renda, cujos rendimentos crescem menos do que os preços e aprofundam os indicadores negativos, contribuindo para piorar as condições sociais, aumentando a pobreza, a fome e a exclusão social.

O aumento dos preços é um fenômeno global. A recuperação das economias desenvolvidas, motivadas pelos auxílios governamentais, monetários e fiscais de seus respectivos governos, além da aceleração da vacinação, levando estes países a normalidade econômica, incrementando as compras externas e impulsionando os sistemas econômicos e produtivos, com fortes pressões dos preços relativos. Neste ambiente de recuperação econômica, as compras crescem e, impactam diretamente sobre as commodities, beneficiando os exportadores de produtos agrícolas e de extração mineral.

No caso brasileiro, percebemos outros fenômenos que estimulam as pressões dos preços, onde destacamos o incremento das vendas externas motivadas pelo câmbio favorável. A desvalorização cambial aumenta os produtos exportados e pressiona os preços dos produtos importados, impactando sobre a inflação e a renda da população.

Para combater o aumento dos preços o governo utiliza a política monetária para diminuir a quantidade de moedas em circulação, aumenta as taxas de juros e reduz o crédito, levando a economia a reduzir a atividade econômica, piorando o cenário dos setores produtivos e melhora os indicadores financeiros dos rentistas, elevando os ganhos das aplicações financeiras e atraindo uma grande quantidade de moedas estrangeiras, recursos que buscam ganhos rápidos e imediatos, sem compromissos maiores para a estabilidade do país, visando apenas os ganhos financeiros e monetários. Neste momento, os rendimentos financeiros dos pequenos grupos afortunados crescem de forma acelerada em detrimento de grande parte da sociedade, gerando empregos precarizados, insuficiência de investimentos produtivos, degradação do ambiente de negócios e retardando a recuperação mais efetiva da economia.

Alguns analistas financeiros acreditam que a recuperação da economia está em curso, as vendas externas estão crescendo, a situação fiscal está melhorando e as perspectivas de crescimento estão se elevando, criando perspectivas positivas. Para muitos, estamos num momento de boom de commodities, cujos impactos para o agronegócio nacional serão positivos, garantindo recuperação da economia.

A recuperação econômica é incerta e prematura, de um lado percebemos as melhoras fiscais, mas ao mesmo tempo percebemos que a melhora está diretamente ligada ao crescimento da inflação, que turbina as receitas do Estado. De outro lado, percebemos que os indicadores sociais de emprego e renda são negativos e sem perspectivas de melhoras, o desemprego está em ascensão, rendas em queda, falência crescentes de micros e pequenas empresas, sem estas melhoras a recuperação, se vier, será passageira e limitada para poucos setores, com pouco potencial de geração de empregos.

A economia prescinde de credibilidade e de confiança. A recuperação econômica exige ambientes consistentes e investimentos produtivos, precisamos incrementar a vacinação, reduzir a transmissão do vírus, proteção financeira para os mais fragilizados e uma ampla discussão social para o período pós pandemia. Sem atuação do Estado Nacional, sem investimento público, sem planejamento econômico, sem investimento em capital humano, sem investimentos em pesquisa e sem reconstrução dos setores produtivos, estaremos condenados a sonhar que somos eternamente o país do futuro.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 23/06/2021.

Onde estão os negros?, por Ana Cristina Rosa

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Como bem observou a escritora Chimamanda Ngozi, se há no país grupo de pessoas que não possui as mesmas oportunidades que outros, existe um problema

Ana Cristina Jornalista especializada em comunicação pública e coordenadora da Associação Brasileira de Comunicação Pública (ABCPÚBLICA) – Seção Distrito Federal.

Folha de São Paulo, 21/06/2021

A recente entrevista da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie ao programa Roda Viva acabou se revelando uma breve, porém precisa, análise sobre os padrões das relações e interações sociais e culturais brasileiras sob o prisma do racismo institucionalizado no país.

O papo fluía sobre família, luto, feminismo… até que a jornalista Adriana Silva rememorou o interesse confesso da entrevistada pelo Brasil. Quando esteve no país em 2008, Chimamanda se disse impressionada com a relutância que percebeu nas pessoas em reconhecer que existe racismo nestas terras. Na semana passada, ela foi indagada sobre o que motivou tal percepção.

“Várias coisas. A primeira foi: onde estão os negros?”, perguntou a africana. “Estive num festival literário, foi ótimo, mas não havia negros. Em bons restaurantes, eu olhava ao redor e não havia nenhum negro”, observou. “Também percebi que perguntar sobre o assunto incomodava. As pessoas pareciam não querer reconhecer que havia um problema.”
Chimamanda gostaria de ver os negros do Brasil. “Quando vou a um país onde sei que há uma população negra, quero ver o que chamo de ‘minha gente’, pessoas que se parecem comigo.” Mas não viu.

Não viu porque frequentou os lugares errados, ou melhor, esteve em espaços aos quais em geral pessoas negras não têm acesso, salvo na condição de serviçais. Não viu porque na nossa estratificação social, o conceito de minoria tem mais a ver com ausência de poder do que com quantitativo populacional.

A intelectual também se disse surpresa e curiosa com a capacidade do brasileiro de afirmar com orgulho que, por aqui “somos todos misturados” e, ao mesmo tempo, valorizar padrões de beleza que nem de longe são africanos ou negros.

Como bem observou Chimamanda, se há no país um grupo de pessoas que não possui as mesmas oportunidades que outros, existe um problema. E o resultado decorrente dessa desigualdade é de responsabilidade da sociedade que os excluiu.

O bicho-papão do comunismo, por Sérgio Fausto.

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Hoje é a extrema direita paranoica e obscurantista que representa perigo real

Sérgio Fausto – Estado de São Paulo, 19/06/2021

Trinta anos atrás, em agosto de 1991, o comunismo recebeu seu atestado de óbito, com a dissolução da União Soviética. Morreu de morte morrida, provocada pela esclerose múltipla de um sistema político e econômico dirigido por uma burocracia hipertrofiada a serviço de si mesma.

Quando a Cortina de Ferro começou a se entreabrir, o bloco soviético não resistiu à comparação com o nível de bem-estar alcançado pelos países da Europa Ocidental, onde havia mais liberdade e melhores condições materiais de vida. Gorbachev bem que tentou reformar o sistema para evitar a dissolução da União Soviética, mas já era tarde demais. Ela ruiu, assim como havia ruído o Muro de Berlim dois anos antes, marcando o fim do domínio soviético sobre o Leste Europeu.

Mesmo antes de morrer, o comunismo já não representava ameaça ao Ocidente. Com a ascensão de Gorbachev à Secretaria-Geral do Partido Comunista da União Soviética, em 1985, as relações entre a pátria do socialismo e as potências capitalistas mudou definitivamente de natureza. “I like Mr. Gorbachev. We can do business together” (eu gosto do sr. Gorbachev. Nós podemos trabalhar juntos), disse ninguém menos que a conservadora primeira-ministra do Reino Unido Margareth Thatcher, depois de se encontrar em Londres com uma delegação de representantes soviéticos chefiada por Gorbachev, então estrela ascendente no Politburo. Era dezembro de 1984. Bom lembrar que a outra pátria do comunismo, a China, já havia normalizado desde a década anterior as suas relações com os Estados Unidos.

Para quem conhece a História é espantoso que o comunismo tenha sido ressuscitado como arma política 30 anos após a sua morte. Como disse o velho Marx, em adendo a Hegel, a História acontece duas vezes: a primeira como tragédia, a segunda como farsa. A ameaça comunista hoje só existe no discurso farsesco de uma extrema direita que faz da fabricação do pânico um componente central da sua estratégia política. No passado, a ideia da ameaça comunista era plausível, embora inflada para justificar golpes de Estado e regimes autoritários, em especial na América Latina.

Salvo no Chile, os partidos comunistas nunca alcançaram grande expressão político-eleitoral. Pequenos grupos mais radicais, que optaram pela via armada para combater ditaduras, foram logo massacrados. Cuba foi um caso singular.

Quem representaria hoje o bicho-papão do comunismo? Faz quase 50 anos, a China deixou de exportar revolução para exportar produtos manufaturados, cada vez com maior conteúdo tecnológico. Mais confiante que nunca na sua capacidade de superar os Estados Unidos como potência econômica, busca também expandir seu poder e influência a outras partes do mundo. Sua estratégia, porém, não passa por mudar regimes políticos, muito menos por criar uma alternativa ao capitalismo, no qual aprendeu a nadar de braçada, com estilo próprio. Ela representa um desafio às democracias liberais, não uma ameaça ao capitalismo, como no passado representou a União Soviética.

Teria a Rússia assumido esse papel? Nada disso. Ex-agente da KGB, Putin é hoje um autocrata que apela à tradição
cultural e religiosa da Rússia czarista e empresta apoio à ultradireita nacionalista europeia. Venezuela, um Estado falido, Cuba, que mal se aguenta nas próprias pernas? Ora, tenhamos senso do ridículo.

Diante do evidente despautério, o bolsonarismo se apropriou da ideia de que o comunismo teria reencarnado sob novas vestes: o marxismo cultural. Essa categoria está para a compreensão do mundo como a hidroxicloroquina está para a cura da covid. Serve como droga política para arregimentar fanáticos e disseminar teorias conspiratórias. Faz crer que existe uma ideologia que articula e impulsiona toda e qualquer manifestação cultural e política de questionamento a visões ultraconservadoras sobre a religião, a pátria, o Estado e a família. Junta no mesmo saco de inimigos a combater o liberal que defende a liberdade de expressão e a laicidade do Estado, as feministas que lutam pelos direitos das mulheres, o ativista do movimento LGBT, o dirigente da ONG ambiental, o intelectual “progressista”, o artista “devasso”, o libertário “maconheiro”, o jornalista da “mídia lixo” e até mesmo militares ditos “bundas-moles”.

O velho anticomunismo tinha um pé na realidade. É fato que o Komintern (a 3.ª Internacional) existiu de 1919 a 1945 e que o movimento comunista internacional continuou a ter vida nas décadas posteriores, com centro União Soviética e partidos comunistas em diversos países. É fato que Cuba treinou guerrilheiros e financiou a luta armada. Já o bicho-papão do marxismo cultural é pura fabricação mental. O que existe é uma extrema direita paranoica e obscurantista. Os sinais dela estão por toda parte: na negação da ciência, no uso da religião para fins políticos, na indiferença à morte, no desrespeito à liberdade de expressão do pensamento, do afeto e da sexualidade, no estímulo ao ódio, na linguagem chula. Ela representa o perigo real. O comunismo é um inimigo imaginário, a seu serviço.

DIRETOR-GERAL DA FUNDAÇÃO FHC, É MEMBRO DO GACINT-USP

Guedes e o ódio aos pobres, por Cristina Serra.

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As políticas excludentes e de base eugenista da dupla Bolsonaro-Guedes também compõem a causa mortis desses brasileiros

Cristina Serra – Folha de São Paulo, 18/06/2021

Paulo Guedes não falha. Sempre oferece variações sobre o mesmo tema, qual seja, sua aversão às pessoas pobres. Mas, agora, ele se superou. Disse que as sobras e os excessos dos almoços da classe média e dos restaurantes podem ser utilizados para alimentar mendigos e desamparados.

Ele enunciou tamanho absurdo sem corar, muito à vontade, sabendo que expressa ponto de vista de setor bastante representativo da sociedade brasileira, do qual é porta-voz. É a mesma visão de mundo por trás da famigerada “farinata”, ração feita com produtos próximos da data de vencimento e que o então prefeito João Doria tentou oferecer a famílias carentes.

É isso também que explica as pedras pontiagudas sob viadutos para afastar pessoas sem teto para bem longe da vista, medida revista pela prefeitura paulistana. O incômodo com o pagamento de direitos trabalhistas às empregadas domésticas, o desgosto de ver pobres viajando de avião, expresso em redes sociais, tudo isso é ódio de classe. E encontra sua síntese em Paulo Guedes.

Incapaz de formular uma política pública de combate à fome e à insegurança alimentar de milhões de brasileiros, limita-se a oferecer-lhes migalhas. Para o ministro, quem sobrevive nas bordas da sociedade tem é que comer o resto da mesa abastada. Viajar para o exterior? Sonhar com filho na universidade? Viver “100 anos”? Ora, onde já se viu.
Guedes achava que um auxílio de R$ 200,00 por mês seria suficiente para as famílias enfrentarem a pandemia e não podia ser por muito tempo, “aí, ninguém trabalha (…) e o isolamento [social] vai ser de oito anos porque a vida está boa”. A imunidade de rebanho que fizesse o resto. E fez. Neste fim de semana, chegamos aos 500 mil mortos.

Essa marca inimaginável não é obra exclusiva do vírus. As políticas excludentes e de base eugenista da dupla Bolsonaro-Guedes também compõem a causa mortis desses brasileiros. Presidente e ministro assinam os atestados de óbito.

Cristina Serra é paraense, jornalista e escritora. É autora dos livros “Tragédia em Mariana – a história do maior desastre ambiental do Brasil” e “A Mata Atlântica e o Mico-Leão-Dourado – uma história de conservação”.

Abandono escolar e motivação para aprender, por Claudia Costin

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Precisamos evitar que os estudantes considerem a escola desconectada de seus sonhos de futuro e dela desistam

Cláudia Costin Diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais, da FGV, e ex-diretora de educação do Banco Mundial.

Folha de São Paulo, 18/06/2021.

Acompanhei, com grande preocupação, a pesquisa realizada pelo Conselho Nacional da Juventude em 2020, em meio à pandemia, que mostrava que 28% dos jovens pensavam em desistir de estudar. Pois bem, um ano depois, já são 43%.

As razões são as esperadas: a crise econômica que resultou do prolongamento da Covid e as dificuldades de acesso ao ensino remoto, que tanto prejudicaram a aprendizagem. O vínculo se rompeu e os jovens se desconectaram não só das aulas mas da própria escola.

Não que não houvesse abandono escolar antes da pandemia, mas o crescimento dos que afirmam não pretender voltar é assustador em tempos de automação acelerada e poucas chances de trabalho digno para quem não concluiu o ensino médio. Isso deveria ser visto como emergência que se soma à das aprendizagens perdidas pelos que prosseguirão seus estudos.

Vários estados começaram a fazer a busca ativa de alunos que não voltaram ou se desligaram do processo de aprendizagem remota. O Unicef tem desempenhado importante papel em incentivar e orientar tecnicamente este esforço.

Mas a intenção de abandonar os bancos escolares não está ligada só à necessidade de complementar o orçamento familiar em meio à crise, ou à falta de conectividade. Há, além disso, um problema de motivação para aprender.

Tanto tempo longe das escolas e a inadequação dos métodos assíncronos de ensino, representados por roteiros escritos a serem preenchidos e programas de rádio e televisão, certamente trouxeram um desengajamento dos jovens.

Daí o acerto do tema escolhido pelo Instituto Ayrton Senna para seu Seminário Internacional realizado nesta semana: motivação em educação.

Discutir com especialistas e gestores educacionais como se assegura motivação em crianças e jovens para uma boa gestão da aprendizagem e ouvir pessoas que se motivaram, ao longo de sua vida para realizar projetos transformadores, foi uma estratégia bem adequada ao momento em que vivemos. Tive, neste sentido, a incrível oportunidade de entrevistar, no seminário, a dra. Jane Goodall, primatóloga reconhecida mundialmente, a partir do seu trabalho pioneiro com chimpanzés na Tanzânia.

Desenvolver nos alunos habilidades de autorregulação e incentivá-los a se conhecer melhor e a pensar em seu projeto de vida, são estratégias associadas, de acordo com as pesquisas, a maior motivação, bem-estar e sucesso acadêmico.

Tenderão também, com certeza, a favorecer a permanência dos jovens na escola.

Mais do que buscar os adolescentes que abandonaram a escola, precisamos evitar que eles a considerem desconectada de seus sonhos de futuro e dela desistam!

Morte e vida da pequena empresa no pós-pandemia

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Gigantes do varejo monopolizam como nunca as vendas e arruinam milhões de empreendedores. Mas cresce tendência oposta: o consumo consciente e local, oportunidade para recuperar economia, caso haja políticas públicas robustas…

Outras Palavras

Miriam Duailibi e Sérgio Miletto – 16/06/2021.

Não há mais dúvida que o mundo mudou radicalmente nos últimos dois anos.

A pandemia, o medo do contágio e a consequente necessidade de distanciamento social aceleraram dramaticamente os processos de automação que estavam em curso inicial ou em gestação.
Pequenas indústrias, empresas de serviço e comércio tiveram que rapidamente se adaptar para não fechar as portas.

A explosão dos Market Places

Grandes marcas do varejo como o Magazine Luiza e as Americanas além de investirem fortemente em plataformas de internet para escoar seus produtos, se transformaram, a exemplo da Amazon e Mercado Livre, em Market Places, ou seja, enormes mercados virtuais onde pequenos produtores, distribuidores e comerciantes expõe e vendem seus produtos.

Grupos de investidores criaram plataformas como a Enjoei.com onde os próprios consumidores criam suas vitrines de roupas de marcas caras e objetos preciosos seminovos que são oferecidos aos clientes de todo o país.

Muitas são as vantagens que este novo tipo de comércio pode oferecer aos pequenos e micros: a possibilidade de uso de plataformas já existentes, a garantia de recebimento do valor de venda, a divulgação de sua marca, o sistema de entrega rápida, entre outros.

No entanto, o custo para usufruir deste espaço e suas vantagens pode ser muito alto e até mesmo impeditivo. A comissão cobrada a cada venda, a necessidade de manter estoque, a obrigatoriedade da entrega no prazo, os preços que devem ser baixos para serem competitivos exigem altos investimentos e capital de giro, ativos que quase nunca a pequena e a microempresa possuem.

As vendas online

As redes de supermercados, farmácias, material de construção, até mesmo hortifrúti e panificadoras sofisticaram seus produtos, aceleraram suas vendas online, entrega rápida sem custo e ofertas imbatíveis.

Este novo jeito de comprar e vender fez do comércio local sua maior vítima. Com apenas um celular ligado à internet, consumidores dos mais longínquos cantos do Brasil podem comprar diretamente dos distantes Market Places e das grandes redes sem sair de sua casa.

Se antes a proximidade impelia a escolha, especialmente nos grandes centros urbanos onde a locomoção é demorada e cara, com a popularização da internet este fator não importa mais.

O pequeno produtor, a papelaria da esquina, o mercadinho, a confecção, a pequena quitanda, a lanchonete, o distribuidor de bebidas do bairro, o restaurante de comida caseira da quadra, nenhum deles consegue competir em preço, estética, prazo de entrega e divulgação com os grandes.

Às dificuldades financeiras se sobrepõe a falta de conhecimento tecnológico para lidar com este novo mundo que chegou tão rapidamente.

Sem contar com nenhuma reserva de mercado, como em outros países que delimitam áreas onde as grandes redes não podem entrar para preservar as micro e pequenas empresas; sem acesso ao crédito e ao financiamento; sem familiaridade com a automação, milhares de micro e pequenas empresas fecham as portas diariamente.

O papel do Estado

O papel do Estado no fortalecimento das micro e pequenas empresas como grande gerador de emprego e renda é de extrema importância. Entre as medidas mais efetivas estão as Compras Públicas. Embora exista legislação garantindo o acesso do setor aos editais públicos nem sempre isto se dá, seja por desconhecimento da Lei, por inoperância ou despreparo da área técnica e jurídica ou ainda por preconceito dos entes públicos.

Enquanto os governos e o parlamento se mantêm alheios ou pouco operantes quanto à questão, o desalento e até mesmo a fome atingem as famílias brasileiras.

Os números

Segundo o relatório da Global Entrepreneurship Monitor 2020 – pesquisa realizada no país pelo Sebrae em parceria com o Instituto Brasileiro de Qualidade e Produtividade (IBPQ) – 10 milhões de empreendedores, em sua maioria mulheres, fecharam suas empresas durante a pandemia.

Apenas o chamado empreendedorismo por necessidade, como citamos em artigo anterior em Outras Palavras, continua crescendo alavancado pelo desemprego e pela precarização do trabalho.
Novas oportunidades

É preciso ressaltar que existe um rol de oportunidades para pequenos e micros na chamada economia circular, de baixo carbono, sustentável, comércio justo, que se apresentam como um novo paradigma global.

Trata-se da tendência mundial de reforçar os pequenos negócios que respeitam as relações justas de trabalho, utilizam matérias-primas de baixo impacto, reduzam o consumo de água, energia e materiais, minimizam a geração de resíduos e reciclam os que foram produzidos, que se associam em redes, consórcios, sociedades de propósito específico – SPE – para comprar, vender, divulgar.

Produzir e consumir localmente é um mote que deve se firmar também em nosso país devido à extrema necessidade de enfrentar a crise climática, o desemprego e a desigualdade social.

As micro e pequenas empresas sempre se destacaram como grandes geradoras de emprego, em tempos de automação este papel se torna ainda mais importante. Pelo seu porte são ágeis e capazes de efetuar as adequações necessárias em sua operação de forma rápida e segura.

Para que elas possam fazer parte e até protagonizar a nova economia, as diferentes esferas governamentais e as instituições de apoio ao setor precisam elaborar massivos programas de capacitação dos micros e pequenos empreendedores

Por outro lado, o setor necessita compreender a importância de se organizar, se associar, se mobilizar e ter representatividade forte para exigir políticas públicas de incentivo, capacitação, disponibilização de tecnologia e recursos para que possam sustentar suas famílias com dignidade, gerar trabalho qualificado e contribuir com o desenvolvimento sustentável, justo e equitativo do país.

Precarização do trabalho

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Muitos teóricos da economia do século XIX acreditavam que o incremento da tecnologia na sociedade levaria os indivíduos a terem mais tempo para o lazer, para as atividades culturais e artísticas e para a ociosidade. Infelizmente as previsões não se efetivaram, vivemos marcados por tecnologias crescentes, máquinas e equipamentos variados, comemoramos alto crescimento da produtividade e as cargas de trabalhos crescem de forma acelerada, levando o mundo do trabalho a novas transformações que geram mais desemprego, subemprego, desalentos e, mesmo os trabalhadores empregados, percebemos que as patologias laborais crescem, gerando depressões, ansiedades e desesperanças generalizadas.

Neste ambiente percebemos que as mudanças no mundo do trabalho é um dos grandes desafios da sociedade contemporânea, de um lado, percebemos que a quantidade de riqueza cresce de forma acelerada e, ao mesmo tempo, percebemos que a pobreza cresce mais ainda, gerando conflitos, guerras, misérias e instabilidades crescentes.

A pandemia, que crassa a sociedade global, desnudou as desigualdades crescentes da sociedade mundial, levando as maiores personalidades do mundo dos negócios e dos setores financeiros, a destacarem a necessidade de estimular os governos e os gestores públicos e privados a adotarem políticas para reduzir esta mazela que desagrega as relações sociais e deixando marcas agressivas nos países e criando sequelas para todas as regiões.

A tecnologia está impactando sobre todo o processo produtivo, muitos teóricos enxergam o desenvolvimento tecnológico como instrumento de desestruturação do trabalho e outros acreditam que a solução é o investimento maciço na educação. Na verdade, precisamos requintar a discussão, estimulando o desenvolvimento das políticas públicas, fomentando os setores geradores de empregos dignos para toda a comunidade, investimento maciço na educação, em centros de pesquisas e fomento do conhecimento, ao mesmo tempo, construindo uma estratégia de consolidação de setores industriais fortes e pujantes. Sem setores produtivos fortes, consolidados, maduros e competitivos para a geração de empregos de qualidade, perceberemos profissionais qualificados sem emprego, sendo sujeitados a trabalhos precários e mal remunerados, algo que percebemos na sociedade brasileira.

A sociedade precisa combinar estratégias de consolidação educacional e fortalecimento industrial e dos setores produtivos, impulsionando empregos qualificados e novas oportunidades para aumentar a produtividade e enriquecimento da coletividade. Neste ambiente percebemos a importância do estímulo do empreendedorismo e da inovação, ao mesmo tempo, é fundamental a construção de novos ambientes mais afeito a desburocratização, reduzindo os excessivos subsídios de setores mais consolidados e investimentos em educação de qualidade, que forma m mão de obra para compreender os inúmeros desafios que crassa a sociedade brasileira.

Atualmente, estamos percebendo a saída de pessoas altamente qualificadas, profissionais com doutorado e pós-doutorado que estão optando por sair do país. Sem um projeto nacional consistente, com a demonização crescente das universidades públicas que são os grandes geradores de conhecimento científico nacional, além da degradação das agências de fomento e a redução de investimentos em ciência e tecnologia, muitos pesquisadores aceitam convites de centros de pesquisas e universidades estrangeiras, abandonando o sonho de construirmos uma sociedade desenvolvida.

Estamos num momento crucial para a construção de um rumo consistente para a sociedade brasileira, a pandemia está trazendo novos desafios para a população, os investimentos em educação são dispendiosos, imprescindíveis e seus retornos são inquestionáveis no longo prazo. Neste ambiente, sem investimento e com baixa confiança viveremos saudando um falso crescimento econômico com geração limitada de emprego precário, assistindo a saída de grandes conglomerados e uma verdadeira degradação do trabalho, num ambiente caracterizado por baixo salário, sem perspectivas de desenvolvimento econômico, sem dignidade e assolado por promessas nunca realizadas.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 16/06/2021.

Inger Enkvist: “A nova pedagogia é um erro. Parece que não se vai à escola para estudar”

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Pedagoga sueca, com mais de quatro décadas de experiência na educação, critica método que dá mais iniciativa aos alunos na sala de aula e defende um ensino mais tradicional

Cristina Galindo – El País, 25/07/2018.

O silêncio reina na rua de pedras onde mora Inger Enkvist, em Lund, uma das cidades mais antigas da Suécia, com uma das universidades mais importantes deste país nórdico. Ninguém diria que a poucos minutos a pé fica o centro urbano. Esta calma chega ao interior de seu apartamento, uma sobreloja com grandes janelas e um jardim traseiro comunitário. Seu escritório, luminoso e cheio de livros, é um reflexo de sua ideia de como é preciso se entregar a qualquer tarefa intelectual: com ordem, concentração, seguindo regras…, lendo.

Enquanto a maioria dos pedagogos questiona a utilidade de decorar informações na era do Google e prega o fim das carteiras enfileiradas e das disciplinas estanques, com mais liberdade para os alunos, Enkvist (Värmland, Suécia, 1947) defende a necessidade de voltar a uma escola mais tradicional, onde se destaquem a disciplina, o esforço e a autoridade do professor. Seu ponto de vista contraria os postulados dessa nova pedagogia, mas também se distancia daqueles que acreditam que a escola é uma fábrica de alunos em série e que deve centrar seus esforços em competir com outros colégios para subir nos rankings mundiais.

Começou sua carreira educativa como professora do ensino secundário, e agora é catedrática emérita de espanhol na Universidade de Lund. Centrou sua pesquisa na obra de Mario Vargas Llosa e Juan Goytisolo, e escreveu ensaios sobre José Ortega y Gasset, Miguel de Unamuno e María Zambrano. Publicou vários livros sobre pedagogia – como Repensar a Educação (Bunker Editorial, 2006, digital) – e centenas de artigos, além de ter assessorado o Governo sueco no assunto. Sentada na sala de sua casa, Enkvist conversa em espanhol sobre como acredita que as escolas deveriam ser, enquanto bebe um suco de frutas vermelhas servido num jarrinho de barro comprado em Segóvia. Falando com ela, não é nada difícil imaginá-la no seu colégio, ainda menina, tirando ótimas notas.

Pergunta. Como recorda sua escola?

Resposta. Era pública e tradicional. Não tenho más recordações. Talvez houvesse algumas aulas chatas, mas às vezes a vida é assim. Os alunos chegavam na hora e não havia conflitos com os professores. A Suécia me deu uma educação gratuita e de qualidade.

P. Os tempos mudaram. Continua valendo a disciplina daquela época?
R. A relação entre pais e filhos se baseia mais do que nunca nas emoções. Temos uma vida mais fácil, e queremos que nossos filhos também a tenham. Mas a escola deve estar consciente de que sua tarefa principal continua sendo formar os jovens intelectualmente. A escola não pode ser uma creche, nem o professor um psicólogo ou um assistente social.

P. Qual deve ser a finalidade do ensino infantil?
R. Deve ser muitas coisas, mas sua tarefa principal é dar uma base intelectual. Dar conhecimentos aos jovens, prepará-los para o mercado de trabalho, transmitir-lhes uma cultura e proporcionar-lhes uma ideia da ordem social, porque a escola é a primeira instituição com a qual as crianças se deparam, e é importante que vejam que há algumas regras, que o professor é a autoridade e que é preciso respeitar tanto ele como os colegas.

P. Mas a tecnologia torna mais difícil controlar crianças hiperestimuladas.
R. Sempre houve dificuldades na aprendizagem. Há 50 anos, era o fato de precisar andar uma hora para chegar ao colégio, ou oferecer refeições nutritivas. Hoje se trata da enorme quantidade de estímulos. O novo desafio é controlar o acesso ao celular. e ao computador para que se concentrem. As escolas que proíbem o celular fazem bem.

Em casa, os pais devem vigiar o tempo de uso da tecnologia. Proibir é muito difícil, porque se criam conflitos, mas um pai moderno deve saber dizer “não”. Deve resistir.

P. Há pedagogos que afirmam que a escola tradicional é chata e educa crianças submissas, e que é preciso aprender a aprender.
R. A escola é um lugar para aprender a pensar sobre a base dos dados. Isso de insistir em aprender a aprender sem falar antes de aprendizagem é uma falsidade, porque não podemos pensar sem pensar em algo. Sem dados não há com o que começar a pensar.

P. A escola não deveria ser um lugar onde se divertir?
R. A satisfação na escola deve estar vinculada ao conteúdo: entrar numa aula e que lhe contem algo que você não sabia. Mas é preciso saber que, para entender algo novo, é necessário fazer um esforço. Além disso, é fundamental que o professor nos ensine a ler e também como nos comportar. É impossível aprender bem sem que haja ordem na sala de aula. Essa é a base principal: comportamento, leitura e avaliação pelo conhecimento.

P. O que opina da tendência de pôr almofadas na sala de aula para que os alunos se deitem?
R. Isso é enganar os jovens. Para aprender a escrever, uma criança precisa sentar-se bem, olhar para frente, ter lápis e papel, concentrar-se… Aprender pode ser um prazer, mas, insisto, exige um esforço e um trabalho. É preciso dizer isso às crianças. Se não, estamos enganando-as. Tocar violino, por exemplo, não é fácil. Exige muita prática.

Os estudos do psicólogo sueco Anders Ericsson mostraram que é necessário um esforço prolongado para melhorar em algo. Para ser bom em algo você tem que se dedicar 10.000 horas. E precisa fazê-lo de forma consciente e trabalhar com um professor. Sua pesquisa avaliza a ideia tradicional de uma escola baseada no esforço do aluno, sob a orientação de um professor.

P. Há quem diga que não é preciso decorar porque tudo está no Google.
R. Essa é outra falsidade. O Google é uma ferramenta genial. É de grande ajuda para os adultos, porque sabemos o que procuramos. Mas, para quem não sabe nada, o Google não serve de nada. Há intelectuais que andam por aí dizendo que estudar geografia não foi útil. Acredito que se esqueceram de como e quanto aprenderam na escola. Afirmar essas coisas é uma falta de honradez com os jovens. E menosprezar a importância em si da vida intelectual do aluno.

P. Em que consiste a nova pedagogia que você critica?
R. A nova pedagogia é um pensamento que se vê por toda parte no Ocidente. A Suécia a adotou nos anos sessenta. Consiste, por exemplo, na pouca gradação das notas, por isso muitos pensam que não há razão para estudar muito se isso não for se refletir no histórico escolar. Dá-se muita importância à iniciativa do aluno, trabalha-se em equipe e, ao mesmo tempo em que as provas desaparecem, aparecem os projetos e o uso das novas tecnologias. Em geral, parece que se vai à escola para fazer atividades, não para trabalhar e estudar. Dá-se mais ênfase ao social que ao intelectual. Acho que é um erro. Por um lado, os alunos com mais capacidade não desenvolvem todo o seu potencial e, por outro, os que têm uma menor curiosidade natural por aprender não avançam. Além disso, muitos gostos são adquiridos, como a história, a leitura e a música clássica. No começo podem parecer chatos, mas, se alguém insistir para que tenhamos um primeiro contato, é possível que acabemos gostando. Atualmente, muitos jovens escolhem sem terem conhecido e, claro, escolhem o fácil.

P. A Espanha é um dos países da OCDE que dedica mais horas à lição de casa. Isso tem alguma utilidade?
R. Quando a jornada é muito longa, como na Espanha, não faz sentido. Se um aluno está cansado, a lição de casa não melhora o seu rendimento. É preciso buscar um número ideal de aulas pela manhã, quando a criança está mais acordada, dar-lhe um tempo de descanso e, à tarde, talvez uma tarefa de revisão do que fez durante aquele dia. Um bom exemplo é a Finlândia, onde os alunos entram às oito da manhã e saem às duas da tarde, incluindo o almoço; exceto às quintas-feiras, quando saem às quatro da tarde.

P. Quando criança, você era um grande leitora. Como despertar esse prazer se uma criança não está interessada?
R. Era uma leitora compulsiva. Ninguém teve de insistir para que eu pegasse um livro. Mas há crianças que precisam disso. Talvez no começo seja necessário forçá-las um pouco, encorajá-las para que se tornem leitoras de lazer. Como se faz isso da escola? Comprar bons livros para a biblioteca e recomendar um a cada sexta-feira. Um aluno pode contar o que leu naquela semana. Fazer pequenas competições para ver quem leu mais. Medir como o seu vocabulário aumenta. E explicar que a leitura lhes permitirá, quando adultos, um melhor desenvolvimento. Se os alunos começam a ler, quase todos descobrirão que é um prazer. Mas eles precisam de horas. Calcula-se que na maioria dos países se dedicam 400 horas à aprendizagem da leitura na escola primária. Para ser um bom leitor, são necessárias 4.000 horas. É impossível ter tanto tempo na aula. Eles têm de fazer isso em casa. O que os pais podem e devem fazer é ler com os filhos: apoiar a leitura e servir de modelo.

P. Mas as humanidades estão perdendo peso.
R. Dizem que o amanhã será dominado pela tecnologia e pelas ciências naturais, e que o que é histórico não é importante. Além disso, as provas do PISA (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes), um conjunto de exames organizados pela OCDE para avaliar as competências de alunos de 15 anos em ciências, matemática e leitura] não levam em conta as humanidades porque é difícil comparar esses conhecimentos entre países, então a vontade de competição os leva a dar mais ênfase às matérias que fazem parte do PISA e negligenciar as outras. Tanto a escola quanto a família devem dar mais ênfase às humanidades.

P. A visão do PISA é a de uma escola que deveria funcionar como uma empresa?
R. A OCDE é uma organização econômica e analisa a educação a partir dessa perspectiva. O que o PISA não revela é se existe uma boa atmosfera na sala de aula, se bons princípios de trabalho são inculcados, se as ciências humanas, as ciências sociais, as matérias estéticas como arte e música, que são essenciais, são bem ensinadas. O PISA é uma prova muito específica que analisa algumas coisas. As escolas e os países deveriam defender que eles ofereçam muito mais do que isso.

P. Em seus livros, você aponta a Finlândia como um dos grandes modelos.
R. A educação na Finlândia foi tradicional, embora há dois anos o Governo tenha lançado um programa mais parecido com o da Suécia, porque meu país tem um desempenho escolar inferior, mas tem um comportamento econômico superior e criou empresas de tecnologia como Spotify e Skype. O Governo finlandês parece pensar que com um pouco de desordem suas escolas serão mais criativas. Não acredito nisso.

P. A Finlândia era tradicional? Não há exames no ensino obrigatório nem os havia antes dessa reforma que você menciona.
R. É preciso repensar a fobia aos exames. O exame ajuda a se concentrar em um objetivo. Que em tal dia você tem de saber esses conhecimentos. Um bom professor ensina coisas aos alunos, revisa com eles e faz algumas provas. E constroem outros ensinamentos sobre o que já foi aprendido, então esses conhecimentos voltam a aparecer mais tarde.

Não faz um exame sobre algo sem importância. Com a prova final acontece a mesma coisa. É um objetivo claro. Ajuda a ter uma visão global.

P. Na Finlândia não se compara tanto as escolas, o que é comum na Espanha. É assim?
R. Na Finlândia continuam com a tradição de confiar nos professores. Quando existe um controle estatal do desempenho e se fazem comparações entre as escolas, o ambiente se deteriora. Para os professores, gera estresse e rancor em relação a quem te controla.

P. Como deve ser um bom professor?
R. Responsável e bem formado. Deve acreditar no poder do conhecimento. Não se é bom professor apenas pelo que se sabe sobre a matéria, nem só porque sabe conquistar os alunos. É preciso combinar ambos os elementos: atrair os alunos para a matéria para ensiná-la adequadamente. É preciso recrutar professores excelentes em que alunos, pais e autoridades possam confiar. E a menos que haja uma situação grave, devemos deixá-los trabalhar.

P. Como foi sua experiência na sala de aula?
R. O aluno tem de respeitar as instruções do professor, fazer as lições de casa e, por exemplo, não mentir. Antes, mentir era muito grave. Agora parece que não acontece nada. Vi jovens que inventam motivos para justificar por que não fizeram um trabalho, que escrevem de forma pouco legível para gerar dúvidas ou discutem o tempo todo com os professores. Sei o quão desagradável é que um aluno tente mentir para você. Vi isso no ensino médio e na universidade. Quando um professor sente que não é respeitado, que tentam enganá-lo, todas as relações de ensino se rompem.

P. O que fazer com as crianças que incomodam e não deixam os outros trabalharem?
R. Isso é um tabu. É considerado pouco democrático. Diz-se que devemos dar uma oportunidade a todos. Mas o que acontece quando uma criança problemática não deixa os outros trabalharem, quando se fala com ela e com os pais, mas não se corrige? É preciso colocá-lo em um grupo separado para ver se percebe e muda.

P. E as crianças que se esforçam, mas não atingem o nível?
R. Elas podem ter aulas de reforço. E podemos oferecer itinerários diferentes, como no caso de Cingapura.

P. E repetir de ano?
R. Fazer repetir uma criança às vezes serve e às vezes não, porque cada um é diferente. Gosto do sistema de Cingapura, onde o lema é que cada criança pode atingir seu nível ótimo. Existem diferentes maneiras de conseguir isso: uma maneira, digamos, normal e outra, expressa. A segunda inclui mais conteúdos em menos tempo. Há quem diga que é menos democrático, mas creio que, pelo contrário, é mais democrático porque convém à criança, à família e ao Estado. E há menos evasão escolar, um problema muito mais grave.

P. Não está aprendendo também por imitação? Ou seja, os alunos adiantados podem puxar aqueles que ficam para trás?
R. Funciona quando o grupo tem um bom nível e um bom professor. E se aqueles que têm de se integrar são poucos e querem fazê-lo. Se não, o que geralmente acontece é que aqueles que não querem trabalhar arrastam os outros.

P. O bilinguismo que combina inglês e espanhol prolifera nas escolas espanholas. Você matricularia seus filhos em uma dessas escolas?
R. Primeiramente, eu analisaria outras opções. Aprender inglês é bom, mas é preciso perguntar o que deixamos de aprender de outras matérias. Tenho dúvidas. Acredito que se pode aprender bem inglês com algumas horas de aula sem sacrificar outros conhecimentos, como por exemplo, as ciências. Na Suécia, as aulas de inglês só começam aos 9 ou 10 anos.

Eleitor decepcionado com Bolsonaro desconfia da oposição, diz pesquisadora

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Para Esther Solano Gallego, avanço da vacinação e recuperação da economia podem levar desiludidos a se reaproximar do presidente

Ricardo Balthazar – Folha de São Paulo, 14/06/2021

A má avaliação do desempenho do governo no enfrentamento da Covid-19 afastou muitos eleitores de Jair Bolsonaro, mas eles ainda veem a oposição com desconfiança e poderão se reaproximar do presidente se houver avanço na vacinação e a recuperação da economia se revelar consistente.

A opinião é da cientista social Esther Solano Gallego, professora da Universidade Federal de São Paulo que estuda o bolsonarismo desde 2017, quando começou a entrevistar grupos de eleitores em parceria com a cientista política Camila Rocha, do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento).

Para Solano, muitos eleitores que se desiludiram com Bolsonaro e reprovam suas ações são conservadores que prezam valores tradicionais e são refratários aos argumentos dos seus opositores, o que tende a dificultar a construção de discursos que convençam essas pessoas nas eleições de 2022.

Segundo o Datafolha, o recrudescimento da pandemia fez a taxa de reprovação ao governo Bolsonaro alcançar 45% em maio, quando foi concluída a pesquisa nacional mais recente do instituto. A taxa de aprovação ao seu desempenho caiu para 24%, a pior marca desde o início do seu mandato.

O Datafolha calcula que o grupo formado pelos eleitores bolsonaristas mais fiéis correspondia a 9% da população em maio. Outros 27% disseram que votaram no presidente nas eleições de 2018, mas expressavam desconfianças e se apresentavam como mais moderados e críticos à sua atuação.

A aposta de Solano é que a preocupação com o futuro da economia e o desemprego será o fator mais importante para a definição do voto nas próximas eleições presidenciais, se a vacinação da maioria da população for concluída até o fim deste ano, como se prevê, e não houver nova onda de contágio.

De que forma a pandemia influiu na avaliação dos eleitores de Bolsonaro sobre sua atuação no governo? Os mais fiéis acham que ele quer cuidar dos brasileiros, mas veem o Congresso, a imprensa e o Supremo Tribunal Federal como obstáculos que o impedem de trabalhar. Não acreditam no que a oposição fala na CPI e dizem que Bolsonaro só não comprou vacinas antes porque é cuidadoso.

Os mais moderados, que votaram em Bolsonaro e se tornaram críticos com a pandemia, acham que ele foi irresponsável e desumano, especialmente ao debochar dos mortos e da dor das famílias. Não chegam a defender punições para suas ações, mas consideram importante que as coisas sejam esclarecidas.

Por que os eleitores mais fiéis ao presidente rejeitam a ideia de que ele seja responsável pelos erros do governo e pelas mortes ocorridas? Essas pessoas têm uma adesão mais afetiva e emocional do que ideológica ao projeto de Bolsonaro. É uma adesão muito forte, de caráter quase existencial, porque elas sentem-se representadas pela personalidade dele, pela ideia de que os outros são inimigos, os que pensam diferente.

Os eleitores mais moderados que votaram em Bolsonaro foram movidos por frustrações, por um sentimento de abandono e desencantamento com tudo. Agora estão decepcionados, inclusive por causa da sua falta de empatia com as pessoas na pandemia. Os mais radicais não conseguem entender isso.

O avanço da vacinação e a recuperação econômica nos próximos meses podem fazer os eleitores mais críticos mudarem de ideia de novo? É provável que o país esteja diferente daqui a um ano, mas ainda não dá para prever como isso afetará o comportamento do eleitorado. Embora a pandemia tenha influído bastante até aqui, há outros fatores que levaram ao desencantamento desses eleitores e a um certo cansaço com Bolsonaro.

Essas pessoas acreditam que ele tem contribuído para uma instabilidade permanente ao agir de forma autoritária e intolerante. Há também muito descontentamento com sua aliança com o centrão no Congresso. Esses eleitores acham que ele se curvou à velha política e se decepcionaram com isso.

Nas classes A e B, há desilusão com a falta de margem de manobra do ministro Paulo Guedes na condução da economia.
Nas classes C e D, há muita preocupação com o desemprego e um processo de empobrecimento que se aprofundou no último ano. Talvez essas pessoas fiquem mais otimistas com a recuperação da economia.

Que discurso seria capaz de seduzir esses eleitores decepcionados com Bolsonaro? Os mais moderados não confiam nas alternativas oferecidas até aqui no cenário político-eleitoral, não se sentem acolhidos por essas opções. Alguns até acham que Lula possa levar o país de volta a uma estabilidade, com seu temperamento conciliador e inclinado à negociação, mas muitos o rejeitam.

O antipetismo e a preocupação com a corrupção levaram muitos desses eleitores a votar em Bolsonaro e eles continuam sem querer ouvir falar do PT, apesar da decepção com o presidente. Nenhum dos outros presidenciáveis que se apresentaram parece despertar muita confiança no eleitorado hoje.

A grande maioria está confusa, dominada por um sentimento de orfandade política. Essa porção do eleitorado é formada majoritariamente por mulheres, jovens e pessoas que empobreceram na pandemia. Elas estão esperando um discurso que não será fácil para a esquerda entregar.

Como assim? Para as mulheres, por exemplo, a proteção das famílias e dos valores tradicionais se tornou especialmente importante agora, com a pandemia. E muita gente no campo democrático tem dificuldade em construir um discurso que acolha esses valores mais conservadores, sem a radicalidade bolsonarista.

Terão que falar sobre segurança pública também, mesmo que se afastem da brutalidade do discurso de Bolsonaro nessa área. Há muita insegurança na sociedade, nos bairros ricos e nas áreas periféricas onde a violência é cotidiana.

Será preciso encontrar novas maneiras de dialogar com essas pessoas.

Em nossas entrevistas, esse assunto é objeto de muitas críticas à esquerda. Há grandes especialistas no tema no campo progressista, mas as soluções que oferecem são complexas, de longo prazo. Bolsonaro pode ser demagógico e populista, mas fala no assunto de um jeito que as pessoas entendem.

Bolsonaro ainda poderá reconquistar os eleitores que se afastaram dele? Alguns parecem ter desembarcado totalmente.

Dizem que se arrependeram e não querem votar nunca mais em Bolsonaro. Estão muito rancorosos. Mas outros têm dúvidas, não chegaram ao ponto de uma ruptura completa. Podem votar nele novamente se houver mudanças nos próximos meses.

É como se continuassem unidos por um fio que ainda pode ser puxado se as circunstâncias forem diferentes. Vai depender muito de como a pandemia e a economia evoluirão, do comportamento do próprio Bolsonaro e das opções políticas que seus opositores forem capazes de oferecer.

Parte da classe média espera um discurso que ofereça um Estado pró-mercado, que crie estímulos para microempresários e empreendedores, mas também entregue serviços públicos essenciais, como saúde, educação e transporte. Pode ser difícil para a esquerda conjugar esses diferentes aspectos.

O auxílio emergencial pago pelo governo ajudou Bolsonaro a sustentar sua popularidade no ano passado. As pessoas que passaram a apoiá-lo por causa disso se afastarão com a redução do programa agora? Não sei. O auxílio é muito bem avaliado, até pelos mais críticos do bolsonarismo. Há uma conexão forte com essa base mais empobrecida do eleitorado. A gestão da pandemia é o elemento fundamental agora, mas provavelmente daqui a alguns meses a questão econômica será mais preponderante.

Por que a adesão desses segmentos do eleitorado a valores tradicionais é um problema para a oposição? Esse eleitor é bastante conservador. Ele valoriza a ordem e crê num passado romântico, em que as coisas teriam sido melhores. A penetração maior de valores progressistas, com a luta feminista, dos LGBT e do movimento antirracista, provocou uma reação conservadora no mundo todo. Isso continuará.

Há também o legado principal da Lava Jato, que é a rejeição aos partidos políticos como instrumentos da democracia, especialmente no campo mais conservador. A direita bolsonarista, que é autoritária, cresceu com isso. Será preciso estruturar uma direita civilizada, democrática, para deter esse processo.

A anulação das condenações de Lula na Justiça teve algum efeito nesses segmentos do eleitorado? Para os mais radicais, isso é evidentemente resultado de um complô do STF com a oposição para acabar com Bolsonaro. Acham que Lula deveria estar preso e não querem mais conversa. Entre os mais moderados, há quem aponte excessos na Lava Jato, mas a maioria acredita que Lula é corrupto.

Lula dialoga bem com valores conservadores, como a ideia da ordem e uma certa religiosidade popular. Mas ficou marcado pela associação com a corrupção. Muitos de seus eleitores votaram em Bolsonaro movidos por um sentimento profundo de traição, que não vai desaparecer de um dia para outro.

As suspeitas sobre os filhos de Bolsonaro e suas ações para protegê-los não têm o mesmo efeito? O bolsonarista desencantado carrega nas costas várias decepções, que vão se acumulando. Está decepcionado com Bolsonaro agora, mas também continua decepcionado com o PT, com os partidos em geral, com o sistema político. No final das contas, é um sentimento muito antissistema.

Não se trata de uma desilusão pontual com um partido ou um indivíduo específico, mas com o sistema como um todo. Então não vai ser fácil para os políticos convencerem esse eleitor a se encantar novamente com a política. Será necessário um trabalho mais complexo do que em outras eleições.

Há uma decepção mais profunda com a democracia e os resultados alcançados pelos governos que vieram depois da ditadura militar? Muita gente, nos extratos mais populares, expressa esse desencantamento com razões de ordem material. Por muito tempo pensaram, especialmente durante os governos petistas, que conseguiriam alcançar um patamar mais elevado de consumo e renda, e de cidadania, mas sentem que bateram num teto.

Quando perguntamos aos nossos entrevistados se acham que existe democracia plena no Brasil, todo mundo responde que não. Acham que o país está afundando na corrupção, que o sistema político é sujo e corrompido, e não se pode mais confiar nele. A questão para a oposição é como reconstruir essa confiança.

RAIO-X

Esther Solano Gallego, 38
Doutora em ciências sociais pela Universidade Complutense de Madri, na Espanha, vive no Brasil há 11 anos e é professora do curso de relações internacionais da Universidade Federal de São Paulo, em Osasco. Suas pesquisas sobre o eleitorado brasileiro são financiadas pela Fundação Friedrich Ebert e pela Fundação Tide Setúbal. Organizou a coletânea de artigos “Brasil em Colapso” (Editora Unifesp, 2019)

‘Mundo nos vê com assombro por manter Bolsonaro’, diz autor de livro sobre história do impeachment

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Em ‘Como Remover um Presidente’, o jurista Rafael Mafei narra a história desse dispositivo jurídico desde seu surgimento na Inglaterra medieval até o Brasil contemporâneo

Rafael Mafei

André Cáceres, O Estado de São Paulo – 12/06/2021

Quando, em 1376, o representante da Câmara dos Comuns Peter de la Mare questionou a atuação do barão de Latimer na condução das finanças da Inglaterra durante a Guerra dos Cem Anos, ele não sabia, mas estava abrindo caminho para uma história que continua tendo desdobramentos até hoje em todo o mundo democrático: a história do impeachment. É essa trajetória que o livro Como Remover um Presidente, do jurista Rafael Mafei, narra em detalhes, passando pelo seu nascimento no direito britânico, sua modernização na Constituição dos Estados Unidos e sua aplicação no Brasil.

Embora o primeiro processo bem-sucedido de impeachment do País tenha sido instaurado apenas em 1992, contra Fernando Collor de Mello, a relação brasileira com esse dispositivo jurídico é longa e conturbada. A noção de crime de responsabilidade, herdada do Brasil imperial, motivou a criação de uma lei que permitia a impugnação do presidente e que foi pivô de uma crise política já durante o primeiro mandato da República, levando à renúncia do marechal Deodoro da Fonseca.

Nosso segundo presidente, Floriano Peixoto, também viria a sofrer uma tentativa de impeachment, mas seria absolvido. Diferente dos processos de “impedimento” que afastaram os presidentes interinos Café Filho e Carlos Luz com um intervalo de 11 dias sem acusação, defesa ou um rito digno de um julgamento, durante a crise golpista de 1955 que antecedeu a posse de Juscelino Kubitschek.

Mafei passeia por esses e outros saborosos capítulos da história brasileira não com a linguagem seca do mundo jurídico, mas como em um livro de história narrado por um jurista. No entanto, o que torna Como Remover um Presidente urgente são casos mais recentes, envolvendo Fernando Collor e Dilma Rousseff. Além disso, o epílogo da obra é dedicado a analisar, do ponto de vista jurídico, a atuação de Jair Bolsonaro na Presidência da República, esmiuçando os diversos crimes de responsabilidade cometidos em sua administração e que, não fosse pelos elementos políticos que compõem o impeachment, poderiam embasar seu afastamento.

Leia trechos da entrevista concedida por Rafael Mafei ao Estadão via chamada de vídeo:

O componente ‘político’ do processo de impeachment vem se sobressaindo ao ‘jurídico’ na América Latina?

Há casos de impeachment que andaram muito bem e casos que extrapolaram o que era esperado do ponto de vista da capacidade do elemento jurídico de disciplinar o ímpeto político. O jurídico é o trilho e o político é o carvão que você joga na fornalha da locomotiva. Muitas vezes a quantidade de carvão fez com que o trilho descarrilasse. O que a gente conseguiu fazer muito bem no Brasil é ter uma disciplina processual do impeachment relativamente clara.

Pode parecer pouco, mas é um ganho, porque alguns casos em outros países da América Latina foram exemplares de abuso tipicamente processual. O impeachment do presidente do Equador, do Abdalá Bucaram, ou do Lugo no Paraguai, ou no Brasil os “impedimentos” do Café Filho e do Carlos Luz. A dúvida não era sobre a caracterização ou não de um crime de responsabilidade, o que havia ali era a premência, necessidade ou ambição de remover um presidente do cargo. No Brasil, desde a Constituição de 1988, o aspecto procedimental do impeachment foi muito bem delineado, a única confusão que a gente não conseguiu resolver é a história de haver duas penas ou uma única pena, de modo a saber se o presidente, mesmo que tenha renunciado, possa ser condenado, como o Collor foi, ou mesmo que seja condenado, possa não perder os direitos políticos, como aconteceu com a Dilma. O que a gente ainda não conseguiu fazer bem no Brasil é definir a substância dos crimes de responsabilidade. Talvez porque o julgamento caiba a autoridades políticas, isso sempre ficou no ar e levou muitas pessoas a sustentarem uma visão equivocada, de que esse elemento político do impeachment significa que o Congresso pode dizer que é crime qualquer coisa que eles bem quiserem.

Já tivemos mais de 300 pedidos de impeachment protocolados desde 1988 no Brasil. Do ponto de vista puramente jurídico, seria possível ter afastado outros presidentes brasileiros?

É difícil dar uma resposta categórica, porque seria preciso que denúncias que foram feitas tivessem recebido uma investigação, um aprofundamento que ajudasse a gente a caracterizar melhor os delitos. Seguramente, se o elemento político não estivesse tão a favor de alguns presidentes do passado, eles poderiam ser investigados por denúncias que tinham, sim, gravidade suficiente para levar a um afastamento do cargo. Fernando Henrique Cardoso teve um pedido de impeachment por uma denúncia grave, que foi a compra de votos pela reeleição. O Lula, o caso do mensalão foi seguramente um caso sério e se conseguisse provar responsabilidade do presidente por aquele ato através de uma investigação, isso poderia ter levado a um desfecho de um impeachment. Acontece que tanto Fernando Henrique quanto Lula tinham escudos legislativos muito sólidos na Câmara dos Deputados. Você tinha germes, sementinhas de acusações que poderiam levar a casos com magnitude para um impeachment, mas nunca vamos saber qual teria sido o desfecho porque elas não tiveram condições políticas de ser aprofundadas a ponto de saber se um crime de responsabilidade estaria caracterizado.

A atual onda de impeachments na América Latina é um indício de que essas jovens democracias estão se fortalecendo ou de que estão se fragilizando?

O impeachment por si só não é sinal nem de força nem de fraqueza de uma democracia. Porque quando é caso de ele ser posto em prática, ele precisa ser posto. Isso não é nada que orgulhe um país, porque é sinal de uma crise política grave. A gente encarou nossos impeachments com o clima de uma micareta cívica, mas o impeachment tem um aspecto traumático. Ele não é um sinal de estabilidade política, de um país em que a rotina do trabalho dos políticos está consumida pela implementação de políticas públicas, reformas ou debates legislativos que fazem o país avançar, ela está consumida por um conflito político que levou à destituição da maior autoridade política do país. Mas quando ele tem que ser aplicado, não aplicá-lo tem um custo muito alto. Por outro lado, quando não é a hipótese de ele ser aplicado – isso pode significar que o presidente não cometeu nenhum ato ilícito e está meramente sendo removido do cargo ou que cometeu um ato ilícito, mas esse ato pode ser enfrentado por maneiras menos drásticas —, ele também não deve ser acionado. A América Latina, embora tenha ao longo do século 20 registro de muita instabilidade política, tem padrões de instabilidade diferentes de tempos em tempos. O padrão na década de 1960 e 70 era golpe militar; dos anos 90 até agora passa pelo impeachment.

Quais são as principais diferenças entre os processos de impeachment de Collor e Dilma?

O processo do Collor foi muito mais sumário, rápido e conduzido em meio a uma incerteza procedimental. Embora a Lei do Impeachment fosse antiga, ela nunca tinha sido posta em prática. Muito do aprendizado sobre o rito do impeachment aconteceu com o caminhão em movimento. O episódio da indefinição do Senado sobre o momento do afastamento do Collor é muito ilustrativo. A coisa mais elementar do processo, que era quando o presidente sai e o vice toma posse, ninguém sabia. Tanto que os jornais do dia seguinte à votação deram informações erradas, estamparam na capa que o Collor estava afastado quando juridicamente não estava. Ninguém tinha muita dúvida de que a conduta do Collor implicava crime de responsabilidade, porque o caso do Collor era um caso de abuso de poder e indignidade presidencial quase caricato. No caso da Dilma, o debate não foi processual, houve debate sobre os fundamentos substantivos do impeachment. Houve um descompasso entre as razões que levaram ao impeachment e as razões que levavam o governo dela a ser objeto de tantos protestos. Todas as medições sobre a opinião das pessoas indicam que a Dilma deveria ser afastada por corrupção ou por interferir na Lava Jato, o que nunca esteve entre as acusações que ela sofreu e ironicamente talvez tenha sido uma das razões pelas quais ela politicamente acabou abatida, porque interferir na Lava Jato era tudo que a ala do PMDB que a abandonou queria que ela fizesse. Isso é uma particularidade digna de nota. A outra é uma dúvida jurídica que foi mal explorada, se o fato de ela ter violado a Lei de Responsabilidade Fiscal necessariamente implica que essa violação constitua crime de responsabilidade. Você só recorre ao impeachment quando a conduta que você quer impedir que o presidente continue praticando não possa ser freada de nenhuma maneira. No caso do Collor, como eu vou impedir que ele se reúna na surdina com gente que pratica tráfico de influência no seu governo? As condutas da Dilma que foram apontadas como ilegais pelo TCU se valiam de atos institucionais claros e observáveis à luz do dia no orçamento, nos decretos.

Havia maneiras alternativas, mudando a forma de consideração das pedaladas na contabilidade pública, para que elas não servissem mais para maquiar o orçamento, ou então ajuizando ações que impedissem os efeitos de decretos que podem ser considerados ilegais. Esse debate sobre o crime de responsabilidade como sendo uma conduta que não pode ser eficazmente respondida de outra maneira merecia ter sido feito com mais alento.

O epílogo do seu livro deixa evidentes transgressões e crimes de responsabilidade cometidos pelo atual governo. Como você vê um impeachment hoje?

Não existe um debate jurídico sério sobre o presidente ter ou não praticado crimes de responsabilidade, especificamente no contexto da pandemia. A lei 1079/50 diz que é crime de responsabilidade atentar contra a saúde pública dos brasileiros. Eu não consigo imaginar uma maneira como um presidente da República possa mais explicitamente atentar contra a saúde pública dos brasileiros do que fazer o que o Bolsonaro fez no contexto da pandemia. Qualquer presidente sabe que o espirro de um presidente é notícia na primeira página dos jornais. Todo presidente sabe que palavra, imagem, comportamento de presidente é poder por ele ser o presidente. Quando a Lei do Impeachment diz que o presidente precisa se comportar de acordo com a dignidade, a honra e o decoro do cargo, é principalmente esse freio, essa liturgia que um deputado não precisa ter no mesmo nível que um presidente tem. Que presidente usa sua visibilidade para desacreditar máscara e para, o tempo todo, minar a possibilidade de cooperação federativa ao embarcar numa guerra contra os governadores por pura estratégia política? No fundo, Bolsonaro sabia que os ônus principais da pandemia, que eram mortes, seriam possíveis de ser empurrados para prefeitos e governadores, porque quando a pessoa morre sem leito, ela vai morrer na porta de um hospital estadual ou municipal.

O ônus de fechar o comércio cabe aos prefeitos e governadores, porque é uma medida que em muitos casos vai ter variações locais, mas que foi transformado pelo Bolsonaro em um atentado político contra a liberdade das pessoas, de modo que o custo de tomar essa medida como um gestor público passou a ser muito alto. Tudo isso faz parte de uma estratégia política para tentar minimizar o impacto da pandemia na economia, que é a única coisa que normalmente seria atribuível à responsabilidade do presidente. A verdade é que o mundo hoje olha para a gente com assombro por mantermos o Bolsonaro presidente. O comportamento do Bolsonaro do ponto de vista jurídico caracteriza muito facilmente crime de responsabilidade, principalmente na sua gestão da pandemia. O elemento que falta é o político, porque esse é um jogo que o Bolsonaro sabe jogar muito bem e porque um impeachment precisa que todas as pessoas que não pertencem àquela base mais rígida do presidente se convençam não só que o impeachment é cabível, mas também que é a melhor alternativa estratégica à disposição. E esse consenso não existe. O que a gente vai saber é se essa estratégia não dá de barato que as eleições do ano que vem vão ser limpas, regulares e jogadas na bola, quando está a cada dia mais claro que o Bolsonaro não só não tem muito apreço pela condução de uma eleição em que ele se anteveja como perdedor, como também está reunindo condições materiais de jogar sujo na eleição se essa estratégia for boa para ele.

Desemprego

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A economia mundial vem passando por momentos de grandes transformações, a instabilidade e as incertezas crescem de forma aceleradas, a pandemia está criando novos desafios, muitos setores estão desestruturados, as cadeias de produção entraram em crise, o desemprego afetou parte significativa da população mundial, exigindo políticas efetivas de geração de emprego, salário e renda, além da reestruturação das políticas existentes para reativar os sistemas econômicos e produtivos. Vivemos num momento de repensarmos a sociedade global, desde a crise de 2008, da ascensão da China, destacamos a pandemia como potencial transformadora da coletividade mundial, exigindo novas lideranças, novas agendas e novas prioridades.

A situação da sociedade é de apreensão, a fome cresce de forma acelerada, o desemprego cresce, o subemprego e o desalento apresentam sinais de incremento, os sinais negativos da pandemia não arrefecem, gerando medos e instabilidades sociais, mostrando as desigualdades escondidas na sociedade, mostrando a falência da sociedade, falta liderança política, gestão coordenada entre os setores federativos e capacidade de gestão, deixando de difundir opiniões generalizadas e estímulo da ciência, comportamentos centrados no pensamento científico, na pesquisa e na reflexão da ciência.

Nos países desenvolvidos os governos estão injetando recursos monetários na economia, estes governos estão atuando no campo fiscal, aumentando os gastos e direcionando recursos para a geração de emprego, como forma de alavancar a economia, estimulando investimentos produtivos, ativando os recursos para a infraestrutura, adotando o receituário keynesiano.

Neste ambiente, as sociedades estão recorrendo a estímulos nos grupos mais fragilizados, canalizando recursos para alavancar os gastos das famílias e, com isso, estimulando a produção, com geração de emprego e da renda. Vivemos num momento de grande desenvolvimento tecnológico, neste ambiente de transformações aceleradas e estruturais, os trabalhadores estão percebendo a substituição de seus empregos, por máquinas e equipamentos, neste momento, faz-se necessário, a construção de um novo pacto social, evitando o crescimento da exclusão social e garantindo recursos mínimos e dignos para a sobrevivência das classes sociais, sem estes novos consensos, a ruptura deste modelo de organização social tendem a acontecer muito rapidamente e os custos sociais, econômicos e políticos impactará para toda a coletividade.

A recuperação econômica é fundamental para diminuir as tensões sociais na sociedade brasileira, neste momento, percebemos sinais, embora incipiente, de melhoria econômica. A recuperação está sendo estimulada com o aumento das commodities que passam a estimular a entrada de moedas estrangeiras, com isso, melhora as pressões cambiais e diminuem a possibilidade de incremento nos preços. Mesmo sabendo que o momento é salutar, precisamos entender que os ventos externos positivos não tendem a estimular o crescimento da economia nacional por muito tempo, precisamos adotar uma política mais assertiva e responsável na condução da economia brasileira, deixando de lado o arrocho excessivo das contas públicas e atuando mais efetivamente nos investimentos públicos, sem os gastos públicos e investimentos consistentes em educação, pesquisa e saúde, a recuperação tende a demorar e os indicadores sociais tendem a piorar e as condições tendem a gerar desequilíbrios crescentes.

O desemprego é uma das maiores indignidades da sociedade mundial, a tecnologia deve ser vista como um instrumento para melhorar o trabalho e a produtividade, além de integração social e emocional. Nos moldes que estamos percebendo, a tecnologia está sendo vista como uma forma de apartheid social e econômica, gerando pequenos bolsões de ricos e endinheirados e uma massa enorme de indigentes e miseráveis, onde o empreendedorismo e a meritocracia aumentam a distância entre as pessoas, criando pequenas castas de privilegiados e um contingente de excluídos e depauperados.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 09/06/2021.

A euforia no mercado, por Affonso Celso Pastore.

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Talvez investidores estejam aproveitando para realizar ganhos temporários

O Estado de S. Paulo 06/06/2021

Míopes são os indivíduos que enxergam mal à distância, e um investidor seria míope caso tivesse uma taxa de desconto muito alta, levando-o a ignorar os riscos de longo prazo e sendo seduzido pelos ganhos presentes. Embora há muito eu tenha me desiludido com a hipótese de mercados eficientes, nunca cheguei ao extremo de supor que a maioria dos investidores ignora os riscos. Por isso não me atrevo a propor que o atual rally nos preços de ativos seja fruto da miopia.

Minha hipótese é que no exercício competente de seu trabalho, os investidores estejam apenas aproveitando a oportunidade de realizar ganhos temporários, proporcionados pela surpresa de um crescimento econômico mais forte combinado com a “ajuda” da inflação, que em vez de ser o “bandido” está fazendo o papel do “mocinho”, encobrindo temporariamente a realidade da nossa situação fiscal.

Começo pela surpresa no crescimento, mas não sem antes afirmar que mesmo reconhecendo a boa notícia e a resiliência de nossa economia é difícil, diante de perto de 15 milhões de desempregados e de um contingente elevado de brasileiros que sobrevive à custa de uma ajuda emergencial, ver nela só sinais positivos. Ela é a consequência de uma bonança externa semelhante à que favoreceu Lula em 2010, embora em escala bem menor. Consiste na combinação do forte crescimento das exportações mundiais com um novo ciclo de elevação dos preços internacionais de commodities.

Embora este não seja um super ciclo semelhante ao de 2002/11, no qual em 10 anos o CRB foi multiplicado por três, e durante o qual (à exceção de 2008/09) o crescimento do PIB chinês se manteve em dois dígitos, por um bom tempo ainda ajudará as exportações brasileiras. Quando o crescimento da China retornar ao seu potencial, estimado em 5,5% ao ano, o ciclo terminará, mas isto não ocorrerá em 2021.

Entretanto, esta é apenas parte da explicação. O afrouxamento das regras de distanciamento social durante a segunda onda de contágio, levou aqueles que não têm condições de trabalhar em um home office a ir para as ruas, enfrentar transporte coletivo e locais de aglomerações. Se de um lado esse afrouxamento, que é claramente estimulado pelo governo, pode ajudar marginalmente a economia, na falta de vacinação rápida e eficiente provoca aumento do contágio e das mortes.

Quanto à inflação, atualmente a sua principal causa está nos efeitos da depreciação cambial já ocorrida sobre os preços agrícolas e os bens industriais, além do aumento dos preços do petróleo e tarifas de energia.

Se o Brasil não tivesse um risco fiscal superior ao da grande maioria dos países emergentes e da totalidade dos maduros, o enorme estímulo monetário imposto pelo FED teria valorizado o real em intensidade semelhante à dos demais países, permitindo a manutenção das taxas de juros mais baixas por mais tempo. O risco fiscal é uma causa peculiar ao Brasil, que explica por que o real está mais depreciado e mais volátil do que a grande maioria das demais moedas que, seguindo o enfraquecimento do dólar, já estão mais valorizadas do que em janeiro de 2020.

Antes da negociação do orçamento, que permitiu gastar R$ 110 bilhões acima do teto, acreditava-se que o “furo” poderia ser maior, e naquele período o real flutuava em torno de R$5,60/US$. Quando o Centrão e o governo chegaram a um acordo os prêmios de risco começaram a cair, e o real foi gradualmente se aproximando de R$ 5,20/US$.

Finalmente, quando ficaram claros os benefícios da inflação sobre o déficit primário e sobre a relação dívida/PIB o câmbio furou a barreira dos R$ 5,10/US$.

Devido ao aumento da arrecadação, fruto do maior crescimento e de mais inflação, o déficit primário será menor, e pelo efeito diferenciado do câmbio sobre o deflator do PIB, um crescimento de 5% em 2022 se transforma em um crescimento de 15% do PIB nominal, derrubando a relação dívida/PIB ao final de 2022 abaixo do valor atingido em 2021, sem que o governo tenha movido uma palha.

No curto prazo, graças a uma inflação mais alta caiu a percepção de risco fiscal, mas a médio e longo prazos nada se alterou, e a realidade voltará a se impor.

EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA A.C. PASTORE & ASSOCIADOS. ESCREVE QUINZENALMENTE