Partido Republicano matou o conservadorismo nos EUA, por Lúcia Guimarães

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Encurralado por transformação demográfica, partido já não disfarça mais que pretende impor a ditadura da minoria

Folha de São Paulo – 14/10/2020

A cirurgia foi um sucesso, mas o paciente morreu. O ditado sarcástico se aplica ao Partido Republicano dos Estados Unidos que, para conquistar a Casa Branca, em 2016, decidiu cometer suicídio.

O sistema bipartidário americano, que alterna poder entre republicanos e democratas desde a segunda metade do século 19, ruiu com a eleição de Donald Trump. Se não existe bolsonarismo, apenas o capitão se desviando da lei e protegendo a família do palácio que os brasileiros sustentam, o mesmo fenômeno acontece em Washington.

Não há trumpismo, apenas um empresário incompetente, com várias falências no currículo, saqueando os cofres públicos, protegido pelo silêncio dos bilionários que hoje pagam menos impostos, os destruidores do meio ambiente que se livraram de leis reguladoras e os vigaristas que venderam a alma em troca de um assento no Congresso.

O espetáculo pornográfico da sabatina da juíza Amy Coney Barret, indicada pelo presidente para a Suprema Corte, basta para demonstrar a putrefação do que os americanos chamavam de conservadorismo. O partido de Abraham Lincoln, que aboliu a escravidão, é hoje um lacaio de quem oferecer o lance maior no leilão da política.

A juíza é uma extremista de boas maneiras. No espaço de algumas horas de audiência no comitê judiciário do Senado, ela se recusou a endossar a transferência pacífica de poder ao vencedor da eleição de novembro e a condenar a intimidação de eleitores que o presidente vem instigando em comícios.

Seu assento na corte, que parece garantido, foi comprado com dezenas de milhões de dólares por grupos de interesses que se escondem atrás de fundações laranjas. O sequestro da Suprema Corte pelo Partido Republicano nada tem a ver com princípios morais, criminalização do aborto e proibição do casamento gay. Essas bandeiras são chocalhos para agitar o culto.

Os juízes comprados por bilionários estão lá para cumprir uma agenda econômica –desmontar estruturas de governo, garantir impunidade da elite e desfigurar o país que emergiu mais democrático da Segunda Guerra.

Encurralado pela realidade –a transformação demográfica que torna impossível aos republicanos conquistar a maioria de eleitores nas urnas–, o partido já não disfarça mais que pretende impor a ditadura da minoria. Suprimir voto, reduzir drasticamente locais de votação e até roubar cédulas, como descobrimos na Califórnia, esta é a agenda republicana. Governar é apenas um contratempo na manutenção niilista do poder.

Não há o que recuperar. O movimento “nevertrumper” (nunca trumpista), que atraiu republicanos chocados com a confirmação da candidatura de Trump, endossa a candidatura do democrata Joe Biden em nome de conservadores.

Mas um expoente do grupo teve a coragem de admitir: só a extinção do Partido Republicano oferece saída para o pensamento conservador. Tom Nichols, um acadêmico especialista em relações internacionais, primeiro se desligou, em 2018, do partido ao qual pertenceu por quase toda a vida adulta.

Mas, em setembro, ele escreveu que não basta mais votar em Biden para punir os republicanos. Nichols acredita que o partido, transformado em culto à personalidade do presidente, perdeu a razão de existir. Corrupção, racismo, teocracia, desrespeito à lei e instituições hoje definem o que sobrou do partido de Lincoln.

Lúcia Guimarães

É jornalista e vive em Nova York desde 1985. Foi correspondente da TV Globo, da TV Cultura e do canal GNT, além de colunista dos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo.

‘O sistema privilegia quem está no poder’, diz cientista político.

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Carlos Pereira prevê que a renovação política não deve ter a mesma força nas eleições municipais

Natália Portinari – O Globo – 12/10/2020

BRASÍLIA — Para Carlos Pereira, cientista político da Fundação Getulio Vargas (FGV), a distribuição dos recursos dos fundos eleitoral e partidário para privilegiar políticos experientes é esperada. A lógica é privilegiar campanhas com maior “densidade” e “viabilidade”. Ele prevê que a renovação política, fenômeno que apareceu com força nas eleições de 2018, não deve ter a mesma força nas eleições municipais.

Por que partidos privilegiam candidatos experientes?

Os partidos tendem a privilegiar a estrutura tradicional, quem de certa forma está no partido há muito tempo e conhece os canais decisórios dentro do partido. É um comportamento racional, muito esperado. Tendem também a concentrar recursos em puxadores de votos. Como não há mais coligação proporcional (para vereador), tem que concentrar em quem tem viabilidade. Dado que a legislação permite a discricionariedade dos partidos em decidirem sobre a alocação, cumprindo as cotas, é esperado que quem tem mais chance tenha mais recursos.

Essa distribuição atrapalha a renovação política?

Quando a gente vem de uma associação de escândalos de corrupção, em que a elite política de vários partidos foi envolvida, as demandas por renovação alcançam mais importância. Mas na realidade esse fenômeno (renovação) é raro em qualquer democracia. Nas democracias estáveis, como os Estados Unidos, onde a democracia é mais longeva, a taxa de renovação é baixíssima, 90% dos parlamentares concorrem à reeleição. O sistema é desenhado para privilegiar quem está no poder. O que tivemos nas eleições de 2018 foi mais a exceção do que a regra, devido a escândalos e descrédito da política tradicional.

Por que as eleições de 2018 são um cenário diferente de agora?

A eleição de 2018 teve um caráter de antipolítica. O presidente Jair Bolsonaro se beneficiou muito dessa estrutura, mas hoje se comporta como qualquer outro político tradicional, apesar de ter prometido que não se portaria dessa forma, então o eleitor vai se desgarrando desse argumento da renovação e vai procurando os parlamentares que de fato podem trazer algum benefício concreto para suas bases.

Há algum outro motivo para haver menos renovação em 2020?

O eleitor, especialmente para as eleições proporcionais, para o Legislativo, decide muito em cima da hora em quem vai votar. E essa decisão é muito ancorada em cima da ação dessa rede local de interesses. Quanto mais engajada a rede local de interesses estiver em torno de um candidato, mais ela vai gastar energia e recursos para que ele se reeleja, e o eleitor não necessariamente vai estar muito ligado. Os cargos para o Executivo despertam mais interesse dos eleitores.

 

‘Enfrentamos hoje a volta de um estado de fome epidêmica no Brasil’, diz historiadora

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Para Adriana Salay, 36, governo não fará nada para impedir o agravamento da insegurança alimentar sem pressão popular

Emílio Sant’ana – Folha de São Paulo, 12/10/2020.

Após anos dedicados aos estudos sobre a fome e os hábitos alimentares dos brasileiros, é de sua presença diária nas ruas da zona norte de São Paulo, alimentando uma legião de famintos e desempregados, que a historiadora Adriana Salay, 36, tira suas conclusões.

“Se esse Estado que está hoje colocado não entende que essa população precisa sair da situação de fome, temos que fazer uma mobilização da sociedade civil e criar esse enfrentamento com o Estado”, afirma.

Ao lado do marido, Rodrigo Oliveira, chef do restaurante Mocotó, Adriana criou o projeto Quebrada Alimentada, que distribui 200 marmitas por dia e 220 cestas básicas por mês desde o início da pandemia do novo coronavírus.

Debruçada sobre a obra de Josué de Castro, autor de “Geografia da Fome” e ex-presidente do Conselho Executivo da FAO, o órgão das Nações Unidas para agricultura e alimentação, ela vê a fome epidêmica, causada pela emergência sanitária, se juntar à fome endêmica no país.

Segundo a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) do IBGE, 37% das famílias viviam em insegurança alimentar em 2018. Essa porcentagem era de 23% em 2013.

A realidade de 2020 deve se revelar ainda pior. Não à toa, o Relatório Global de Crises Alimentares, do Programa Mundial de Alimentação (PMA), da ONU, apontou que a pandemia pode fazer o número de pessoas em insegurança alimentar duplicar no mundo.

Na última sexta-feira (9), o programa da ONU ganhou o Prêmio Nobel da Paz pelos esforços em combater a fome e evitar que ela seja usada como arma em conflitos.

Nesta semana, o projeto de Adriana e Rodrigo fará parte de uma ação batizada de “Gente é pra brilhar, não pra morrer de fome”. Organizada pelo coletivo Banquetaço, a campanha terá programação online (genteprabrilhar.org) para debater a fome a partir desta segunda (12) até sexta (16). No sábado (17) e no domingo (18), “marmitaços” em diferentes capitais devem distribuir refeições nas ruas.

Chefs como Rodrigo, Helena Rizzo, Paola Carosella, Bel Coelho e Bela Gil fazem parte da campanha.

O que mudou na geografia da fome desde que Josué de Castro publicou o livro homônimo?  Tivemos avanços importantes. Quando ele publicou (1946), há dados expressivos de que populações periféricas do Recife, por exemplo, usavam 70% da renda em alimentação. Isso era normal. Não que hoje isso tenha passado, mas tivemos avanços como os programas de transferência de renda e de cisternas no sertão. Passamos por uma seca importante recentemente no sertão que não gerou retirantes e situações de fome como estavam colocadas na época do Josué de Castro.

Eu encontrei na imprensa, por exemplo, cenas de canibalismo nas secas sertanejas nos anos 30. Cenas como essas e campos de concentração para refugiados das secas, em 1932, não estão mais colocadas hoje.

Josué separa fomes epidêmicas —devido a crises— e endêmicas —estruturais. Agora, temos menos crises de fome, mas temos uma manutenção da fome endêmica.

Hoje, devido à pandemia, temos a volta da fome epidêmica? Sim. Na minha perspectiva, sim. E por isso vem toda essa movimentação. Por causa da Quebrada Alimentada começamos a gravar um documentário com depoimentos de pessoas que procuram o programa. Há depoimentos que são muito representativos desse momento. Alguém que ganha um salário mínimo (R$1.045) e vive com mais três pessoas, por exemplo, está em uma situação de fome estrutural, porque o salário mínimo hoje no Brasil não alimenta adequadamente quatro pessoas com os outros custos de vida. Outras pessoas que não estavam nessa situação são alçadas a esse lugar porque perderam renda.

Um dos depoimentos, por exemplo, é de um camelô que trabalhava no Brás. Com o fechamento do comércio, ela perdeu toda sua renda. Mesmo tendo conseguido R$ 1.200 de auxílio emergencial do governo federal, porque ela é responsável pela casa e vive com três filhos, não consegue se alimentar a todos. Ela paga R$ 800 de aluguel. Com R$ 400 não consegue. Ela passou 15 dias comendo apenas arroz.

A fome é um processo, não é um fato posto. Ela narra exatamente esse processo da fome. Primeiro, começa a diminuir a quantidade das refeições; depois, a mulher, que é a pessoa que faz a gestão da fome na maioria dos lares, começa a pular refeições. E só então os filhos deixam de comer. Ela narrou exatamente isso, sem ter conhecimento científico, da entrada na situação de crise de fome por causa da pandemia. Antes, ela não estava nesse lugar e tinha renda suficiente para alimentar a família.  Ela mora aqui, na Vila Medeiros, na zona norte. É um bairro com algumas vulnerabilidades, mas não é o lugar mais vulnerável. Estamos bem no meio do caminho em termos de IDH na cidade.

É isso que encontram nas ruas quando distribuem marmitas e cestas básicas?  Há duas figuras importantes aí. Fiz entrevistas com 220 famílias que se cadastraram no programa de cestas básicas para entender o que estava acontecendo. Há um perfil de famílias que já estavam em situação difícil e outro muito grande de famílias em que alguém perdeu emprego. Das 220 famílias, 180 estão nesse perfil. O que temos que pensar numa sociedade monetizada como a nossa, é que a renda é fator decisivo para comer ou não.

É só olhar para POF de 2018, que saiu no mês passado, os números de fome aumentaram muito. E São Paulo é o estado, em números absolutos, que tem mais gente nessa situação. E o que significa a pandemia [nesse cenário]? Temos que pensar o que o auxílio emergencial compra em São Paulo e o que compra em uma cidade pequena no interior de Pernambuco. Os R$ 600 podem ser suficientes lá, mas aqui não paga um aluguel. E agora, metade disso.

 

Qual sua avaliação da atuação das três esferas de governo contra a fome durante a pandemia?  São três esferas diferentes, mas que estão caminhando juntas no combate à fome fazendo muito aquém do que deveriam nesse momento. Vale lembrar que o valor do auxílio emergencial não foi definido no Executivo, mas no Legislativo. É uma medida importante, mas não é o suficiente. Há algumas políticas públicas que deveriam ser implementadas ou mantidas nesse momento, como o programa de aquisição alimentar para o PNAE, que é o programa de alimentação escolar, que praticamente acabou.

A escola é um lugar privilegiado para acessar essas famílias em vulnerabilidade. As escolas públicas têm o mapeamento dessas famílias, elas têm um programa de aquisição alimentar que é muito importante, porque 30% desses alimentos precisam vir da agricultura familiar. Quando você desmantela esse programa, não são só essas famílias que são prejudicadas, como também esses agricultores.

Defendemos a implementação de algumas políticas como o auxilio aluguel, a intensificação dos restaurantes populares, e nada disso tem sido feito. Não há uma política de contenção de fome em nenhuma das esferas de governo.

Isso te surpreende de alguma forma, ou em que medida, após o país ter conseguido reduzir de forma expressiva a fome?  Saímos do Mapa da Fome da FAO, em 2014. Mas, em minha concepção, enquanto tivermos alguém passando fome, precisamos falar sobre isso. São inegáveis os avanços dos governos anteriores na erradicação fome, e todos os dados mostram isso. E não só o Brasil avançou. Mas pensando nos governos que estão instalados hoje, não me surpreende. Quando a pandemia chegou, com o entendimento que tenho e olhando para os trabalhos de Josué de Castro, já sabia o que iria ocorrer. As crises são fatores geradores de fome.

O que mudou para mim? Não posso mais ficar só nos livros. Sei o que está acontecendo e é hora de agir. Aí vem o Quebrada Alimentada e o Gente Nasceu para Brilhar.

Se esse Estado que está hoje colocado não entende que essa população precisa sair dessa situação de fome, temos que fazer uma mobilização da sociedade civil para colocar esse problema na pauta e criar esse enfrentamento com o Estado.

Mas o Estado não tem condições de responder a isso minimamente?  É papel do Estado. Ele tem todas as ferramentas. Tem o cadastro único, que mapeia as pessoas em vulnerabilidade alimentar, CCAs [Centros para Crianças e Adolescentes, serviço municipal] que acolhem as crianças e podem fazer a distribuição por lá, tem os restaurantes populares, o programa de merenda escolar. Tem todas as ferramentas, o que falta é vontade política para que isso aconteça. Não à toa, na nossa campanha são mais de cem grupos que se mobilizaram.

A gente fala muito que estamos enxugando gelo porque não estou resolvendo o problema. Se eu dou uma marmita hoje, essa família vai estar com fome de novo amanhã, porque ela não tem acesso a renda para se alimentar de forma adequada e saudável. É papel do Estado fornecer essa alimentação. O papel da sociedade civil nesse momento se dá para levantar essa bandeira. Esse Estado que está colocado não vai fazer isso por conta própria, a não ser que tenha uma cobrança.

Vocês já sentiram algum tipo de censura a esse tipo de mobilização?  Já. A gente escuta muito que tem gente que pega as marmitas para vender. Tem críticas de quem diz que essa fome é resultado, porque mandaram todo mundo ficar em casa [durante a pandemia]. Mas acredito que o saldo ainda é positivo.

Há pouco tempo a primeira dama do estado de São Paulo, Bia Dória, disse que viver na rua é uma situação cômoda. Qual sua avaliação sobre essa afirmação?  Acredito que é problemático pelo lugar que ela está e atribuo essa fala à falta de conhecimento sobre o estado que o marido dela governa. Se você começar a entender os mecanismos que vão gerar população de rua e de pessoas com fome, você não pode culpar o indivíduo por estar ali. São as dinâmicas sociais que vão gerar essa situação e a falta de conhecimento que vai gerar uma fala equivocada como essa.

De que forma isso faz parte da sua pesquisa? O entendimento desse fenômeno é justamente o centro da minha pesquisa. Essa leitura da fome enquanto crise não deixou de existir. Quando você olha para a fala do presidente Jair Bolsonaro quando ele disse que não existia fome no Brasil porque não existe pessoas esqueléticas na rua, está defendendo uma posição. Ele tira de campo a noção de fome estrutural. Isso não é algo único e posto. É uma disputa.

Existiam as teorias neomalthusianas de que a população cresceria mais do que a produção de alimentos. Isso caiu por terra porque já produzimos para alimentar o mundo, mas ainda somos um mundo com fome porque as pessoas têm acessos diferentes ao alimento. Esses debates e essas disputas existem inclusive sobre os níveis de insegurança alimentar. Hoje, a FAO considera como fome apenas insegurança alimentar grave, só que a insegurança alimentar moderada já é uma família pular refeição. Os nomes formam as coisas. Se eu tiro o termo fome, para boa parte da sociedade isso muda a intensidade do fenômeno.

O Nobel da Paz para o PMA, da ONU, te surpreendeu?  Nesse momento de crise, no qual a fome no mundo pode chegar a índices inimagináveis e o Brasil pode se tornar um dos epicentros emergentes da fome no mundo, segundo a Oxfam, o prêmio deixa seu recado de quais estratégias ele quer fomentar. Josué de Castro, lá nas décadas de 1950 e 1960, já falava que guerra e fome estão interligadas, por isso alimento e paz também.

Acredito que é uma boa resposta aos ataques que essas organizações vêm sofrendo de políticas nacionalistas como as de Trump e Bolsonaro.

 

Mirian Goldenberg: ‘liberdade é a melhor rima para a felicidade’

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Revista Vida & Arte – Jéssica Reis – 10/10/2020

Você já ouviu falar em curva da felicidade? Sim, ela existe e foi descoberta por meio de pesquisas realizadas por economistas em 80 países com mais de 2 milhões de pessoas. Eles descobriram um padrão constante, em que as pessoas mais jovens e as mais velhas são as mais felizes e as que se sentem menos felizes são as que estão entre 40 e 50 anos.

Pesquisadora desde 1988 sobre amor, sexo e traição, a antropóloga Mirian Goldenberg encontrou também uma curva da felicidade nas mulheres brasileiras. Segundo Mirian, as mulheres que têm entre 40 e 50 anos são as que se sentem mais infelizes, insatisfeitas, frustradas, deprimidas e exaustas. Elas reclamam, principalmente, de falta de tempo, falta de reconhecimento e de falta de liberdade.

Colunista da Folha de São Paulo, autora dos livros “A bela velhice”, “Coroas”, “Corpo, envelhecimento e felicidade”, “Velho é lindo!”, “Por que os homens preferem as mulheres mais velhas?”, entre outros, Mirian Goldenberg conversou com a revista Vida&Arte sobre as transformações que percebeu nos relacionamentos desde o início de suas pesquisas, como estão as relações afetivas atualmente e, claro, sobre a busca das mulheres por liberdade e felicidade.

V&A – Em um dos seus artigos publicado na Folha de São Paulo, você menciona que faz pesquisas desde 1988 sobre amor, sexo e traição. Quais as mudanças, transformações mais marcantes que percebeu nos relacionamentos desde o início de suas pesquisas?

Mirian Goldenberg – O que eu percebo de mais importante e mais visível é que para uma geração que hoje está com 70, 80 anos, que viveu a revolução sexual no século passado, nos anos 1960, nos anos 1970 é que a liberdade sexual era uma questão prioritária, principalmente, para as mulheres. Foi um momento de extrema libertação sexual. Libertação porque surgiu a pílula, o divórcio, as pessoas podiam transar antes do casamento, coisa que não se fazia até então, a psicanálise aconteceu, houve toda uma revolução cultural baseada na ideia de liberdade e o sexo era o lugar onde as pessoas exerciam essa liberdade, ou essa libertação. O que eu percebo é que hoje mudou o significado, por uma série de questões, já nos anos noventa, com a AIDS, o sexo já passou a ser algo que gerava medo, que as pessoas deveriam se proteger e com advento da internet, algo que era vivido na vida real, passou a ser vivido no mundo virtual.

V&A – Como você avalia as relações afetivas no momento atual?

Mirian Goldenberg – Eu acho que a principal característica do momento atual é a diversidade, é a possibilidade de você não seguir os modelos pré-estabelecidos, a possibilidade de você ter uma escolha maior e até inventar o tipo de relacionamento que você quer viver. É verdade que ainda existe muita pressão, muita padronização, muita cobrança social dentro de um modelo mais convencional de família, de ter filhos, de um relacionamento dentro da mesma casa, mas, ao mesmo tempo, apesar dessa cobrança, a maioria das pessoas que eu pesquiso não consegue, e nem quer, seguir esse padrão mais tradicional. Então, hoje há um aumento não só das separações, mas das pessoas que não querem casar, que não querem ter filho, que não querem morar junto, você vê uma diversidade muito maior de experiências amorosas e sexuais. Eu acho que a marca dessa geração é não querer seguir um padrão que produz infelicidade, então as pessoas estão procurando criar o seu próprio relacionamento e mesmo existindo muito preconceito, elas têm muito mais coragem de inventar a sua forma de amar.

V&A – O mundo virtual provocou mudanças nos relacionamentos?

Mirian Goldenberg – Nunca digo que o mundo virtual cria ou provoca grandes mudanças, ele reflete as mudanças e reflete os desejos, não cria nada. É óbvio que você pode chegar a conclusão de que hoje está mais fácil trair o seu parceiro, porque basta deixar o seu parceiro dormindo e ir para o computador que vai encontrar um mundo disponível de pessoas com quem você pode trair ou com quem você pode se relacionar. O mundo virtual facilitou o exercício de desejos e de comportamentos que sempre existiram, mas que eram muito mais complicados. Eu estudo esse tema há trinta anos, tenho um livro que se chama ‘A outra”, na época que eu estudei esse tema, que foi em 1988, uma pessoa que tinha amante, ligava do orelhão e precisava que a amante estivesse em casa, era muito mais complicado. Trair hoje com o celular, com a internet, com o What’s App, é mais fácil, mas não significa que você vai trair. É importante distinguir o fato de ser mais fácil, do fato de que provoca uma traição, não provoca uma traição. Se a pessoa não quer trair ela pode ter toda tecnologia disponível que não vai trair. No entanto, é óbvio que ficou muito mais fácil tudo, encontrar um amor, encontrar um parceiro sexual, encontrar alguém com quem você pode ter um relacionamento extraconjugal é muito mais fácil com o mundo virtual tão presente nas nossas vidas.

V&A – O que esperar dos relacionamentos nos próximos anos, teremos mais mudanças?

Mirian Goldenberg – A grande revolução dos relacionamentos ficou mais evidente nos anos 1970 com as separações, com o sexo mais livre, com a pílula, com a possibilidade de não ter filhos, com a liberdade maior da mulher, com a psicanálise e isso vai cada vez mais ficar evidente. A grande mudança que a gente está vendo e que vai ver nos próximos anos é que aquilo que já era um comportamento de muitos homens e mulheres, mas não era legítimo socialmente, não era aceitável, vai ser mais legítimo, aí eu dou exemplo de não querer casar, não querer ter filhos, não querer morar junto. Isso já acontece, só que ainda não é tão legítimo socialmente, não é tão aceitável como vai ser, as pessoas vão ter mais escolhas, vão poder decidir o que elas realmente querem em suas vidas amorosas e sexuais. Eu acho que a grande mudança é essa.

V&A – As mulheres buscam mais liberdade ou felicidade, ou a liberdade e a felicidade se complementam?

Mirian Goldenberg – Quando eu faço essa pergunta: ‘o que você mais inveja em um homem’, as mulheres respondem categoricamente ‘liberdade’. Não só a liberdade sexual, mas liberdade no mundo do trabalho, de poder envelhecer, com corpo, liberdade de movimento, liberdade de fazer xixi em pé, liberdade em todos os sentidos. Então, para as mulheres, o maior desejo é liberdade, independência também, e isso elas conquistam, pelo menos na minha pesquisa, mais tardiamente. Quando elas têm mais de cinquenta, mais de sessenta, elas se sentem muito mais livres e também mais felizes. Elas querem liberdade e felicidade, mas para terem felicidade elas precisam conquistar a liberdade e a independência. Nem todas conseguem. Em geral, a gente consegue ter mais liberdade, não só a liberdade financeira, mas liberdade psicológica, autonomia, com a maturidade.

V&A – Falando em liberdade e felicidade, como está o sexo entre as pessoas. Existe mais liberdade hoje?

Mirian Goldenberg – É óbvio que existe muito mais liberdade hoje em todos os sentidos, inclusive sexual, a liberdade é um valor muito grande e nós conquistamos muito mais liberdade, principalmente as mulheres, mas ainda falta muito, porque se não faltasse as mulheres não invejariam, como invejam na minha pesquisa, a liberdade. Existe mais liberdade hoje? Sim, mas ainda existe muito preconceito, muito tabu, muitas cobranças sociais em várias áreas da vida e, particularmente, no sexo. O sexo, apesar de ser mais livre hoje, ainda é um tabu. As pessoas falam muito sobre sexo, mas na vida real, o sexo não é tão satisfatório e eu tenho escrito muito sobre isso, acabei de publicar um livro chamado ‘Liberdade, Felicidade e Foda-se’ e acabei de mandar também um livro para minha editora sobre ‘Amor, Sexo e Traição’. Se fosse algo mais livre, não precisaríamos falar tanto sobre sexo e nem escrever tanto sobre sexo.

V&A – No mesmo artigo, publicado na Folha de São Paulo no dia 27 de agosto, você fala sobre a importância do sexo em diferentes idades, de diferentes perspectivas. Qual a importância do sexo em cada fase da vida?

Mirian Goldenberg – Eu não acho que o sexo é importante em cada fase da vida, ele é importante de forma diferente para as pessoas. Tem pessoas que colocam muito a sua felicidade na satisfação sexual e tem outras que não acham isso tão importante. O que eu mostro no meu artigo é que os jovens têm uma valorização maior do sexo e depois os casais valorizam o sexo também, mas eles valorizam muito mais o companheirismo, a compreensão, a amizade, principalmente, nesse momento que nós estamos vivendo. Os mais velhos, não posso generalizar, mas grande parte das pessoas mais velhas que eu pesquiso não acham que o sexo é tão importante assim, principalmente as mulheres. Então, o que eu posso dizer é que não há uma receita e não tem nada a ver com a idade, tem muito mais a ver com escolhas, com os projetos, com os valores e com que você realmente acha importante para ser feliz. E para grande parte das pessoas que eu pesquiso, principalmente as mais velhas, o sexo é apenas um dos ingredientes da felicidade, não é o mais importante.

V&A – No seu livro ‘Liberdade, Felicidade e Foda-se’, você fala sobre essa relação entre felicidade e liberdade, especialmente entre pessoas mais velhas. Em suas pesquisas você constatou que as pessoas se sentem mais felizes e mais livres na terceira idade?

Mirian Goldenberg – O que eu descobri na minha pesquisa que está no livro ‘Liberdade, Felicidade e Foda-se’ e também no meu TED que viralizou, é que quanto mais jovem você é, mais você se compara com os outros, mais você foca no que te falta, mais você inveja o que os outros têm. E quanto mais velho você é, o tempo passa a ser prioritário, você passa a simplificar sua vida e focar não no que lhe falta, mas no que você tem. E aí você percebe que não é tanto assim o que você precisa para realmente ser feliz. Eu acho que a virada que acontece em geral quando você é mais maduro, é uma grande mudança de foco, você para de se comparar, para de ficar enxergando só o que você não tem, sofrendo com isso e passa a valorizar aquilo que você escolheu. Os seus projetos de vida, os seus amigos, aquilo que realmente é essencial para sua felicidade.

V&A – Falamos tanto em curva na pandemia, mas também existe a curva da felicidade? O que seria a curva da felicidade?

Mirian Goldenberg – Então, como eu falo no meu livro ‘Liberdade, Felicidade e Foda-se”, assim como no meu TED, a curva da felicidade é uma curva que eu encontrei nas minhas pesquisas, mas que outros pesquisadores também encontraram, que mostra que você é mais feliz quando nasce e vai perdendo essa felicidade em função das obrigações, das comparações, do que lhe falta, do sofrimento por não seguir um padrão e depois dos cinquenta anos, em geral, essa curva volta a subir porque você passa a priorizar o que é realmente importante para você e não fica se comparando com o que os outros têm, com os padrões sociais. E o que passa a ser mais importante são as relações que você cria do que as posses, o consumo, o dinheiro, o status, o prestígio e poder. Então, essa curva mostra muito bem como que as pessoas ganham felicidade e liberdade quando elas têm mais idade, que é o oposto do que o senso comum imagina. É por isso que no Brasil, as pessoas têm tanto pânico de envelhecer, elas acham que perdem, mas na verdade nós ganhamos muito mais do que perdemos com a idade.

V&A – Como é essa curva com as mulheres brasileiras, o que você constatou em suas pesquisas? Do que as mulheres mais se queixam?

Mirian Goldenberg – As brasileiras que eu pesquisei se queixam muito de falta de tempo, falta de reconhecimento, falta de liberdade, elas sofrem muito com o envelhecimento e elas sentem que passam a não existir mais quando envelhecem. Elas falam que se tornam invisíveis. No entanto, quando elas realmente envelhecem, depois dos 50, 60, 70, 80, elas dizem categoricamente, ‘esse é o melhor momento da minha vida, nunca fui tão livre, nunca fui tão feliz, é a primeira vez que eu posso ser eu mesma’. Por isso, que elas me dizem que ‘liberdade é a melhor rima para a felicidade’ e elas só adquirem isso com a maturidade. E o que eu acho muito importante frisar é como a amizade tem um papel fundamental em todas as fases da vida, mas principalmente quando nós envelhecemos, que são os amigos e as amigas que cuidam, que apoiam, que estão presentes, é o que elas chamam de família escolhida. Até elas falam mais dessa família do que da família biológica. É importante a gente frisar que o que eu tenho feito nos meus estudos, o contexto geral do envelhecimento é não só apontar as perdas, os problemas, as doenças, mas ver também o que é possível ganhar, conquistar quando a gente tem mais idade.

V&A – Tem algum projeto em andamento para este ano ou para o próximo?

Mirian Goldenberg – Eu continuo fazendo as minhas pesquisas. Eu tenho uma pesquisa com cinco mil homens e mulheres, sobre envelhecimento, felicidade, amor, sexo, traição. Eu tenho dois livros que já estão nas editoras e em função dessa situação não saíram, um se chama “Invenção de Uma Bela Velhice” e outro “Amor, Sexo e Traição”. Então, eu continuo escrevendo muito, pesquisando muito e, principalmente, tentando encontrar caminhos para todos nós brasileiros, mesmo dentro dessa situação trágica, possamos encontrarmos nossos projetos de vida e sermos um pouco, pelo menos, mais felizes. Eu acho que todo meu movimento desde março é tentar encontrar saídas possíveis para enfrentar esse sofrimento. E é isso que eu tenho feito, principalmente, escrevendo muito.

 

Um gigante sem fôlego e sem rumo, por Rolf Kuntz.

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Sem plano sequer para alongar a retomada, o País parece condenado a crescer menos que 3%

Rolf Kuntz, O Estado de S.Paulo

11 de outubro de 2020

O Brasil, vejam só, deixou de ser o país do futuro. Que futuro pode ter um país emergente incapaz de crescer 3% ao ano? Esqueçam Stefan Zweig. Pensem num ministro da Educação preocupado com a vida sexual dos estudantes, num ministro do Meio Ambiente avesso à proteção das florestas, num ministro da Economia empenhado em recriar uma aberração tributária, a CPMF. Considerem um presidente negacionista, propagandista da cloroquina e centrado em interesses pessoais e familiares, com destaque para a reeleição. Quem se importa, em Brasília, com o miserável crescimento projetado para o médio e o longo prazos, nada além de 2,5% ao ano?

Bolas de cristal muito consultadas preveem mediocridade, ou algo pior que isso, no médio e no longo prazos. Por enquanto, há algum dinamismo. Passado o grande choque, os negócios voltaram a mover-se, como em todo o mundo. Em 2021 o produto interno bruto (PIB) crescerá 3,5%, segundo a mediana das projeções do mercado. A expansão ficará em 2,8%, de acordo com estimativa recente do Fundo Monetário Internacional (FMI). A partir daí o cenário fica menos claro, mais inquietante e, principalmente, mais estimulante para uma avaliação das condições do Brasil.

O PIB crescerá 2,3% em 2022, segundo o FMI, e apenas 2,2% em cada um dos três anos seguintes. Pela projeção do mercado, captada na pesquisa Focus, do Banco Central, a expansão será de 2,5% ao ano em 2022 e 2023. Detalhe relevante: essa taxa de 2,5% aparece há tempos, nessas pesquisas, como estimativa para o médio prazo. As projeções do FMI têm a mesma característica: números baixos, na casa dos 2%, quando se ultrapassa o horizonte de um ou dois anos. Não se trata de preguiça dos analistas. O problema está na economia brasileira. Os economistas do mercado e das entidades multilaterais são inocentes.

Para olhar um pouco mais longe, os economistas levam em conta o potencial de crescimento da economia. Esse potencial é determinado por vários fatores, com destaque para os investimentos em capital fixo (máquinas, equipamentos e construções), em capital humano, em conhecimento (ciência e tecnologia) e em inovação. Fatores institucionais e de ambiente de negócios, como tributação, segurança jurídica, burocracia e integração internacional, também são importantes. O Brasil tem ido mal, há muitos anos, em todos esses quesitos.

Só o investimento em capital fixo é mostrado de forma explícita nas contas nacionais brasileiras. Na maior parte dos últimos 20 anos esse investimento foi equivalente a menos de 20% do PIB, embora a meta oficial tenha sido, quase sempre, uma taxa de pelo menos 24%. Além disso, boa parte do investimento foi pouco produtiva.

Muitas obras públicas ficaram inacabadas, outras consumiram tempo demasiado, o superfaturamento foi frequente e houve amplo desperdício. A contribuição dessas obras para a capacidade produtiva acabou sendo muito prejudicada. O setor privado investiu mais que o governamental, mas o protecionismo e outros fatores limitaram os incentivos à busca de eficiência, inovação e competitividade.

A indústria de transformação começou a perder vigor alguns anos antes da recessão de 2015-2016. Incentivos fiscais e financeiros mal concebidos, somados à corrupção, favoreceram grupos e ramos empresariais, mas a maior parte do setor escorregou ladeira abaixo até chegar a pandemia. A equipe do presidente Jair Bolsonaro jamais apresentou um diagnóstico sério dos problemas da economia brasileira. Por isso mesmo nunca propôs um plano de modernização, dinamização e retorno a um crescimento aceitável para um país emergente.

A única reforma importante aprovada desde o ano passado, a da Previdência, estava madura no fim do mandato do presidente Michel Temer. Ainda na gestão Temer as normas trabalhistas foram modernizadas e flexibilizadas, sem eliminação de direitos. Também nesse período foi criado o teto de gastos. Hoje, além de pouco avançar na pauta de reformas, o ministro da Economia insiste em objetivos modestos, como a desoneração da folha salarial.

Essa desoneração pode evitar demissões e preservar empregos, mas é insuficiente para ampliar a oferta de vagas. Isso foi comprovado na gestão da presidente Dilma Rousseff, quando mais de 50 setores foram contemplados com a redução de encargos. Desse conjunto sobraram 17 setores – com 6 milhões de trabalhadores, segundo se estima. O mais prudente, agora, é preservar esses benefícios pelo menos por um ano, por causa das condições da economia.

Seria bom se a equipe econômica notasse a diferença entre evitar demissões e gerar empregos, objetivos tão bons quanto distintos. Geração de empregos depende, em primeiro lugar, da atividade e das perspectivas de crescimento. Não se moverá a economia eliminando direitos trabalhistas, recriando um monstrengo tributário e gastando energia para subordinar o Orçamento de 2021 aos interesses eleitorais do presidente. Planejamento para o longo prazo vai muito além disso, mas essa noção parece estranha aos condutores da política econômica.

*JORNALISTA

 

‘A escola não precisa ser o único lugar do aprendizado’, diz pioneiro do ensino online

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Em entrevista ao Estadão, Salman Khan, criador da Khan Academy, faz análise sobre a experiência de aulas pela internet durante a pandemia; ele defende ainda que acesso à internet e bons dispositivos deve ser tão importante quanto água e luz

Por Bruno Capelas – 11/10/2020 – O Estado de S. Paulo

Durante anos, a educação online foi um tema subestimado – parecia papo para gente otimista demais com a tecnologia ou então só uma opção para quem não podia passar horas em uma sala de aula. Em 2020, tudo mudou: de repente, o mundo inteiro teve que descobrir como aprender ciências, matemática e geografia na frente de uma tela. A experiência pode ter sido frustrante para muita gente, mas não deve servir como indício que aulas online não funcionam, diz o americano Salman Khan, pioneiro do ensino pela internet.

“A forma como estamos usando educação online hoje está aquém do ideal, mas acredito que a escola não precisa ser o único lugar do aprendizado”, afirma ele, em entrevista exclusiva ao Estadão. Antes que se diga que Khan é um radical, ele explica: não é preciso escolher entre a tecnologia e as aulas presenciais – um pode estar a serviço do outro. “É possível deixar as aulas expositivas para a internet e aproveitar o tempo ao vivo com interação, comunicação e tutoria”, diz.

Ele tem propriedade no assunto: há mais de uma década, está à frente da Khan Academy. Inicialmente um canal com aulas de reforço no YouTube, a organização sem fins lucrativos se expandiu para ser uma plataforma com conteúdo do ensino básico (e também aulas de programação) usadas no mundo todo por 18 milhões de alunos. Durante a pandemia, o tráfego do site, apoiado por fundações de nomes como Bill Gates  e Jorge Paulo Lemann subiu quase 300%.

Ao Estadão, Khan fala sobre como vê a experiência atual da educação pela internet e como ela pode se mesclar às aulas presenciais no futuro. “A tecnologia tem de estar a serviço dos professores e alunos”, diz. Ele também discute a importância de uma educação interativa e propõe que ter acesso à internet e a um dispositivo no qual se pode digitar e assistir a aulas será tão importante para uma residência quanto ter água, luz e saneamento básico. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Muita gente, nos últimos meses, teve de usar a educação online como sua principal ferramenta. Como o sr. avalia a experiência?

As pessoas me associam bastante com a educação online, então você poderia achar que estou empolgado. Mas sou o primeiro a dizer que a forma como estamos usando educação online hoje está aquém do que seria considerado ideal. Por causa da pandemia, a educação à distância não é tão boa quanto seria numa sala com amigos e professores. Hoje, há escolas fazendo um bom trabalho. Outras, nem tanto, mas há boas razões para isso. Replicar o que acontece na sala de aula em videoconferências não basta. É preciso se aproveitar da tecnologia de forma diferente. Sabemos que globalmente há muitas famílias que não tem acesso à internet ou a dispositivos de qualidade. Às vezes, isso também não é o suficiente: falta apoio ou até mesmo espaço para se estudar em casa. É um período complexo e entendo que muitas crianças não conseguem se engajar nas aulas online. Mais que isso: elas estão esquecendo o que sabem, atrofiando suas habilidades. A pandemia ainda vai durar mais um tempo, ao todo será pelo menos um ano inteiro em que as crianças estarão longe dos amigos, às vezes tendo de passar mais tempo em habitações longe do ideal.

Muito se fala que a pandemia pode acelerar a digitalização, mas há um risco da educação online sofrer uma rejeição maior no futuro por conta de experiências ruins no presente?

Encorajo as pessoas a não pensar nos extremos. Aprendemos a distância há séculos, como com cursos de correspondência. O importante não é pensar na tecnologia como um absoluto, mas sim nos objetivos pedagógicos. A partir deles, dá para entender que ferramentas podem ser usadas. Acredito que o aprendizado não deve ser restrito a tempo ou espaço. Ele deve também estar ligado às necessidades e realidades dos estudantes. Há 400 anos, a nobreza fazia isso com tutores. Isso é muito caro. Mas o online pode ajudar nesse sentido. Acredito que a escola não precisa ser o único lugar onde o aprendizado acontece. Uma instrução inicial sobre um tema, uma aula expositiva, pode ser feita pela internet. E ao juntar as pessoas num espaço físico, é possível ter uma aula mais interativa, o professor pode fazer a tutoria dedicada de um aluno ou um grupo de alunos. Além disso, a internet pode ser útil para explorar interesses ou lacunas: se você quer aprender sobre história russa ou se na sua região não há um bom professor de cálculo avançado, por que não usar um professor pela internet? Enquanto isso, um professor mais próximo pode ajudar a mediar essa relação.

O sr. acredita que a educação online pode substituir as aulas presenciais?

Se eu tiver que escolher entre um professor incrível e uma tecnologia incrível, fico sempre com o professor. Para mim, não é uma questão de um ser melhor que o outro. Não precisamos fazer essa escolha. A tecnologia pode estar a serviço dos professores e dos alunos. Pense nisso com um grão de sal, claro. Em condições ideais, uma aula presencial será melhor que uma aula virtual. É possível fazer um diálogo socrático no Zoom? Claro, mas ao vivo você vê a reação das pessoas ao mesmo tempo. Além disso, há benefícios intangíveis na comunicação pessoal, ao conversar com um colega no intervalo entre as classes. Agora, é preciso pensar no oposto: se você tem uma aula online interativa, com muita gente participando, ela com certeza é melhor do que uma aula presencial em que o professor passa uma hora falando e todo mundo dorme. A questão é: o que é chato ao vivo se torna ainda mais chato online. É preciso repensar o online. Hoje, por limitações de tempo e espaço, professores dão aulas de uma hora, cinco dias por semana, para turmas de 30 pessoas. Será que não é melhor fazer uma aula de 10 minutos com cinco crianças? É uma interação personalizada, com a ajuda necessária. Ter 10 minutos da atenção de um professor pode ser melhor do que uma hora só de discurso.

Nas redes sociais, hoje vemos muitos vídeos sobre professores chorando quando as crianças abrem suas câmeras. O que significa que muitas crianças não estão interagindo com os professores. O quanto essa interação importa?

Em muitos lugares, entendo que as câmeras não sejam ligadas por questões de conectividade. Mas não é sempre, claro. Se as crianças não estão com as câmeras ligadas, é bem provável que elas não vão se engajar. Por outro lado, é preciso ponderar como essas aulas estão sendo dadas. Uma aula ao vivo no Zoom na qual o professor fala por mais de 3 minutos sozinho não deveria ser ao vivo. Deveria ser um vídeo gravado. Ao vivo, os estudantes devem ser chamados para participar, aleatoriamente. A sensação de precisar estar alerta faz as pessoas prestarem atenção – em reuniões, nós adultos lidamos do mesmo jeito, não é mesmo?

A Khan Academy tem cursos do ensino básico, mas também aulas de programação. Como o sr. explica sua estrutura?

Criamos a Khan Academy como uma forma de trazer reforço para os estudantes. Muitas crianças vão à escola mas acabam tendo dificuldade ao entender um assunto ou se preparar para uma prova. Podemos dar explicações, ajudando cada aluno a aprender no seu ritmo e na sua vontade. A plataforma pode tanto ser usada individualmente como também como apoio, determinado pelos professores.

Olhando o site da Khan Academy, percebi quanto conteúdo diferente é ensinado no Ensino Médio. Parece um desafio aprender tanta coisa ao mesmo tempo – e em um espaço de tempo curto. O que o sr. acha disso?

O Ensino Médio tenta cobrir muitos assuntos e poucas crianças conseguem reter muito desse conteúdo. Eu sou fã do “menos é mais”. Acredito que é importante focar no que as pessoas precisam aprender – e acho que isso é uma lição válida para os tempos que estamos vivendo. Para crianças menores, acredito que o foco está em leitura, línguas e matemática. Para os maiores, acredito que aprofundar aprendizados seria interessante. Eu faço parte da direção da Khan School Lab, uma escola física baseada na Khan Academy. Vivo discutindo com os professores: por que não fazer duas aulas com mais tempo, que permitam profundidade, em vez de cinco aulas por dia? Mais tempo permite aos estudantes ter uma imersão completa num tema.

Nos últimos anos, países como o Brasil passaram a ter muito mais pessoas online, mas essa inclusão aconteceu via smartphones. São aparelhos com velocidade e possibilidades de uso limitados. É algo que pode limitar o alcance da educação online?

Na Khan Academy, tentamos fazer as coisas mais acessíveis o possível. Temos apps, porque sabemos que um celular é o principal meio de acesso à internet na maior parte do mundo. Mas para aprendizado, é preciso ter uma boa tela, para que você possa assistir às aulas, digitar um artigo ou mesmo fazer um trabalho visual. Espero que a covid-19 seja um catalisador para uma mudança de comportamento. Hoje, uma casa que não tem água, luz, aquecimento ou saneamento básico é vista como um lugar não aceitável para se morar, abaixo das condições ideais. Com a pandemia, acredito que precisamos e passaremos a ter uma visão similar para lugares que não têm uma conexão de internet e um dispositivo que você pode digitar de forma plena. Não é só uma questão acadêmica. É uma questão de estar empoderado economicamente, na pandemia ou não.

 

Ganhadores e Perdedores

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Com pandemia, impacto nas economias foi sincronizado, mas retomada expõe diferenças

The Economist, O Estado de S. Paulo

11 de outubro de 2020 | 05h00

Em fevereiro, a pandemia do coronavírus atingiu a economia global com o pior choque desde a segunda guerra mundial. Quarentenas e uma queda no gasto do consumidor levaram a uma implosão do mercado de trabalho na qual o equivalente a quase 500 milhões de vagas desapareceram quase da noite para o dia. O comércio global tremeu com as fábricas fechadas e os países fechando suas fronteiras. Uma catástrofe econômica ainda maior só foi evitada graças a intervenções sem precedentes nos mercados financeiros por parte dos bancos centrais, ao auxílio dos governos aos trabalhadores e às empresas falidas, e à expansão dos déficits orçamentários a patamares comparáveis aos de momentos de guerra.

O impacto foi sincronizado. Mas, conforme a recuperação se encaminha, estão se abrindo imensas lacunas no desempenho dos diferentes países, que podem ainda redefinir a ordem econômica mundial. De acordo com previsões da OCDE, já no fim do próximo ano a economia dos Estados Unidos terá o mesmo tamanho que teve em 2019, mas a da China será 10% maior. A Europa seguirá agonizando abaixo de sua produtividade pré-pandemia, situação que pode durar vários anos, um destino que também pode ser o do Japão, que passa por um aperto demográfico.

Não se trata apenas do fato de os maiores blocos econômicos crescerem a velocidades diferentes. De acordo com o banco UBS, no segundo trimestre do ano a distribuição dos ritmos de crescimento em 50 economias foi a mais discrepante em pelo menos 40 anos.

A variação é resultado das diferenças entre os países. O fator mais importante é a disseminação da doença. A China praticamente a conteve, enquanto a Europa (e talvez em breve os EUA) enfrenta uma cara segunda onda. Ao longo da semana retrasada, Paris fechou seus bares e Madri iniciou uma quarentena parcial.

Enquanto isso, na China, pode-se pedir uma bebida em uma boate. Outra diferença é a estrutura preexistente das economias. É muito mais fácil operar fábricas observando o distanciamento social do que administrar empresas do setor de serviços que dependem do contato cara a cara. Na China, a manufatura representa uma fatia maior da economia do que em qualquer outro país de grandes dimensões. Um terceiro fator é a política de resposta. Em parte, essa é uma questão de tamanho: os EUA injetaram mais estímulo do que a Europa, incluindo gastos equivalentes a 12% do PIB e um corte de 1,5 ponto porcentual nos juros de curto prazo. Mas as políticas de resposta também incluem a reação dos governos às mudanças estruturais e à destruição criativa geradas pela pandemia.

Esses ajustes serão imensos. A pandemia deixará as economias menos globalizadas, mais digitalizadas e mais desiguais. Com os trabalhadores de escritório fazendo ao menos parte da jornada semanal em seus quartos e cozinhas, aqueles de salário mais baixo que antes eram garçons, faxineiros e assistentes de vendas terão de encontrar novos empregos nos subúrbios.

Conforme um número cada vez maior de atividades são transferidas para a internet, os negócios passarão a ser dominados pelas empresas donas da propriedade intelectual mais avançada e os maiores repositórios de dados. O boom nas ações de empresas de tecnologia observado este ano é uma amostra do que virá, assim como a grande migração digital da indústria bancária. E, agora, os juros baixos manterão os preços dos ativos em alta, mesmo se as economias continuarem enfraquecidas. Isso vai ampliar o abismo entre o setor financeiro e a economia real.

Isso não é uma preocupação para a China, que por enquanto parece estar emergindo da pandemia mais forte, ao menos no curto prazo. Mas o vírus expôs problemas de prazo mais longo no aparato econômico chinês. No longo prazo, seu sistema de vigilância e controle estatal, que tornou possível a aplicação de quarentenas brutais, deve impedir a livre circulação difusa de decisões, pessoas e ideias que resultam no fomento à inovação e melhoram o padrão de vida.

A Europa é a retardatária. Sua resposta à pandemia corre o risco de estagnar as economias de seus países, em vez de permitir que se ajustem. Em suas cinco maiores economias, 5% da força de trabalho continua envolvida em esquemas de licença nos quais o governo lhes paga para aguardarem o retorno dos empregos ou dos turnos, coisa que pode nunca ocorrer. Na Grã-Bretanha a proporção é duas vezes maior. Em todo o continente, a suspensão das recuperações judiciais, a tácita paciência dos bancos e uma enxurrada de auxílio estatal direcionado correm o risco de prolongar a vida de empresas zumbis que deveriam falir.

A dúvida paira sobre os EUA. Durante a maior parte do ano, foi oferecida uma rede de segurança mais generosa para os desempregados e um estímulo maior do que seria de se esperar no lar do capitalismo. Sabiamente, o país também permitiu o ajuste do mercado de trabalho, e se mostrou menos inclinado que a Europa a resgatar empresas que correm o risco de se tornarem obsoletas. Em parte como resultado disso, os EUA já observam a criação de muitos novos empregos, diferentemente da Europa.

A fraqueza dos EUA está na sua política, tóxica e dividida. Na semana passada, o presidente Donald Trump parecia desistir de negociar uma renovação do estímulo. Enquanto duas tribos rivais considerarem as concessões mútuas um sinal de fraqueza, será quase impossível aprovar reformas essenciais, como uma nova rede de segurança, ou uma economia mais voltada para a tecnologia, ou um rumo mais sustentável para os déficits. A covid-19 está impondo uma nova realidade econômica.

odos os países terão de se adaptar a ela, mas os EUA enfrentam uma tarefa desafiadora. Se o país quiser liderar o mundo que vai emergir da pandemia, será necessário um recomeço para a sua política. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

“Elite apoiou tirano para exercer pequenas tiranias”, diz Pedro Serrano

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Em artigo para Carta Capital, jurista escreve que barracos no restaurante Gero e na praia carioca resumem o que se chama de elite

O comportamento da elite brasileira, ou de parte dela, revela que ainda não foi possível fazer a transição da estrutura colonial escravista para uma sociedade cidadã em que vigoram os princípios democráticos, constitucionais e civilizados.

Dois tristes episódios recentes expuseram esse viés colonial, anticidadania e autoritário das nossas elites: os conflitos ocorridos no restaurante Gero, em São Paulo, e na Praia do Leblon, no Rio de Janeiro.

No primeiro episódio, um homem chegou ao restaurante minutos antes de fechar e se recusou a deixar o local. Quebrou os protocolos sanitários e ofendeu outros clientes. Sentiu-se desrespeitado ante as tentativas de que cumprisse a lei.

No segundo caso, duas mulheres passeavam de biquíni em um carro conversível com a capota abaixada quando foram atingidas com garrafas jogadas por clientes de um restaurante que estavam nas mesas da calçada em frente ao veículo. Uma das moças desce e agride fisicamente quem jogou as garrafas.

Em ambos os casos, está presente a aporofobia: o preconceito, a aversão e o ódio contra os pobres. Nossa elite tem como regra não aceitar a pobreza, identificada com a negritude, os nordestinos e os indígenas. Não existe aceitação de que a pobreza é parte integrante da nação.

O resultado é o sentimento que essa elite criou de que é superior aos outros, de que constitui sozinha a nação. Gente da elite tende a tratar o outro, quando conflitam, mesmo em se tratando de um igual, como um estrangeiro deseducado, desinformado e de menor qualidade humana.

Nos conflitos, busca retirar do outro as suas características humanas mínimas. Exatamente o que aconteceu nos dois episódios. No caso do Gero, o senhor que provocou o incidente se gabava de “ser de berço”, ter tido educação nos EUA e Europa e de ser um “cavalheiro”.

A autorreferência como privilegiado implica que visão e comportamento são sempre orientados por uma percepção de que a lei serve para os outros, mas não para si mesmo. Trata-se de uma noção absolutista típica, na qual o soberano produzia as leis que ele mesmo se desobrigava a cumprir. A elite se comporta assim, como um rei absolutista. Não se coloca numa condição de cidadania, em que todo e qualquer um é igual perante a lei.

As tentativas de fazer a lei ser cumprida são entendidas como ofensa, justamente por contrariarem o sentimento de “minirrei”. A igualdade perante a lei, que funda a ideia de cidadania, é tida como agressão, como expressou o tumultuador do Gero. A noção de privilégio vem daí e choca-se com o sentido maior dos direitos, a ideia de universalidade.

No caso do Leblon, circulou a informação de que as moças trocaram beijos e isso teria levado à indignação da agressora. Mas o fato de duas mulheres se beijarem é amparado pela Constituição. Se pode haver uma expressão heteroafetiva na via pública, igualmente pode haver uma homoafetiva, fundamento que se origina também do princípio da igualdade.

Uma vez mais, o traço antidemocrático, autoritário e inconstitucional se revela. Se alguém enxerga uma ilegalidade que ocorre no passeio público, que comunique as autoridades, em vez de assumir a justiça com as próprias mãos. Caso houvesse algum delito no automóvel, uma infração de trânsito, é desproporcional e mais delituosa a reação violenta de jogar garrafas, assim como a agressão física usada como resposta às garrafas atiradas. A violência é algo a ser repudiado intensamente numa sociedade democrática, constitucional e civilizada.

Mas a elite se acha no direito de fazer justiça com as próprias mãos. Isso ecoa a estrutura colonialista que segue latente. Os escravos eram torturados e punidos pelos donos. O julgamento não é o Estado quem faz, mas o indivíduo. Juiz e carrasco, assim como os donos de escravos eram.

O governo Bolsonaro estimula esse paradigma ao difundir uma ideia de nação formada apenas por incluídos e apoiadores. Os demais são excluídos. Sobrepostas a essa estrutura colonialista, as formas de autoritarismo líquido que ganharam impulso com Bolsonaro também liquefazem a distinção entre público e privado, atribuindo ao particular funções típicas de Estado. Assim, em vez de significar o direito a ter direitos e, portanto, o dever de garantir e manter os direitos, a cidadania é substituída pela noção do direito individual de exercer funções de polícia, típicas do Estado.

O autoritarismo líquido percorre não apenas os ambientes da intersubjetividade política, ele penetra na subjetividade dos cidadãos. No seu Discurso da Servidão Voluntária, uma das lições que Étienne de La Boétie nos dá é a de que indivíduos apoiam o tirano para poder exercer suas pequenas tiranias. Eis o resultado da eleição de Bolsonaro: a elite, ou uma parte, apoiou um tirano para poder exercer no cotidiano essas pequenas tiranias.

 

 

Incompetência do governo eleva juros e compromete retomada, por José Francisco Lima Gonçalves

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Impactos da recessão sobre as contas públicas assustam o mercado

A incompetência do governo face à complexa situação acrescenta gravidade à trajetória presente desde antes da pandemia. Segundo o IBGE, a contração já ocorria no primeiro trimestre de 2020. Caminhávamos para o quarto ano seguido de crescimento perto de 1,0%.

Inflação baixa, juros baixos, confiança baixa. O colapso da atividade, do emprego e da renda tem determinantes no distanciamento social, mas não apenas.

Os impactos da recessão sobre as contas públicas assustam o mercado, assim como a iminência da contração da renda assusta as famílias e boa parte do setor não financeiro.

Se ninguém investia antes, o que dizer depois? E, se a expectativa é de corte de gastos pelo governo, qual a racionalidade de retornar aos níveis anteriores de produção e de arriscar investir?

Se o medíocre desempenho da economia lançava dúvidas em relação ao ajuste fiscal “expansionista”, dúvidas estão se tornando convicções. Cresce o número de analistas que se lembram do denominador da relação dívida/PIB. Cai o número de crentes em retomada com cortes de gastos.

O azedume recente do mercado se deu pela frustração da surpreendente expectativa sobre a existência de vontade e capacidade do governo de manter o regime fiscal. Enquanto bancos centrais se dedicam a “fazer o que for necessário” para a economia crescer, a busca de uma trajetória adequada para as contas públicas se resume a “fazer o que for necessário” para manter o gasto público dentro do teto.

Há argumentos que explicam a conveniência de controle das contas públicas. O desenho institucional do mecanismo pode ser bom ou ruim. O atual é péssimo.

Proíbe o governo de fazer política fiscal contra cíclica. O argumento é duplo: já fizemos e deu errado, por incompetência; e vai levar o mercado a elevar os juros, inibindo a recuperação ao invés de ajudar.

A questão da incompetência é mais ideológica do que técnica e historicamente errada. A questão dos juros tem aparecido com mais ênfase.

A expectativa de que sair do teto é aumentar a dívida e/ou “emitir, pois acabou o dinheiro”, e que isto levaria a mais inflação, explicaria a alta dos juros futuros pelo mercado, pois o Banco Central será levado a elevar a taxa básica na medida em que a inflação esperada se eleve.

A inflação decorrente do abandono do teto viria da demanda criada pelo gasto público e/ou pela transferência de renda, desvalorização do real e consequente alta de custos que seriam repassados aos preços.

Os preços dos serviços cresceram um bom tempo em torno de 8%, por forte demanda e frágil crescimento da oferta. Hoje, anda a 1,0%, caindo desde que a recessão 2015-16 destroçou o emprego e a renda. A inércia foi caindo com a mudança nas condições do mercado de trabalho.

Os preços administrados foram represados no governo Dilma e ajustados em choque em 2015, junto com o choque do câmbio quando o governo enviou ao Congresso um projeto de lei orçamentária com déficit primário. Um choque de expectativas.

O choque de preços de alimentos, via IPCA, ao longo de 2014 e meados de 2016, puxou o IPCA para cima e para baixo. Desde 2016, os núcleos de inflação caminham em níveis extremamente benignos. Há coincidência com a mudança de governo e de comando no BC?

O governo seguiu gastando, preparando o teto. O novo BC iria mostrar logo mais que uma coisa é o regime de metas de inflação, outra coisa é um regime de metas de câmbio.

A depender da intensidade e da duração do choque de custos, seu repasse para os preços depende das condições da demanda. Um choque de custos, digamos, via taxa de câmbio, pode ser repassado aos preços ao consumidor desde que esse os sancione, pagando-os.

Caso o repasse seja feito, a renda do consumidor cai. Caso não o seja, a margem da empresa cai. O que vai acontecer depende das condições do mercado de trabalho. Se a renda não estiver em expansão, o choque de custos não se torna inflação, mas corrosão da renda e das margens. A famosa recessão.

José Francisco Lima Gonçalves

É professor de Economia da FEA-USP e economista chefe do Banco Fator

As vozes roucas das humanidades contemporâneas

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A sociedade contemporânea vem passando por momentos de grandes instabilidades e incertezas, conceitos sólidos e consistentes vistos anteriormente com respeito e admiração, está sendo vista com ceticismo, levando a sociedade rever conceitos e reestruturar bases vistas anteriormente como estabelecidas, vivemos um momento de novos paradigmas, alguns nascendo e outros surgindo, trazendo novas cores, comportamentos e simbolismos crescentes.

Nesta sociedade marcada por tecnologias, máquinas e conhecimentos arraigados em todas as regiões ou coletividades, onde a quarta revolução industrial substitui valores humanos, gerando novos comportamentos humanos, formas de acumulação, trocas virtuais substituem a conversação e as trocas de impressões, levando os indivíduos a perceber novas estruturas sociais, políticas e culturais. Todos os novos paradigmas estão sendo motivados pelos interesses econômicos e financeiros, centrados no imediato e pela superficialidade, neste novo modelo os seres humanos sentem os medos aumentarem, desequilíbrios crescem de forma acelerada, as instabilidades aumentam, os conflitos crescem e as desesperanças se fazem mais permanentes.

Vivemos uma sociedade marcada pelas máquinas, o conhecimento humano e a ciência contemporânea transforma os comportamentos, os trabalhadores rivalizam por tecnologias marcadas pela flexibilidade, levando os indivíduos ao trabalho ininterruptos, somos trabalhadores contumaz, somos todos workaholic, somos viciados em trabalho, buscamos bater as metas impostas pelas organizações, corremos aos ganhos materiais do cotidiano e nos percebemos que as metas degradam aos sentimentos, os ambientes organizacionais são tóxicos e crescentemente superficiais, vestimos inúmeras máscaras e se esquecemos de nossa verdadeira personalidade, nossos desejos, nossos comportamentos e os nossos verdadeiros sentidos.

O homem econômico domina a sociedade contemporânea, pensamos e nos organizamos para adquirir nossos desejos materiais, contamos nossos ganhos monetários, nossas posses materiais, nossas conquistas materiais e quando percebemos somos escravos de uma sociedade, que deturpa nossa personalidade e nos transformamos em indivíduos alienados, sem identidades e sem perspectivas emocionais, vivemos um momento de transformações.

No período da idade média estávamos presos a alienados pelas ideias religiosas, estávamos imersos em teorias conspiratórias, temíamos a força superior que nos punia fortemente e nos maltratássemos quando enveredar nos escaninhos da revolta e aceitassem a dominação, o poder era cruel e temíamos o poder do Deus, com isso, para evitar as dores e as perseguições, deveríamos aceitar sem pestanejar, sem criticar e sem revoltar, este período durou muitos séculos.

Depois de séculos de escuridão e alienação, os ideais iluministas trouxeram novas ideias, novos comportamentos e novas religiões, impulsionando as letras, os discursos e os pensamentos dos seres humanos, contribuindo para a desagregação da sociedade da época e estimulou novos ambientes sociais e a construção de novos contratos sociais. Neste período inúmeros intelectuais estimularam o crescimento das ideias e os pensamentos sociais, teóricos do calibre como Rousseau, Locke, Maquiavel, Lutero, Da Vinci, Pestalozzi, Smith, Darwin, Kardec, dentre outros, contribuíram para o soerguimento e construção da sociedade moderna, estimulando luzes num período marcado por escuridão e ignorância, marcas profundas que ainda persistem na sociedade contemporânea.

No desenvolvimento da sociedade mundial, as ciências sociais ou Humanidades, foram fundamentais para transformar as coletividades, mostrando a importância da vivência em sociedade, a construção dos modelos econômicos, políticos e sociais, estimulando o crescimento das bases que solidificam os períodos históricos e mostram a importância da vivência social, o compartilhamento das experiências, o desabrochar das várias ciências, mostrando que os seres humanos nascem em conjunto para que todas compreendam que sua vivência deve ser feita e consolidada em grupos sociais, todos se auxiliando e prol do desenvolvimento conjunto.

Infelizmente, as ciências sociais e as humanidades, vem perdendo espaços na sociedade, os interesses do mundo do negócio, das negociações e dos valores materiais dominam a sociedade, transformando-nos em indivíduos S.A, somos motivados pelos ganhos materiais, nossas maiores energias estão concentradas nas questões profissionais, transformando nossas vidas em trabalhos constantes, deixando de lado outras questões fundamentais, como as saúdes física e emocional, as questões espirituais e os valores sentimentais, deixando todos os interesses dos seres humanos associadas aos trabalhos materiais e profissionais. Neste ambiente, percebemos indivíduos altamente intelectualizados, profissionais de grande capacidade técnica e dotados de conhecimentos de alta complexidade, trabalhadores de grande bagagem gerencial mas, ao mesmo tempo, frágeis e limitados quando enveredamos pelos escaninhos das emoções e dos sentimentos, somos crianças fisicamente convivendo limitações emocionais, pessoas que se frustram com os embates da vida entram em depressão, dominados por transtornos variados, medos generalizados e sentimentos desequilibrados.

Numa sociedade marcada pelos desenvolvimentos científicos centrados nas tecnologias que deixa de lado os valores das ciências sociais e pelas humanidades, transformam os indivíduos em autômatos, verdadeiras máquinas programadas pelos senhores, deixando de lado as reflexões, os questionamentos e a racionalidade emocional, esta sociedade está levando a coletividade para a degradação, a concentração das rendas e das riquezas, o incremento do desemprego, o aumento da miséria, a devastação da natureza e do meio ambiente, degradando os rios e florestas e ainda querem acreditar que somos seres racionais?

Vivemos numa sociedade marcada por inúmeras contradições, de um lado nos emocionamos ao ouvir os grandes filósofos contemporâneos, buscando palestras de intelectuais que nos levam aos prantos ou as emoções, além de reflexões pessoais. Adoramos ouvir as palavras de teóricos como Leandro Karnal, Mario Sérgio Cortella ou Luiz Felipe Pondé, suas reflexões levam multidões de pessoas para as livrarias das grandes cidades para adquirirmos seus últimos livros, suas palestras são concorridas, suas  colunas nos grandes jornais se buscadas como se estivessem as curas para os males individuais ou coletivos, mas ao mesmo tempo não querem aprofundar suas reflexões mais consistentes. Preferem se distanciar das universidades, buscam fórmulas acabadas para combater suas frustrações e desequilíbrios emocionais. Se as pessoas quisessem conhecer as suas estranhas mais íntimas, deveriam buscar os livros e as leituras de outros teóricos da filosofia que contribuíram para a compreensão da sociedade e nos trouxeram reflexões e questionamentos mais consistentes, dando a filosofia instrumentos fundamentais para o desenvolvimento do ser humano. Nesta sociedade, infelizmente, adoramos as emoções dos dramas contemporâneos alheios, nos emocionamos com estas histórias de outros indivíduos e esquecemos de nossos dramas mais íntimos, sem refletirmos nossas limitações mais íntimas nos tornamos seres humanos mais desajustados, desequilibrados e degradados emocionalmente e espiritualmente.

A Filosofia, como ciência, perdeu a empregabilidade da sociedade contemporânea, ao mesmo tempo, outras áreas das ciências sociais ou das humanidades, como a Sociologia, a Antropologia, a História, a Pedagogia, a Ciência Política, dentre outras, perderam o encanto no mundo profissional. Os indivíduos contemporâneos buscam outras áreas do conhecimento humano, preferem a empregabilidade de cursos como o Direito, a Medicina, as Engenharias, os cursos de Computação e de Tecnologia da Informação ganham espaço na sociedade, deixando as outras áreas em segunda ou terceira opção, faltando profissionais das humanidades, reflexões criticam, pensamentos sociais, planejamento e experiências que foram vivenciadas pelos profissionais das humanidades e das ciências sociais, fundamentais para a compreensão do conhecimento humanos que sempre auxiliaram no balizamento do desenvolvimento das sociedades.

Neste momento, percebemos a fragilidade dos profissionais das áreas das ciências sociais e da humanidade, somos os primeiros a serem substituídos pelas aulas à distância, sua presença para a sociedade é desnecessária, somos facilmente substituídos pela máquina, pelas apostilas, pelos programas de computação, os jogos de interação e se caracterizam pela superficialidade, deixando de abordar questões centrais na sociedade da tecnologia. As experiências dos seres humanos e as vivências da coletividade, mostrando que as civilizações que se basearam em valores transitórios, imediatistas e limitadas levam as sociedades as degradações mais íntimas e as devastações mais generalizadas, a história nos mostra inúmeras vezes que muitas civilizações perderam espaço e foram substituídos por outras organizações sociais.

Neste ambiente, percebemos que a força política dos professores é limitada, somos pouco organizados, sem unicidade, sem representatividade e não conseguem mostrar para a sociedade sua importância, nem internamente não conseguem se organizar com outras áreas do conhecimento. Num determinado momento vão perceber que sem a união de todos os polos do conhecimento humano, todos os cursos e profissionais serão substituídos por máquinas e equipamentos, substituídos por robôs e tecnologias sofisticadas, perdendo seus empregos, seus sonhos e mergulhando nas desesperanças, nos medos e na degradação social. Num período percebemos que os profissionais da humanidades estão sendo substituídos por outros equipamentos qualquer, na atualidade os que estão na mira são os profissionais do direito, os engenheiros, os gestores e outros profissionais liberais, num futuro não tão distante outros entrarão na obscuridade, perderiam seus empregos, suas dignidades, sua condição de vida, será que devemos esperar, de braços abertos, os próximos passos deste enredo assustador?

A tecnologia é fundamental para o desenvolvimento econômico e social, a introdução acelerada na sociedade está gerando grandes constrangimentos na coletividade, a ausência dos instrumentos da reflexão das ciências sociais e das humanidades nas discussões contemporâneas podem gerar graves desequilíbrios na convivência social, sem estas reflexões os indivíduos tendem a abraçar as novas tecnologias, as novas máquinas e os equipamentos que revolucionam o convívio social, construindo uma nova construção social, marcada pelo afastamento social, pelo isolamento do convívio social, gerando novos seres humanos, mais pragmáticos, mais flexíveis, menos empáticos, mais frios e superficiais, uma sociedade menos consistente, menos competitivo, mais marcados pelas incertezas e instabilidades, perpetuando as desigualdades, a fome e a exclusão, até o dia em que os seres humanos cansarem desta sociedade agressiva, infeliz e degradante, neste momento as grandes revoluções podem gerar muitas lágrimas, mortes, violências generalizadas e novas perspectivas para os seres humanos.

 

Aqui se faz, aqui se paga, por Marcos Lisboa.

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A inação do Palácio do Planalto começa a cobrar seu preço

A opção do Palácio do Planalto por não enfrentar dilemas cobrou, mais uma vez, a sua fatura. A proposta para financiar a expansão do Bolsa Família resultou em piora dos preços dos ativos e das taxas de juros.

Não deveria surpreender. O plano se valia de mecanismos pouco republicanos, como a suspensão unilateral do pagamento de dívidas, que, há tempos, são adotados por estados e municípios para pagar seus crescentes gastos com salários e aposentadorias.

O governo, que se dizia liberal na economia, segue confirmando que era tudo conversa para inglês ver. Não há privatização, abertura da economia e redução da arrecadação compulsória destinada ao Sistema S. Anunciou-se um esquisito “mais Brasil, menos Brasília”, que tampouco saiu do discurso.

São muitas as promessas não cumpridas, mas o pior ocorre quando se copia o que de mais reprovável é feito por estados e municípios. Propor o adiamento compulsório do pagamento de decisões judiciais é malandragem para viabilizar novas despesas públicas às custas de maior endividamento.

Para quem imaginava que o governo poderia expandir sua dívida sem prejudicar a economia, deve ser perturbador assistir ao choque de realidade dos últimos tempos.

A falta de agenda para controlar o crescimento dos gastos públicos resultou no aumento das taxas de juros de longo prazo, na desvalorização do câmbio e em mais dificuldades para financiar o governo e o setor privado.

Esses danos colaterais podem se agravar em poucos meses se não houver mudança de rumo. O governo escolhe o caminho errado ao optar pela inação frente aos dilemas do país. A tímida proposta de reforma administrativa é um dos exemplos do temor de desagradar aos grupos de interesse.

O apoio maroto ao perdão da dívida tributária das igrejas, as concessões aos militares e a resistência a realizar ajustes nas despesas revelam que o Palácio desconhece a extensão dos problemas. Incapaz de arbitrar conflitos, o presidente parece se desesperar frente às consequências da sua inação, pedindo soluções mágicas.

Dois dias depois do anúncio detalhado do plano, com direito a muitas entrevistas, o ministro da Economia disse que não era bem assim. Afinal, o governo sabe o que o governo faz ou, frente à repercussão, criou-se uma fantasia ministerial?

Alguns têm defendido “pensar fora da caixa”, como se toda criatividade fosse construtiva. Esquecem que pode ser também uma porta para o retrocesso. Nos anos 1980, assim como no começo da década de 2010, houve vários planos mirabolantes que prometiam milagres. Os resultados foram devastadores.

Como no passado, a responsabilidade pelo fracasso será do presidente.

Marcos Lisboa

Presidente do Insper, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005) e doutor em economia

 

Inadimplência e crescimento econômico  

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 A sociedade está passando por um dos momentos mais dramático na sua história, de um lado estamos vivenciando uma severa crise sanitária com mais de 130 mil óbitos, de outro lado, a economia está numa situação complexa, marcada por alto desemprego, dívida interna crescente, dólar nas alturas e sinais de aumento dos preços com impactos generalizados. Diante deste quadro, a economia brasileira apresenta altos índices de inadimplência, que restringem o crescimento no consumo interno, reduz as capacidades de compra e diminuiu as perspectivas do crescimento econômico. A inadimplência não começou neste ano, desde 2015 os índices crescem de forma acelerada, gerados pelas mudanças no mercado de trabalho, incremento no desemprego, taxas de juros elevadas que sempre marcaram a sociedade brasileira e inabilidade da população em gerenciar os recursos financeiros, herança dos momentos de inflação elevada. Neste ambiente, faz-se necessário a construção pactuada pela sociedade para diminuir estes níveis de inadimplência, chamando todos os atores econômicos, sem estas soluções na questão da inadimplência, novos investimentos e ambientes propícios para o estímulo econômico, o país ficará distante do sonhado desenvolvimento econômico.

 

Artigo escrito e publicado no Jornal Diário da Região, dia 04 de outubro de 2020.

Disponível no endereço abaixo: https://www.diariodaregiao.com.br/economia/rio-preto-e-regiao/2020/10/1208282-pandemia-aumenta-em-20-mil-o-numero-de-endividados-em-rio-preto.html

 

O poder da incerteza. Entrevista com Edgar Morin.

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02 de outubro de 2020. IHU on line

“Entramos na era das grandes incertezas”. Filósofo, sociólogo, antropólogo, Edgar Morin completou 99 anos em julho, sem nunca esgotar a sua curiosidade intelectual, reavivada pela crise do covid-19 que faz com que os governantes pareçam navegadores sem coordenadas. A bússola de Morin indica uma direção precisa. “Cambiamo strada” [Mudemos de rumo] é o convite do intelectual francês no seu livro recém-publicado pela Raffaello Cortina Editore.

A reportagem é de Anais Ginori, publicada por La Repubblica, 01-10-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

O grande pensador propõe “quinze lições do coronavírus” sob a insígnia da solidariedade, da inteligência, do advento da “ecopolítica” e do fim da “tecnoeconomia”. “Não conseguindo dar um sentido à pandemia, aprendamos com ela para o futuro”, escreve Morin.

Seus ensaios vão da elaboração do luto aos novos mitos do espetáculo, da ecologia à reforma do bem-estar social. Em uma época de simplificações, o filósofo teoriza há muito tempo sobre o “pensamento complexo”, a união dos opostos e dos saberes, como ele explicou nos seis volumes do “Método”, a obra enciclopédica escrita entre 1967 e 2006, e pela qual ele ganhou o apelido de “Diderot do século XX”

Eis a entrevista.

Você começa o livro com uma anedota pessoal: sua mãe adoeceu com a gripe espanhola, e essa experiência marcou o seu destino.

O psiquiatra Boris Cyrulnik demonstrou como um grave trauma pode nos dar, se conseguirmos sobreviver, uma capacidade de resistência que ele define, com um termo emprestado da física, “resiliência”. Eu resisti desde o nascimento. A menina que se tornaria minha mãe tinha problemas cardíacos por causa da gripe espanhola. Quando ela se casou, disseram que ela não poderia ter filhos, porque o parto seria fatal para ela. Ela engravidou pela primeira vez e abortou. Na segunda vez, a abortista clandestina lhe deu produtos que não funcionaram. O feto resistiu. Foi assim que eu nasci.

A resiliência vale para as nossas sociedades?

Embora não se corra o risco de uma morte imediata, uma grande crise social, política ou econômica constitui uma prova para a sociedade, que pode sair enfraquecida ou fortalecida. Podemos ir rumo a uma desagregação ou experimentar uma forma de resiliência e sair regenerados, apenas se mudarmos de rumo.

Você nunca usa o termo “revolução”.

A revolução soviética e depois a revolução maoísta produziram uma opressão que vai em sentido oposto à missão de emancipação. Seu fracasso restaurou aquilo que queriam liquidar, ou seja, capitalismo e religião. Em 1968, alguns acreditavam em uma prova geral de revolução; outros, que a economia havia sido atingida de morte pela revolta. Eu interpretei o fenômeno apenas como uma concessão momentânea da nossa civilização.

Desta vez, não se trata apenas de mais uma concessão? A “tecnoeconomia”, que você tanto critica, está sempre presente.

É verdade: hoje, a globalização “tecnoeconômica” é mais hegemônica do que nunca. Com a sua sede insaciável de lucro, ela foi o motor da degradação da biosfera e da antroposfera, provocou fechamentos nacionalistas, étnicos e religiosos. Mudar de rumo pode parecer impossível. Mas todos os novos caminhos que a história humana conheceu eram imprevistos, filhos de desvios que puderam criar raízes e se tornar forças históricas.

O sucesso dos Verdes na França é um sinal de que algo está se movendo?

Os sucessos dos Verdes nas eleições municipais dão esperança de progressos em nível local. Mas, para passar para o nível nacional, há uma grande distância. A ecologia deve ser integrada em um verdadeiro New Deal político-econômico-ecológico-social-cultural a fim de reverter o hipercapitalismo e diminuir as desigualdades. A ecopolítica agora é de importância primordial. Estamos apenas no início.

As epidemias existem desde o início dos tempos. O que é realmente inédito?

A impotência da ciência diante de um vírus desorientador, o caráter multidimensional da crise que atinge a vida de cada indivíduo, de todas as nações e do planeta inteiro. Há a sensação de que o mundo de amanhã não será mais como o que conhecemos.

Os cientistas lutam em posições diferentes, como os políticos.

A ciência não tem um repertório de verdades absolutas. Apenas a teologia se considera infalível. As teorias científicas são mutáveis, e os princípios aparentemente mais sólidos do século XIX, como o determinismo, dão lugar a outras teorias. A ciência, assim como a vida política, vive de conflitos e debates. As controvérsias, longe de serem uma anomalia, são necessárias para os progressos da ciência. O progresso científico nasce da competição e da cooperação. O risco, no entanto, é que a competição se torne concorrência, como na busca o tratamento ou da vacina, em detrimento da cooperação, que permitiria acelerar a eliminação do vírus.

Macron tem razão quando fala da necessidade de se “reinventar”?

Devemos nos repensar para nos reinventar. Mudar de vida e mudar de rumo. Muitas transformações parecem necessárias ao mesmo tempo: são necessárias reformas econômicas, sociais, pessoais, éticas. Por toda a parte no mundo, graças a essa crise global, apareceram miríades de nascentes, miríades de riachos, que, unindo-se, poderiam formar córregos e confluir em cursos de água, dos quais poderia nascer um grande rio.

Mudar de rumo significa seguir em frente sem esperar ter certezas absolutas?

Não se pode conhecer o imprevisível, mas é possível prever a eventualidade. A vida é uma navegação em um oceano de incertezas, através de ilhas de certezas. Embora oculta ou removida, a incerteza acompanha a grande aventura da humanidade, cada história nacional, cada vida individual. Porque cada vida é uma aventura incerta: não sabemos primeiro aquilo que nos espera, nem quando a morte chegará. Todos fazemos parte dessa aventura, repleta de ignorância, desconhecido, loucura, razão, mistério, sonhos, alegria, dor. E incerteza.

 

Estamos confortáveis com o tempo de reação do setor público à crise?, por Fernando Schuler

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A inércia do ensino público produzirá mais desigualdade, mas o sistema é de ‘não culpados’

Thiago conta que “não são aulas por vídeo”. Diz que é só uma interação. “A gente fala mais de cultura, racismo, bullying, coisas assim.” Isabela explica que o problema é a internet. “O sinal é fraco. Não tem aula, só atividade remota. No fim não entendia mais nada, desisti.”

Nas últimas semanas, li o que pude sobre nossa educação pública na pandemia. Me fixei nos relatos. Histórias dos alunos brigando com celulares que não funcionam e emails do colégio que não respondem. E dos alunos, em especial no ensino médio, que vão desistindo.

Os especialistas dizem que a evasão vai aumentar. Demétrio Magnoli cunhou um termo algo assustador: teremos a geração covid. Ela nos lembrará por muito tempo sobre como este ano triste foi também um ano irresponsável.

Alguns sugerem cancelar o ano letivo, quem sabe aprovar todo mundo, começar tudo no ano que vem. Os sindicatos fazem o jogo do nirvana. Aula tem que ser presencial, mas presencial não dá. Só depois da vacina. Então não tem jeito, não é mesmo?

Se a gente observar mais a fundo vai ver aí nossos dois Brasis. Logo no início da pandemia, o mundo das escolas privadas migrou para o espaço digital. Os professores se adaptaram com algum treinamento e o ano seguiu. Com perda de qualidade, que é a regra nisso tudo, mas seguiu.

Enquanto isso, a máquina estatal emperrou. A Pnad Covid mostrou 16,1% dos alunos ainda sem aula, em agosto. Uma enorme parcela com acesso muito precário a atividades, aulas sem interação, sem aferição do que se está ou não aprendendo.

Nosso debate público rapidamente decretou que o problema era a “desigualdade”. Os alunos mais ricos têm acesso à internet, os mais pobres, não. Tudo explicado? Na minha visão, coisa nenhuma.

A desigualdade é um dado estrutural da realidade brasileira. Há muito sabemos sobre a disparidade de acesso à tecnologia. E é óbvio que isso pesa na capacidade das famílias se adaptarem, orientarem os filhos, segurarem a barra numa situação difícil.

Não é exatamente para lidar com isso que existe a educação pública? Estudo recente do Ipea calculou em R$ 3,9 bilhões o custo para corrigir o déficit de acesso digital e a equipamentos. Informação e recursos não são o problema. O ponto é: estamos confortáveis com a velocidade de reação do setor público?

Fui conversar com dirigentes educacionais nos estados. Os problemas são óbvios. Falta acesso a redes, conexões instáveis, aplicativos difíceis de usar. As escolas fazem o mínimo, falta preparo aos professores para o ensino remoto.

Um deles foi direto: o problema é que o sistema não tem pressa. Quando tem orçamento, é difícil comprar equipamentos. Quando compra, é difícil treinar as pessoas. No final, a frase reveladora: “O setor privado fez isso porque tem interesse. Se não tem aula, os pais simplesmente tiram os filhos”.

E o setor público, perguntei, não tem interesse? Pergunta inútil. Se não tiver aula, os pais irão trocar de escola? E irão reclamar para quem? Alguém está realmente preocupado com isso e vai assumir a responsabilidade?

Eis o lado trágico da questão. Temos um sistema de “não culpados”. Os professores não têm culpa por causa do risco e por não terem controle algum do processo; os diretores dependem das secretarias, não controlam o orçamento, sistemas de compras ou a contratação de pessoal.

Os secretários também estão de mãos atadas. Pouco recurso, burocracia, os sindicatos resistem e não podem demitir quem é improdutivo. Por fim sobra o Ministério da Educação, mas o ministro já esclareceu que o problema também não é dele, que a responsabilidade é dos estados e municípios.

Todos reunidos concluiriam, desconfio, que a culpa é “disso tudo que está aí”, como gostava de dizer Leonel Brizola. Que esse papo de eficiência é coisa de neoliberal e que era mesmo impossível converter o drama da pandemia em um trabalho coordenado de inclusão digital.

Melhor tapar o sol com a peneira e pôr a culpa é na desigualdade. Ela mesma, que a inércia estrutural do setor público fará aumentar, como nunca, neste ano triste de 2020.

Fernando Schüler

Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.

 

Sobre escolas, exclusão e segregação, por Otaviano Helene,

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Sistema educacional trabalha para reproduzir as desigualdades no futuro

Folha de São Paulo, 30/09/2020.

Perto de 20% das crianças abandonam a escola antes de completar os nove anos do ensino fundamental —obrigatório, por sinal. Até o final do ensino médio, a exclusão já terá atingido cerca de metade dos jovens. Se já hoje não ter completado o ensino fundamental e mesmo o médio é um limitante terrível na luta por empregos e pela inserção na sociedade, que perspectivas terão essas pessoas em um futuro cada vez mais complexo?

Além da exclusão pura e simples, há também o enorme problema da dependência do desempenho estudantil com sua situação socioeconômica. Quinze mil escolas públicas e privadas, cujos estudantes prestaram as provas do Enem, foram classificadas pelo Inep em sete níveis, de acordo com a situação socioeconômica.

Em nenhuma das escolas classificadas entre os três estratos inferiores, sejam elas públicas ou privadas, os estudantes conseguiram uma média superior a 650 pontos em matemática, uma nota de corte típica para cursos com procura intermediária. Nos quarto e quinto grupos socioeconômicos, menos do que 0,1% das escolas superavam aquele limite. Já no sexto grupo, apenas 2% das escolas conseguiram superar aqueles 650 pontos.

A enorme maioria das escolas cujos estudantes atingem aqueles 650 pontos pertence ao sétimo grupo mais bem aquinhoado —aquele cuja renda familiar era de pelo menos dez salários mínimos, contava com empregado doméstico, tinha pelo menos três carros e duas geladeiras e outros indicadores equivalentes. Ou seja, o acesso às carreiras mais competitivas em instituições de ensino superior de qualidade, quer pelos critérios da nota no Enem, quer por vestibulares tradicionais, é coisa existente, como regra, apenas nos grupos economicamente superiores. Quando uma nota de corte perto de 700 é considerada, a situação se mostra ainda mais excludente: fora dos 5% ou 10% mais ricos, praticamente não há chances de sucesso.

Seja pela simples eliminação do sistema escolar —que afeta, repetindo, perto da metade da população jovem antes do final do ensino médio—, seja pela deficiência na formação escolar, o sistema educacional brasileiro exclui grandes parte de sua população da oportunidade de uma vida com plenas condições de se inserir na sociedade e, também, de dar sua contribuição à ela na forma de um profissional competente.

Por causa dessas características, o sistema educacional brasileiro está contribuindo para reproduzir no futuro as desigualdades atuais, sejam elas nas diferenças de rendas entre as pessoas, sejam nas diferenças entre as várias regiões do país, de cada estado e de cada município. Nosso sistema educacional é simplesmente excludente e segregacionista

Além disso, o país não está formando os quadros profissionais de que precisaria para se impor soberanamente entre os demais países. Sobre esse aspecto, vale lembrar que o Brasil, proporcionalmente à população, está próximo da centésima posição no que diz respeito à formação de profissionais em áreas absolutamente estratégicas, quer para o bem-estar da população, como nas áreas de saúde, quer para a produção econômica, no caso das áreas técnicas mais avançadas.

Para superar tal absurda situação é necessário um reforço nos recursos financeiros das escolas públicas, que são as que atendem a enorme maioria dos estudantes, em especial os mais desfavorecidos economicamente, para que possam oferecer oportunidades iguais a todos, independentemente de seus estratos sociais, econômicos e culturais.

Mas, por tudo o que já se escreveu e debateu, e nada mudou, só podemos chegar à conclusão de que essa situação é um projeto de país dos donos do poder. Portanto, só mudaremos esse estado de coisas com muita pressão popular e luta dos trabalhadores, em especial dos trabalhadores da educação, seja em que governo for, pois sabemos que esses poderosos estão acima de qualquer governo.

Otaviano Helene

Professor do Instituto de Física da USP, ex-presidente do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) e autor de ‘Um Diagnóstico da Educação Brasileira e de seu Financiamento’ (Autores Associados)

 

Trabalho virtual?, por Ricardo Antunes

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Se o trabalho virtual não cessa de se expandir, é bom não esquecer que nenhum smartphone ou tablet pode sequer existir sem a interação com as atividades humanas, inclusive aquela que nos remete às cavernas: a extração mineral.

do Blog da Boitempo

Trabalho Virtual?

por Ricardo Antunes.

[Não há celulares, computadores, satélites, algoritmos, big data, internet das coisas, Indústria 4.0, 5G, ou seja, nada do chamado “mundo virtual e digital” que não dependa do labor que começa nos subterrâneos. Se o trabalho virtual não cessa de se expandir, é bom não esquecer que nenhum smartphone ou tablet pode sequer existir sem a interação com as atividades humanas, inclusive aquela que nos remete às cavernas: a extração mineral. Sem a produção de energia, cabos, computadores, celulares e tantos outros produtos materiais; sem o lançamento de satélites; sem a construção de edifícios onde tudo isso é produzido e vendido, sem a produção e a condução de veículos que viabilizem sua distribuição, a internet não poderia sequer existir. Nas plataformas digitais, os algoritmos, concebidos pelas corporações globais para controlar tempos, ritmos e movimentos de todas as atividades laborativas, foram o ingrediente que faltava para, sob uma falsa aparência de autonomia, impulsionar, comandar e induzir modalidades intensas de extração do sobretrabalho, nas quais as jornadas de 14 (ou mais) horas de trabalho estão longe de ser a exceção.]

1. O nosso mundo (nosso?) é mesmo muito estranho. Por isso não é possível deixar de recordar aqui a obra prima de Ciro Alegría, Ancho e lejano es el mundo, menos pelo seu conteúdo (um mergulho profundo no mundo indígena e amazônico latinoamericano), mas dele me recordo pela força e atualidade da metáfora presente em seu título.

É mesmo muito esquisito esse mundo. No ano passado, por exemplo, para voltarmos bem pouco no tempo, tudo parecia seguir uma normalidade lépida, faceira e ligeira. Veloz como um bólido, mas cambaleante como um bêbado. A diferença abissal entre ricos e pobres seguia seu curso “natural”, na bonança (coisa do passado) e nas crises, estas últimas convertidas em um verdadeiro depressed continuum, para recordar István Mészáros.

Assim, o desenfreado relógio da tecnologia continuava – para fazer uma remissão à insuperável metáfora de Karl Polanyi – turbinado como o “moinho satânico”. Plasmada dominantemente pelos movimentos dos mercados e das corporações, a tecnologia de nosso tempo continuava conectada, sempre on line. Sem direito à desconexão. Que a devastação da natureza seguisse seu curso impiedoso e letal, que a destruição do trabalho fizesse explodir bolsões de miséria e pobreza em quase todos os cantos do mundo, era uma consequência inevitável do espírito do tempo. Afinal, a compensação se encontrava no regozijo dos novos barões globais.

E foi desse modo que o mundo maquínico-informacional-digital não descansou, impelido pelo capital financeiro, o mais asséptico de todos, aquele cujo mister é sempre fazer mais dinheiro, como já disse um dia alguém.

Essa nova realidade “virtual” não poderia deixar de esparramar um palavrório diferenciado, um novo léxico global: gig-economy, sharing economy, platform economy, crowd sourcing, home office, home work etc. E foi assim, na mesma onda, com o virtual work, que deixou de ser espaço de reflexão dos filósofos e físicos e ganhou de vez as páginas dos jornais, revistas, internet, redes sociais, poluindo os apologéticos panfletos empresariais, repetidos ad nauseam por CEOs. Como quase tudo que se esparrama como vírus, o conteúdo parece menos importar. O que vale é ter impacto midiático.

Mas, antes de tratar contemporaneamente do trabalho virtual, é bom recordar, mesmo que sumariamente, o que é verdadeiramente substantivo: o trabalho.

  1. Desde logo é preciso dizer que o terreno é tortuoso e movediço. Um verdadeiro vale tudo. Mas, se como nos ensinou o gênio de Guimarães Rosa, “pão ou pães, é questão de opiniães”,aqui vai a nossa.

Em sua ontogênese, o trabalho nasceu e floresceu como um autêntico exercício humano, ato imprescindível para tecer, plasmar e deslanchar a vida, produção e reprodução do ser que acabava de se tornar social. E, ao assim proceder, suplantamos o último animal pré-humano. Foi por isso que György Lukács, em sua Ontologia do ser social, recorreu a Aristóteles para apresentar os dois elementos fundamentais explicativos desse novo ato humano: pensar e o produzir. Compete ao primeiro a delimitação da finalidade e dos meios para sua efetivação, sendo que ao segundo, cabe a concreção do fim pretendido, efetivar a sua realização.

Pode-se dizer, então, que os ingleses acertaram, em sua linguagem, ao conceber essa atividade humana vital para manter o metabolismo entre humanidade e natureza como work. E assim o fizeram para que se pudesse claramente diferenciar de labour, aquele outro modo de ser do trabalho que remete a sujeição, vilipêndio, tripalium e que acabou por desfigurar o trabalho, na antessala da Revolução Industrial, fazendo-o assumir uma “segunda natureza”.

O trabalho deixou de ser atividade vital para a reprodução humano-social e metamorfoseou-se, convertendo-se em força de trabalho especial, imprescindível para a criação de uma riqueza excedente que passou a ser privadamente apropriada pela nova classe oriunda dos burgos. Vê-se, então, ao menos neste caso, a clara superioridade da língua de Shakespeare: trabalho, travail, arbeit, lavoro, trabajo, nenhuma delas oferece a clareza do binômio work e labour.

E foi assim que o único meio possível de sobrevivência para as massas camponesas e urbanas pobres e despossuídas se transformou indelevelmente e tornou-se uma imposição: laborar para não desempregar.

O imbróglio não foi pequeno e mudou profundamente o modo de vida da humanidade. Isto porque aquilo que, junto com a aparição da humanidade, germinou como um valor, transfigurou-se em um desvalor (ou não-valor), para poder “livremente” criar um mais-valor. Que passou a ser apropriado privadamente por outrem. A alquimia da modernidade estava, enfim, realizada.

3. Como entender, então, contemporaneamente, o trabalho virtual?

Um primeiro ponto é ontologicamente central: se esta modalidade de trabalho não para de se expandir aqui e alhures, é bom não esquecer que nenhum smartphonetablet ou assemelhado pode sequer existir sem a interação com as atividades humanas, inclusive aquela que nos remete às cavernas: o trabalho de extração mineral, realizado nas minas chinesas, africanas ou latino-americanas.

Não há celulares, computadores, satélites, algoritmos, big data, internet das coisas, indústria 4.0, 5G, ou seja, nada do chamado mundo virtual e digital que não dependa do labor que começa nos subterrâneos, nas “sucursais do inferno”. Como pude indicar em O privilégio da servidão, no plano fílmico, essa concretude é exasperada no filme Behemoth, de Zhao Liang. Sob temperatura desertificada, os acidentes, as contaminações do corpo produtivo, as mutilações, as mortes, eis o cenário real, a protoforma que plasma o mundo virtual com suas tecnologias da informação. E aqui faço um breve depoimento pessoal: como sociólogo do trabalho, visitei, uma única vez, uma mina, em Criciúma, Santa Catarina. Tão breve quanto desci aos infernos, pedi para subir à superfície. Bastou – e me marcou para sempre – a inesquecível, forte e lúgubre experiência.

Assim, uma efetiva compreensão do que é contemporaneamente o trabalho virtual nos obriga a romper, desde logo, um duplo limite, que oblitera seus sentidos e significados. O primeiro diz respeito ao forte traço eurocêntrico que frequentemente “esquece” que a maior parte da força global de trabalho está fora dos países do Norte. Esta se encontra pesadamente nos países do Sul, nas periferias globais, como China, Índia (e outros países asiáticos), além da África (África do Sul) e América Latina (Brasil, México). Estes países têm enorme força de trabalho, o que desde logo obsta qualquer formulação “generalizante” acerca dos significados do trabalho, quando a dita cuja se restringe estritamente ao Norte e exclui o Sul.

O segundo limite é, em alguma medida, consequência do anterior. Dada a complexidade atingida nas últimas décadas pela divisão internacional do trabalho, com a consequente expansão das novas cadeias produtivas de valor, há uma imbricação indissolúvel entre as chamadas atividades intelectuais e aquelas ditas manuais (sabemos, por certo, do enorme limite destas definições rígidas). Ou, nas palavras da qualificada socióloga do trabalho Ursula Huws, entre as atividades de “criação” e aquelas mais “rotineiras”2, que se ampliam no universo do trabalho virtual, online, com suas ferramentas de comando digital, softwares etc. e que cada vez mais se inserem nos processos produtivos fabris, agronegócios, nos escritórios, serviços, comércio etc3.

Mas é imperioso enfatizar, uma vez mais, que tais atividades sequer poderiam existir sem a produção de mercadorias que se originam em espaços como as sweatshops da China ou outros espaços produtivos do Sul4. Na síntese de Ursula Huws: sem a produção de energia, cabos, computadores, celulares e tantos outros produtos materiais; sem o fornecimento das matérias-primas; sem o lançamento de satélites espaciais para carregar os sinais; sem a construção de edifícios onde tudo isso é produzido e vendido, sem a produção e a condução de veículos que viabilizem sua distribuição, sem toda essa infraestrutura material, a internet não poderia sequer existir e menos ainda ser conectada5.

Recentemente, nas plataformas digitais essa realidade vem se exacerbando ao limite. Os algoritmos, concebidos e desenhados pelas corporações globais para controlar os tempos, ritmos e movimentos de todas as atividades laborativas, foram o ingrediente que faltava para, sob uma falsa aparência de autonomia, impulsionar, comandar e induzir modalidades intensas de extração do sobretrabalho, nas quais as jornadas de 12, 14 ou mais horas de trabalho estão longe de ser a exceção. O curioso mundo virtual algorítmico, então, convive muito bem com um trágico mundo real, onde a predação ilimitada do corpo produtivo do trabalho regride à fase pretérita do capitalismo, quando ele deslanchava sua “acumulação primitiva” com base no binômio exploração espoliação, ambos ilimitados6.

Assim, ao contrário de um imaginário mundo do trabalho virtual, ascético, limpo, paradisíaco, dadas as clivagens e diferenciações presentes na desigual divisão internacional do trabalho, estamos presenciando, simultaneamente, tanto a expansão do trabalho virtual quanto a ampliação do trabalho manual, visto que as primeiras dependem indelevelmente de uma infinitude de ações humanas que se desenvolvem no mundo coisal, objetivo, material.

Portanto, uma efetiva compreensão do significado real do trabalho virtual não pode obliterar e “apagar” estes traços centrais acima indicados, que tornaram o mundo do capital de nosso tempo um complexo emaranhado, que se encontra encalacrado até o pescoço. E que a pandemia exasperou e desnudou.

* Publicado originalmente na revista Com Ciência.

Reforma de impostos de Guedes é injusta, ineficiente e selvagem, por Vinícius Torres Freire.

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Com CPMF, reforma do governo aumenta injustiça e ineficiência tributária no país

“Poucas ideias são tão ruins que não podem ser pioradas. Infelizmente, o sistema tributário brasileiro não é exceção à regra… Uma prova disso é a constante ameaça do retorno da famosa… CPMF”, escreveu Adolfo Sachsida em um livro de 2017. Sachsida é ora secretário de Política Econômica do Ministério da Economia de Paulo Guedes.

A esse respeito, muita gente está de acordo com o secretário, este jornalista inclusive. Guedes quer substituir um imposto ruim e decadente, a contribuição patronal para o INSS, por um ainda pior, a CPMF ou equivalente. Se conseguir, vai aumentar a confusão, as distorções e várias iniquidades da tributação no Brasil.

Um modo de acabar com o imposto sobre folha de salários é tributar mais a renda, de preferência a dos mais ricos (ou o consumo, alternativa pior). Tributar mais os rendimentos maiores é também um modo de pegar os lucros da “economia digital”, que têm escapado dos fiscos do mundo inteiro.

Guedes não quer bulir com o IR. Pretende comer a renda de modo insidioso, com uma CPMF, imposto menos visível e que trata ricos e pobres da mesma maneira.

A ideia do ministro é arrumar R$ 120 bilhões a fim de reduzir o que as empresas pagam para o INSS. Acabaria o imposto sobre remunerações de um salário mínimo ou menos; a contribuição sobre salários maiores diminuiria. Uma conta de guardanapo indica que, de fato, esse dinheiro seria bastante para reduzir a alíquota do INSS de 20% para uns 11% (para salários maiores que um mínimo), tudo mais constante.

Guedes acha que arrecadaria esses R$ 120 bilhões com uma alíquota de 0,4% para sua CPMF misteriosa. Quando a CPMF era de 0,38% (de 2002 a 2007), a receita era regularmente 1,35% do PIB, atualmente uns R$ 94 bilhões. Mas passemos, pois ninguém sabe o que é essa CPMF do ministro e a economia mudou em 13 anos.

Uma CPMF ou coisa que o valha vai pesar mais sobre indústria e agricultura, menos sobre serviços. Impostos sobre a folha de salários, como a contribuição patronal para o INSS, pesam mais, claro, sobre setores que gastam relativamente mais com mão de obra e menos com capital.

Mas ao fim e ao cabo, impostos sobre transações financeiras são selvagens, em nada relacionados a um critério econômico razoável. Uma cadeia de produção longa e movimentação financeira relativamente grande levarão uma empresa a “pagar” mais (na verdade, a recolher mais imposto, repassando a conta para o cliente).

A CPMF tende a aumentar a iniquidade social e econômica da tributação. Um grande princípio da reforma tributária seria justamente uniformizar o quanto possível os impostos que cada setor ou empresa têm de recolher. Outro motivo da reforma é acabar com a cumulatividade (o imposto em cascata, que fica mais pesado quanto mais “fases” a produção de um bem ou serviço envolver). A CPMF é cumulativa.

Além do mais, uma CPMF de 0,4% é uma enormidade em ambiente de taxas de juros baixas. Logo, vai criar tumulto e custo também no mercado financeiro.

A redução dos encargos sobre a folha vai ajudar a criar empregos? Não há evidências. Talvez facilite formalização e contratações quando e se a economia estiver crescendo. Impostos menores sobre o emprego podem ser um coadjuvante da melhoria do mercado de trabalho, mas não o motivo.

Deputados relevantes ainda dizem que a CPMF não passa ou que pode atrasar a reforma tributária. Que o país esteja discutindo tal coisa é outro sucesso da selvageria iníqua e ignara que move o governo de Jair Bolsonaro.​

Vinicius Torres Freire

Jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administração pública pela Universidade Harvard (EUA).

Reforçando o SUS

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Sistema deve ser mais funcional e eficiente para cumprir missão constitucional 

Arminio Fraga

Sócio da Gávea Investimentos, membro do Conselho Consultivo da StoneCo e Fundador do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde

Miguel Lago

É diretor-executivo do IEPS

Rudi Rocha

É diretor de pesquisa do IEPS e professor da FGV-Eaesp

A pandemia trouxe a importância dos sistemas públicos de saúde para o centro do debate. Ao longo dos últimos 30 anos, o Brasil construiu um dos maiores sistemas universais do mundo, com notáveis resultados em várias áreas, a despeito da escassez de recursos e da enorme desigualdade regional e social. No entanto, claramente restam ainda imensas carências, com consequências humanas dramáticas.

Há exatamente um ano lançamos o IEPS, organização apartidária e sem fins lucrativos, que tem por objetivo estudar, avaliar e sugerir melhorias em políticas para a saúde do país. Nesse espírito, apresentamos aqui algumas ideias que poderiam nortear uma agenda de reformas para fortalecer o SUS.

O tema é polêmico. Para alguns, o SUS carece de mais recursos. Para outros falta gestão, tecnologia e capital privado. O setor vive um estado permanente de embate. O quadro fiscal do Brasil é desfavorável. Gasta-se muito, mas nem sempre priorizando bem. Nossa visão é que o Estado gasta pouco com a saúde, e há de fato muito espaço para avanços nas outras frentes citadas. Vejamos por quê.

Países com sistemas de saúde universais e públicos tendem a investir significativamente mais do que o Brasil. Enquanto dedicamos menos de 4% do PIB ao SUS, o Reino Unido investe cerca de 8% do seu bem mais elevado PIB per capita no National Health Service (NHS). O subfinanciamento crônico se reflete em filas que estampam as capas de jornais e tempo de espera inaceitável para exames e cirurgias.

O primeiro estudo institucional do IEPS sugere que nos próximos dez anos o governo precisará aumentar significativamente os aportes ao SUS.

Em função dos imensos desafios que o país enfrenta na área fiscal, essa demanda terá que ser atendida gradualmente, como parte de um esforço maior de revisão das prioridades do gasto público.

Sistemas de saúde têm em essência duas características fundamentais: a repartição de riscos entre as pessoas e um desenho onde os mais ricos subsidiam os mais pobres. No Brasil, a recuperação da função distributiva passa por aumentar os aportes ao SUS e eliminar subsídios regressivos.

Apesar de o SUS oferecer serviços gratuitos a toda a população, o gasto privado com saúde segue maior que o gasto público. O setor que atende 22% dos brasileiros por meio de planos de saúde privados e gastos pessoais é responsável por 58% do gasto total com saúde no país.

Sem dúvida saltam aos olhos subsídios tributários dados pelo governo federal a gastos provados, que representam cerca de um terço do gasto federal com saúde (uns 0,6% do PIB). Adicionalmente, seria possível obter alguma receita com a introdução de tributos saudáveis sobre açúcar e ultraprocessados, como já se faz com álcool e tabaco.

Entendemos que o simples aporte incremental de recursos, embora urgente, não é suficiente. Precisa ser complementado por ganhos de eficiência.

Um primeiro passo seria coordenar melhor a atuação dos estados e municípios, de fato transformando a atenção básica na principal porta de entrada e vetor organizador do fluxo de pacientes dentro do sistema.

Para assegurar que essa integração seja bem-sucedida, é preciso implementar mudanças na organização regional do sistema. Um número muito grande de municípios não tem escala para ter seus próprios hospitais. Cabe desenvolver regiões de saúde dotadas de uma escala capaz de racionalizar a prestação dos serviços. Todo esforço institucional no sentido de promover mais regionalização deve ser encorajado.

Uma segunda área a explorar seria o aperfeiçoamento da colaboração com a iniciativa privada. Quando bem regulada, e com incentivos bem alinhados via contratos transparentes, pode ser uma aliada importante na busca por maior escala e eficiência.

O desempenho das organizações sociais da saúde Brasil afora é muito heterogêneo e precisa ser estudado para que se possa separar o joio do trigo. A falta de transparência de informações impede que tal avaliação seja feita com a profundidade adequada.

No entanto, a limitada evidência existente sugere que há muito espaço para melhorias no sistema. Em última instância, trata-se de um desafio de governança e gestão.

Para acelerar todas essas mudanças, será necessário um choque tecnológico. Destacam-se a criação de um prontuário eletrônico unificado por paciente e o uso da telemedicina pelas equipes de atenção básica em todo o território nacional, conectando-as com especialistas, aumentando sua resolutividade e suprindo assim as lacunas na oferta de médicos e profissionais de saúde que existem em muitas regiões do país. Há muito a se fazer nessa área, muito espaço para saltos de qualidade.

Outro tema relevante é a crescente judicialização da saúde observada no Brasil. Verdade que os processos de judicialização garantem a realização do direito constitucional à saúde, algo inquestionável. No entanto, a experiência internacional demonstra que, mesmo em países mais avançados, diante da finitude dos recursos orçamentários existentes, urge encarar o difícil desafio da priorização dos gastos com saúde.

Cabe reconfigurar a Conitec, transformando essa comissão interministerial em uma agência independente —nos moldes do NICE no Reino Unido— que determine com clareza o rol de procedimentos cobertos pelo SUS, bem como a incorporação de novas tecnologias.

Assim, litígios judiciais seriam reduzidos progressivamente, sobretudo os movidos por demandas nem sempre vinculadas a procedimentos efetivos e seguros para os pacientes.

Por fim, cabe adotar uma abordagem transversal de promoção de saúde em todas as políticas públicas (alimentação, urbanismo, ambiente, educação, cultura), pois será por meio delas que poderemos ter uma população cada vez mais saudável.

Um sistema de saúde que se propõe a cuidar de toda a população precisa estar mais bem preparado, funcional e eficiente para cumprir com sua missão constitucional. Os muitos que sofrem precisam de nossa pressa no reforço ao SUS.

Arminio Fraga

Sócio da Gávea Investimentos, é presidente do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS).

‘A crise econômica será severa e prolongada’, diz Monica De Bolle

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Professora da Johns Hopkins afirma que é necessário estender incentivos do governo a empresas e cidadãos

Entrevista com Monica Baumgarten De Bolle

Fernando Scheller, O Estado de S.Paulo – 27/09/2020

A economista Monica Baumgarten De Boile mergulha em Ruptura – primeiro livro da série A Pilha de Areia, que analisa os efeitos econômicos da pandemia de covid-19 – nas primeiras reações à crise trazida pela emergência sanitária global. Na obra, Monica defende que é preciso romper com padrões estabelecidos de estratégia econômica – como o teto de gastos públicos no Brasil – para responder aos desafios trazidos pelo coronavírus.

A economista deixa claro que a crise de saúde terá efeitos de prazo muito mais longo do que governos e empresas parecem projetar hoje. Para ela, o auxílio emergencial, que foi prorrogado até dezembro, terá de ser estendido novamente, uma vez que está claro que o emprego e a renda não vão se recompor inteiramente até janeiro de 2021.

“A crise será muito severa e prolongada. É curioso, porque essas noções não foram completamente absorvidas. Já se entendeu que é uma questão severa. O que não aconteceu, pelas projeções que se faz para a economia de 2021, é as pessoas se darem conta de que o processo (de recuperação) será muito prolongado e lento”, disse ela, em entrevista ao Estadão.

Especialmente no Brasil, falta uma visão mais multidisciplinar da análise econômica?

Isso é particularmente marcante na macroeconomia. A microeconomia avançou mais. Juntou-se com a psicologia comportamental para explicar como pessoas fazem escolhas. Num modelo tradicional, as decisões são vistas como racionais, e a gente sabe que não é assim. Na parte aplicada, a microeconomia soube incorporar até técnicas biomédicas para fazer estudos randomizados e testar a efetividade de políticas públicas.

E a macroeconomia?

A macroeconomia é outra história. De muitas formas, parou no tempo. A economia nasceu da filosofia moral, depois virou economia política. Só após os anos 1950 que a economia foi tendo esse caráter mais tecnocrata. E virou um negócio de modelagem, análise quantitativa. O macroeconomista deve ter um olhar abrangente, saber que instituições, política e cultura afetam (a economia).

E como isso fica evidente?

Ficou mais claro depois da crise de 2008. E, agora, mais ainda: porque a pandemia é um desafio muito maior do que o de 2008. Acho que há um atraso completo na macroeconomia. E a ruptura trazida pela pandemia deveria ser uma oportunidade para mudar isso.

Essa limitação de visão atrapalhou a previsão da crise?

Essa foi uma das motivações para meu canal no YouTube: como é que os economistas não estavam conseguindo enxergar a crise? Isso deixou muito visível a limitação a um molde de pensamento. Sempre tive um background na área biomédica, e estou estudando de novo, e ficou muito claro que a gente estava enfrentando uma coisa inédita, para a qual a economia não tinha boas respostas. Entendi também que (a crise) será muito severa e prolongada. É curioso, porque essas noções não foram completamente absorvidas. Já se entendeu que é uma questão severa. O que eu acho que não aconteceu, pelas projeções que se faz para a economia de 2021, é as pessoas se darem conta de que o processo (de recuperação) será muito prolongado e lento.

Sua série de livros trabalha com o tema ‘A Pilha de Areia’. Como se explica o conceito?

Quando você faz um castelo de areia, de uma coisa você tem certeza: em algum momento, ela vai desmoronar. Esse desmoronamento pode acontecer muito rapidamente ou demorar muito. Pensando nas pandemias, em termos da pilha de areia: a gente tinha certeza absoluta de que uma pandemia viria. Era dado, já tínhamos tido algumas – a última foi a de H1N1, em 2009. Aquela, em termos de pilha de areia, foi um desmoronamento pequeno e relativamente rápido. Na grande pandemia de 1918, foi exatamente o contrário: todo mundo achava que a influenza era uma gripe – os cientistas não entendiam como tanta gente estava morrendo. O tamanho e intensidade daquilo foi um choque para o mundo. Então, a gente tem de estar sempre preparado – e foi o grande erro do mundo todo, que ficou anestesiado com a H1N1, de 2009.

Isso atrapalhou a resposta econômica do Brasil à pandemia?

Acho que a gente conseguiu dar alguma resposta, ainda que muito insuficiente. A gente está deixando muita empresa de porte menor falir. Isso vai ter consequências graves para o emprego e para a eficiência dos mercados, porque você vai gerar uma concentração enorme em determinados setores. Isso se resolveria com política de crédito público.

O BNDES deve ser mais ativo?

O BNDES está em uma prisão ideológica. A TLP é uma excelente taxa de referência para o BNDES, mas é ruim em um momento de crise porque tem uma parte pós-fixada. As empresas ficam sem saber quanto vão pagar de juros. Isso seria facilmente corrigido se o BNDES também emprestasse às taxas do Tesouro. Não precisa colocar subsídio nenhum. O que as empresas pedem é uma taxa prefixada. A única explicação (para a estratégia atual) é: ‘nós não vamos fazer o que a Dilma fez’. Mas não convence.

E a distribuição de renda, deve ser mais generosa e longa?

Principalmente, mais longa. (O auxílio emergencial) não ficou tão bom quanto poderia ter ficado, mas ajudou, apesar de muito problema de execução e fraude. Agora, o desafio que está colocado é o seguinte: o benefício foi reduzido e estendido até dezembro. Só que tem o precipício, porque a gente sabe que a pandemia ainda está descontrolada e as pessoas não vão achar emprego até o fim do ano. E a situação da economia em janeiro vai ser de penúria. Então, alguma coisa a mais vai ter de ser feita.

 

América Latina precisa ser agressiva para transferir renda durante a pandemia: entrevista com Andrés Velasco

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Folha de São Paulo, 21/09/2020 – Saúde em Público

Pablo Peña Corrales
Miguel Lago
Fernando Falbel

A América Latina vive um momento extremamente delicado. A região é uma das mais afetadas pela pandemia da Covid-19, com mais de 320 mil mortes confirmadas, quase um terço do número total mundial. Previsões estimam que a economia encolha cerca de 10% neste ano.

Para entender esses múltiplos desafios de ordem sanitária, econômica, social e política na região, o blog Saúde em Público falou com Andrés Velasco, um dos mais influentes intelectuais latino-americanos.

Hoje reitor da escola de políticas públicas da prestigiosa London School of Economics, Velasco foi ministro da Fazenda do Chile (2006-2010, no primeiro governo de Michelle Bachelet) e é pré-candidato à Presidência do país.

*Antes da pandemia do novo coronavírus, a saúde já era uma das grandes preocupações da América Latina. Dos protestos brasileiros em 2013 às manifestações chilenas em 2019, a saúde também tem sido uma demanda frequente. Por que os latino-americanos parecem tão insatisfeitos com seus sistemas de saúde? Sem dúvida, muitas pessoas estão insatisfeitas, e isso não é surpreendente por vários motivos.

Em primeiro lugar, muitos sistemas na região deixam muito a desejar.

Em segundo lugar, se há algo que sabemos sobre as tendências de médio prazo da economia e da sociedade, é que os tratamentos médicos estão se tornando mais caros.

Quando um país é muito pobre, as pessoas morrem de diarreia. Isso pode ser corrigido com gastos públicos limitados. Quando o país eleva seus padrões e as pessoas morrem de câncer, ataques cardíacos ou similares, é mais caro tratar, requer maior infraestrutura, maior nível de sofisticação, maior cobertura, e, nessa dimensão, todos os nossos sistemas ficam aquém.

Terceiro, a saúde é muito difícil de reformar. [O ex-presidente dos Estados Unidos Bill] Clinton, que falhou na tentativa, sabe muito bem disso; [Barack] Obama, que conseguiu fazê-lo —embora com dificuldades que ainda não foram completamente superadas, em parte porque não existe uma receita óbvia e compartilhada—, também o sabe.

Agora, não sejamos unanimemente pessimistas. Nos principais países da região, como Uruguai ou Chile, a expectativa de vida ao nascer é próxima à dos países desenvolvidos, embora gastando cerca de um terço ou um quarto per capita.

Portanto, há algo a partir do qual se pode construir, mas ainda há muito a ser feito. Nos países menos desenvolvidos, alguns da região andina, outros da América Central ou do Caribe, praticamente tudo está por fazer, tanto em termos de cobertura quanto de qualidade.

Especialistas como Ezekiel Emanuel, da Universidade da Pensilvânia, afirmam que muitas vezes exageramos o impacto dos tratamentos médicos sobre a saúde e argumentam que os resultados de saúde são explicados principalmente por fatores exógenos, como pobreza, alimentação ou desigualdade. O sr. acha que falta uma visão ampla da saúde na América Latina? Provavelmente, sim. Existe uma correlação evidente entre a pobreza e o impacto de certos choques, conforme evidenciado pela Covid. E isso não é um problema apenas na América Latina.

No Reino Unido, a taxa de mortalidade entre minorias étnicas é três vezes a taxa de mortalidade do resto da população. No entanto, esse não é um argumento para não melhorar os sistemas de saúde, mas sim para melhorá-los e também avançar em outras direções.

Mas, como governar é priorizar, e não há país que possa fazer tudo ao mesmo tempo, você tem que se perguntar onde estão as prioridades e onde estão os recursos. Desse ponto de vista, melhorar a saúde é provavelmente algo que pode ser alcançado em um prazo mais próximo do que abolir a pobreza ou acabar com a desigualdade.

Em alguns países, como México e Brasil, mais do que se esconderem atrás de especialistas, os líderes políticos parecem ignorá-los por completo. O que os líderes regionais, os cidadãos e a sociedade civil podem fazer para influenciar a resposta nacional? Espero que a sociedade, nas próximas eleições, leve em consideração o desempenho desastroso, catastrófico e patético de alguns desses líderes populistas que não acreditam na ciência.

Expressar um certo ceticismo sobre a sabedoria científica, que é o que acabei de fazer, parece-me inevitável. Mas ir ao extremo de sustentar, como disse o presidente do Brasil, que o vírus foi uma invenção da imprensa para prejudicá-lo, ou ao ponto de fazer como fez o presidente do México, que continua organizando atividades políticas nas quais aperta as mãos e abraça seus correligionários porque é muito macho e o vírus não atinge os machos, é um ato de irresponsabilidade brutal que seria tragicômico se não tivesse provavelmente custado milhares ou dezenas de milhares de mortes.

E o mecanismo que temos nas democracias para punir aqueles que se comportam de forma irresponsável é negar-lhes o voto da próxima vez.

Como a economia da América Latina será afetada? Acho que a crise econômica vai se traduzir em um agravamento de muitas coisas na América Latina. Falemos em termos quantitativos. Em quase todos os países da América Latina, salvo raras exceções, o PIB vai se contrair em 10%, um pouco mais ou um pouco menos, neste ano.

Com isso, esta será a maior crise da América Latina: para alguns países, desde os anos 1980, e, para outros, provavelmente desde a Grande Depressão. É verdade que esperamos um crescimento positivo no próximo ano, mas não podemos esquecer que é um crescimento a partir de um ponto muito inferior.

Portanto, a questão é quanto tempo levará para as economias produzirem a mesma coisa que produziram, digamos, em dezembro do ano passado. E suspeito que esse tempo não será de um ano. Serão dois anos ou mais.

Ademais, essa crise chega em um momento de muitas mudanças tecnológicas. Isso favorece quem tem alto capital humano, porque pode usá-lo em todo o mundo, mas é muito ruim para quem não o tem e precisa ir trabalhar em um restaurante e lavar a louça.

Além disso, alguns empregadores perceberam com esta crise que há coisas que podem ser feitas remotamente ou mesmo que as máquinas podem fazer, e, portanto, não seria surpreendente se, juntamente com a contração cíclica do emprego, houvesse uma contração estrutural do emprego.

Sou economista e otimista e acho que, quando a economia destrói empregos, também cria empregos a longo prazo. O problema é que ambos não acontecem ao mesmo tempo. A destruição é rápida, a criação é lenta e, portanto, eu não ficaria surpreso se tivéssemos um período prolongado de dois, três, quatro anos com taxas de desemprego muito altas na região.

Por fim, essa recessão prolongada afetará muito as finanças públicas. A necessidade de outro ajuste fiscal se tornará, mais cedo ou mais tarde, aguda.

E, portanto, quando os governos têm menos dinheiro, enfim, gastam menos em muitas coisas, não seria estranho que víssemos menos dinheiro indo para a saúde.

Portanto, a combinação de todos esses fatores é catastrófica. E, desse ponto de vista, não me surpreenderia se tivéssemos alguns anos em que os indicadores de saúde na América Latina, que vêm melhorando, diminuíssem fortemente.

Quais medidas econômicas podem ajudar tanto a controlar a pandemia quanto reduzir seu impacto econômico? O economista peruano Roberto Chan sintetizou uma das chaves da pandemia com uma montagem: mostrou uma foto de um ano atrás de um dos principais mercados de Lima [capital do Peru], com a praça repleta de gente. Ele então mostrou uma foto do mesmo lugar no meio da quarentena de Lima. E o que se viu? Uma praça repleta de gente. É triste, mas não é surpreendente. Em muitos lugares de Lima não há geladeira, e mais da metade da força de trabalho é informal.

Em geral, nos países em desenvolvimento, a política econômica, a política de transferências é indissociável da política de saúde. Temos que ser muito agressivos e proativos nas políticas de transferências. Tanto por razões humanitárias, porque há pessoas que não têm o suficiente para alimentar os filhos, como também por questões de saúde, porque é a melhor forma de permitir que as pessoas fiquem em casa.

Agora, qual é a dificuldade? Obviamente, existem governos que não têm dinheiro. Há, pelo menos na América Latina, uma separação muito clara entre países com capacidade de endividamento que conseguiram emitir dívidas e receber fundos e o resto.

Peru e Chile conseguiram empréstimos sem maiores problemas. O Brasil conseguiu, mas alcançando níveis de endividamento que vêm se tornando muito perigosos. A Argentina fez isso emitindo pesos, o que em algum momento trará uma pressão inflacionária.

Há também uma dificuldade prática: quando os sistemas de seguridade social são muito primários, não há um cadastro adequado das famílias, muitas das quais não têm conta em banco. Embora o governo tenha o dinheiro, não é fácil garantir que os recursos cheguem às pessoas.

No Peru, eles tentaram levar dinheiro para as famílias, o governo tinha o dinheiro, mas a única maneira de as pessoas coletarem esses recursos era ficando em uma longa fila do lado de fora de um banco.

Ora, é difícil imaginar algo mais propício ao contágio do que milhares de cidadãos amontoados na porta de um banco tentando receber um cheque ou um pagamento em dinheiro.

Concluindo, duas lições: as emergências são mais um motivo para deixar um espaço fiscal em tempos normais e precisamos regularizar e bancarizar muito mais famílias na região.

O cenário que o senhor descreve é, para dizer o mínimo, desafiador. O que recomendaria aos reformadores e líderes políticos latino-americanos que desejam melhorar a saúde em seus países Primeiro uma recomendação conceitual, depois uma recomendação tática.

O conceito é que você não deve se apegar a sistemas puros. Acho que muitas vezes na América Latina o debate sobre saúde, assim como o debate sobre a previdência, não é muito produtivo porque se discutem abstrações de mercado puro ou somente Estado, que, a bem da verdade, não existem em muitos países ou, quando existem, não funcionam muito bem.

Portanto, seria aconselhável procurar modelos híbridos adaptados às circunstâncias de cada país.

E a recomendação tática é que a saúde é uma área que precisa de reformas mais ou menos extensas. Não apenas porque é bom ser ambicioso mas porque, se o pacote de reformas for muito pequeno e incluir muito pouco, sempre haverá perdedores evidentes.

Mas,0 quando se mudam várias coisas ao mesmo tempo, é possível que, se um grupo perder aqui, ganhará ali, e isso permite fazer compensações que facilitam a viabilidade política dessa reforma.

Andrés Velasco é formado em economia e filosofia na Universidade Yale e doutor em economia pela Universidade Columbia, é reitor da escola de políticas públicas da London School of Economics; foi ministro da Fazenda do Chile (março de 2006 a março de 2010, no primeiro governo de Michelle Bachelet)