Economia Comportamental

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As transformações econômicas são gigantescas na sociedade contemporânea, as estruturas produtivas estão se alterando rapidamente, os modelos de negócios estão passando por grandes alterações, o mundo do trabalho está em forte modificação, a riqueza vem sendo transformada, anteriormente, as riquezas eram tangíveis e, na atualidade, as riquezas são intangíveis, com isso, percebemos novos campos de estudo na economia e de reflexões sociais, surgindo a economia comportamental, com novos desafios, novas perspectivas e novas oportunidades de reflexão sobre o pensamento econômico.

Neste momento de novas reflexões, percebemos que alguns pressupostos centrais da ciência econômica estão perdendo espaço e sendo questionados abertamente, gerando constrangimentos e novas formas de refletir sobre as realidades econômicas da contemporaneidade. O homem econômico, anteriormente era visto como o agente dotado de grande racionalidade, que era visto como a base da maioria das teorias econômicas clássicas e que defendiam a tese de que o comportamento dos indivíduos era constantemente racional e automático, advogando que as escolhas dos seres humanos eram sempre racionais. Neste momento, está surgindo novos instrumentos de reflexão teórica e novas formas de tomada de decisão. Com o passar do tempo, essa visão perdeu força e vem perdendo espaço nas discussões econômicas, gerando novos constrangimentos, novas discussões, novos horizontes e novas inquietações.

O princípio da racionalidade econômica é baseado no sentido de que os indivíduos se comportam de maneira sempre racional e consideram opções e decisões dentro de estruturas lógicas de pensamento, em oposição a envolver elementos emocionais, morais ou psicológicos. A maioria das teorias econômicas clássicas é baseada na suposição de que todos os indivíduos que participam de uma atividade estão se comportando racionalmente. Este pensamento contribuiu para que a ciência econômica se afastou do pensamento social e gerou um sistema baseado em cálculo matemático, com equações de grande compreensão e modelos sociais distantes na realidade prática.

Nos anos 1950, alguns autores começaram a refletir sobre a interação entre o campo da economia e do campo da psicologia, até então estas duas ciências pouco se relacionavam, a primeira sempre muito matemática, a segunda, baseada no experimental. Posteriormente, alguns teóricos passaram a flertar com essas disciplinas buscando criar modelos mais realistas de como os indivíduos tomavam decisões econômicas. Destas reflexões teóricas, destacamos autores como Richard Thaler e Daniel Kahneman, que publicaram trabalhos explorando as anomalias das teorias econômicas convencionais. A economia comportamental nasce para responder essas situações não explicadas através do método experimental, garantindo a estes autores o prêmio Nobel da Economia.

Seus pesquisadores partem de uma crítica à abordagem econômica tradicional, apoiada na concepção do “homo economicus” que é descrito como um tomador de decisão racional, ponderado, centrado no interesse pessoal e com capacidade ilimitada de processar informações. A economia tradicional considera que o mercado ou o próprio processo de evolução são capazes de solucionar erros de decisão provenientes de uma racionalidade limitada, com isso, percebemos a fé cega nos mercados como agentes de organização social.

Em contraposição a essa visão tradicional, a Economia Comportamental sugere que a realidade é diferente: As pessoas decidem com base em hábitos, experiência pessoal e regras práticas simplificadas. Aceitam soluções apenas satisfatórias, buscam rapidez no processo decisório, tem dificuldade em equilibrar interesses de curto e longo prazo e são fortemente influenciadas por fatores emocionais e pelo comportamento dos outros.

As novas ideias trazem novos horizontes para a ciência econômica, recolocando os seres humanos no centro das questões mais relevantes, mostrando que por trás dos cálculos econômicos existem indivíduos, com vontades, desejos e necessidades.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Comportamental, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 05/10/2022.

Bem-aventurados os perseguidos, por Juliano Spyer.

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Igrejas evangélicas estão sendo cúmplices de perseguição religiosa e política e de assediar moralmente seus fiéis?

Juliano Spyer, Antropólogo, pesquisador do Cecons/UFRJ, autor de Povo de Deus (Geração 2020) e criador do Observatório Evangélico.

Folha de São Paulo, 29/09/2022.

Quando pensamos em perseguição religiosa, vem à mente a imagem de uma religião reprimindo representantes de outra. Nesta eleição, essa atitude foi superada: líderes e fiéis atacam, humilham e perseguem seus próprios irmãos e irmãs em Cristo.

O motivo da perseguição não é a igreja ter abandonado a posição de neutralidade para fazer política. Nem é o fato de líderes evangélicos terem abraçado a candidatura do presidente Bolsonaro e, por isso, usarem o espaço das igrejas para fazer propaganda eleitoral. O problema está em atacar e demonizar quem pensa diferente.

O pastor Nilson Gomes, da Assembleia de Deus, resumiu a indignação do evangélico que rejeita a bolsonarização das igrejas. Em uma pregação de 2019 que viralizou na internet, ele diz: “Eu sei [que] a Igreja tem sua vocação política. Eu não sou contra… Não quero nem saber em quem você votou. O voto é secreto, é livre e democrático. E você exerceu a sua obrigação e o seu direito de cidadão. Não é disso que eu estou falando, mas eu não posso me calar. E eu não vou me calar com pastores e igrejas que, para apoiar candidato, fazem arminha com a mão.”

É tragirônico uma igreja que se diz perseguida perseguir e tornar um inferno a vida de alguns de seus pastores e fiéis. De um lado, pregam o medo da “ameaça comunista” e, do outro, praticam a mesma perseguição ideológica de regimes totalitários.

Repreendido por participar de uma reunião de pastores com Lula, o pastor batista Sérgio Dusilek escreveu: “Não contaminei o espaço religioso: o templo. Não profanei o sagrado: o culto. Tampouco violei a consciência de qualquer congregação. Estava em um clube, em um evento político, com cidadãos e cidadãs de variados matizes de fé e ideologias… [Entretanto,] os batistas permitiram acenos ao espectro político mais à direita, tolerando inclusive a fala presidencial em assembleia. Tampouco condenaram o apoio de líderes denominacionais a candidatos.”

Neste domingo (25), no culto de posse do pastor batista Deividson Brito, transmitido pela internet, a igreja exibiu mensagem do presidente Bolsonaro. A Convenção Batista se manifestará como fez em relação ao pastor que declarou apoio a Lula?

A maneira como pastores e fiéis vêm sendo repreendidos, perdem seus cargos ou são cancelados e expulsos, a partir de decisões internas, sem prestar contas a suas comunidades, avisa como a dissidência é tratada.

É tragirônico também que essa nova inquisição esteja partindo de igrejas protestantes. Foram elas que lutaram e sofreram perseguições pela defesa da liberdade de culto, de expressão e de consciência. A ideia do estado laico é produto do ativismo protestante, para que estado e igreja existam separadamente e para que todas as formas de crer (e de não crer) tenham espaço.

Quantos fiéis vivem com medo e vergonha em suas igrejas porque não querem votar em Bolsonaro? O que temos de dados é o crescimento de número de desigrejados especialmente entre os jovens, e os casos conhecidos de pastores afastados de suas funções. Entre eles, Ed Rene Kivitz, Odja Barros, Sérgio Dusilek, Edson Nunes, Tiago Arrais e Alan Gentil. É a ponta visível desse iceberg.

A pressão nas igrejas aumenta na medida em que metade dos eleitores evangélicos não pretende votar em Bolsonaro no primeiro turno. Sair da igreja é uma decisão cara e dolorosa para o crente comum. Ficar na igreja também pode ser traumático: viver escondido, silenciado, eventualmente perder cargos e ser excluído do convívio social dentro de suas comunidades de fé. Além de ouvir que você será punido por supostamente contrariar a vontade de Deus. Não é pouca coisa para alguém que crê.

Por isso, o ambiente das igrejas dominadas pelo bolsonarismo lembra o de empresas que acobertam atos de assédio sexual. A vítima muitas vezes silencia porque tem medo de sofrer retaliações e de ser estigmatizada.

Me pergunto, então, em que medida, juridicamente, igrejas – que deveriam oferecer acolhimento – estão sendo cúmplices de perseguição ideológica e religiosa, e de assediar moralmente e provocar problemas de saúde mental em uma parte dos fieis?

A proposta do Emprego Digno Garantido, por Ladislau Dowbor.

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Nova bandeira de luta, em tempos de crise: livro de Pavlina Tcherneva demonstra que Estados podem assegurar trabalho com direitos a todos os que o desejem. Garante renda e pertencimento social. Economiza recursos e esforço administrativo

Ladislau Dowbor – Outras Palavras – 03/08/2022

É perfeitamente possível assegurar uma sociedade com garantia de emprego. O setor privado empresarial constitui uma ótima fonte, e dominante, e o emprego público complementa. Mas lembremos que no caso do Brasil temos apenas 33 milhões de empregos formais privados, e 11 milhões de emprego público, o que nos deixa longe dos 106 milhões da nossa força de trabalho. Somando os 40 milhões do setor informal, que ganham em média a metade do que ganham os empregados do setor formal, os 15 milhões de desemprego aberto e os 6 milhões de desalentados, temos algo como 60 milhões de pessoas mal inseridas em atividades produtivas, o que significa um gigantesco desperdício de potencial produtivo. Segundo a ideologia primitiva que domina, devemos restringir o emprego público, e aguardar que os mercados resolvam. É a ideologia da austeridade, apoiada na narrativa da responsabilidade fiscal e de concentração de renda e riqueza. O problema não é as pessoas não terem vontade de trabalhar, e sim de não terem oportunidades.

O estudo de Pavlina Tcherneva, centrado nos Estados Unidos, mas sem dúvida cheio de lições para qualquer economia, foca precisamente como o governo pode assegurar uma garantia de emprego para todos os adultos, absorvendo, de maneira contracíclica, as flutuações de desemprego no setor privado, com pagamento do piso salarial. O financiamento viria do orçamento federal, mas a gestão se daria no nível local, nos Estados e municípios, apoiando-se inclusive nas organizações da sociedade civil, comunidades organizadas. A ideia geral é que como o desemprego e a subutilização do trabalho representam custos humanos e econômicos muito elevados, assegurar trabalho remunerado constitui uma opção de win-win: no balanço de custos e benefícios, a sociedade ganha em produtividade, em estabilidade social, e em equilíbrios financeiros, inclusive das contas públicas.

Não se trata de tiros no escuro. A Índia, com o National Rural Employment Guarantee Act (NREGA), garante um mínimo de 100 dias de trabalho pago por família por ano, um programa que atinge uma grande massa de subempregados rurais, mas hoje se expandiu para áreas urbanas. Uma das primeiras experiências foi o New Deal americano dos anos 1930, que envolveu 13 milhões de trabalhadores no quadro do Works Progress Administration, com efeito anticíclico: programas de infraestruturas urbanas nas cidades, saneamento básico, expansão de serviços básicos e outras iniciativas permitiram não só melhorar as condições de vida dos habitantes, como geraram demanda com a renda criada, o que por sua vez redinamizou o setor empresarial e o emprego privado. Celso Furtado há tempos mencionava que frente a trabalhadores parados, qualquer atividade é lucro.

A resistência a essa ideia por parte das elites é compreensível. A garantia de um emprego decente oferece aos trabalhadores uma alternativa a remunerações e condições de trabalho indignas que tanto se expandem no quadro de uma grande massa de desempregados e subutilizados, argumento particularmente forte nessa era de precariado. Como o programa é financiado com recursos públicos, o argumento utilizado é que geraria a inflação. No Brasil hoje, em nome de proteger o país da inflação, eleva-se a remuneração dos títulos públicos, essencialmente nas mãos dos 10% mais ricos (85%), e se aprofunda ainda mais a desigualdade. Na realidade, no quadro de uma ampla subutilização da capacidade e do potencial econômico do país como temos hoje (as empresas produtivas trabalham com 30% de capacidade ociosa), expandir atividades de utilidade pública que aumentam a demanda termina ampliando o nível de produção do próprio setor privado, além de contribuir com bens e serviços públicos necessários. Gera-se assim um ciclo virtuoso de ampliação de demanda, redução de desemprego e crescimento econômico.

Em termos administrativos Tcherneva traz numerosos exemplos de como as próprias estruturas de provimento de serviços sociais, inclusive todo o sistema de apoio financeiro aos desempregados, podem perfeitamente ser utilizadas para administrar o programa. De certa forma, em vez de financiar o desemprego, passa-se a financiar a garantia de emprego. As experiências já antigas no Brasil, com “frentes de trabalho”, acabaram com coronéis do Nordeste financiando açudes nas próprias fazendas, em vez de aumentar o capital do território com obras e serviços públicos. Mas numerosas iniciativas como a recuperação de praias em Santos, na “Operação Praia-limpa”, com obras de saneamento na cidade, não só tiveram custos limitados, como tornaram a cidade novamente atrativa para o turismo, dinamizando hotelaria, restaurantes e outros serviços, transformando o que foi uma operação temporária de uso dos desempregados da cidade numa fonte de empregos permanentes.

A visão de Tcherneva é que se trata de considerar o acesso ao emprego básico como um direito humano. (“to reaffirm the access to a basic job as a human right”, p.104). Mais governo? “A preocupação com o tamanho do governo tem o seu contrário. Já temos um ‘big government’, envolvendo centenas de bilhões de dólares, tempo, recursos, e esforço administrativo para lidar com os custos econômicos e sociais do desemprego, subemprego e pobreza. Como notado, o desemprego já foi custeado, possivelmente com custos multiplicados muitas vezes. A Garantia do Emprego reduziria esses custos do governo federal, enquanto também cortaria os custos de famílias, empresas e estados.” (p.101) Keynes já mencionava o absurdo de tanta gente parada com tantas coisas para fazer.

A existência de uma massa de desempregados e subempregados melhora sem dúvida a capacidade, por parte das empresas, de negociar contratações em situação desfavorável para o trabalhador, forçado a aceitar o que lhe propuserem, expandindo inclusive o trabalho informal. Uma garantia de emprego não substitui o setor empresarial privado, mas gera um contexto mais equilibrado, inclusive enriquecendo a sociedade com atividades que não interessam necessariamente ao setor privado. A autora lembra que “nos anos 1930, o programa Tree Army do Roosevelt plantou 3 bilhões de árvores, criou e reabilitou 711 parques estaduais, construiu 125 mil milhas de trilhas para caminhões, desenvolveu 800 parques estaduais novos, controlou a erosão de solo em 40 milhões de acres de solo agrícola, melhorou pastagens em terras públicas, e aumentou a população de animais. Esses projetos inspiraram uma vida nova no movimento de conservação ambiental dos Estados Unidos, antecessor do movimento de proteção climática dos nossos dias.” (p.94) Nesta era de prioridade de políticas ambientais, são ganhos em todos os níveis.

Na Índia o programa exige que as administrações municipais organizem um cadastro de projetos de utilidade social e que sejam intensivos em trabalho. No projeto mencionado de Santos, no levantamento dos desempregados da cidade, foram encontradas numerosas pessoas com curso superior, o que permitiu enquadrar grupos mais amplos, e diferenciar as atividades. Nas propostas de Tcherneva, “Os municípios em cooperação com grupos comunitários poderiam conduzir levantamentos semelhantes, catalogando as necessidades da comunidade e os recursos disponíveis ao desenhar os bancos de empregos comunitários. As organizações comunitárias, ONGs, empreendedores sociais e cooperativas podem também solicitar fundos diretamente no Ministério do Trabalho. Os financiamentos são concedidos com condições de 1) criação de oportunidades de emprego para desempregados; 2) sem efeito de substituição de trabalhadores existentes; 3) atividades realizadas úteis, medidas pelo seu impacto social e ambiental.” (p.86)

A autora faz um levantamento detalhado do custo-benefício do programa. “Assumindo uma visão conservadora sobre as economias realizadas, o impacto do programa sobre o orçamento, no cenário mais elevado, é de menos de 1,5% do PIB por ano. É plausível que ao se contar todas as reduções de gastos no setor governamental para desemprego, junto com todos os efeitos multiplicadores econômicos e sociais, o impacto orçamentário do programa seria neutro, ainda que isso não seria um critério de sucesso já que em momentos recessivos o governo normalmente precisa aumentar os gastos deficitários.” (P.79) Lembremos que no Brasil a evasão fiscal custa cerca de 7% do PIB, e que 80% do aumento da dívida pública, que atinge 90% do PIB, resulta não do uso produtivo dos recursos públicos, por exemplo com políticas sociais e financiamento de infraestruturas, mas com pagamento de juros às grandes instituições financeiras que aplicam na dívida pública. Pagamos o Estado para que transfira dinheiro para grupos financeiros, em vez de assegurar o financiamento do que a sociedade precisa.

“Um trabalhador não tem poder para dizer ‘não’ a um emprego ruim, a não ser que tenha a garantia de uma opção de um bom trabalho com pagamento decente.”(p.62) Neste sentido, um programa de garantia de emprego constituiria uma alavanca para relações de trabalho mais civilizadas. E ao dinamizar a economia no seu conjunto, gera efeitos positivos para o próprio setor empresarial privado. Tcherneva refuta radicalmente a visão ensinada nos cursos de economia, de que um desemprego básico é importante, ou “natural”, para que não haja pressões salariais ou inflação.

E traz o impacto dramático do desemprego para as famílias: “O desemprego está entre as causas da desnutrição, de crianças prejudicadas no crescimento, de problemas de saúde mental, resultados fracos na educação e no mercado de trabalho, redução de mobilidade social de esposas e de crianças. Nos Estados Unidos, as crianças sofrem a maior taxa de pobreza e 80% das crianças pobres moram numa família sem um trabalhador empregado.”(p.37)
De certa forma, ao invés de mitigar os impactos, miséria, fome, aumento de criminalidade, de prostituição e outros efeitos de adultos sem saída na vida, trata-se de enfrentar a principal causa, a ausência de um enquadramento laboral que permita tanto o acesso à renda como um sentimento de pertencimento social. Os Estados Unidos têm 4% da população mundial, mas 25% da população carcerária. Um suicídio de cada cinco é ligado ao desemprego. E mesmo nas famílias com emprego, o sentimento da permanente ameaça da destituição, de uma situação em que não poderão proteger os filhos, gera sofrimento e angústia simplesmente desnecessários.

O livro de Pavlina Tcherneva é curto, muito bem documentado, e centrado nas questões práticas: como funciona ou pode funcionar, quanto custa, como se administra, como se financia, quais os resultados já constatados em diversas experiências. Sai muito mais barato tirar os pobres da miséria do que arcar com as consequências. Se ainda por cima nos permite realizar um conjunto de atividades que clamam por braços e cabeças, temos tudo a ganhar. O livro convence.

Riscos Mundiais

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Não é uma novidade para ninguém que vivemos numa sociedade global marcada por grandes incertezas e instabilidades, dificuldades econômicas crescentes, desafios geopolíticos, conflitos militares, desigualdades sociais, degradação ambiental, crescimento da imigração e as polarizações políticas. Neste ambiente, as perspectivas são preocupantes, aumentando o individualismo, o imediatismo, a violência e a insegurança, levando muitos indivíduos e grupos sociais a pregarem medidas extremadas, respostas insatisfatórias e teses equivocadas, postergando soluções e reflexões mais estruturadas.

A economia internacional vive momentos de volatilidades, inflação crescente com impactos sobre a renda da população, taxas de juros elevadas, aumento do desemprego ou degradação das condições de trabalho, endividamento da população e o crescimento das desigualdades sociais, contribuindo para a construção de um cenário econômico com baixo crescimento e aumento da pobreza. A eclosão de uma guerra na Europa aumenta os custos energéticos, eleva os preços dos combustíveis, dificuldades econômicas para empresas e conglomerados, levando governos nacionais a nacionalizarem setores, aumentando os subsídios para impedir as asfixias dos consumidores, com isso, impedindo a bancarrota das famílias e dos setores produtivos, além de pressionarem as contas públicas, elevando o endividamento das nações com juros maiores.

Depois de uma pandemia que gerou milhões de mortos em todas as regiões do mundo, o mínimo que a sociedade mundial deveria fazer era auxiliar na reconstrução das estruturas econômicas, produtivas e sociais devastadas, reaproximando as nações, coordenando as ações necessárias e reconstruindo novos espaços de investimentos públicos e privados, além de recuperarem a educação e a saúde, setores que foram imensamente impactados. Neste momento, infelizmente, o pós-pandemia incrementou os conflitos militares, aumentando os gastos bélicos e as rivalidades entre as nações, os discursos ásperos nos encontros mundiais, os comportamentos hostis e agressivos, gerando animosidades e preocupações com a escalada de uma guerra nuclear, cujos impactos são assustadores, perturbadores e incalculáveis.

Vivemos um momento de grandes desafios e oportunidades, onde devemos destacar o aumento das desigualdades econômicas e sociais. que crassa a comunidade internacional, neste cenário um pequeno grupo de bilionários domina a grande parte das riquezas globais em detrimento de uma massa de indivíduos fragilizados e precarizados, sem empregos, sem benefícios, sem perspectivas e sem dignidades. Sem combatermos as desigualdades crescentes da sociedade contemporânea, gerados por um sistema excludente, imediatista e dominados pelos agentes financeiros, os conflitos tendem a aumentar, as desigualdades tendem a elevar, os medos tendem a crescer e a insegurança tende a aumentar.

Percebemos ainda, neste ambiente externo instável, o aumento das tensões entre as grandes potências econômicas, EUA e China, constantemente duelam verbalmente nos palcos internacionais, gerando incertezas econômicas e preocupações políticas, que impactam negativamente sobre investimentos, aumentando o protecionismo e políticas unilaterais que prejudicam o sistema econômico e produtivo mundiais, reduzindo a oferta de empregos e fragilizando as condições de vida da população global.

Depois de uma crise sanitária como a gerada pelo coronavírus, que fragilizou as sociedades e criou desafios contemporâneos, um conflito militar e o incremento de confrontos econômicos entre as grandes superpotências, podem piorar as condições econômicas internacionais, aprofundando a desigualdade social e a degradação das estruturas políticas e sociais, abrindo espaço para o surgimento de movimentos autoritários, mais violência, discursos de ódio e desesperanças.

A situação internacional gera preocupações e constrangimentos, além do ambiente econômico hostil, destacamos os problemas climáticos e as questões de imigração que necessitam de uma cooperação internacional e lideranças políticas engajadas e, internamente, precisamos reconstruir novos espaços de sociabilidade, aumentando nossa autonomia, fortalecendo a democracia, reduzindo a pobreza e retomando o verdadeiro crescimento econômico.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 28/09/2022.

Refazer o país, por Marilena Chauí.

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Marilena Chauí, professora Emérita da FFLCH da USP. Autora, entre outros livros, de Contra a servidão voluntária (Autêntica).

A terra é redonda – 26/09/2022

A tarefa do novo governo será enorme, difícil, e exige que a esquerda encontre seus pontos em comum
A tarefa da esquerda

Há uma visão ideologizada e, por tanto, ilusória, de que a pluralidade da esquerda representa uma crise. Eu penso que, pelo contrario, a multiplicidade enriquece a concepção da esquerda. Sem apagar as diferenças, nem pretender uma falsa unidade, a reunião periódica das esquerdas, em determinadas circunstâncias, é essencial. Há momentos em que um setor paralisa e outros procedem. De vez em quando o PT se paralisa, mas isso é compensado por inovações do PSOL.

Tenho insistido de que, pelo menos no primeiro ano de governo, tem que haver uma reunião, uma perspectiva comum, porque o governo vai enfrentar uma dificuldade gigantesca. Vai ter que refazer o país.

Há 33 milhões de desempregados no Brasil, 30 milhões de pessoas passando fome. Não há condição de pensar num plano econômico e de restruturação se a esquerda não operar em conjunto. Porque a oposição que vai ser feita, tanto pela direita como pelo centro, vai ser gigantesca.

A tarefa é enorme, difícil, lenta, e exige que a esquerda encontre seus pontos comuns.

Cinco pontos em comum
Será preciso recuperar uma proposta contra a economia neoliberal. É preciso recuperar o papel do fundo público e dirigi-lo a atender os direitos sociais. O fundo público tem que assumir novamente seu papel de garantia desses direitos.

Um segundo ponto é retomar aquilo que foi característica importantíssima do primeiro governo Lula: as conferências nacionais. O PSOL denomina de “consulta contínua às bases”. É necessária a retomada, num nível mais intenso, das conferências nacionais. O Poder Executivo e uma parte do Legislativo devem estar em contacto permanente com as demandas sociais.

Um terceiro ponto comum é a ideia de uma reconfiguração do Legislativo. Não sei se vai ter êxito, nem se será possível, mas é preciso encaminhar, logo no início, uma reforma política.

Um quarto ponto é o lugar proeminente da educação, a retomada da educação contra o desmonte do que foi trazido pela doutrina difundida por Olavo de Carvalho. Não houve um Ministro de educação deste governo que se salvasse. Não houve intervenção sobre a docência, mas houve no financiamento das pesquisas, nas escolhas dos Reitores, um desbaratamento total das faculdades técnicas (uma ideia muito cara à Dilma Rousseff).

Um quinto ponto é a questão de gênero. Não pensava ser possível, no Brasil, o machismo exposto nas formas mais perversas como nestes últimos cinco anos. Não é só a questão do machismo. É a da sexualidade, de gênero, das mulheres.

A agenda anticomunista
A agenda anticomunista esvaziou e eles pegaram uma carona na agenda do Donald Trump, que também se esvaziou.

A desmontagem dessas duas perspectivas faz com que a extrema direita caminhe em direção ao totalitarismo (não ao fascismo), por meio das Igrejas evangélicas, que desbarata a classe trabalhadora, toma o precariado para si e impede uma organização da base social. Esse é o projeto: impedir a organização da base social, da classe trabalhadora. Esse é o programa do movimento “Escola sem partido” e era a plataforma do Olavo de Carvalho.

Ao mesmo tempo, o percurso politico vai ser o da ameaça contínua da derrubada do governo, de intervenção no Legislativo e de ameaça de golpe quase cotidiana. Eu temo o que possa acontecer de outubro ou novembro até primeiro de janeiro, quando o novo governo toma posse. Não é só a ameaça de golpe, mas também a possibilidade do assassinato do Lula. Tem voluntário à beça para fazer isso.

A vitória de Lula
Essa é a única possibilidade que temos de refazer o país. Por um lado, ela representa uma exigência social e política de encontrar uma barreira para a extrema direita e para as formas mais perversas do neoliberalismo.

Eu vejo Lula como um estadista. Ele representa a percepção do Brasil na América Latina e no mundo; do nosso papel, que aparece com a criação do Mercosul e logo se desenvolve com nossa presença em grupos como o G-20 e o G-8, em nossa política externa de afirmação e não de subordinação.

Em termos populares, é a esperança de retorno dos direitos sociais, de recomposição da economia e da educação, que precisa ser refeita de cima abaixo.

Ele vai ter que negociar muito e não é por acaso que escolheu como candidato a vice-presidente o ex-governador Geraldo Alckmin. O vejo capaz de perceber quais são as negociações que garantirão direitos à sua base social. Não é uma negociação para se manter no poder, é uma negociação na qual certas exigências básicas terão que ser negociadas. Ele é capaz de fazer isso.

Lava Jato
Fui contra essa operação desde o primeiro instante, quando ainda aparecia como algo honesto. Nunca deixei de relacionar o timing da aparição do projeto com as dificuldades da economia, na época do governo de Dilma Rousseff. Havia dificuldades no manejo da economia, com a troca de ministros e a Lava Jato funcionando. Dilma Rousseff é uma mulher de princípios que não negocia. Não era desconhecido, no país, o antagonismo entre ela e o Michel Temer. Ela tolerou aquele vice, mas não o deixava participar em nada do governo.

A Lava Jato me fazia recordar a figura do Carlos Lacerda. Em instante nenhum considerei que havia seriedade na Operação Lava Jato. Pesquisei um pouco a formação e o trabalho dos principais agentes da Lava Jato. Eles não eram expressão do que havia de excelente no mundo jurídico brasileiro. Eram figuras inexpressivas.

Considerei a Lava Jato como emissária do Departamento de Estado norte-americano. A vi como uma operação política. Isso logo tornou-se uma evidência enorme. O fato de ter como alvo a Petrobras (e sabemos o que quer dizer isso), indica que havia alguma coisa por trás.

As Forças Armadas
O golpe de 1964 ocorreu sob o guarda-chuva da Aliança para o Progresso, da política do Departamento de Estado dos Estados Unidos, e do governo Kennedy. Militares brasileiros, educados nos Estados Unidos, trouxeram a ideia de que Cuba era uma ameaça, vieram com um projeto, logo adaptado à realidade brasileira.

No início do governo do Marechal Castelo Branco (1964) e no período final da ditadura militar, com o general Golbery do Couto e Silva, eles tinham uma ideia do que era o Brasil, do que devia ser a América Latina e do que deviam fazer. A resposta armada da esquerda ao governo militar provoca algo não previsto: o Ato Institucional número 5 (AI-5), em 1968. Após esse Ato foi preciso reelaborar o projeto, e isso é o que o Golbery tentou fazer.

Havia no governo gente bem formada, informada, com projetos. Não é o que temos agora.

Hoje temos na ativa as Forças Armadas tradicionais, mas destituídas de um projeto nacional. Do lado do Executivo temos simplesmente uma apropriação econômica dos recursos do Estado. Jair Bolsonaro absorveu, no Poder Executivo, um setor das Forças Armadas. Há quase dez mil militares no governo. Os militares se viram numa posição de poder sobre o mundo civil e, mediante uma corrupção sem fim, a possibilidade de ficarem ricos.

Se houver golpe será feito por esse grupo que se encravou no poder do Estado e que não quer perder os privilégios que conseguiram.

Texto estabelecido a partir de entrevista concedida ao jornalista Gilberto Lopes.

O parasitismo financeiro derrotou a independência, por Ladislau Dowbor.

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Desindustrialização, desnacionalização e endividamento opressivo sugam recursos da maioria para servir a interesses estrangeiros e uma elite local clientelista. Ao celebrar o bicentenário, temos a soberania por resgatar
Ladislau Dowbor – Outras Palavras – 14/09/2022

A economia hoje é em grande parte globalizada. Em particular, com o dinheiro impresso por governos substituído por dinheiro virtual emitido também por bancos (97% da liquidez), as finanças passaram a funcionar em escala planetária. Por exemplo 3 corporações privadas, BlackRock, Vanguard e State Street, administram cerca de US$ 20 trilhões de dólares, três vezes o orçamento federal dos Estados Unidos. A globalização financeira reduz drasticamente a autonomia dos países definirem os seus rumos, já não só frente a países mais fortes, mas frente ao poder corporativo. Basicamente temos governos nacionais que enfrentam uma economia globalizada. O conceito de independência encontra aqui uma limitação estrutural.

Um segundo eixo que limita a autonomia de decisão é o controle norte-americano sobre as transações internacionais, por meio da dominação do dólar. Essa herança de Bretton-Woods, do fim da II Guerra Mundial, permite aos Estados Unidos emitirem dólares sem limites, sem gerar inflação ou desvalorização da moeda, na medida em que são absorvidos por bancos centrais de diversas partes do mundo. Tentativas de os países comercializarem entre si sem passar pelo dólar e taxas de transação são até hoje atacados militarmente pelos Estados Unidos (Iraque e outros). Um novo polo está se constituindo, inicialmente com China, Rússia e Irã, e numerosos interessados. A soberania do dólar é uma herança da hegemonia americana de 1945, hoje fragilizada e pouco realista. As propostas em discussão vão no sentido de um sistema internacional com várias moedas, mas por enquanto a limitação à soberania continua.

A soberania de um país depende também da sua capacidade de canalizar os recursos financeiros segundo as suas prioridades. A facilidade com a qual os recursos financeiros no Brasil são canalizados para paraísos fiscais torna qualquer tentativa de regulação muito precária. No Brasil o poder das corporações internacionais do agronegócio, ADM, Bunge, Cargill e Dreyfus (ABCD), que controlam 80% do comércio de grãos, leva a que o país priorize exportações, enquanto 33 milhões de pessoas passam fome, e 125 milhões estão em situação de insegurança alimentar.

A Índia, por exemplo, frente ao problema da fome, proibiu as exportações de trigo. O Brasil não só mantém a fome como isentou os exportadores de impostos (Lei Kandir, 1996), e os lucros e dividendos distribuídos são igualmente isentos de impostos (1995). O país é simplesmente drenado, inclusive com o Ministro da Economia escondendo milhões em paraíso fiscal (sob o nome código Dreadnaught). Ou seja, a opção de orientar os recursos para onde o país deles precisa, se vê muito limitada pelo sistema internacional de dreno. Em 2012 o Tax Justice Network estimou que o volume de capitais brasileiros em paraísos fiscais era da ordem de um terço do nosso PIB.

Interesses semelhantes atingem a autonomia energética. O fato do Brasil ter forte base hidrelétrica, e grandes reservas de petróleo, deveria assegurar independência no setor. Não se imagina a China, por exemplo, entregar o controle da sua base energética a corporações transnacionais. A Petrobrás, no quadro de um governo submisso a interesses internacionais, passou a cobrar preços absurdos no mercado interno – não há nenhuma razão econômica de se cobrar preços internacionais por um produto que é nacional – de forma a alimentar acionistas globais com dividendos elevados. Acionistas nacionais estão amarrados aos interesses internacionais, gerando travamento da economia pela elevação de preços da energia. Custos energéticos impactam numerosos setores. O processo pode ser encontrado nas diferentes privatizações: ao abrir acesso aos recursos do país pelos acionistas internacionais – por exemplo BlackRock, Glencore, Billiton e outros – com os seus aliados internos, perde-se a capacidade de usar recursos primários para financiar atividades industriais, ciência e tecnologia e semelhantes. Grande parte do legislativo depende de lucros indiretos obtidos pelo dreno de riquezas assim constituído. A privatização, na medida em que abre as empresas para compra de ações, significa desnacionalização. A independência cultural tem uma importância essencial. Mas a mídia comercial vive de publicidade paga em parte dominante pelos mesmos interesses.

Quando vemos grandes jornais explicar que devemos pagar os preços internacionais por um produto que é da nação, é o próprio conteúdo jornalístico que é apropriado pela lógica corporativa e da ideologia norte-americana. É muito impressionante varrermos os canais de televisão para encontrar um filme decente, passando por uma sequência de conteúdos quase idênticos, norte-americanos, com aviso de “violência, sexo, drogas”. O mundo tem uma imensa riqueza cultural que não aparece. O vazio cultural criado não aparece como vazio, pois sequer o conhecemos. O uso político da religião nos faz olhar para os céus quando deveríamos olhar para as crianças que passam fome.

É importante entender que hoje o país perdeu grande parte da sua independência não por intervenções ou ameaças externas, mas pela constituição de elites internas que são “clientes” (no sentido de Estado clientelista) dos interesses externos. A dependência está enraizada na força das fortunas internas e dos seus representantes políticos. A perda de soberania tem poderosas raízes locais. Há conexões profundas entre a desigualdade explosiva, a miséria de tantos, a entrega dos recursos naturais, o endividamento generalizado da população, e a orientação geral da economia e da política. Há poucos anos o Brasil foi tirado do mapa da fome, hoje a fome se generalizou. O país tinha se industrializado.

Hoje apenas dois setores são pujantes na economia: a exportação de bens primários e a intermediação financeira, ambos ligados aos mesmos interesses de um mundo financeirizado. A chamada autonomia do Banco Central, tirando do governo ferramentas de regulação financeira, completa um quadro de entrega de soberania que hoje depende mais de quem manda no dinheiro do que de quem manda na tropa. Quando vemos quem se veste de bandeira do Brasil, não podemos deixar de ver a ironia.

O reverso da medalha é que voltar a desenvolver o país em função dos interesses nacionais, do interesse geral da população, envolve uma reorientação econômica profunda: eliminar a Lei Kandir, para que a alimentação sirva ao país que a produz. Voltar a cobrar impostos sobre lucros e dividendos, para que os ricos paguem um imposto como o paga a população em geral. Usar as receitas geradas para voltar a financiar a educação, a ciência e a tecnologia, a pequena e média indústria, a saúde, as políticas ambientais. A independência hoje significa colaborar com a comunidade internacional para enfrentar os dramas globais, construir uma sociedade mundial economicamente viável, mas também socialmente justa e ambientalmente sustentável. Colaboração construtiva, em vez de submissão. O que fazer não é mistério: voltar a usar os recursos em função do bem comum. Isso gera PIB, gera emprego, gera desenvolvimento, e sobretudo resgata a dignidade nacional.

Uma breve história da igualdade, por Jorge Félix

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Jorge Félix – A Terra é redonda – 25/09/2022

Comentário sobre o livro recém-editado de Thomas Piketty

O surgimento do economista francês Thomas Piketty no debate público mundial, em 2014, ainda precisa ser revisto pelos pesquisadores da comunicação como um dos maiores vexames do jornalismo econômico mainstream. O fato de o hoje best-seller planetário Capital no século XXI, traduzido em mais de 40 idiomas e com vendas acima de 2,5 milhões de exemplares, revelar uma tendência consistente de concentração de riqueza no funcionamento do capitalismo

contemporâneo e defender como remédio um imposto global sobre grandes fortunas e herança da ordem de 80%, fez os mais renomados veículos da imprensa internacional perderem a compostura, a ética e a exatidão e partirem para uma cobertura de desinformação muito antes de arvorarem-se contra opositores de fake news.

É conveniente lembrar esse triste episódio para o jornalismo sempre quando um novo livro do autor chega às livrarias, como agora com Uma breve história da igualdade, que acaba de ser traduzido no Brasil. Essa lembrança é como um antídoto para interpretações equivocadas dos jornalistas de economia e dos leitores. The Economist (que o chamou de “Novo Marx”), Financial Times, Bloomberg passaram maus momentos de credibilidade por estarem mais preocupados em desqualificar a pesquisa de Thomas Piketty do que de analisá-la com a civilidade que deve ser dispensada a todo trabalho acadêmico.

Em 2019, quando lançou Capital e ideologia na França, Thomas Piketty já estava devidamente vacinado contra o vírus do mau jornalismo. A recepção ao seu novo calhamaço [quase 1.200 páginas, parelho ao primeiro livro] foi mais fria, porém, ganhou muito em qualidade. É curioso verificar que os mesmos jornalistas que atacaram Capital no século XXI haviam perdido o fôlego para encarar as novas descobertas e reflexões de Thomas Piketty, justamente no momento em que o mundo se rendia à sua sugestão de adotar programas de transferência direta de renda – embora o autor, em entrevista que fiz com ele, em 2013, portanto, antes de seu sucesso mundial, tenha afirmado que sempre dará preferência à adoção de um sistema tributário progressivo (apesar de uma medida não anular ou dispensar a outra no árduo combate à desigualdade). Ou os jornalistas e veículos de Economia perderam o medo do “Novo Marx” e do “comunismo” ou ficaram, de fato, envergonhados (sem nunca reconhecerem o erro) quando viram governos liberais se “pikettyzarem”, sobretudo depois da pandemia de Covid-19.

O trabalho de Thomas Piketty, porém, é muito mais complexo do que a busca por cliques ou a necessidade de fazer eco à voz do “mercado”. No entanto, embora best-seller, o autor permanece confinado aos muros da universidade. Com exceção do slogan do Occupy Wall Street – I’m 99% – que apareceu em várias placas dos manifestantes, pouco da teoria de Thomas Piketty chegou às ruas. Salvo impulsionar o debate sobre a desigualdade. Mas mesmo o slogan citado ninguém sabia que teve origem em seus trabalhos, apesar de Joseph Stiglitz, a quem o slogan foi atribuído, tenha revelado a legítima autoria (ok, em uma nota de roda-pé!).

É preciso um profundo – profundíssimo – conhecimento econômico, histórico, sociológico, antropológico para dar conta da totalidade de seus argumentos e, talvez, oferecer alguma crítica ou reflexão. Isso, até hoje, como visto com os próprios colegas jornalistas, é um limitador para se entrar no debate. Quebrar essa barreira é a intenção de Thomas Piketty, agora, com seu Uma breve história da igualdade. O autor se propõe a escrever justamente para aqueles que jamais tiveram a coragem de enfrentar suas verdadeiras “bíblias” anteriores. Ou talvez que, antes de fazê-lo, precisam frequentar aulas de alinhamento. Pode ser válido. Inclusive para jornalistas econômicos. Nem sempre Thomas Piketty, nesse livro, é tão simples quanto imaginou ser, no entanto, incomparavelmente, o livro é bem mais acessível e conta a mesma história dos livros anteriores.

O leitor mais familiarizado com a obra de Thomas Piketty perceberá um amadurecimento de determinados pontos teóricos que vão se tornando identificadores de seu pensamento sobre a desigualdade social e a condição sine qua non para o mundo avançar no que ele chama de “marcha rumo à igualdade” – a qual, aliás, para ele, o mundo está condenado. Ainda bem. Embora as desigualdades continuem a se estabelecer em níveis consideráveis e injustificáveis, como sabemos, o leitor encontra um autor muito mais otimista. E quem não está precisando?

Thomas Piketty, como sublinha desde os seus primeiros trabalhos acadêmicos e foi quase uma pedra fundadora de sua linha de pesquisa, destaca a importância da “forte pressão demográfica” em toda a história da igualdade (ou da desigualdade) e como o envelhecimento populacional jogará um papel de destaque no decorrer dessa marcha da humanidade. E seus dispositivos de apoio para torná-la efetiva são: a democracia (sufrágio universal, liberdade de imprensa, direito internacional), o imposto progressivo sobre herança, renda e propriedade, a educação gratuita e obrigatória (e ele defende agora que deve ser “complexa e interdisciplinar”), a saúde universal (alçada nesse livro a um posto bem maior) e a cogestão empresarial junto ao direito sindical.

Esse último ponto merece uma atenção especial. Desde Capital e ideologia, Thomas Piketty explora esse ponto como indispensável dentro de qualquer perspectiva de distribuição de riqueza. De acordo com ele, no atual “hipercapitalismo”, o modelo de administração por gestores ou CEOs remunerados por bonificação e, portanto, centrados apenas no retorno sobre o investimento aos acionistas é um dos maiores estorvos à igualdade.

Sua proposta é a transição para um “socialismo participativo” (como ele usou em Capital e ideologia) ou “socialismo democrático, ecológico e diversificado” (que ele acrescenta agora), baseado em uma “propriedade mista” onde haverá propriedade pública, social e temporária. Dessa forma será possível superar a dicotomia entre o modelo estatal (soviético) versus modelo capitalista (norte-americano). A forma de se instaurar a propriedade temporária é o sistema tributário progressivo, pois, com mais recursos o Estado distribuiria a riqueza por meio de programas de transferência de renda, a começar pelos jovens.

O público leigo desconfiado, com razão, de projeções ou promessas econômicas pode até receber as “utopias” de Thomas Piketty com ceticismo. Mas a leitura de Uma breve história da igualdade é menos teoria e mais uma aula da evolução do pacto social, com suas crueldades, como a herança da escravidão, seus privilégios legitimados pela ideologia e suas revoluções e reações. Antes da “marcha da igualdade”, atestada por Thomas Piketty, precisamos entender o que permitiu a humanidade dar os primeiros passos. Nada foi conquistado sem luta social e o leitor tem no livro um bom resumo dessa lenta desconcentração do poder e da propriedade.

O prognóstico do autor é de que, sendo a desigualdade uma construção política a partir de escolhas históricas, como os sistemas tributário, educacional e eleitoral, outras mobilizações transformadoras serão suscitadas pela injustiça social. Mesmo que isso ainda dependa muito do papel da imprensa, Thomas Piketty insiste que outro mundo é possível, embora ainda incerto.

*Jorge Félix é jornalista e professor de economia no bacharelado em Gerontologia na EACH- USP. Autor, entre outros livros, de Economia da longevidade: o envelhecimento populacional muito além da previdência (Ed. 106 Ideias).

Piketty preconiza crise climática como novo fator de revoluções sociais

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No livro ‘Uma Breve História da Igualdade’, economista relata avanços e falhas na redução das desigualdades

ALEXA SALOMÃO – FOLHA DE SÃO PAULO, 24/09/2022

Nunca foi por empatia ou senso de justiça social. A lenta redução das desigualdades depende da força —de revoluções, crises e leis impostas nos momentos em que se cria espaço para um Estado de direito. O mais novo livro do economista francês Thomas Piketty, “Uma Breve História da Igualdade”, repete esse princípio como um mantra.

Em pouco mais de 250 páginas e capítulos enxutos, o autor entrega o que promete. Faz um relato condensado, mas ilustrativo e bem organizado, de como as diferenças entre base e topo da pirâmide social foram se estreitando nos últimos 300 anos.

Uma profusão de números comprova a redução das desigualdades de renda e propriedade, especialmente de 1914 a 1980, graças ao avanço do Estado de Estado de bem-estar social e à aplicação do imposto progressivo, que passou a cobrar mais tributos dos mais ricos. Há até um capítulo para o tema, no qual Piketty reafirma que esse foi o momento da “grande distribuição”.

Mas o pequeno compêndio traz um truque. Na sua essência, impele o leitor ao sentido oposto —tatear para onde as desigualdades renitentes podem nos levar. Piketty pincela avisos, sempre com gritantes exemplos, sobre como os detentores de poderes político e econômico reinventam alternativas para se preservarem o mais distante possível da maioria menos abastada.

Destaca o autor: “A resistência das elites é uma realidade incontornável nos tempos atuais (com seus bilionários transacionais mais ricos do que Estados), no mínimo tanto quanto na época da Revolução Francesa. Tal resistência só pode ser vencida por meio de poderosas mobilizações coletivas, e em momentos de crises e tensões. Ainda assim, a ideia de que um consenso espontâneo em relação às instituições justas e emancipadoras e que para colocá-las em prática bastaria quebrar a resistências das elites é uma perigosa ilusão”.

O economista elabora a percepção de que o mundo caminha para uma nova etapa em sua busca pela redução das desigualdades, e pontua lacunas, em diferentes áreas, que podem servir de ponto de partida para as tensões propulsoras de mudanças.

Racismo é uma delas. Um exemplo: tornou-se ilegal nas escolas dos Estados Unidos, país que ainda nos anos de 1960 separava brancos e negros em lugares tão triviais quanto banheiros públicos e ônibus. No entanto, a segregação ainda é uma realidade cultural no cotidiano das salas de aulas de estados sulistas.

Há outros muros, étnicos e religiosos. Em 2015, pesquisadores franceses enviaram milhares de currículos para vagas de emprego com a intenção de medir o nível de preconceito a sobrenomes. A taxa de resposta foi quatro vezes menor para candidatos árabes e muçulmanos.

A questão de gênero está longe de ser pacificada. Estudos realizados na Índia com ocupantes de cargos públicos mostraram que a defesa de um mesmo argumento, como para construir uma escola, era considerada mais crível quando proferida por um homem do que por uma mulher.

São também profundos os abismos entre as nações, que refletem, afirma o autor, os efeitos do colonialismo e da desconexão entre Ocidente e Oriente, cada vez mais tensa.

Piketty destaca as disparidades fiscais. De 1970 a 2020, as receitas tributárias dos países mais pobres estagnaram na casa de 15% do PIB (Produto Interno Bruto). Em países africanos, como Nigéria e Chade, representam algo entre 6% e 8% do PIB. As dos países mais ricos, porém, subiram de 20% para 30% no mesmo período.

O economista também relata as dívidas históricas entre ex-dominadores e ex-dominados. O Haiti é um dos exemplos.
O pagamento à França por sua independência é tratado no livro como espoliação. O reinado de Carlos 10º pediu 150 milhões de francos-ouro a título de compensar as perdas de proprietários de terras e de escravos. O valor equivalia, à época (1825), a 300% da renda nacional do Haiti. O pagamento dessa dívida, encerrado apenas em 1950, inviabilizou qualquer chance de desenvolvimento da ilha, ainda hoje um dos lugares mais miseráveis do planeta.

No conjunto dessas antigas disparidades não solucionadas e potencialmente explosivas, Piketty acrescenta novos componentes com desfechos ainda imprevisíveis.

O maior deles é a mudança climática. A herança poluidora está ao Norte. Estados Unidos, Canadá, Europa, Rússia e Japão têm 15% da população mundial, mas representam 80% das emissões acumuladas desde o início da Revolução Industrial.

Hoje a maior parcela das emissões sai dos Estados Unidos, e a menor, da África Subsaariana e do Sul da Ásia. No entanto, quem já sofre os impactos do aquecimento global está no segundo grupo. Piketty teoriza que os cataclismos têm potencial, ainda que não mensurável no atual estágio, de alterar a ordem do mundo que conhecemos.

“A atenuação dos efeitos do aquecimento global e o financiamento de medidas de adaptação para os países mais afetados (em particular no Sul) demandam uma transformação total do sistema econômico e da distribuição das riquezas, o que passa pelo desenvolvimento de novas coalizões políticas e sociais em escala mundial. A ideia de que todos sairiam ganhando é uma perigosa e anestesiante ilusão, que precisamos abandonar o mais rápido possível.”

Outro fator de mudança, já dado como certo pelo autor, ainda que igualmente insondável, é a ascensão da China ao posto de potência número um do planeta.

A China não faz parte da lista dos 50% de países mais pobres desde 2010. Seu PIB supera o dos Estados Unidos desde 2013. A renda nacional, porém, ainda está abaixo, cerca de € 15 mil (R$ 76 mil), ante € 40 mil (R$ 203 mil) na Europa e € 50 mil (R$ 254 mil) nos Estados Unidos. Mantido o crescimento atual, as diferenças serão superadas entre 2040 e 2050.

Piketty acredita que o regime chinês verá na mudança climática uma brecha para firmar força política.
“Em geral, a China não se priva de lembrar que se industrializou sem recorrer à escravidão e ao colonialismo, do qual ela mesma pagou o preço. Isso lhe permite marcar pontos sobre o que é percebido pelo mundo como a eterna arrogância dos países ocidentais, sempre prontos a dar lições a todos no plano da Justiça e da democracia, mesmo se mostrando incapazes de enfrentar as desigualdades e discriminações que os corroem, e pactuando por conveniência com todos os potentados e as oligarquias que os beneficiam.”

Dica. Não deixe de ler as notas. São como capítulos adicionais.

Governo, sim, calango, não, por Rolf Kuntz

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Hoje sem rumo e com milhões empobrecidos, o Brasil poderá retomar o avanço a partir de 2023, sedispuser de um governo de fato.

Rolf Kuntz, jornalista.

Estado de São Paulo, 25/09/2022

Um bife e uma salada – para todos. Com essas palavras, o ministro francês Valéry Giscard d’Estaing, magro e saudável, contou a um robusto brasileiro, numa charge publicada há algumas décadas, a fórmula da boa alimentação.

Desigualdade, pobreza e fome eram temas inevitáveis, naquele tempo, quando o lagarto calango, desconhecido na maior parte do Brasil, se tornou fonte de proteína para nordestinos. A fórmula simples, comida para todos, é requisito básico da ordem civilizada. Com a mesma simplicidade, qualquer candidato poderia desenhar um programa para o novo mandato presidencial. As necessidades, agora, são elementares e singelas. A mais urgente, depois de quatro anos sem rumo, será a implantação de um governo. E governar é muito diferente de mandar e de usar meios públicos, embora esse fato, como tantos outros, seja ignorado pelo presidente Jair Bolsonaro.

Governar é mais do que executar leis, administrar o dia a dia e manter a ordem. É definir objetivos, atender a demandas, desenhar planos e programas e construir o futuro. A maior parte dessas tarefas foi negligenciada a partir de 2019. O ministro da Economia, Paulo Guedes, nega a fome e acusa até o Banco Central de errar para baixo nas projeções de crescimento econômico. Mas é incapaz de ir além dos ataques e das bravatas e de apontar um rumo para o País. Nada fez, em quase quatro anos, para reverter a desindustrialização do Brasil – um dos primeiros, mais evidentes e mais importantes desafios para quem tiver de cuidar dos assuntos econômicos.

O retrocesso da indústria brasileira pode ter começado há mais de 20 anos, mas ficou mais evidente há cerca de uma década. Em julho, a produção industrial foi 17,3% menor que a de maio de 2011, pico da série registrada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A curva oscilou nesse período e pareceu, em alguns momentos, indicar uma recuperação, mas a tendência foi mesmo de recuo. Alguns distraídos confundem a desindustrialização do Brasil com a mudança observada em países mais avançados, onde se fala de uma era pós-industrial.

Distraídos continuam falando, também, de um suposto compromisso liberal de Paulo Guedes, como se liberalismo, na economia contemporânea, consistisse em combater direitos trabalhistas e em cortar tributos indiretos, como o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI). Mas a bobagem maior é reduzir o debate à aplicação de rótulos.

Muito mais séria é a discussão, ainda com pouco efeito, sobre o custo Brasil, os entraves à modernização e à competitividade e os obstáculos à integração no mercado global. Quase nada se avançou nesse front, nos últimos anos. Falou-se muito sobre reforma tributária, mas pouco se discutiu, no Executivo, a funcionalidade dos tributos.

Pouco atento à realidade das cadeias de produção e de circulação de bens, o ministro da Economia chegou a defender a adoção do cumulativo, regressivo e desastroso “imposto único”, já conhecido pela sigla CPMF.

É indispensável, sim, redesenhar o sistema de tributos, a partir, porém, de boas propostas, algumas já apresentadas por técnicos competentes. Também é preciso cuidar dos custos e da eficiência da administração, mas isso requer muito mais que a limitada reforma de RH projetada pelo Ministério da Economia. O retorno ao desenvolvimento econômico e social depende de uma ampla reversão das políticas do atual mandato.

Não haverá modernização, nem prosperidade, sem a reabilitação das políticas de educação e saúde, estraçalhadas nos últimos quatro anos. Nem o financiamento de creches foi respeitado. Além disso, o Executivo federal terá de se reconciliar com a cultura e com a atividade acadêmica. O presidente – ninguém deveria esquecer – declarou guerra à ciência e à tecnologia no começo de seu mandato, quando atacou o Instituto Nacional de Pesquisa Espacial (Inpe) por mostrar, com imagens de satélite, o aumento de queimadas na Amazônia.

Ao facilitar a devastação ambiental, o presidente prejudicou a reputação do setor mais competitivo da economia brasileira, o agronegócio, e deu argumentos ao protecionismo europeu. Combinada com outras ações diplomaticamente desastrosas, a negação dos valores ambientalistas contribuiu para deformar a imagem do País. Além disso, a ação presidencial foi particularmente eficaz na aproximação com governos autoritários. A visita de Bolsonaro a Vladimir Putin pouco antes da invasão da Ucrânia foi um dos pontos mais altos dessa política.

Apesar dos elogios à ditadura militar, da valorização da tortura e dos esforços para desacreditar o sistema eleitoral, o presidente foi incapaz, até agora, de reverter a experiência democrática das últimas décadas.

Judiciário e Congresso funcionam e a imprensa permanece atenta e vigorosa. A poucos dias das eleições, parece razoável apostar em tempos mais luminosos, com valorização da democracia, reconstrução do governo e retorno ao caminho do desenvolvimento e da criação de oportunidades, a partir de uma agenda tão elementar quanto a garantia de comida para todos.

Como regular as Criptomoedas? por Celso Ming

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Criptoativos trouxeram grandes inovações na área monetária, mas ainda não há clareza sobre o que pode ser regulado nesse mercado.

Celso Ming, comentarista de Economia.

Estado de São Paulo, 24/09/2022

De todos os lados afloram pressões para regulamentar a criação e a circulação das criptomoedas. Faz mais de 10 anos que apareceu a primeira delas, o bitcoin. Hoje existem mais de 21 mil, cujo valor de mercado, embora altamente volátil, passa dos US$ 900 bilhões.

Neste mês, o Fundo Monetário Internacional (FMI) publicou artigo (Regulating Crypto) que relata as dificuldades para avançar nessa matéria.

Vítimas de fraudes, de escândalos financeiros, de pirâmides que envolvem esses ativos vêm cobrando ação das autoridades para controlar essas novidades.

Não há clareza sobre o que regular. Os criptoativos assumem inúmeras formas. Grande número de produtos digitais, muitos deles já incorporados pela rede bancária supervisionada pelos bancos centrais, também é considerado criptoativo.

As instituições reguladoras operam com objetivos diferentes. Os bancos centrais, por exemplo, temem que, à medida que se avolumam, essas moedas corroam sua capacidade de exercer a política monetária. Outras veem nelas importantes instrumentos de sonegação de impostos, fraude, lavagem de dinheiro e de financiamento de terrorismo e criminalidade. E há aquelas que estão mais preocupadas com a defesa do investidor. Alguns governos estão mais preocupados com o altíssimo consumo de energia elétrica exigido pela “mineração” dessas moedas.

São muito diferentes e numerosos os agentes que estariam sujeitos a uma regulação: “mineradores” de moedas, desenvolvedores de sistemas de informática (como o blockchain e afins), detentores e administradores de fundos que levam essas moedas. É um campo confuso onde escasseiam informações seguras.

Os reguladores enfrentam dificuldades para entender e acompanhar a rápida evolução dos programas e dos sistemas de informática adotados pelos criadores das moedas.

Mas não consta no artigo do FMI um ponto relevante. Como a emissão e as transações feitas com essas moedas ignoram fronteiras, qualquer regulação de âmbito apenas nacional será sempre insatisfatória. E, no entanto, a partir de todas as tentativas feitas pelos organismos internacionais, está distante um acordo mínimo sobre como avançar.

As criptomoedas trouxeram grandes inovações na área monetária e nos sistemas de pagamentos. Embora não exerçam todas as funções clássicas de uma moeda, elas mostram que não precisam da chancela de um Estado ou da efígie de César para operar como ativos monetários.

Discurso empreendedor da classe C mascara exclusão social e acena a Bolsonaro, por Barlach e Mendes.

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Fenômeno se manifesta em conservadorismo que alia forte individualismo e desconfiança no Estado

Breno Barlach, Sociólogo e mestre em ciência política pela USP, com participação como pesquisador visitante na Cornell University (EUA). É diretor de pesquisa e inovação da Plano CDE, instituto de pesquisas sociais e de inteligência de mercado focado nas classes populares (C, D e E) brasileiras
Vinícius Mendes, Jornalista e sociólogo, mestre em sociologia pela USP

Folha de São Paulo, 25/09/2022.

[RESUMO] Precarizados e sujeitos a rendas incertas, milhões de brasileiros da classe C reforçam um discurso de empreendedorismo que, para eles, reflete uma condição em que são descartáveis no mercado de trabalho. A tradução política desse fenômeno é um tipo de conservadorismo que alia forte individualismo e desconfiança no papel do Estado, apontam pesquisadores.

Bacharéis inconformados sob o volante de um carro de aplicativo. Autônomos ansiosos com uma crise que não termina, embora estejam melhores que os informais, extenuados em longas jornadas para segurar o orçamento do mês com dificuldade. “Pejotas” inseguros em seus empregos, à espera de uma próxima oportunidade que os manterá na mesma condição.

Essa realidade de boa parte da massa de trabalho brasileira não é apenas uma fotografia do presente. Nessas mesmas condições, muitas pessoas ascenderam na primeira década do século 21, mas agora experimentaram os impactos de uma crise que perdura, ainda mais depois da Covid-19.

É dessa perspectiva que elas vislumbram o futuro imediato e, a partir disso, tomam suas decisões políticas.
Dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), analisados pela Plano CDE, instituto de pesquisas sociais e de inteligência de mercado, iluminam essa estrutura econômica com clareza: de 2015 para cá, a proporção de rendimentos oriundos de fontes incertas, como atividades informais ou por conta própria, sem contar os “bicos”, se manteve em torno de 43% da composição total do orçamento das famílias da chamada classe C, que representa metade da população.

Um número que mostra como esse tipo de arranjo baseado em uma conjunção de informalidades foi se tornando uma característica comum da economia nacional, sempre interpretada à luz dos diferentes contextos do país.

Nos anos de bonança, essa era uma situação quase imperceptível. No pano de fundo daquele período, porém, essas camadas já nutriam uma insatisfação com a dificuldade em encontrar um emprego celetista ou em ter estabilidade financeira. Só não era uma sensação profunda a ponto de superar o otimismo inevitável que se tinha com os rumos pessoais e, por consequência, com os do país.

Agora as circunstâncias são outras, e não é à toa que se vê a ascensão de um conceito torto de “empreendedorismo” para dar conta delas. Trata-se da narrativa econômica triunfante de um Brasil em crise. Ela diz que esses “empreendedores” seriam o que de mais livre, do ponto de vista econômico, o país produziu em muito tempo.

No Brasil popular, o empreendedorismo ganha outros nomes, embora mantenha o mesmo núcleo de valor: nas pesquisas qualitativas feitas nos últimos anos pela Plano CDE com esse público, que representa 100 milhões de pessoas com renda familiar per capita mensal entre R$ 500 e R$ 1.500, ele aparece ora como “corre”, ora, em uma associação essencialmente masculina, com a imagem do “batalhador” —o homem provedor da casa que se enxerga como baluarte de uma configuração social que premia qualquer mérito individual.

Trata-se de um sujeito sempre em competição com outros batalhadores, todos de vida parecidas. Nessa visão de mundo, é central a ideia de que o esforço de cada um determina a posição social que se ocupa —métrica que naturaliza a própria precariedade como mão de obra no mercado.

Esse grupo é composto de autônomos sujeitos à demanda e entregadores de comida, jovens universitários em busca do primeiro emprego e recém-formados desempregados pendurados em “bicos”, motoristas de aplicativos e a multidão de MEIs (microempreendedores) à espera de uma convocação.

Todavia, mais que empreendedores, eles também se definem como descartáveis. Em outras palavras, a narrativa da “liberdade do empreendedor” tenta esconder uma realidade mais perversa.

Nela, eles se sujeitam, por “conta própria”, à instabilidade constante do mercado de trabalho, recebem os mesmos salários há pelo menos meia década e ficam à mercê de fontes alternativas de renda para conseguir chegar até o fim do mês.

Em muitos casos, vivem quase totalmente desses rendimentos incertos e voláteis. Esses trabalhadores notam que o trabalho que oferecem é uma moeda de pouco valor no mercado, facilmente substituível e, por isso mesmo, repleto de incertezas.

Assim, se são alvos do discurso do empreendedorismo, é justamente porque já estão inseridos nesse contexto de descartabilidade. É desse jeito que observam a vida, os outros ao redor, o Estado, o país onde vivem.

O limite dessa realidade se observa na falta de perspectivas dos mais jovens: se até alguns anos atrás havia alguma esperança de que o curso universitário fosse o caminho mais sólido para mudar uma trajetória familiar: a geração que chegou ao ensino superior a partir de 2010, sobretudo por meio dos programas de auxílio estudantil, percebeu que a história não era mais desse jeito.

Nas duas últimas décadas, houve um crescimento exponencial de pessoas que concluíram a graduação, mas elas não se inseriram no mercado de trabalho como imaginavam. Muitas acabaram descartadas em empregos que, na maioria dos casos, nem sequer exigem o diploma e quase sempre oferecem salários baixos e padrões precários.

Nesse mundo, a informalidade reina. É por isso que cresceu o volume de pessoas com curso superior que trabalham por conta própria: no terceiro trimestre do ano passado, por exemplo, eles já somavam 4 milhões, como mostrou a Folha.

Esse grupo é mais sensível a essa descartabilidade porque levou adiante o projeto que prometia mudar a trajetória familiar e hoje engrossa a lista de inadimplentes do Fies, que teve um salto de 300% entre 2019 e 2021, segundo dados do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação.

Foi da crise atual que se colocou sobre a ascensão social da classe C que muitas análises extraíram uma mesma conclusão: o bolsonarismo, como fenômeno social, seria resultado, principalmente, de um ressentimento dessas camadas.

A crítica a esse argumento já foi feita pela antropóloga Rosana Pinheiro-Machado: tal sentimento negativo explica melhor a reação raivosa dos trabalhadores do Norte à crise dos empregos, como o trumpismo nos EUA, que a realidade dos sujeitos ao Sul, que nem chegaram a ter um trabalho formal para poder perdê-lo.

Para Pinheiro-Machado, o bolsonarismo é o sucesso definitivo de toda essa narrativa individual: o presidente encampa esse discurso e promete institucionalizá-lo. Mas não é só isso. Nos nossos estudos, é visível também como essas camadas compartilham a sensação de que foram enganadas.

Naquele momento em que o país prometia uma ascensão permanente, em que o bom momento da economia era experimentado no cotidiano, elas construíram seus projetos de futuro vislumbrando exatamente o contrário desse cenário de descartabilidade: uma formação universitária daria empregos mais seguros, o mercado de trabalho não seria um universo de precariedades e a renda não estaria em constante ameaça.

Enfim, elas esperavam uma transformação real, uma mudança na trajetória familiar que, de fato, foi prometida. É, então, mais do que só ressentimento ou uma vitória definitiva da narrativa individual: é ainda uma cobrança incisiva pelo que esperavam ter neste momento.

A tradução política desses sentimentos não terminou. O empreendedorismo à brasileira encontrou em Jair Bolsonaro a sua representação momentânea.

Descartadas no mercado de trabalho, cada vez mais abandonadas à própria sorte, essas pessoas tendem a elaborar uma visão de mundo conservadora, o que também representa uma formação política.

No centro dela está, sem dúvida, o batalhador, o protagonista do corre que segura as contas do mês na viração —no bico, no trabalho informal, na atividade autônoma ou na conjunção de todas elas. Nas pesquisas da Plano CDE, essa perspectiva comum aparece como um “conservadorismo moderado”, tendo em vista alas mais radicais que compõem a base de apoio irrestrito ao governo atual.

Esse grupo diz que o Estado não é só corrupto, como também promotor de desigualdades, pois produz políticas apenas para os mais pobres ou para detentores de “privilégios”, como seriam os negros no caso das cotas raciais.
Vem daí a adesão a uma ideia de Estado mínimo, cujo papel principal seria não atrapalhar quem está no corre, embora tivesse a obrigação de criar “oportunidades” de empregos que os contemplasse.

Há também a individualização da política, a crença de que as soluções não deveriam ser coletivizadas, já que o futuro depende do esforço de cada um. É nesse sentido que programas de transferência de renda, como o antigo Bolsa Família, soam como aberrações.

Essa visão de mundo se encaixa muito bem ao contexto familiar; o esforço individual é um valor transmitido às próximas gerações como forma de fazer surgir um país menos desigual. Bicos e trabalhos por conta própria são mais que o corre cotidiano, são a saída para o país.

Descartáveis não apenas no mercado, mas em seus próprios corpos, já que são objeto da violência urbana, materialmente insatisfeitos, mas convencidos pela narrativa do empreendedorismo, integrantes da classe C veem no Brasil um estado de pré-contrato social, um conflito cotidiano em que cada um luta por si e pelos seus.

Lidar com essa experiência da maioria da população é o desafio da eleição de outubro. Há caminhos possíveis para diálogo, e o primeiro deles é refinar o discurso em torno da CLT. Criada para promover segurança, ela não se encaixou em um país em que os empregadores são eles mesmos parte da base da pirâmide.

É preciso ainda reestabelecer alguma confiança em soluções públicas para os problemas do Brasil. As ineficiências do Estado têm contribuído para a desconfiança nutrida diante de qualquer proposta de política pública endereçada a grupos mais vulneráveis.

Milhões de brasileiros compõem esse vasto campo dos que não recebem benefícios dos programas do governo e nem acessam os melhores empregos.

Essa condição se transforma em uma posição social que, há quase uma década, dá o tom também da política nacional. O conservadorismo dos descartáveis está posto, e o desafio é agir agora para que ele não permaneça no horizonte do Brasil.

Eleitor civilizado não tolera ver o país atolado na lama da extrema direita, por Marcelo Leite.

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Hora de mostrar que Brasil não seguirá irracional, ecocida, racista, misógino e homofóbico

Marcelo Leite, Jornalista de ciência e ambiente, autor de “Psiconautas – Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (ed. Fósforo)

Folha de São Paulo, 25/09/2022.

Esta é a última coluna do mês, chance derradeira de opinar sobre a eleição de domingo que vem. Invertendo o passo titubeante de Fernando Henrique Cardoso sobre o muro, cabe indicar não as razões para eleger alguém (todos sabem quem), mas para escorraçar os que se empenham em apodrecer o Brasil.

São quase quatro décadas escrevendo sobre ciência e meio ambiente, portanto sobre mudança climática, desmatamento e povos indígenas. Poucos e valentes companheiros levam essa cobertura à frente, mas viram nos últimos quatro anos um retrocesso sem par.

A floresta amazônica nunca esteve tão ameaçada. O corte raso recrudesceu e voltou ao patamar de cinco dígitos, em quilômetros quadrados, abaixo do qual se conservara por uma década inteira. Teme-se que o bioma entre em colapso, interrompendo a bomba hidrológica que irriga o país.

Não é só a Amazônia. O cerrado sofre mais, proporcionalmente, perdendo cobertura vegetal e enorme biodiversidade para a agropecuária. A mata atlântica, quase extinta, volta a ser ameaçada após tímida regeneração. Pantanal em chamas, caatinga desprezada.

Terras indígenas sucumbem ao assédio de invasores, em especial garimpeiros tidos como empreendedores e heróis no Planalto. Assassinatos, estupros e doenças vêm no rastro de suas retroescavadeiras. Nenhum centímetro de demarcação.

Ibama e ICMBio manietados na missão de fiscalização e controle, erodidos por dentro, a mando de sicários alçados a dirigentes. O equivalente a instalar um negro racista no comando de políticas contra a discriminação racial e a favor da cultura afro-brasileira.

Policiais e generais no topo da Funai. Um ex-astronauta vendedor de travesseiros e bugigangas para cuidar de ciência, tecnologia e inovação. Um almofadinha tocador de boiada no Ministério do Meio Ambiente. A musa do veneno na pasta da Agricultura. Um advogado do diabo no MPF.

Banda podre do agronegócio acima de tudo, grileiros e madeireiros pra cima de todos. Pastores argentários na linha de frente do farisaísmo, entrando pela porta dos fundos do MEC e pela porta da frente do Alvorada, enchendo as burras enquanto esgotam o bom senso de damas em transes pentecostais no palácio.

Irracionalismo e negacionismo campeiam. Dados só valem quando confirmam aquilo em que se põe fé. Fato e opinião se equivalem. Se um luminar diz que universidades públicas se distinguem por cultivar maconha, deixa de ser criminoso relegá-las à míngua e estimular o êxodo de cérebros.

Uma conversa retrógrada sobre segurança pública privilegia o armamento da população, quer dizer, daquela franja de machistas que se sentem ameaçados por mulheres assertivas e LGBTQIA + à vista de todos. Surpresa! —feminicídios e homofobia em alta.

O crime organizado pelo tráfico e pelas milícias condecoradas da família festejam. Armas e munições amontoados por CACs chegam depressa às mãos dos bandidos, que matarão mais competidores e inocentes na linha de tiro, além de policiais que tombam numa guerra insana.

Orçamentos secretos financiam máfias parlamentares no centrão do Congresso. Elogia-se a tortura, e nada acontece. Caluniam-se urnas eletrônicas que os elegeram, recrutam-se para fiscalizá-las militares que mal sabem pilotar escrivaninhas.

Nem nos momentos mais escuros da ditadura militar o Brasil desceu tão baixo, porque os generais e seus torturadores não eram eleitos. Os que hoje enxovalham o país foram escolhidos pelos eleitores. Os que tiverem vergonha na cara podem mudar tudo isso —no voto.

É hora de recobrar a sobriedade, por Oscar Vilhena Vieira.

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A eleição deste ano é crucial para nosso futuro como nação democrática

Oscar Vilhena Vieira, Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.

Folha de São Paulo, 24 setembro 2022.

O mundo vem enfrentando um forte processo de regressão democrática. Na última década, 30 países, que congregam cerca de 26% da população mundial, deixaram de ser considerados democracias eleitorais, elevando para 5,4 bilhões o número de pessoas vivendo sob regimes autocráticos. Ou seja, nada menos que 70% da população mundial vive hoje sob regimes não democráticos.

Outros 35 regimes democráticos, entre os quais o brasileiro, vêm passando por um processo de erosão a partir de 2011, marcado por uma crescente polarização tóxica, ampliação das restrições à liberdade de expressão, manipulação de regras eleitorais e ataques ao poder judiciário. Importa salientar a natureza incremental desses processos contemporâneos de regressão democrática, que se consolidam, sobretudo, com o segundo mandato de líderes populistas autoritários.

É neste contexto global de enfraquecimento da democracia que os norte-americanos foram às urnas em 2020 e mais de 150 milhões de brasileiros estão aptos a irem às urnas no próximo dia 2 de outubro. A derrota eleitoral de Trump levou a uma grotesca tentativa de golpe de Estado na mais antiga democracia do mundo. No Brasil o presidente Jair Bolsonaro tem advertido que não aceitará um resultado que lhe seja adverso.

Não se pode tomar as próximas eleições brasileiras, portanto, como um evento ordinário na vida política nacional.

Dois são os desafios. Em primeiro lugar é preciso evitar algum curto-circuito no processo eleitoral. A sociedade organizada e as diversas instituições precisam entrar em vigília cívica para esvaziar iniciativas maliciosas de subverter o processo eleitoral, como ocorreu nos Estados Unidos. À Justiça Eleitoral cabe com exclusividade a apuração dos resultados. Quaisquer tentativas de sabotagem do processo eleitoral ou de usurpar competência do Tribunal Superior Eleitoral constituem crime e devem ser repudiadas.

O principal desafio, no entanto, recai sobre o eleitor. Numa eleição normal, o dilema incide sobre escolher políticas mais conservadoras, liberais ou progressistas. Nesta eleição, no entanto, o que está em jogo é a própria sobrevivência de nossa democracia, a possibilidade de continuarmos a poder fazer escolhas e coordenar nossos conflitos de maneira pacifica.

Um segundo mandato de Jair Bolsonaro fragilizaria ainda mais o Estado de direito, o pluralismo político, a laicidade do Estado, os direitos fundamentais (especialmente de negros e indígenas), o processo eleitoral, os mecanismos de controle da corrupção, o processo orçamentário (como expressão dos esforços da sociedade para enfrentar seus principais desafios), o meio ambiente, assim como as políticas sociais voltadas a assegurar o bem-estar da população mais vulnerável. Ainda fortaleceria o crime organizado, a intolerância política e religiosa, grupos radicais e a difusão de armas. A reeleição de Bolsonaro também aprofundaria o processo de isolamento internacional do Brasil, ferindo nossos interesses econômicos e estratégicos.

Trata-se, portanto, de uma eleição crucial para nosso futuro como nação democrática, plural e consciente de nossas responsabilidade e oportunidades nos campos do clima e da segurança alimentar de todo o planeta.

Se a polarização tóxica que marcou a eleição de 2018 impeliu muitos eleitores a fazer escolhas irracionais, que a dramática experiência desse período de arbítrio, obscurantismo e anormalidade contribua para que o eleitor brasileiro recobre sua serenidade e sensatez.

O futuro que escolhemos, por Ilona Szabó de Carvalho.

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Está em jogo nas eleições o direito das próximas gerações de viver em um planeta habitável

Ilona Szabó de Carvalho, Empreendedora cívica, mestre em estudos internacionais pela Universidade de Uppsala (Suécia). É autora de “Segurança Pública para Virar o Jogo”.

Folha de São Paulo, 21/09/2022

Estamos às vésperas das eleições mais consequentes para o país desde a ditadura militar. Para além da democracia, está em jogo o nosso futuro e o direito das próximas gerações de viver em um planeta habitável. Não há exagero nesta afirmação. Nossa floresta amazônica é peça-chave da luta coletiva pela regulação climática planetária. Meu pedido é para que, ao votar, tenham consciência desta questão.

A real dimensão do potencial do Brasil para se tornar uma potência verde não está posta em nenhuma das candidaturas majoritárias. Mas pode ser construída, ao menos que por enorme desventura e para o azar da humanidade, caso seja mantido o curso político atual. Desconsiderando este último cenário, compartilho uma sucinta visão e missão para o país, que considero viável de ser colocada em prática por quem assumir a responsabilidade e o peso das canetas com o interesse público como guia.

A partir de janeiro de 2023, o Brasil deve se reerguer e assumir a liderança global da transição justa para uma economia de baixo carbono e com soluções baseadas na natureza. Podemos estar na vanguarda da mobilização de países que estão trabalhando em parcerias multisetoriais para reverter a tripla crise planetária —que inclui a disrupção climática, a poluição e a perda de biodiversidade e natureza.

Para tal, precisamos ter uma ambição muito maior nas agendas climática e ambiental, resolver de uma vez por todas os problemas que já deveriam ter ficado no passado, e pactuar a nossa agenda de futuro. Isso implica pensar políticas para as pessoas e para o planeta de forma integrada. Trazer quem ficou para trás de forma definitiva, para um modelo econômico novo, verdadeiramente circular, inclusivo e sustentável.

E o que nos garante que podemos alcançar tudo isso?

Primeiramente, temos um enorme ativo estratégico, a Amazônia —a maior floresta tropical do planeta. Também temos o potencial de regenerar nossos outros biomas, ainda mais destruídos e degradados. Isso nos traz a chance de ser uma economia desenvolvida de base florestal, com ênfase em mercado de carbono, bioeconomia, biotecnologia, turismo sustentável, e outras atividades econômicas compatíveis com as florestas de pé.

Precisamos aproveitar essa abundância de biodiversidade e aumentar a complexidade econômica dos produtos da floresta. Essa visão não só não impede de garantir a segurança alimentar dos brasileiros e outras populações do globo como é fundamental para manter nossa vantagem competitiva, investindo em uma indústria mais produtiva, regenerativa e sustentável, alinhada ao conhecimento mais atual disponível. Mas, por certo, não devemos mais nos limitar a ser grandes somente na economia primária.

Em segundo lugar, podemos ser um país com matriz energética totalmente renovável, e assim rapidamente transformar nossas indústrias pesadas, como a siderúrgica e a cimentícia por exemplo, investindo em ciência e tecnologia para desenvolver processos de produção de primeira linha. Com a amônia verde, podemos também nos tornar independentes em fertilizantes e ainda exportar energia renovável como o hidrogênio verde.

Isso demandará do novo governo o fim dos subsídios que nos ancoram no atraso, e a criação dos incentivos certos que nos antecipam o futuro. Será também fundamental garantir a segurança jurídica para atrair os investimentos responsáveis e pacientes. Desta forma, não só recuperaríamos o papel de destaque que sempre tivemos no cenário multilateral, mas teríamos a chance real de deixar de ser um dos líderes do mundo em desenvolvimento e passar a ser um país desenvolvido.

Se essa for a ambição da sociedade, será a do novo governo, desde que ele seja um governo democrático —aberto às interações e à construção coletiva. Já pensou que futuro você vai escolher nas urnas no dia 2 de outubro?

Sistema Único de Saúde

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As políticas públicas são instrumentos fundamentais para melhorarmos os indicadores econômicos, sociais e políticos, garantindo a sobrevivência digna para todos os cidadãos, aumentando as oportunidades de trabalho e de desenvolvimento e contribuindo para que possamos sonhar com um futuro melhor, mais decente e com oportunidades crescentes, mesmo percebendo que vivemos numa sociedade que cultiva as incertezas, as instabilidades e as volatilidades.

Neste cenário, no final dos anos oitenta, surge na sociedade brasileira um projeto ambicioso e dotado de grande potencial humanístico, neste momento nasce o Sistema Único de Saúde (SUS), centrado em princípios como a equidade, a universalidade, a integralidade, a descentralização e o controle social. Esta política pública tem como princípio basilar a universalização do acesso às ações e serviços de saúde, garantindo que todos os cidadãos tenham direito a serviços de saúde, sem privilégios ou exclusões e sejam atendidos conforme suas necessidades, de forma resolutiva, considerando-se ainda as necessidades coletivas. O surgimento do SUS pode ser visto como um marco fundamental de civilidade e de humanismo, afinal, fomos o primeiro e único país do mundo, com mais de 100 milhões de pessoas, que garantiu saúde universal para todos os seus concidadãos.

A criação do Sistema Único de Saúde (SUS) fez com que a saúde se transformasse num direito de todos os cidadãos, exigindo da sociedade a criação de instrumentos financeiros para financiar esta política pública, extraindo impostos da coletividade visando garantir que este direito fundamental seja uma prioridade nacional, universalizando os serviços de saúde, melhorando os indicadores sanitários e para o incremento da produtividade da mão de obra.

Antes do surgimento do SUS, apenas pessoas com vínculos formais de trabalho (carteira assinada) ou que estavam vinculados à previdência social poderiam dispor dos serviços públicos de saúde. As demais pessoas deveriam pagar pelos serviços privados ou contariam com a assistência médica de instituições filantrópicas, que não conseguiam atender o grande contingente de pessoas nesta condição, com isso, as condições sanitárias eram sofríveis e preocupantes.

A criação do SUS deve ser vista como uma medida ousada e visionária, desde então o sistema carece de recursos financeiros para garantir que os princípios criados nesta política pública sejam efetivados, com isso, percebemos as dificuldades de subfinanciamento e as deficiências de gestão de recursos, gerando críticas e descontentamento de uma parcela significativa da comunidade, mesmo sabendo que poucos cidadãos conhecem a importância e a centralidade desta política pública para melhorar os indicadores sociais e as condições de sobrevivência da população.

Vivemos um momento de grandes desafios, marcados pela pós-pandemia, por deficiências sanitárias que remontam a séculos, o incremento de doenças infecciosas, como a tuberculose, a sífilis e a varíola, aliadas ao envelhecimento da população nacional, o câncer e as doenças cardiovasculares, além de transtornos mentais, psicológicos e emocionais, além das demandas geradas pela pandemia, com isso, percebemos que estamos vivendo um momento de grandes reflexões sobre o modelo de saúde pública e um momento de fazermos escolhas fundamentais que exijam uma nova estrutura tributária, novas formas de gestão e de financiamento para fortalecermos o bem-estar da população.

O Sistema Único de Saúde (SUS) deve ser visto como uma política pública exitosa e de grande potencial humanístico, mas ao mesmo tempo retrata uma sociedade bipolar e fortemente desigual, marcada por grandes avanços científicos e tecnológicos na área da saúde e, ao mesmo tempo, centrada no atraso, no desperdício, na ganância e nas deficiências do saneamento básico. O Sistema Único de Saúde é um retrato verdadeiro do Brasil.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Comportamental, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 21/09/2022.

A preocupante expansão das milícias

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Em 16 anos, milicianos ampliaram seu território em mais de 130% no Rio. Crescimento acelerado, capilarização do crime e defasagem das instituições de repressão são grande desafio

Notas & Informações, O Estado de São Paulo – 18/09/2022

Há quatro décadas grupos armados expandem seu domínio territorial na região metropolitana do Rio de Janeiro.

Segundo o Mapa dos Grupos Armados, do Grupo de Estudos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense e do Instituto Fogo Cruzado, nos últimos 16 anos o crime organizado ampliou seus territórios em 131%, saltando de 8,7% da área urbana habitada para 20%. O fato novo é que as milícias estão se tornando a principal ameaça à segurança no Rio.

Nesse período, enquanto as áreas sob domínio do Comando Vermelho (CV) cresceram 59% e seu controle sobre a população cresceu 42%, o domínio territorial das milícias aumentou 387% e o populacional, 185%. Sua participação sobre as áreas controladas pelo crime subiu de 24% para 50%, enquanto a do CV caiu de 59% para 40%. No domínio sobre a população, se a participação do CV caiu de 54% para 46%, a das milícias subiu de 22% para 39%.

A pesquisa destaca dois marcos na expansão das milícias. O primeiro no início dos anos 2000, quando havia ambiguidade sobre o papel das milícias no debate público e nas arenas políticas. Esse crescimento foi freado a partir de 2008, quando a CPI das Milícias desbaratou parte da arquitetura do crime. Desde 2017, contudo, a expansão explodiu, em parte pelas disputas entre o CV e o PCC pelas rotas internacionais da droga, em parte pela crise socioeconômica de 2015, e em parte pela gestão de segurança estadual, que, desde o governo de Wilson Witzel, se caracterizou pelo incentivo ao uso desmedido de força letal e pela autonomização das polícias em relação a diretrizes, metas e protocolos estabelecidos por políticas de Estado.

A expansão das milícias não só é quantitativamente maior que a do narcotráfico, mas é qualitativamente mais complexa. “O tráfico de drogas é a criminalidade desorganizada; ele atua na interface com o Estado de maneira muito mais precária”, explicou um pesquisador. “Já os milicianos têm uma relação de tolerância e participação direta de agentes públicos. É um mercado de atuação muito mais diversificado e articulado do que o do tráfico, que é, basicamente, um varejo de droga. Os milicianos controlam a água, a internet, o transporte; ou seja, toda a infraestrutura urbana da cidade é produzida com a mediação desses grupos.”

Trafegando na zona cinzenta entre a legalidade e ilegalidade, as milícias contam com uma dupla vantagem, política e econômica. O que as diferencia é precisamente a participação de agentes públicos, como policiais da ativa e da reserva, juízes ou parlamentares. Assim, elas não só são mais eficientes que o narcotráfico em criar um “Estado paralelo” em seus territórios, como se infiltram no Estado, pervertendo-o a seu favor. Isso facilita, por exemplo, a obstrução de investigações, assim como o emprego das forças policiais para retaliar adversários do narcotráfico – os dados mostram que as ações policiais são bem menores em áreas controladas pelas milícias do que nas controladas pelas facções. Além disso, as milícias são favorecidas por agentes públicos em seu mercado legal e ilegal, sobretudo imobiliário.

A sua expansão impõe novos desafios. Primeiro, uma atualização da legislação, já que o complexo de crimes das milícias ultrapassa os delitos tipificados no Código Penal. Além disso, não há uma dimensão oficial do fenômeno nem políticas integradas de prevenção e enfrentamento. Operações policiais, além de frequentemente ineficazes e catastróficas para a população, vêm sendo instrumentalizadas pelas milícias a favor de sua expansão. Mais importante seria sufocar a fonte do vigor das milícias, o clientelismo de atores estatais, com mais regulamentação, transparência e prestação de contas sobre o que se passa nos mercados urbanos.

Em suma, a expansão das milícias é triplamente alarmante: pela sua velocidade e diversificação; pela sua capilarização na economia e na política; e pela defasagem das instituições responsáveis por investigá-la e reprimi-la. A menos que esse mal seja extirpado pela raiz, no futuro o Rio de Janeiro será lembrado como apenas o foco de uma metástase nacional.

7 de Setembro, por Leonardo Avritzer e Eliara Santana.

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A Terra é redonda – 13/09/2022

A data foi sequestrada, mas o ‘imbrochável’ não surtiu efeito

O 7 de setembro deste ano, momento no qual o Brasil celebrou 200 anos de independência, foi completamente sequestrado pelo bolsonarismo e sua necessidade de mobilização eleitoral. Num dia que deveria ser festivo para o país, data nacional e não momento de campanha, o Brasil assistiu ao espetáculo grotesco de um presidente que, praticamente sozinho no palanque, ficou exaltando as virtudes de sua suposta virilidade. Ainda que esse tenha sido um momento patético da história nacional, é importante perceber outros movimentos, que foram desconsiderados pelos principais analistas, mas que apontam na direção da superação do bolsonarismo.

Em primeiro lugar, vamos destacar a evidente falta de apoio institucional a Bolsonaro: no palanque, no dia do evento, o presidente estava sozinho como protagonista daquele espetáculo questionável – ao seu lado, somente o vice-presidente, Hamilton Mourão, o presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, e o empresário Luciano Hang, que é alvo de operação da Polícia Federal autorizada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes. Nenhum representante dos outros Poderes da República estava ali – nem mesmo o aliado Arthur Lira, do Centrão, sinalizando um aprofundamento do isolamento institucional do presidente.

Vale recordar o que foi o evento do 7 de setembro de 2021, quando o presidente Jair Bolsonaro atacou fortemente os outros poderes da República, em especial o Judiciário, na figura do STF, demonstrando, naquele momento, boa capacidade de desestabilizar as relações entre os Poderes e a democracia brasileira. Uma comparação entre aquele momento com o atual 7 de setembro mostra as fraquezas do capitão na sua campanha pela reeleição e pela desestabilização da democracia no Brasil.

Em 2021, Jair Bolsonaro usou o evento como auge de sua disputa com o STF, em torno do direito de divulgar fake news e de desestabilizar as instituições. Naquele momento, Jair Bolsonaro, ao convocar caminhoneiros a Brasília, defender o fechamento do STF e desafiar o ministro Alexandre de Moraes, afirmou: “Ou o chefe desse Poder enquadra o seu ou esse Poder pode sofrer aquilo que não queremos, porque nós valorizamos, reconhecemos e sabemos o valor de cada Poder da República”. Ou seja, ameaças reais ao STF foram feitas em 2021. Mas, neste ano, independentemente do fato de Jair Bolsonaro ter sequestrado as comemorações do 7 de setembro como ato de campanha, é importante considerar que os limites da capacidade do presidente de desestabilizar as instituições democráticas já ficaram bem mais claros.

A ação preventiva do STF contribuiu fortemente para impor esse limite: mesmo com a dimensão da mobilização já convocada pelos aliados bolsonaristas e pelo próprio presidente, o Supremo proibiu o acesso de caminhões à Esplanada dos Ministérios, em Brasília. Num claro embate e desrespeito ao STF, o presidente Jair Bolsonaro autorizou a entrada dos caminhões, mas foi imediatamente desautorizado pelo governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha. Assim, Jair Bolsonaro não teve condições de usar sua capacidade de mobilização para desafiar o STF e acabou desautorizado por outras autoridades, como foi o caso do governador do Distrito Federal.

Em terceiro lugar, e ainda mais importante, vale ressaltar que, em 2021, vários setores das polícias militares, em especial a PM de São Paulo, corriam o risco de aderir, por meio de seus comandantes, às manifestações bolsonaristas. O então governador João Doria acabou demitindo o comandante da PM no interior de São Paulo, Aleksander Lacerda, que convocava abertamente a adesão às manifestações e atacava o ministro do STF, Alexandre de Moraes. Neste ano, não vislumbramos nenhum movimento nessa direção, e até mesmo as Forças Armadas dissuadiram o presidente em relação às suas intenções de militarizar as comemorações no Rio de Janeiro.

O ‘imbrochável’ não surtiu efeito

A série de monitoramentos feita pelo Observatório das Eleições durante toda a semana do 7 de Setembro – especialmente nos dias 6, 7 e 8 –, mostrou elementos importantes para confirmar essa incapacidade do bolsonarismo de desafiar as instituições nesta reta final de campanha em 2022. Ainda que mantenha um engajamento maior nas redes sociais, a demonstração de força por parte do bolsonarismo não se consolidou – no Facebook, por exemplo, os números de interações com publicações sobre a Independência foram menores em comparação com 2021, principalmente entre os apoiadores do presidente Jair Bolsonaro.

A publicação no dia 7 com o discurso de Jair Bolsonaro alcançou apenas 1,5 milhão de visualizações – em 2021, a divulgação de um vídeo da página de Jair Bolsonaro com sua participação no desfile de Brasília rendeu mais de 8 milhões de visualizações; no Youtube, os vídeos mais visualizados foram aqueles com críticas ao comportamento e ao discurso do presidente.

Em termos de narrativas que surgiram e ganharam corpo após as comemorações do bicentenário da independência, tiveram destaque aquelas com tom crítico ao discurso do presidente – elas tiveram mais visualizações e engajamento; a questão do machismo surgiu com bastante força, e foi expressiva a presença de conteúdos negativos para a imagem de Jair Bolsonaro em escala nacional e internacional no Twitter. O engajamento dos usuários com tuítes se deu, essencialmente, com conteúdos publicados por opositores a Jair Bolsonaro, e além de menções negativas à postura presidencial, observou-se a utilização de tom humorístico e irônico nas publicações para abordar o assunto. Um dado importante: os tuítes com maior replicação (retuitados) no dia 7 foram de publicadores do jornalismo tradicional, ou seja, jornalistas, preferencialmente mulheres, e com tom crítico ao discurso do presidente.

A cena patética da demonstração pública de uma autoproclamada virilidade, quando o presidente da República puxa para si o coro de “imbrochável” não surtiu efeito nenhum na demonstração de força do presidente. Parece até que foi um tiro pela culatra que confirma a perda paulatina de vigor do bolsonarismo.

*Leonardo Avritzer é professor titular do departamento de Ciência Política da UFMG. Autor, entre outros livros, de Impasses da democracia no Brasil (Civilização Brasileira).

*Eliara Santana é jornalista, doutora em linguística e língua portuguesa pela PUC-Minas.

Será que é fascismo? por Silvio Almeida.

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Mussolini poderia ter sido contido; mas quem poderia não soube ou não quis fazê-lo

Silvio Almeida, Advogado, professor visitante da Universidade de Columbia, em Nova York, e presidente do Instituto Luiz Gama.

Folha de São Paulo, 17/09/2022

O clima de violência política instalado no Brasil pelas palavras e ações do presidente/candidato Jair Bolsonaro e seus apoiadores tem suscitado o questionamento sobre se estamos ou não às portas do fascismo.

Esta questão não é nova: muita gente, mesmo antes das eleições de 2018, já chamava a atenção para o modo como o discurso de ódio, a defesa da gestão militarizada da vida social, a banalização da morte e o desprezo pelo sofrimento humano compunham o figurino do candidato que tornar-se-ia presidente do Brasil.

Frente à escalada da violência na reta final das eleições, mesmo quem antes negava os pendores fascistas do atual governo brasileiro tem refeito a pergunta: estamos realmente caminhando para o fascismo ou dizer isso é mero abuso retórico?

Se toda comparação histórica exige cuidados, parece-me que só a história é que nos pode auxiliar no deslinde de questões complexas. Portanto, se queremos saber se e como a lógica do fascismo é capaz de se manifestar para além das circunstâncias históricas de sua gestação —a Itália dos anos 1920—, devemos analisar o que foi o fascismo em sua origem.

Para tanto, retornei a um importante livro intitulado “Mussolini e a ascensão do Fascismo” (Editora Agir, 2009), de Donald Sassoon. Neste livro, o historiador descreve como os fascistas se apoderaram do Estado italiano fazendo uso da violência política e contando com a conivência de parte expressiva da sociedade.

Segundo o autor, nos seis primeiros meses de 1921, “os fascistas destruíram 119 Câmaras do Trabalho, 59 círculos culturais socialistas, 107 cooperativas, 83 escritórios das Ligas da Terra (associações de trabalhadores agrícolas), gráficas socialistas, bibliotecas públicas e sociedades de ajuda mútua, num total de 726”.

Entre fevereiro e maio de 1921 “dirigentes socialistas foram intimidados e espancados, e em certos casos assassinados; cooperativas socialistas e do trabalho e agências de emprego foram deixadas em ruínas”. Os “camisas negras” —como eram conhecidas as milícias fascistas— gozaram de ampla liberdade para realizar suas “expedições punitivas”, que tinham como alvo preferencial os “vermelhos”.

Além disso, “o apoio tácito ou declarado das polícias foi decisivo para o sucesso do fascismo”, conta-nos o autor.
Já a imprensa italiana, que nos anos seguintes seria censurada e perseguida, com raríssimas exceções, apenas oscilou entre “um vago desconforto” com o que considerava “excessos fascistas”, e uma “resignada aceitação do fato de que indivíduos truculentos tivessem de se desincumbir daquilo que as classes dominantes não queriam e não eram capazes de fazer”.

Quanto ao empresariado, Sassoon diz que após a Marcha sobre Roma, a maioria dos industriais “deu boas-vindas ao fascismo, assim como a maior parte do establishment liberal”. Não que todos pensassem da mesma forma, todavia, um fator foi decisivo para o silêncio eloquente ou o apoio declarado por parte do empresariado: a necessidade de achatar os salários diante da baixa produtividade italiana comparada aos concorrentes estrangeiros.

“Havia, bons motivos para se posicionar contra greves, sindicatos e socialistas, alinhando-se com aqueles que reprimiam greves, incendiavam as propriedades dos socialistas e consideravam como traidores os trabalhadores filiados a sindicatos”, diz Sassoon.

A recompensa por tão relevante apoio veio com a nomeação de Alberto De Stefani para o Ministério das Finanças, nas palavras de Sassoon, “um intransigente liberal”. De Stefani “reduziu impostos, aboliu isenções fiscais que beneficiavam contribuintes de baixa renda, facilitou as transações com ações e a evasão fiscal, […], eliminou a regulamentação dos aluguéis, privatizou os seguros de vida e transferiu a gestão do sistema de telefonia para o setor privado”. E nos 20 anos de fascismo não houve com o que se preocupar: os aumentos de salário foram contidos pelo governo.

O livro encerra com a lembrança de que, apesar de tudo parecer muito linear e inexorável, “não é assim que avança a história”. Para ele, Mussolini poderia ter sido derrotado, “mas aqueles [à época] capazes de bloquear a sua trajetória —os liberais, a esquerda, a Igreja, a monarquia— não souberam ou não quiseram fazê-lo, caminhando para 20 anos de ditadura como se tivessem os olhos vendados”.

Agora, volto ao Brasil e à pergunta inicial: é fascismo ou não?

Pragmatismo

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A economia vem passando por grandes transformações nas últimas décadas, com incremento da concorrência, investimentos crescentes em inovação, surgimento de novos modelos de negócios, oligopolização dos mercados, fragilização do mercado de trabalho, aumento das desigualdades sociais, conflitos entre nações e desesperanças crescentes, gerando novas relações entre os governos e os setores produtivos. Neste momento, muitas ideologias perderam espaço e o pragmatismo ganhou relevância na sociedade, norteando novas relações sociais e políticas entre os atores econômicos.

O mundo contemporâneo é muito mais complexo do que muitos economistas de mercado e de analistas neoliberais vislumbram, estes acreditam, ainda, na existência de conceitos ultrapassados como a concorrência perfeita e a mão invisível do mercado, pressupostos que perderam relevância e não auxiliam na compreensão dos grandes desafios do mundo global, centrados na competição, dos grandes oligopólios, das guerras comerciais e da integração entre Estados Nacionais e os mercados, buscando garantir novos espaços e novos modelos de negócios.

A sociedade do conhecimento prescinde da integração entre o mercado e o setor público, todas as nações que conseguiram se desenvolver, melhorando as condições de vida de suas populações, conseguindo acumular recursos e riquezas, melhorando a produtividade de seu capital humano, contaram com fortes investimentos públicos, recursos geopolíticos e diplomáticos estratégicos, bancos de desenvolvimento com taxas de juros atrativas, além de estímulos fiscais e financeiros para impulsionar a inovação e o espírito empreendedor, sem os recursos governamentais estratégicos, suas nações, hoje desenvolvidas, continuariam distantes do sonho do desenvolvimento econômico.

Muitos analistas do cenário internacional acreditam que estamos vivendo um novo modelo econômico, centrado no conhecimento, na ciência e na imaterialidade, levando os governos a investirem grandes recursos monetários e financeiros para garantirem o predomínio dos novos modelos de acumulação. Neste ambiente, percebemos conflitos crescentes nos mercados de semicondutores, os chamados chips, onde poucas nações conseguiram dominar este mercado altamente sofisticado, complexo e de grande rentabilidade. Nesta competição, percebemos países como os Estados Unidos, Taiwan, Coréia do Sul e China, além do Japão e Europa, concorrendo diretamente, dispendendo trilhões de dólares para garantir ganhos substanciais, além de seu poder geopolítico como forma de pressionar os competidores e angariar novas tecnologias.

Neste conflito, além de investirem trilhões de dólares de recursos para desenvolver novos produtos, os governos impedem a compra de empresas nacionais por grandes conglomerados externos, justificando suas decisões em interesses nacionais e estratégicos, além de atrair os melhores profissionais para desenvolver novas tecnologias, seduzindo seus melhores engenheiros com regalias imensuráveis e aportes gigantescos de recursos financeiros.
O mundo contemporâneo nos mostra um espaço de concorrência de grupos oligopolistas permeados pelo auxílio de seus respectivos governos nacionais, com isso, o sonho dos mercados autorregulados descritos pelos liberais nos parece um verdadeiro conto de fadas e, principalmente, muitos analistas acreditam neste conto de fadas moderno ou se vendem hipocritamente para aqueles que ganham com estas teorias ultrapassadas, mas garantem grandes ganhos monetários e financeiros.

Vivemos num mundo marcado por grandes transformações e grandes concorrências, o pragmatismo cresce de forma acelerada, os Estados Nacionais são essenciais como reguladores, fomentadores e planejadores, além de construtores de um ambiente institucional sólido e consistente, como fizeram as nações desenvolvidas, além de injetarem altas somas monetárias para alavancarem seu desenvolvimento econômico e tecnológico. O discurso liberal, utilizado pelas nações desenvolvidas, não se efetiva internamente. Enquanto muitos países em desenvolvimento estão privatizando setores estratégicos e desestruturando os preços internos, outras nações estão reestatizando empresas estratégicas. Novamente, duzentos anos depois, o Brasil caminha contra o gradiente…

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 14/09/2022.

Robôs precisam se mover mais rápido para salvar o mundo, por Ruchir Sharma

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Os alarmistas dizem que a IA roubará empregos, mas as tendências demográficas subjacentes predizem a contínua escassez de trabalhadores

Ruchir Sharma – FINANCIAL TIMES

PUBLICADO FOLHA DE SÃO PAULO – 12/09/2022

Não muito tempo atrás, autores estavam produzindo livros terríveis sobre como “a ascensão dos robôs” levaria a “o futuro do desemprego”, em meio a previsões oficiais de que a metade de todos os empregos nos Estados Unidos estariam em risco com a automação, a partir de agora.

Relatórios recentes de empregos, entretanto, revelam uma ameaça diferente: não se os robôs substituirão o trabalho humano, mas se chegarão aqui rápido o suficiente para salvar a economia mundial da escassez de trabalhadores.

O desemprego mundial está em 4,5%, o menor desde que os registros globais começaram, em 1980. A escassez de mão de obra está em níveis históricos nas economias avançadas, incluindo o Reino Unido e os Estados Unidos. Existem agora 11,2 milhões de vagas para 5,6 milhões de candidatos a empregos nos EUA, a maior lacuna desde a década de 1950. Milhões de trabalhadores que se demitiram durante a pandemia ainda não retornaram, aumentando o desespero dos patrões.

Essas pressões estão fervendo hoje em grande parte porque o crescimento da população em idade ativa –as pessoas entre 15 e 64 anos– começou a diminuir, enquanto a proporção de idosos aumenta. O envelhecimento acelerado é, por sua vez, um resultado atrasado de mudanças sociais que começaram décadas antes: as mulheres têm menos filhos e a ciência amplia a média de expectativa de vida.

A população em idade ativa está diminuindo em quase 40 países, incluindo a maioria das principais potências econômicas, contra apenas dois no início da década de 1980. Os EUA estão caindo menos precipitadamente do que a maioria, mas estão na mesma situação básica. Mais que qualquer outro fator, um número menor de trabalhadores garante um crescimento econômico mais lento, então a maioria dos países precisará de mais robôs apenas para manter

o crescimento vivo.
Os tecnopessimistas ainda tocam o alarme, dizendo que o espectro de robôs roubarem empregos e reduzirem salários ressurgirá à medida que a pandemia desaparecer e os demissionários retornarem ao trabalho, o que pode acontecer… ou não. De qualquer forma, as tendências demográficas subjacentes predizem escassez contínua.

Entre os países mais atingidos estão China, Japão, Alemanha e Coreia do Sul –todos devem ver a população em idade ativa cair pelo menos 400 mil por ano até 2030. Não por coincidência, esses países já abrigam altas concentrações de robôs e estão produzindo mais. As fábricas do Japão utilizam quase 400 robôs por 10.000 trabalhadores, contra 300 há apenas quatro anos.

A China, à sua maneira de cima para baixo, está subsidiando fortemente os fabricantes de robôs, com o objetivo de aumentar sua produção em 20% ao ano até 2030. Mesmo nesse ritmo, preveem analistas da Bernstein, os robôs não podem preencher todas as vagas na força de trabalho, que a China espera reduzir para 35 milhões de trabalhadores nos próximos três anos.

Os governos podem responder à escassez de mão de obra de outras maneiras –pagando bônus aos pais para terem mais filhos, incentivando as mulheres a entrar ou voltar ao mercado de trabalho, recebendo imigrantes ou aumentando a idade de aposentadoria. Mas todos esses passos desencadeiam a resistência humana, especialmente numa era populista raivosa.

Os robôs provocam uma reação diferente, um vago medo das máquinas e da inteligência artificial que ganha forma principalmente nos livros, raramente em protesto contra o roubo de empregos. Enquanto isso, os robôs chegam silenciosamente à doca de carregamento, sem contestação.

Como inovações anteriores, os robôs matam algumas profissões e criam outras. O motor a gasolina tornou obsoleto o condutor de charrete puxado por cavalos, mas gerou o motorista de táxi. Cerca de um terço dos empregos criados nos EUA estão em campos que não existiam ou quase não existiam 25 anos atrás. E um terço “vai mudar fundamentalmente nos próximos 15 a 20 anos”, segundo a OCDE [Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico]. A tecnologia traz disrupção, não destruição seguida de nada –como implica o “futuro do desemprego”.

Cada robô pode substituir três ou mais trabalhadores fabris, o grupo mais atingido. Mas o grau de disrupção depende do ritmo da mudança, muitas vezes exagerado. Os analistas previam desde a década de 1950 que a IA completa chegaria em 20 anos, mas ainda não chegou. Alertas terríveis de que os veículos autônomos acabariam com um dos empregos mais comuns nos Estados Unidos –motorista de caminhão– deram lugar à escassez de caminhoneiros.

Agora, a recessão se aproxima, mas é improvável que o desemprego suba tanto quanto em crises anteriores, devido novamente à redução da força de trabalho. Menos trabalhadores deixarão o mercado de trabalho mais apertado do que o normal ao longo do ciclo de negócios, mesmo que os robôs continuem a se multiplicar.

Eles estão chegando na hora. Devido a uma queda inesperadamente acentuada nas taxas de natalidade, a ONU recentemente elevou sua previsão para o ritmo do declínio populacional, dos EUA à China. Leva anos para que os nascimentos afetem a força de trabalho, mas governos inteligentes agirão agora, atraindo mais mulheres, imigrantes, idosos e –sim– robôs para a força de trabalho. A outra opção é menos trabalhadores, automatizados ou não, e um futuro sem crescimento.