Fome e insegurança

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Os indicadores sociais são muito negativos na sociedade brasileira, em pleno século XXI o Brasil está se reencontrando com a degradação das condições de vida da comunidade, vivemos num país que se caracterizou pela fortuna gerada pela agricultura tropical, dotada de grandes extensões de terras, solo altamente fértil e grande contingente populacional que poderia ser visto como grande mercado interno, mas, infelizmente, retornamos ao mapa da fome, da desesperança e da insegurança, degradando as condições sociais de vida e reduzindo os investimentos produtivos e intensificando a chegada de especuladores, sem compromisso com a nação e interessado em ganhos imediatos.

Pesquisas recentes divulgadas pelo IBGE nos mostram que mais de trinta e três milhões de brasileiros passaram fome na sociedade nacional em 2021, sem alimentos os indivíduos se perdem nos escaninhos da degradação, perdendo peso, destruindo a dignidade e gerando desequilíbrios generalizados nas condições sociais, levando a sociedade a conflitos sangrentos, abrindo caminho para soluções políticas mirabolantes que aumenta a instabilidade e a exclusão social.

Neste ambiente, as grandes economias do mundo já perceberam que, neste momento de intensas incertezas, faz-se necessário reconstruir a atuação do Estado Nacional, reconstruindo as políticas públicas e aumentando a proteção social, garantindo empregos decentes e reduzindo a degradação das condições dos trabalhadores, com isso, o mercado interno que sempre teve um papel estratégico no desenvolvimento das nações, melhorando as condições sociais e garantindo o crescimento da produtividade, levando os setores produtivos a incrementarem seus rendimentos, relembrando os ensinamentos de Barbosa Sobrinho de que o capital se faz em casa.

Os pressupostos liberais são encantadores e sedutores, a ideia de que a competição tende a fortalecer a estrutura produtiva e estimular a alocação dos investimentos internos, levando a economia ao desenvolvimento econômico é uma grande falácia e uma inverdade, todas as nações que angariaram o tão sonhado desenvolvimento econômico contaram com fortes investimentos estatais, planejamento estratégico sofisticado, incentivos produtivos e cobranças constantes, além de metas claras e a busca crescente por novos mercados externos, garantindo o incremento da produtividade do trabalho.

Numa sociedade como a brasileira, marcada pelo crescimento da fome, inflação em ascensão, desemprego nas alturas e degradação das condições de vida e o incremento da desesperança, precisamos de mais Estado, mais investimentos públicos e novos instrumentos de fortalecimento das estruturas produtivas, garantindo a construção de empresas nacionais fortes, mercado interno consolidado, investimentos em ciência e tecnologia e inovação constante.

A pandemia está nos mostrando a importância da empatia e da solidariedade como forma de construir uma sociedade mais digna, adotando políticas inclusivas, estimulando investimentos produtivos, retomando a esperança da civilização, enterrando as estruturas putrificadas que persistem na sociedade brasileira e que ganham ares de inovação e modernidade.

A fome que perpassa a sociedade brasileira, ou melhor, a fome que ainda persiste no Brasil, é um descalabro moral da alta magnitude no país e nos mostra, claramente, como os valores estão degradados, como os interesses individuais sobrepõem os interesses coletivos, neste cenário estamos nos acostumando com a violência e com a insegurança que crassa e aumenta no cotidiano, matando jovens de todas as classes sociais, postergando soluções estruturais, defendendo soluções frágeis e limitadas, enriquecendo poucos grupos sociais e aumentado o medo e a indignidade.

Neste ambiente, percebemos um governo confuso, sem credibilidade, sem ousadia, sem projeto nacional e suplicando para que os supermercados segurem os preços e jamais, pedindo para que os bancos reduzam seus altos spreads e ganhos financeiros, mesmo sabendo que a fome cresce diuturnamente.

Ary Ramos da Silva Júnior, bacharel em Ciências Econômicas e Administração, especialista em Economia Comportamental (Unyleya), mestre, doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 15/06/2022.

Fukuyama mostra que esquerda e direita têm instintos de censura, por J. P. Coutinho,

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FRadicalizados, ambos os lados ignoram que o liberalismo não se confunde com os abusos cometidos em seu nome

João Pereira Coutinho, Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.
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olha de São Paulo, 13/06/2022.

Todas as profissões têm as suas piadas privadas. Entre os cientistas políticos, “Francis Fukuyama” e “o fim da história” é uma delas. Sempre que alguém junta essas duas frases, há sempre risos inteligentes e a frase fatal: “A história terminou com a queda do Muro de Berlim e depois veio o 11 de Setembro.” As gargalhadas aumentam de volume.
Sou insuspeito: várias vezes participei no deboche. Mas, aqui entre nós, a paródia assenta num equívoco: Fukuyama não disse que a história terminara com o fim da Guerra Fria. Ele apenas declarou que o modelo democrático-liberal era superior aos restantes. E não é?

Não discuto abstrações. Discuto migrações. As democracias liberais têm os seus competidores —em Cuba, Rússia, Turquia, China. Mas não vejo muita gente querendo emigrar para lá.
Pelo contrário: o desejo é o inverso. Fugir de lá e vir para cá. Será que uma parte da humanidade está seriamente equivocada?

Escutando os nossos extremistas de direita e de esquerda, não existe nada de valioso por estas bandas. O liberalismo é uma fraude: gera desigualdade, relativismo moral e apenas mascara relações de submissão e poder, em que as elites dominam o povo (versão da direita) ou em que o povo reacionário é um freio ao progresso (versão da esquerda). Hora de abandonar o barco?

Um pouco de calma, aconselha o injustiçado Francis Fukuyama no seu livro mais recente: “Liberalism and its Discontents”. É um dos melhores livros de Fukuyama.

Comecemos pelo básico: liberalismo é uma doutrina política que emergiu na segunda metade do século 17 com a ambição meritória de limitar o poder dos governos e proteger os direitos dos indivíduos.

Mas, antes de ser uma doutrina, é também uma descoberta: os indivíduos não são definidos pelo grupo a que pertencem, mas pela autonomia de que são capazes para fazerem as suas escolhas e viverem suas vidas.
É um pensamento nobre, nem sempre respeitado ao longo da história, mas que foi sendo realizado, a duras penas, na defesa da tolerância perante a diversidade, na proteção da economia de mercado e na luta por iguais direitos para todos.

Acontece que, no último meio século, direita e esquerda radicalizaram a própria noção de autonomia — e, com isso, desfiguraram as virtudes do liberalismo.

Para Fukuyama, a direita neoliberal pôs o mercado acima de qualquer outro valor social, ao mesmo tempo que demonizou o papel do Estado.

Esse fanatismo pagou-se com desigualdade, desemprego maciço nas indústrias tradicionais do Ocidente —e, claro, crises financeiras destrutivas que abriram as portas aos populismos do momento.

A esquerda identitária também se entregou a uma nova interpretação das “políticas de identidade”. Originalmente, a ideia era completar o liberalismo pela integração de grupos marginalizados no mesmo contrato social. A luta pelos direitos civis nos Estados Unidos é um dos melhores exemplos.

Mas a radicalização do conceito de autonomia por uma parte da esquerda teve dois efeitos só aparentemente contraditórios, escreve o autor: por um lado, levou os indivíduos a procurarem o seu ser autêntico, livre das amarras sociais; por outro, levou esses mesmos indivíduos a concluírem que as amarras eram mais fortes do que a essência prometida e nunca encontrada.

A dimensão universalista do liberalismo, em que todos somos iguais em direitos e deveres, deu lugar a uma nova tribalização da sociedade, em que os grupos, e não mais os indivíduos, rejeitam os próprios pressupostos do modelo liberal.

É assim que estamos, diz Fukuyama. A direita e a esquerda rejeitam o liberalismo pelas suas alegadas patologias econômicas e sociais sem entenderem que a maior patologia de todas é a forma drástica como o liberalismo foi sendo aplicado.

Essa confusão conceitual gera seus monstros: entre a direita, um nacionalismo que parece importado do século 19, como se fosse possível regredir no tempo e restaurar uma uniformidade moral, étnica ou religiosa.
Entre a esquerda, a mesma atitude reacionária que procura aprisionar os indivíduos em identidades estáticas, essencialistas e pré-modernas.

Em ambos os casos, os mesmos instintos censórios e paranoicos. Quem nos salva desse manicômio? Ler Fukuyama é um princípio de salvação: no diagnóstico do problema está já contido o esboço de uma terapia. Que o mesmo é dizer: defender as democracias liberais significa não jogar fora o bebê com a água do banho. O liberalismo não se confunde com os abusos que foram cometidos em seu nome.

Aumento do PIB não vai trazer ajustes fiscais para o País, Mendonça de Barros.

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Mesmo com resultado positivo, resposta do PIB ainda não pode ser levada a longo prazo quando se fala em ajuste fiscal

José Roberto Mendonça de Barros.

O Estado de São Paulo, 12/06/2022

Acho inacreditável que a melhora da relação dívida/PIB leve a interpretações da existência de um ajuste fiscal estrutural no País. Explico o porquê.

A aceleração da inflação reduz o coeficiente, porque o PIB nominal cresce mais rápido do que a dívida. Além disso, cai o salário mínimo e, em consequência, reduzem-se os gastos da Previdência. Da mesma forma, derruba a folha de salários em termos reais. O problema é que isso será revertido em prazo curto, tanto pela queda na inflação resultante dos juros altos como porque as grandes corporações irão brigar pela reposição salarial em 2023.

A arrecadação de impostos cresceu em boa parte por conta do choque de commodities. Ora, é bastante provável que o ciclo desses preços se reverta no próximo ano pela esperada redução no crescimento global.

Da mesma forma, o forte crescimento do PIB de 2021 teve efeitos positivos na coleta de impostos, que em parte são pagos neste ano, como o ajuste do Imposto de Renda. Isso não mais se repetirá, dadas as modestas projeções para 2022 e 2023.

Além disso, o processo orçamentário regular está completamente destruído por conta do crescimento das emendas parlamentares, especialmente as de relator. Essas transferências são paroquiais, mal distribuídas, pouco transparentes e de escasso efeito no crescimento. Basta pensar em obras inacabadas e shows sertanejos.

O pior de tudo é que não existe mais uma regra fiscal, pois o teto foi tantas vezes perfurado que virou uma ficção. Não há estabilidade macroeconômica sem uma âncora fiscal crível.

O populismo fiscal chegou com tudo. Convencido de que não ganhará a eleição com a inflação tão alta, o presidente da República, com o entusiasmado apoio do seu ministro da Economia, enviou para o Congresso um pacote de medidas que busca reduzir os preços da energia. Ele tem três elementos: a limitação do ICMS em vários produtos em 17%, a zeragem dos impostos federais nos combustíveis e um pretenso estímulo para que Estados reduzam a zero a alíquota desses produtos, pelo menos até depois das eleições. O pacote total tem o astronômico custo fiscal de R$ 90 bilhões em 12 meses.

O pior de tudo é que, mesmo se aprovado, os preços na bomba podem não cair. Dificilmente os Estados concordarão em, voluntariamente, reduzir a zero o ICMS. É esperado que até o fim do ano o preço internacional do petróleo suba ainda mais. E o real deve se desvalorizar em resposta à farra fiscal, como já ocorreu nos últimos dias.

A herança fiscal será lamentável.

É razoável que alunos mais ricos paguem mensalidade em universidades públicas? NÃO

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Criam-se grupos diferentes de alunos, e valores pagos tendem a crescer

Miguel Buzzar, Professor e vice-diretor do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP
Paulo Martins, Professor de letras clássicas e diretor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (FFLCH-USP)
Vladimir Safatle, Professor titular de filosofia da FFLCH-USP

Folha de São Paulo, 11/06/2022

Há perguntas que não são perguntas. Pois a maneira com que são construídas expressam a enunciação de uma certeza, não a abertura a uma questão. Colocar o problema da cobrança de mensalidades em universidades públicas como uma pergunta sobre se ricos deveriam ou não pagar para nelas estudar é o caso de uma pretensa questão que já claramente induz a resposta e naturaliza suas consequências.

Pois o problema poderia ter sido colocado de várias outras formas. Por exemplo: “a educação superior pública deveria deixar de ser gratuita?”; “pessoas pobres que estudam em universidades públicas deveriam, a partir de agora, submeter-se a decisões discricionárias sobre se terão ou não direito a bolsas?”; “o Estado deveria se desresponsabilizar sobre o financiamento integral de suas universidades públicas, que são responsáveis pela quase totalidade da pesquisa no país?”.

É claro que somos contra privilégios das classes mais ricas, mas o eterno tópico das mensalidades das universidades públicas é apenas uma maneira de fazer, na verdade, os pobres e a classe média pagarem para suas filhas e filhos obterem uma formação de qualidade. Pois a virtude do tempo mostra a verdade das intenções aparentemente justas e puras. Nos países onde o sistema universitário público adotou mensalidades, a história foi a mesma. Primeiro, a definição de quem é “rico” vai paulatinamente ampliando-se. Para termos um exemplo, 60% das alunas e alunos da Universidade de São Pulo vêm de famílias que ganham até 10 salários mínimos. Se uma família que ganha 10 salários mínimos, com pai, mãe e dois filhos, for considerada rica —e paga aluguel e plano de saúde e o ensino superior for pago—, um dos filhos terá que deixar de estudar, como aconteceu em vários países.

“Mas podemos criar bolsas de estudos para os que não podem pagar”, dirá o apóstolo da educação neoliberal. No entanto, por uma dessas coisas inexplicáveis que ocorrem em todos os lugares, o número de bolsas nunca é suficiente. Isso fez com que vários estudantes em várias partes do mundo tivessem que contrair dívidas para estudar, iniciando a vida profissional endividados. O que não deixa de ser uma bela maneira de fazê-los submissos a qualquer emprego que consigam o mais rápido possível.

A partir do momento que o Estado se desengaja pontualmente de suas universidades, ele tende a se desengajar integralmente. Isso faria com que as universidades aumentassem suas mensalidades, criassem grupos diferentes de estudantes (exemplo: os estudantes não paulistas pagariam mais que os paulistas para estudarem nas universidades paulistas) e cobrassem fortunas por “cursos de especialização” e “de verão”.

Já os ricos que deveriam pagar mensalidades fariam o que fazem cada vez mais atualmente, ou seja, enviariam seus filhos e filhas para estudarem em universidades estrangeiras. Mais à frente certamente ganhariam diminuição de impostos como benesse de um Estado com menos responsabilidade social —além de poderem contar em suas empresas com recém-formados docilizados pelo endividamento.

No entanto, se quisermos efetivamente fazer justiça social, sugerimos outra pergunta: “É razoável que ricos paguem impostos sobre grandes fortunas, sobre consumo conspícuo e transações financeiras para financiar um grande projeto de universidade pública, gratuita, de qualidade e popular?”. Afinal, ensino como direito humano deveria ter garantido seu acesso de forma universal.

O poder civil, por Luís Francisco Carvalho Filho.

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A volta dos militares é lenta, gradual e segura

Luís Francisco Carvalho Filho, advogado criminal, presidiu a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (2001-2004).

Folha de São Paulo, 11/06/2022

Militares da Marinha, em Santa Helena, no Paraná, exigem que pessoas baixem as calças durante revistas pessoais porque as Forças Armadas não estão submetidas a controle externo.

A Justiça Militar, que eventualmente pune um ou outro soldado infrator, quando flagrado pela opinião pública, mas sem incomodar comandantes, é historicamente cúmplice de incontáveis atos de violência e barbárie.

Ao apurar assassinatos (ainda que as “pretensas vítimas” sejam “inocentes”), a Justiça Militar define os “erros” como “plenamente escusáveis” e arquiva as investigações, normalmente preguiçosas e conduzidas por companheiros dos investigados.

A Marinha, tão desinibida quando, no âmbito da operação Ágata, para “repressão dos delitos transnacionais e dos crimes ambientais”, humilha transeuntes, é tímida ao reagir ao desaparecimento do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Philips, gente que, ao olhar de Bolsonaro e das Forças Armadas, se mete indevidamente na Amazônia.

A volta dos militares ao poder segue, de forma invertida, o plano da abertura democrática cunhado por Golbery e Geisel na década de 1970: “Lenta, gradual e segura”. Precisa ser interrompido.

Após o ciclo de 1964, os militares se recolhem, sem deixar, contudo, de influir na feitura da Constituição de 88. O poder civil vasculha os crimes da ditadura, mas torturadores e terroristas das Forças Armadas alcançam a impunidade.

Ao criar o Ministério da Defesa em 1999, Fernando Henrique Cardoso transmite a ilusão de que uma pá de cal é lançada na tradição golpista brasileira.

A ascensão militar recomeça com seguidas operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), que, politicamente, configuram pedidos de ajuda formal dos presidentes da República às Forças Armadas para o combate do sentimento de insegurança pública.

O Ministério da Defesa contabiliza desde a ECO 92, no Rio de Janeiro, 145 GLOs. Algumas passam despercebidas, como as que “garantem” realização de “pleitos eleitorais”. Outras são chamadas para grandes eventos, como a Copa do Mundo ou os Jogos Olímpico Jogos Olímpicos, ou para reprimir greves de PM e caminhoneiros, ou para combater a violência urbana —as que costumam deixar rastros de sangue e de abuso de poder.

Jair Bolsonaro tem sido econômico em matéria de GLO (decretou apenas 9) porque ainda teme a responsabilização de militares por crimes que estão acostumados a cometer contra civis.

A partir do governo Temer (2016-2018), aumenta a presença política e vitórias se acumulam.
Conseguem a aprovação da Lei 13.491/2017, “retaguarda jurídica” que amplia a competência da Justiça Militar e facilita a impunidade de soldados assassinos.

Gesto inusitado e covarde, Dias Toffoli designa um general da reserva para assessorá-lo (ou vigiá-lo) na presidência do STF. Michel Temer quebra a tradição inaugurada por FHC e nomeia ministro da Defesa outro general.

O capitão Bolsonaro é eleito, e, para se legitimar nas tropas que o repudiavam, aumenta a remuneração dos militares, protegidos da reforma previdenciária, e loteia a administração federal entre oficiais cada vez mais simpáticos ao golpe.

Desde 2013, dormitam no STF ações contra julgamento de civis pela Justiça Militar: Raquel Dodge, ex-procuradora-geral da República, pedia decisão urgente. Desde 2017, tramitam no STF ações contra julgamento de crimes praticados por militares contra civis pela Justiça Militar. O Supremo patina.

Repensando a Economia

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Vivemos num momento de grandes transformações de paradigmas, todas as bases que sustentavam a sociedade e moldavam as organizações econômicas, políticas e sociais estão sendo alteradas rapidamente, gerando preocupações, medos, ansiedades e desigualdades crescentes.

Neste cenário, percebemos uma sociedade marcada por grande competição entre os setores econômicos e pelo crescimento da concorrência entre pessoas e organizações, levando a um crescimento do individualismo, dos ganhos imediatos, pelos lucros estratosféricos e pela ostentação elevada, uma sociedade centrada na aparência e numa solidariedade artificial e calculada, centrada e dominada por imagens postadas nas redes sociais.

Diante dessa sociedade, percebemos que a economia se transformou num ambiente tóxico, centrado nos ganhos imediatos dos setores financeiros, angariando poder político e patrocínios nos círculos de alta influência, criando uma economia totalmente artificial e sem consistência, que se mostra incapaz de sobrevivência em momento de agitações sociais e crises econômicas constantes.

O cenário contemporâneo mostra as fragilidades da economia como ciência, que abandonou a produção e a geração de empregos decentes e enveredou pelos escaninhos da financeirização, pelos ganhos crescentes da especulação e pelas riquezas centradas em moedas digitais que criam bilionários de uma noite para o dia e, num momento seguinte, os transformam, novamente, em ex-bilionários, sem recursos, sem dignidades e sem esperanças.

Neste ambiente, percebemos que a economia brasileira caminha rapidamente pela estagnação estrutural, onde uma pequena parte acumula grandes somas de riquezas materiais, sem produzir, sem empregar, sem compartilhar e sem pagar tributos, garantindo espaços nas capas das revistas, contas bancárias polpudas, reservas em restaurantes de elite e, em contrapartida, se esquecem da situação de penúria e de indignidade de grande parte da população nacional que está na marginalidade, na degradação e na desesperança.

Muitos defendem o empreendedorismo nacional e a busca crescente pelos ideais da destruição criadora, conceitos criados e estruturados pelo economista austríaco Joseph Schumpeter, como forma de alavancar o crescimento e o desenvolvimento brasileiro.

Estas teorias são muito sedutoras e atraentes e buscam o crescimento econômico e a redução das desigualdades que perpassam a sociedade mas, antes de difundirmos estes pensamentos salvacionistas individuais, faz-se necessário, a construção de uma nova agenda de desenvolvimento, reduzindo as taxas de juros, melhorando o ensino nacional, diminuindo os desequilíbrios tributários que impactam fortemente sobre os “empreendedores” em detrimento dos grandes conglomerados que usufruem de isenções fiscais e estímulos financeiros que garantem alta rentabilidade, que na maioria das vezes, são canalizados para paraísos fiscais ou retornam para ganhos especulativos, garantindo lucros elevados e retorno para grupos de financistas sedentos de rendimentos elevados e sem compromissos com a nação e com o bem-estar da estrutura produtiva.

A economia nasceu para ser um instrumento para garantir que os recursos existentes na sociedade possam ser distribuídos para todos os indivíduos da coletividade, garantindo o mínimo necessário para a sobrevivência de todos os indivíduos, diante disso, percebemos que a Ciência Econômica não conseguiu cumprir seus compromissos na sua constituição, isso acontece porque, infelizmente, essa ciência foi apropriada pelos interesses imediatos dos setores mais poderosos da sociedade, transformando produtos materiais e imateriais em instrumentos de acumulação, uma verdadeira mercantilização, garantindo grandes somas de recursos financeiros para os donos do dinheiro e para os seus prepostos, que legitimam seus ganhos estratosféricos, garantindo lucros estravagantes, lucram com as deformações do setor público e, ao mesmo tempo, hipocritamente, defendendo a redução dos Estado Nacional. Neste ambiente, a redução do Estado na economia deve ser vista como uma verdadeira vitória de Pirro.

Ary Ramos da Silva Júnior, bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Brasileira Contemporânea, Mestre e Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 08/06/2022.

Nem a obsessão neoliberal, nem o desenvolvimentismo do passado, diz Lara Resende.

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Para economista, presidenciáveis deveriam deixar dogmas de lado e oferecer respostas para desafios do século 21

RICARDO BALTHAZAR – FOLHA DE SÃO PAULO – 04/06/2022

Um dos formuladores do Plano Real, que derrubou a hiperinflação nos anos 1990, o economista André Lara Resende passou a ser tratado por muitos de seus pares como um estranho no ninho depois que se tornou um crítico ácido do pensamento econômico convencional.

Para ele, episódios dramáticos como a crise financeira internacional de 2008 e a pandemia do coronavírus mostraram que até países como o Brasil têm condições de se endividar para financiar seus gastos em certas situações sem perder o controle sobre a economia.

Ele volta à carga em “Camisa de Força Ideológica”, que chegou às livrarias nesta sexta (3). É o quinto de uma série de volumes em que critica os pressupostos de seus colegas ortodoxos e defende sua revisão. Mais conciso, é também o mais acessível para o público leigo.

O economista considera equivocada a decisão do Banco Central de elevar as taxas de juros para segurar a inflação, que no ano passado ultrapassou a meta definida pelo governo, e defende a retomada de investimentos públicos como saída para reerguer a economia.

Lara Resende tem mantido contato com assessores do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em caráter informal, e reuniu-se recentemente com o ex-governador Geraldo Alckmin (PSB), que será o vice da chapa petista na campanha presidencial deste ano.

Coordenador de um núcleo de especialistas no Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), o economista elaborou um conjunto de propostas de política econômica que deverá ser apresentado em breve como contribuição do grupo para o debate eleitoral.

O que há de errado com o pensamento econômico no Brasil? A teoria macroeconômica está sendo revista no mundo há pelo menos uns dez anos, mas no Brasil houve uma radicalização do dogmatismo, a ideia de que a boa política macroeconômica se resume a equilibrar o orçamento público em todas as circunstâncias.

Mesmo depois da pandemia, quando o governo aumentou despesas e contornou o teto de gastos para enfrentar a crise sanitária? No Brasil, só se defende esse modelo. Basta ler os jornais. O curioso é como conseguem justificar essa postura e defender simultaneamente o aumento da taxa de juros pelo Banco Central em 12 pontos percentuais em seis meses, que faz crescer a despesa com a dívida pública.

Isso significa transferência de renda para os detentores da dívida pública, que são os agentes superavitários da economia. É uma política profundamente concentradora, e uma incongruência espantosa. A responsabilidade fiscal é muito importante, mas está mal definida.

O teto de gastos ainda tem sentido? Sou a favor de teto para despesas correntes, especialmente as de pessoal. Um teto para a totalidade das despesas, excluído o serviço da dívida, como temos hoje, é insensato. Ele não conteve as despesas correntes, nem as demagógicas, mas espremeu o espaço para investimentos.

A economia não funciona sem investimentos públicos, em infraestrutura, educação, saúde, segurança. Eles são complementares aos investimentos privados e viabilizam grande parte deles. Mas o teto estrangulou completamente a capacidade do Estado de investir.

O sr. diz no livro que “a desconfiança elitista e tecnocrática em relação aos políticos na democracia representativa impede a revisão do quadro institucional”. Os erros de sucessivos governos e a história do país não justificam essa desconfiança? Não sei se o Brasil é excepcional nisso. Em todo lugar do mundo existe o problema do mau uso dos recursos públicos, o mau uso da poderosíssima faculdade do Estado de criar crédito. Esse mau uso é um perigo permanente, que deve ser regulado de forma competente.

Mas não se consegue restringir o mau uso dos recursos públicos simplesmente com leis e restrições formais. Nisso o Estado funciona como uma empresa. Se for composto por pessoas essencialmente corruptas, não adianta você ameaçar, impor restrições e punições.

Ao enfatizar a ausência de restrição financeira para emissão de dívida pelo governo, o sr. não acaba sugerindo que não há limite nenhum? Claro que existem limites. A relação da dívida com o PIB obviamente não pode ir para o infinito. Mas o poder que o Estado tem de criar crédito pode ser bem usado, o que ocorre quando o retorno do investimento feito é superior ao custo do crédito que o financiou.

Não existe um limite numérico que deva ser respeitado. Países ricos têm hoje dívidas superiores a 100% do PIB. Em determinadas circunstâncias, como guerras e pandemias, o endividamento é necessário para impedir uma tragédia. É o que vimos com a Covid.

É possível revertê-lo quando a economia se reorganizar e voltar a crescer. Agora, se você usar o crédito de forma descontrolada, para políticas demagógicas e gastos sem retorno nenhum, em termos de produtividade ou de bem-estar, aí sim estará sendo irresponsável.

O livro discute a necessidade de maior coordenação entre a política monetária, a cargo do Banco Central, e a política fiscal. A maior autonomia conferida pela legislação brasileira ao BC prejudica essa coordenação? Essa organização institucional de um Banco Central Independente, que não pode comprar dívida pública, funcionou bem no século passado, mas está ultrapassada e se tornou disfuncional. Ela tem que ser repensada e estamos elaborando uma proposta sobre isso.

A campanha eleitoral abre espaço para uma revisão da política econômica como a que o sr. propõe? Os que estão em busca de uma terceira via não têm projeto. Na economia, continuam agarrados a chavões neoliberais e se apresentam como alternativa à direita bolsonarista, como representantes do verdadeiro neoliberalismo. Assim não se chegará a lugar nenhum.

Precisamos de um projeto para a retomada do desenvolvimento no século 21. Ele não virá da obsessão neoliberal, que se tornou completamente ultrapassada, nem com o desenvolvimentismo do século 20. Os desafios que precisamos enfrentar são novos e enormes.

Há a questão ambiental, a necessidade de repensar a energia para nos livrarmos de combustíveis fósseis, a busca por maior inclusão social. A revolução tecnológica, que traz ganhos de produtividade, mas desestrutura o emprego. Essa é a discussão a ser feita.

ANDRÉ LARA RESENDE, 71
Formado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio, é doutor em economia pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts, nos EUA. Foi diretor do Banco Central no governo José Sarney, assessor especial do presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e presidente do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social). Trabalhou no mercado financeiro por mais de 30 anos. Publicou antes “Consenso e Contrassenso” (2020) e “Juros, Moeda e Ortodoxia” (2017), ambos pelo selo Portfolio Penguin

Economia brasileira em 2 tempos, por Silvia Mattos

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PIB cresceu, mas não se sabe até quando vamos ser surpreendidos positivamente

Silvia Matos, Economista e pesquisadora do FGV Ibre (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas)
Folha de São Paulo, 03/06/2022

A divulgação do PIB referente ao primeiro trimestre do ano confirmou um resultado positivo na margem de 1%, ligeiramente acima da previsão do Boletim Macro IBRE de 0,9%.

Sempre avaliamos que não haveria recessão na economia brasileira neste ano e o primeiro trimestre seria positivo, mas, mesmo assim, os resultados divulgados nos últimos meses foram acima do esperado, em particular, os dados referentes ao mês de março. Sem dúvida, o processo de normalização dos setores mais afetados pela pandemia tem sido mais rápido que o esperado.

Entre os setores, os destaques foram o crescimento das atividades de Outros Serviços e Transporte de 2,1% e 2,2% em relação ao quarto trimestre, respectivamente. Com isso, a atividade Outros Serviços que ainda estava abaixo de nível pré-pandemia (quarto trimestre de 2019) já está 0,8% acima deste patamar no primeiro trimestre. E estes setores são intensivos em trabalho, então não surpreende também a expressiva recuperação do emprego no período.

Consequentemente, o destaque pelo lado da demanda foi o consumo das famílias. De acordo com o Monitor do PIB do FGV IBRE, em torno de 50% da cesta de consumo é composta por serviços. E mesmo com salários reais muito deprimidos, o comportamento da massa real de rendimentos do trabalho tem sido mais positivo. E a expansão do programa Auxílio Brasil também contribuiu para o resultado.

Além disso, como esperado, a contribuição externa para o crescimento foi muito expressiva, com forte expansão das exportações e contração das importações. E neste aspecto, é importante mencionar que o agronegócio já atingiu 27,4% do PIB em 2021, a maior participação desde 2004, segundo o Cepea (Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada – Esalq/USP). Somando ao aumento da participação da indústria extrativa no PIB, podemos dizer que em torno de um terço do PIB depende direta e indiretamente de commodities.

Como estamos passando por um ambiente muito favorável para os preços das commodities, os países produtores destes bens são beneficiados. De fato, em diversos países da América Latina, dados de atividade também estão melhores do que o esperado pelo mercado, com revisões de crescimento para cima.

A alta nos preços das commodities, a reabertura da economia e os estímulos fiscais contribuíram positivamente para o crescimento do PIB no trimestre. Mas, a pergunta mais importante no momento é saber até quando vamos ser surpreendidos positivamente. Minha avaliação é que esta fase se esgotará em breve, por diversos motivos.
Em primeiro lugar, uma parte do crescimento foi explicada por fatores temporários, como a reabertura, a normalização do consumo do governo e a expressiva contribuição externa.

Pelo lado externo, a desaceleração esperada para a economia mundial é expressiva, pois o principal motivo é a
necessidade de reduzir a inflação. Algo que chama atenção é a alta de preços dos insumos e bens industriais, que devido à reorganização das cadeias de produção global, pode ser muito mais persistente.
Neste contexto, o custo para desinflacionar a economia brasileira é hercúleo.

Além dos motivos externos, temos um processo inflacionário generalizado no Brasil. A reabertura foi muito inflacionária, o choque de commodities por muito tempo não foi compensado pela valorização cambial, e tivemos um choque nos preços de energia elétrica no ano passado. Uma inflação generalizada de custos, em todos os setores. A pressão por repasses continua e o instrumento para debelar a inflação é reprimir a demanda. Não há outra saída.

Por fim, o investimento contraiu muito além do esperado no primeiro trimestre. Um péssimo sinal.
Então é necessário olhar o segundo tempo da nossa economia, que deverá ficar mais evidente no segundo semestre de 2022 em 2023. O segundo tempo pode demorar um pouco mais para começar, mas já está programado.

Inflação e desemprego

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Vivemos momentos de grandes incertezas e instabilidades na economia internacional, os indicadores macroeconômicos brasileiros nos levam a preocupações e medos crescentes, inviabilizando os investimentos produtivos e estimulando os investimentos financeiros e especulativos, angariando novas levas de bilionários em detrimento de uma massa de desempregados, excluídos e desesperançados.

A inflação cresce de forma acelerada em todas as regiões do mundo, motivadas pela desestruturação das cadeias produtivas geradas pela pandemia, pela guerra da Ucrânia que impactou sobre os preços dos alimentos e dos combustíveis, todos estes fenômenos geraram uma tempestade perfeita que culminaram em políticas protecionistas por parte de algumas nações e contribuíram para o incremento das incertezas e para as volatilidades econômicas, reduzindo as rendas dos trabalhadores e degradaram as condições de vida de muitas nações, dentre elas a brasileira que tiveram mais de 19 milhões de pessoas passando fome, uma tragédia humanitária.

A globalização trouxe grandes benefícios para a comunidade global, criando novos desafios e novas oportunidades para empresas, para as nações e para os trabalhadores. Muitas nações embarcaram nos ventos liberalizantes da economia internacional sem pensarmos sobre as consequências no longo prazo, terceirizamos setores produtivos relevantes e nos tornamos dependentes da importação de produtos industrializados fundamentais para nossa sobrevivência.

O resultado direto desta política é que, num momento de crises externas generalizadas, sentimos os efeitos desta dependência, como aconteceu no momento da pandemia e está acontecendo com outros produtos fundamentais para a sociedade brasileira, com isso, estamos assistindo o aumento dos preços em variados produtos e incremento da inflação, que impacta negativamente sobre uma economia que perdeu a capacidade de se reconstruir, gerando crises constantes, desemprego elevado e lucros escorchantes que engordam os ganhos de financistas nacionais e estrangeiros que não tem nenhum compromisso com a sociedade brasileira.

Além da inflação, destacamos o desemprego como um dos mais urgentes desequilíbrios que deve ser combatido pela sociedade brasileira, para combater esta degradante situação macroeconômica, precisamos de aumento nos investimentos produtivos, sem estes não conseguiremos recuperar o dinamismo da estrutura produtiva, reduzir o desemprego que crassa a sociedade brasileira e garantir instrumentos de capacitação dos trabalhadores, aumentando os dispêndios na pesquisa científica, reestruturando o complexo da saúde, recuperando a indústria nacional, modernizando as políticas públicas, estimulando o aumento da produtividade dos setores produtivos, incremento das vendas externas e buscando uma inserção mais autônoma e soberana. Sabemos que estas políticas perpassam variados governos, exigem uma visão mais ampla e de longo prazo e, para isso, precisamos de uma ampla reestruturação política, reconstruindo a solidez da política institucional, enterrando uma visão atrasada da política como apenas um instrumento de poder e de ganhos individuais e de seus grupos políticos que contribuíram negativamente para a situação atual de degradação, dos conchavos, da corrupção e da diminuição de credibilidade da política institucional.

Neste ambiente de desemprego crescente e grandes transformações do mundo do trabalho cabe ao setor público a adoção de políticas efetivas para estimular as estruturas produtivas e priorizar as micro e pequenas empresas, setor responsável por grande parte dos empregos e da sobrevivência da sociedade, uma classe central para todas as nações civilizadas que, infelizmente, no Brasil, não recebem os incentivos fiscais e tributários para o seu desenvolvimento e canaliza, os chamados parcos recursos para os grandes atores econômicos, gerando uma degradação e perpetuando as desigualdades.

Na pós-pandemia precisamos repensar a estrutura produtiva, alavancar a recuperação da economia, melhorando os indicadores macroeconômicos, estimulando a geração de emprego e valorizando a renda, sem isso, continuemos chafurdando no caos.

Ary Ramos da Silva Júnior, bacharel em Ciências Econômicas e Administração, especialista em Economia Criativa, mestre, doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 01/06/2022.

Cracolândia precisa de direitos básicos e empatia, não de ‘dor e sofrimento’

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Uso de crack não é causa, mas sintoma de múltiplas vulnerabilidades

Pedro Abramovay, Diretor da Open Society Foundations para a América Latina e Caribe

Ana Clara Telles, Oficial de programa da Open Society Foundations para a América Latina e Caribe especializada em política de drogas, redução de danos e segurança pública

Folha de São Paulo, 28/05/2022

A megaoperação realizada no último dia 11 no centro de São Paulo para reprimir a chamada “cracolândia” é o último episódio de uma sucessão de equívocos de diferentes governos quando o assunto é política de drogas.

A estratégia de usar a repressão policial para incentivar a busca por tratamento atende ao afã dos gestores públicos que, seduzidos por falsas promessas e pressionados pelo tique-taque dos ciclos eleitorais, buscam soluções simplistas para questões complexas.

Longe de ser a substância psicoativa (lícita ou ilícita) mais consumida pela população brasileira, o crack é associado, pelo senso comum, a grupos sociais vulneráveis e empobrecidos.

Diante de crises econômicas severas, como a que fez triplicar o número de brasileiros vivendo abaixo da linha da pobreza nos últimos anos, ele volta a ganhar protagonismo no debate público, sobretudo em ano de eleições.

Acontece que o uso de crack não é causa, mas sintoma de múltiplas vulnerabilidades, que incluem a negação do acesso a direitos básicos, como saúde, moradia e alimentação, e a exposição a inúmeras situações de violência ao longo da vida.

Sem que haja políticas consistentes, integradas e de longo prazo para lidar com elas, a história continuará se repetindo da pior maneira.

Os exemplos do que é capaz de fazer uma boa abordagem nessa área não são poucos. No campo das políticas públicas, programas como o Atitude, em Pernambuco, e o De Braços Abertos, em São Paulo, colheram bons resultados e ganharam reconhecimento internacional ao oferecer aos usuários do serviço alternativas concretas de acolhimento, moradia e emprego.

Por parte da sociedade civil, projetos como o Espaço Normal, gerido pela organização Redes da Maré, no Rio de Janeiro; o É de Lei, em São Paulo; e a Escola Livre de Redução de Danos, no Recife, mantêm centros de convivência para pessoas que usam drogas e as ajudam a acessar serviços públicos de saúde e assistência social de maneira integrada e efetiva e sem que precisem sair de seus territórios.

Em todos esses casos, o trabalho é de formiguinha, demanda paciência e, sobretudo, um olhar sem estigmas, empático.

O ponto de partida é enxergar as pessoas que usam crack e outras drogas como sujeitos autônomos capazes de decidir sobre suas vidas, não devendo ser submetidas a nenhum tipo de tratamento contra sua vontade.

A partir daí, criam-se estratégias para garantir que tenham acesso a direitos básicos, muitos dos quais lhes foram negados ao longo de suas vidas. Em vez de impostas, opções de tratamento em saúde são oferecidas de acordo com suas demandas e necessidades e se amplia o repertório de cuidado através do fortalecimento de vínculos com suas famílias e suas comunidades, no lugar da internação e do isolamento.

Capaz de promover mudanças efetivas, essa abordagem é inconciliável com a violência e a repressão, ao contrário do que argumentam os responsáveis pela atual política.

À diferença das estratégias violentas de “dor e sofrimento”, a paciência e a empatia funcionam a longo prazo. Mas o longo prazo não cabe no horizonte de quem tem olhos apenas nas eleições.

É preciso que os gestores públicos assumam o compromisso de enfrentar o problema pelo que ele é, em vez de continuarem reféns de soluções tão rápidas e cruéis quanto ineficazes.

Matar, matar, matar, por Luiz Francisco Carvalho Filho.

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Presidente da República celebra policiais assassinos

Luiz Francisco Carvalho Filho, Advogado criminal, presidiu a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (2001-2004).

Folha de São Paulo, 28/05/2022

Jair Bolsonaro é “suspeito” de integrar uma quadrilha para desvio de dinheiro público —as “rachadinhas”, uma modalidade de peculato.

Além do enriquecimento ilícito, a família Bolsonaro anda armada, ameaça jornalistas, perturba o processo eleitoral e conspira contra a democracia.

Nem por isso forças de segurança podem atirar para matar o governante “suspeito”, réu no Tribunal dos Povos, ou os filhos “suspeitos” do governante, homiziados em Brasília.

Há pastores evangélicos “suspeitos” de explorar a miséria humana, lavagem de dinheiro, pedofilia, charlatanismo, corrupção. Nem por isso as polícias invadem igrejas repletas de fiéis e disparam suas armas contra os religiosos “suspeitos”.

Há oficiais do Exército “suspeitos” de tortura, extorsão, tráfico de drogas, desvio de armas. Nem por isso destacamentos assaltam quartéis, atiram a esmo, e abatem a tiros militares “suspeitos”.
Há políticos e empresários “suspeitos” de desmatar Amazônia ou de cometer atos gravíssimos contra a administração pública. Nem por isso seus colaboradores, familiares ou vizinhos são atingidos por balas perdidas.

Quem examinar a relação de inquéritos instaurados no Supremo Tribunal Federal contra Arthur Lira, por exemplo, verá que o presidente da Câmara dos Deputados, hoje com o nome “limpo”, já foi “suspeito” de um impressionante rosário de delitos (corrupção, evasão de divisas, lavagem de capital, organização criminosa, compra de votos, desvio de valores, violência doméstica). Nem por isso policiais justiceiros estavam autorizados a acionar os seus fuzis no gabinete parlamentar.

Este exercício retórico parece esdrúxulo (e de fato é), mas ajuda a observar a situação absurda que a sociedade brasileira impõe a habitantes de favelas cariocas.

Há nos morros do Rio de Janeiro “suspeitos” de tráfico de drogas. Nem por isso operações policiais podem ser arquitetadas como se inexistissem ali moradores inofensivos.

A reação das “autoridades” à calamitosa operação da Vila Cruzeiro, com pelo menos 23 “suspeitos” mortos, é infame.
O presidente da República, “suspeito” de fazer apologia da letalidade policial, parabeniza os “guerreiros” do Bope por “neutralizar” pelo menos 20 marginais. Para o macabro governador Cláudio Castro, que, depois de quase dois anos no Palácio Guanabara, comemora 330 mortos em 74 chacinas, o complexo da Penha é “hotel de luxo para chefes de facções criminosas”.

Para dar um brilho político à tragédia, o cínico comando da PM do Rio de Janeiro adere à estratégia golpista de Bolsonaro e acusa o Supremo Tribunal Federal de estimular a criminalidade ao tentar inibir confrontos e tiroteios.
Agora parceira da Polícia Rodoviária Bolsonarista, com tradição histórica de achaques e abordagens humilhantes de motoristas imprudentes ou “suspeitos” (improvisada câmara de gás em Sergipe é sinal de novos tempos), as forças policiais cariocas matam, matam e matam porque ninguém se importa.

Nada acontece com policiais matadores e seus comandantes assassinos. Arriscaria dizer que as polícias do Rio, com as honrosas exceções de sempre, estão entre as mais corruptas instituições do planeta.

É só enterrar os mortos e esperar. Outras chacinas virão: outras favelas, outros “suspeitos”, invariavelmente pobres e pretos. Diante do olhar complacente e do silencioso sorriso da magistratura e do Ministério Público. Com as honrosas exceções de sempre.

Ódio e nojo, por Silvio Almeida

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Estamos à mercê de assassinos respaldados pelo Estado brasileiro

Silvio Almeida, Advogado, professor visitante da Universidade de Columbia, em Nova York, e presidente do Instituto Luiz Gama.

Folha de São Paulo, 27/05/2022

O ódio é um afeto que se apresenta na política das mais diversas formas. Da mesma maneira que o ódio pode conduzir à morte e à destruição, é também um sentimento capaz de, paradoxalmente, nos levar a lutar por libertação ou a estabelecer formas ativas de solidariedade para com aqueles que sofrem.

Dito de outra forma, foi preciso odiar a escravidão e seus institutos para que ela pudesse ter fim; foi preciso odiar os nazistas e seus símbolos para derrotá-los. É imperioso odiar o fascismo e todos que o celebram. É imprescindível repudiar visceralmente e com todas as forças aqueles que humilham e destroem a vida de trabalhadores e de minorias.

É importante pensar nisso quando observamos o fato de que estamos sob o domínio de assassinos, racistas, tarados, genocidas, sociopatas, omissos, oportunistas e argentários. E não me refiro apenas aos notórios milicianos que hoje nos governam, mas a toda uma lógica de violência e de assassinato que comanda a institucionalidade brasileira.

Pela segunda vez em pouco mais de um ano, a polícia do Rio de Janeiro patrocinou uma chacina em que ao menos 23 pessoas consideradas “suspeitas” foram assassinadas em Vila Cruzeiro. Não era uma operação clandestina e nem uma ação de grupos paramilitares.

Era uma operação policial oficial que contou com o beneplácito do governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, com o costumeiro silêncio do sistema de justiça e com apoio de setores da sociedade, incluindo parte da mídia.

Um dia depois do massacre no Rio de Janeiro, policiais rodoviários federais, na cidade de Umbaúba, interior de Sergipe, imobilizaram e trancaram dentro de um camburão Genivaldo de Jesus Santos. Não sendo suficiente, os policiais jogaram uma bomba de gás no interior do veículo, o que resultou na morte de Genivaldo por asfixia. Ou seja: os policiais criaram uma câmara de gás improvisada e a utilizaram a vista de todos.

Em nota sobre o caso, disse a direção da PF que, em razão da “agressividade” do homem, “foram empregadas técnicas de imobilização e instrumentos de menor potencial ofensivo para sua contenção e o indivíduo foi conduzido à Delegacia de Polícia Civil em Umbaúba”.

Para além do evidente cinismo contido na expressão “menor potencial ofensivo”, a mim me parece cristalino que essa declaração é parte de um sistema institucionalizado de execuções extrajudiciais.

Se alguém tinha alguma dúvida sobre o que é necropolítica, eis dois exemplos genuinamente brasileiros. Não se trata apenas de produzir a morte física, mas também a morte das possibilidades existenciais. Tirar a vida biológica é insuficiente; é preciso eliminar a memória que se tem sobre os mortos.

É necessário impedir homenagens e bloquear todos os ritos que possam dar algum sentido para a vida dos assassinados. Por este motivo, a polícia retorna aos territórios em que matou para destruir homenagens ou para tumultuar velórios.

Aterrorizar parentes, amigos, vizinhos dos mortos é parte crucial desse processo que visa não só garantir a impunidade, mas também a extirpar toda esperança de uma vida decente. A necropolítica é, afinal, esta mistura macabra de biopolítica, estado de exceção e estado de sítio que leva para favelas e periferias as técnicas de controle criadas nas plantations e nos campos de extermínio.

Para quem tem alguma dúvida sobre o que foi dito até aqui, serei ainda mais explícito: o Brasil, que há muito flertava, agora beija o nazismo na boca. Há setores da sociedade civil e da burocracia estatal que não tem mais qualquer pudor em defender o extermínio de populações inteiras, de deixar as pessoas morrerem de fome, de advogar o encerramento de serviços públicos essenciais, enfim, de matar pobres e minorias.

Com nazismo não se pode vacilar. Quem faz uso de símbolos, técnicas ou de discursos do nazismo é nazista, e nazistas devem ser tratados com todo o rigor possível, porque sua única serventia é provocar dor e sofrimento, sua única especialidade é matar.

Como disse Ulisses Guimarães é preciso ter ódio e nojo à ditadura —ditadura aliás, que muito se utilizou das lições nazistas de tortura e extermínio—, é preciso cultivar ódio e nojo a estes nazistas, assassinos e omissos aninhados no Estado brasileiro.

Homeschooling: Que Deus tenha misericórdia de nós!, por Juliano Spyer

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Promovido pela elite evangélica e abraçado por políticos e empresários, o ensino domiciliar estimulará evangélicos pobres a ter medo das escolas

Juliano Spyer, Antropólogo, pesquisador do Cecons/UFRJ, autor de Povo de Deus (Geração 2020) e criador do Observatório Evangélico.

Folha de São Paulo, 26/05/2022

A defesa do homeschooling revela como o campo evangélico é plural e disputado. Este é um de projeto elitista, associado a interesses econômicos e políticos, que promove, irresponsavelmente, a ideia de que evangélicos pobres e com baixa escolaridade devem ter medo das escolas. Justo eles que, como outros pais e mães trabalhadores, precisam de mais tempo de escola para seus filhos, e não menos.

Para escrever este texto, consultei evangélicos de origem popular e de diversas denominações e posicionamentos no campo político.

Para o pastor, historiador e teólogo André Neto, a bandeira do ensino domiciliar explicita a influência das ações missionárias estadunidenses no Brasil. Evangélicos brasileiros tentam imitar o que ocorre entre conservadores dos EUA, sem analisar contextos sociais e tradições de ensino. Para este grupo, diz André, “se lá existe a prática de educar os filhos em casa, aqui também é possível.”

André avalia que o homeschooling imporá a quem aderir a ele “uma formação sem bases científicas, preconceituosa, assaltada pelos interesses de pastores e pastoras que, muito provavelmente, vão prover material didático próprio para estas famílias e assim abrir um novo filão no mercado gospel”.

O escritor e membro da Assembleia de Deus Gutierres Siqueira também considera o interesse pelo ensino domiciliar como resultado da combinação entre elitismo cristão e oportunismo empresarial. Ele conta que organizações educacionais conservadoras como o Instituto Presbiteriano Mackenzie estariam prontos para capitalizar com o ensino domiciliar usando soluções de ensino a distância.

Para Gutierres, a pauta atende a demandas de evangélicos ricos. “Eu, que passei 12 anos em uma Assembleia de Deus de periferia, no Grajaú, zona sul de São Paulo, nunca vi essa discussão dentro da igreja, em nenhum ambiente, nem mesmo em conversa de roda”, conclui conta.

O pastor Wilian Gomes resume o sentimento associado à promoção do ensino domiciliar com um desabafo dizendo: “Que Deus tenha misericórdia de nós!” Para esse pastor de uma igreja da Assembleia de Deus na periferia de Brasília, evangélicos pobres percebem que políticos estão distorcendo o debate sobre moralidade para promover o homeschooling.

“Tudo está muito politizado, cada um defendendo seus interesses. Tirar criança da escola é um absurdo… O que a maioria dos evangélicos quer é que a criança fique o dia todo na escola, para que a gente possa trabalhar sabendo que os filhos estão protegidos e sendo preparados para melhorar de vida,” ele argumenta.

A teóloga pentecostal Regina Fernandes lembra que já existem escolas confessionais, administradas por igrejas evangélicas, e que algumas delas adotam o método de “educação por princípios”, importado dos Estados Unidos, para ensinar disciplinas junto com conteúdo bíblico.

Por que, então, a necessidade dessa alternativa fora da escola? Para a teóloga, o homeschooling é promovido a partir de uma atmosfera de medo. “Dentro de casa entende-se que o filho estará em um ambiente são, ‘protegido’, onde, além de não se envolver em pautas sociais, não aparecem temas como homoafetividade e discussões sobre gênero e sexo.”

O ambiente de campanha eleitoral também influencia a promoção do ensino domiciliar. Líderes evangélicos aliados ao governo, como a ex-ministra Damares Alves, usam politicamente o sentimento de perseguição, difundido especialmente entre pentecostais, para alimentar a polarização entre esquerda e direita. A ideia, que ecoa argumentos do filósofo bolsonarista Olavo de Carvalho, descreve a escola como um “antro de perversões esquerdistas”.

Para André Neto é decepcionante como apenas esse argumento sobre escolas justifique a implantação de uma solução educativa sem consultar educadores. A desqualificação das instituições de ensino acontece mesmo que a consequência disso seja alienar jovens do convívio social escolar e —fora o caso das famílias ricas— reduzir a qualidade de desempenho acadêmico de estudantes pobres.

O pastor batista Josenildo Miranda observa de perto os efeitos dessa proposta entre evangélicos que vivem no interior da Bahia, onde ele atua. “Meus Deus, quando uma pessoa aqui do interior do Nordeste, independentemente da formação que ela tenha, poderá atuar também como professor quando economicamente ela não terá tempo para fazer isso?”

Josenildo classifica a proposta como sendo “irresponsável”. “A única coisa que nos dá um certo alento”, ele acrescenta, “é perceber que muitas pessoas no nosso meio têm um anseio grande de conhecimento. Além desses fanáticos, muitos evangélicos amam o conhecimento e consideram a escola um privilégio, e fazem esforços para que seus filhos não apenas estudem, mas continuem estudando depois do fim do ensino médio.”

Mundo Líquido

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O mundo vive momentos de grandes transformações, os paradigmas que sustentaram a sociedade em décadas anteriores estão em crise, alterando as estruturas que sempre foram vistas como fundamentais para a organização da comunidade, levando as famílias a modificações constantes, os relacionamentos foram chacoalhados, o mundo do trabalho sofre agitações constantes, as religiões também passam por agitações e os mercados passam a dominar as sociedades, impondo valores, sentimentos e ganhos imediatos. Com essas transformações estruturais em curso na sociedade, percebemos preocupações crescentes, novas ansiedades e o incremento dos ressentimentos, criando inseguranças, medos e agressividades que nos parecem cada vez mais evidentes.

O sociólogo polonês Zygmunt Baumann, famoso intelectual da sociedade contemporânea, cunhou a expressão mundo líquido, para definir uma sociedade que se compraz com a superficialidade, no mundo atual tudo é líquido. Os amores e os sentimentos na contemporaneidade escorrem pelas mãos, os modelos mais intensos de relacionamentos foram deixados para trás, o medo dominou as relações cotidianas, não queremos nos frustrar com os relacionamentos mais intensos e verdadeiros, pois eles podem nos causar dores íntimas, frustrações sinceras, decepções violentas, além de criar mágoas e constrangimentos.

Nesta sociedade do século XXI vivemos o drama do individualismo, depois da hegemonia do pensamento liberal em que o indivíduo é visto como se sobrepondo ao coletivo, percebemos que este indivíduo cunhado pelas teorias liberais se encontra em crise profunda, esta crise se manifesta numa intensa solidão e desesperança. Estamos mergulhados num mundo em que não mais confiamos no futuro, as bases da democracia estão solapadas, os modelos de liberdade clássica estão ameaçados e o ser humano amedrontado e infeliz, a crise da modernidade é, antes de mais nada, a crise dos indivíduos.

A lógica econômica se sobrepõe a todas as outras lógicas da sociedade contemporânea, acreditamos que pensamos e agimos como o homem econômico, julgamos nossas ações como racionais, nosso trabalho se dá envolto em contas e cálculos intensos de ganhos e perdas, no campo religioso buscamos maximizar nossas oferendas e trocas com o divino. Nossos relacionamentos são colocados na ponta do lápis e maximizamos nossos prazeres e buscamos reduzir, e até acabar, com nossas dores e as frustrações, somos seres quase racionais que nos julgamos reflexivos e racionais, mero autoengano.

As grandes mudanças contemporâneas estão criando novos modelos de organização de famílias, os modelos tradicionais estão sendo substituídos por novos paradigmas, o modelo clássico baseado em um casamento tradicional está sendo substituído em ritmo acelerado por vários modelos diferentes. Vivemos numa sociedade marcada por várias formas de amores e de relacionamentos, tudo isto gera, na coletividade, novos medos, fomentando instabilidades e incertezas crescentes que abrem espaços para patologias sociais que se manifestam com o incremento do xenofobismo, da intolerância e dos sectarismos, que alimentam as violências que degradam a sociedade.

A pandemia nos trouxe novas oportunidades para reconstruirmos os laços sociais que foram fragilizados e degradados anteriormente, além de contribuirmos para a reconstrução de novos valores morais calcados na ética da solidariedade, colocando os seres humanos no centro da civilização, deixando de lados os interesses imediatistas e valorizando os avanços científicos e tecnológicos como instrumento de melhoramento da qualidade de vida dos indivíduos, evitando as contradições que crescem de forma acelerada no mundo contemporâneo, combatendo formas degradantes de acumulação, valorizando o meio ambiente, garantindo emprego e remuneração decentes, com isso, reduzimos os espaços de degradação da dignidade dos seres humanos e contribuímos para a reconstrução da esperança e da solidariedade.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração. Especialista em Sociologia do Trabalho e Exclusão Social (Unyleya), Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 25/05/2022.

The Economist: A Índia pode ser um motor econômico para o mundo?

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Dado o seu tamanho e potencial, parece razoável questionar se a Índia poderia ser o próximo motor econômico do mundo

The Economist, O Estado de S. Paulo – 22/05/2022

O mundo precisa de mais esperança econômica. A guerra na Ucrânia provocou um golpe severo nas perspectivas de crescimento econômico global. Os lockdowns e a desaceleração da atividade imobiliária enfraqueceram a China, o antigo motor de crescimento da pujança do mundo.

Dado o seu tamanho e potencial, parece razoável questionar se a Índia poderia ser o próximo motor econômico do mundo. Em abril, o Fundo Monetário Internacional (FMI) calculou que o PIB indiano poderia crescer mais de 8% este ano – sem dúvida o ritmo mais veloz entre os países grandes. Uma expansão tão rápida, se sustentada, teria um impacto profundo no mundo. Mas, em grande parte por conta da mudança na estrutura da economia global, as coisas não são tão simples para a Índia herdar a posição da China.

Nos anos 2000, a China era responsável por quase um terço do crescimento global – mais do que os Estados Unidos e a União Europeia juntos –, adicionando nova capacidade produtiva, a cada ano, equivalente à produção atual da Áustria. Na década de 2010, a contribuição do país quase dobrou, de modo que cada ano de crescimento valia como mais uma Suíça.

Da virada do milênio às vésperas da pandemia, a China se tornou o maior consumidor da maioria das principais commodities (matérias-primas cotadas em dólar) do mundo e sua participação nas exportações globais de mercadorias aumentou de 4% para 13%.

A Índia poderia repetir tamanhas façanhas? Trata-se da sexta maior economia do mundo – como a China era em 2000. E sua produção hoje está em grande medida onde estava a da China duas décadas atrás. Pequim continuou a lidar com uma taxa média de crescimento anual de cerca de 9%. A Índia cresceu pouco menos de 7% ao ano durante o mesmo período.

No entanto, o país poderia ter tido um desempenho melhor, não fosse por erros de política – como a decisão chocante do primeiro-ministro Narendra Modi de tirar de circulação algumas notas em 2016 – e vulnerabilidades macroeconômicas, entre elas um setor financeiro sobrecarregado.

O governo talvez tenha aprendido com os erros políticos, e tanto os formuladores de políticas quanto os bancos vêm trabalhando para solucionar o segundo ponto. Antes da guerra na Ucrânia, o FMI calculava que a Índia poderia crescer 9% este ano. Alguns otimistas defendem que, nas circunstâncias certas, a Índia poderia administrar essas taxas de forma contínua.

Um olhar mais atento, entretanto, sugere que a Índia não é um substituto da China. Um problema é que a economia mundial é muito maior do que costumava ser, tanto que um crescimento como este do PIB da Índia aumenta menos o crescimento global. Um crescimento anual de 9% mantido melhoraria bastante a vida dos indianos e alteraria de forma significativa o equilíbrio do poder econômico e político no mundo. Mas isso não significaria que a economia mundial giraria em torno da Índia como aconteceu com a China nas últimas duas décadas. A contribuição da Índia para o crescimento global continuaria menor do que a dos Estados Unidos e a da Europa juntas, por exemplo.

Cenário hostil

Talvez mais relevante, as condições econômicas globais podem ser consideravelmente mais hostis do que aquelas que permitiram a ascensão da China. De 1995 a 2008, o peso do comércio mundial subiu de 17% do PIB global para 25%. A porcentagem das exportações de mercadorias presentes nas cadeias globais de valor subiu de cerca de 44% das exportações mundiais para 52%. A China estava na vanguarda de ambas as tendências. Foi o país mais dominante no comércio desde a Grã-Bretanha Imperial, de acordo com uma análise de “hiperglobalização” publicada em 2013 por Arvind Subramanian, da Universidade Brown, e Martin Kessler, economista da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

A Índia, por outro lado, é peixe pequeno no setor. Às vésperas da pandemia, representava menos de 2% das exportações globais de mercadorias. O país espera aumentar essa porcentagem investindo em infraestrutura, oferecendo subsídios públicos aos fabricantes e negociando acordos comerciais com entusiasmo fora do comum. Mas os tempos mudaram. O comércio mundial caiu como parte do PIB global desde o início dos anos 2010. O nacionalismo econômico poderia impedir uma recuperação. Contudo, a Índia talvez espere aumentar suas exportações conquistando participação no mercado de outras economias – inclusive na China. Mas as empresas e os governos que antes estavam dispostos a depender fortemente de Pequim em nome da eficiência se tornaram mais cautelosos. A relutância deles em se tornarem dependentes demais de qualquer fonte de suprimentos poderia atrapalhar as ambições da Índia.

Potência em serviços

Dominar as cadeias de suprimentos globais talvez não seja o único caminho para a influência econômica. A Índia é um avançado exportador de tecnologia e de serviços para as empresas; embora seu PIB seja apenas um sexto do da China, suas exportações de serviços ficam apenas um pouco atrás das de Pequim.

Pesquisa publicada em 2020 por Richard Baldwin, do Instituto Superior, em Genebra, e Rikard Forslid, da Universidade de Estocolmo, defende que a mudança tecnológica está ampliando a gama de serviços exportáveis e oferecendo mais oportunidades para trabalhadores de países pobres competirem com trabalhadores de serviços no mundo rico. Mas, embora a tecnologia e os serviços para empresas possam continuar a prosperar na Índia, a expansão deles talvez seja limitada por um sistema educacional inadequado, que se sai bem no número de matriculados, entretanto não nos resultados de aprendizagem, e pela natureza protecionista dos setores de serviços do mundo rico, que talvez esteja mais protegida contra a concorrência estrangeira do que os trabalhadores industriais contra as importações chinesas.

Rumo à 3ª economia

Mesmo que a Índia dê conta de uma taxa de crescimento mais próxima de 6% do que de 9%, o resultado não seria nada desprezível. Isso tornaria a Índia a terceira maior economia do mundo em meados da década de 2030. Nessa altura, ela contribuiria mais para o PIB global a cada ano do que Reino Unido, Alemanha e Japão juntos.

A demanda indiana por recursos, então, impulsionaria os preços das commodities; seus mercados de capitais encantariam investidores estrangeiros. Uma população grande que fala inglês e um sistema político democrático, se a Índia puder mantê-lo, talvez permitam que as exportações de tecnologia e de cultura indianas exerçam mais influência global do que a China conseguiu em níveis de renda semelhantes.

Mas, até lá, o mundo já terá reconhecido, caso não o tenha feito ainda, que a ascensão da China foi um acontecimento único. O crescimento indiano mudará o mundo. Mas não se deve esperar, nem temer, uma reprise da experiência chinesa. / TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA

Homeschooling: ainda dá tempo, por Renata Cafardo.

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Há mais de 40 milhões precisando de políticas educacionais que garantam que eles aprendam

Renata Cafardo – Estado de São Paulo, 22/05/2022

Depois de dois anos de pandemia, em que as crianças passaram meses sendo obrigadas a estudar em casa, a política educacional prioritária para o governo federal e para o Congresso Nacional é o homeschooling. Seria inacreditável se não estivéssemos neste Brasil quase distópico de 2022.

O País vê as consequências desastrosas de ter sido um dos que mais deixaram escolas fechadas, com aumento de crianças não alfabetizadas, retrocesso de aprendizagem em todas as idades e impactos socioemocionais sem medida.

Famílias percebem, de forma inédita, a importância do professor, da socialização, da escola em sua forma completa para o desenvolvimento de seus filhos. E o quanto é difícil fazer isso em casa. Uma pesquisa divulgada na revista científica European Child & Adolescent Psychiatry com 6 mil pais durante a pandemia mostrou aumento de estresse, preocupações, problemas sociais e conflitos domésticos durante o período em que as crianças estudavam em casa.

Mas muitos deputados acham que a educação pode ser barganhada com dinheiro de emenda. Arthur Lira (Progressistas-AL) decidiu que era assunto urgente, colocou em votação semana passada e 264 aprovaram o projeto que autoriza homeschooling, como queria Jair Bolsonaro. O discurso é o de que os pais podem escolher tirar os filhos de escolas com suposta “doutrinação de esquerda”.

Permitir o homeschooling não é apenas deixar um grupinho de doidos fazer o que quiser, como podem pensar alguns deputados. É abrir espaço para pais mandarem filhos trabalhar ou pedir dinheiro nos faróis, com a justificativa de que estudam em casa. É ainda incentivar a formação de uma sociedade menos desenvolvida, voltada para o próprio umbigo, religião ou crença.

O convívio com outras crianças e adultos permite ter contato com muitas visões de mundo, lidar com conflitos, ser tolerante. Características cruciais também no mercado de trabalho hoje. A escola ainda os protege de violência doméstica e abusos.

O projeto prevê fiscalização nas casas que optem por educação domiciliar e provas para os alunos. Estados e municípios, que não têm dinheiro nem estrutura para garantir educação de qualidade para quem está dentro da escola, agora vão ter que fazer isso com os que estão fora dela.

Há mais de 40 milhões de estudantes no Brasil precisando de políticas educacionais que garantam que eles aprendam.

O projeto agora vai ao Senado. Ainda há tempo para fazer o Congresso entender que crianças e adolescentes têm direitos. E que educação não é opção.

É REPÓRTER ESPECIAL DO ESTADÃO E FUNDADORA DA ASSOCIAÇÃO DE JORNALISTAS DE EDUCAÇÃO (JEDUCA)

Educação vai muito além da conexão, por Marcos Ferrari.

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Políticas públicas descoordenadas geram desperdício de energia e recursos públicos sem resultados condizentes

Marcos Ferrari, Presidente executivo da Conexis Brasil Digital, entidade que representa as operadoras de telecom

Folha de São Paulo, 20/05/2022

Desde que o “boom” da internet chegou ao Brasil, vemos uma série de iniciativas governamentais (nos âmbitos federal, estadual e municipal) com o objetivo de levar conexão às escolas. Porém, precisamos dar os passos seguintes e sair da armadilha das soluções de curto prazo.

Sem avaliação de eficiência, eficácia e efetividade das iniciativas do passado, repetimos e empilhamos políticas públicas descoordenadas e “desconectadas”, sem correções e ajustes em direção a metas mais elevadas de médio e longo prazo que dotem os alunos de habilidades portadoras de futuro.

Fica claro que, mais uma vez, o Brasil está cometendo o mesmo erro da década passada de encarar a conexão nas escolas como um fim em si mesmo, e não como um meio para uma política orientada e estruturada de conexão educacional.

Sem dúvida, a internet é o meio mais curto de acesso ao estoque de conhecimento, mas precisa estar aliada a uma estratégia nacional de educação para o desenvolvimento, a exemplo do movimento dos países asiáticos nos anos 1980.

Políticas públicas descoordenadas geram desperdício de energia e recursos públicos sem resultados estruturantes condizentes com o potencial de aprendizado e desenvolvimento cognitivo disponibilizado pelo acesso à internet. Que resultados na formação de alunos foram alcançados com o Projeto Banda Larga nas Escolas e o Prouca (Programa um computador por aluno)? Em que medida as novas iniciativas de conexão nas escolas dialogam ou aprimoram esses programas?

As diretrizes curriculares serão adaptadas a novas formas de aprendizado proporcionadas pelo acesso à internet de alta performance? Os nossos professores estão ou serão capacitados? De quais habilidades se pretende dotar os alunos e a quais objetivos de desenvolvimento econômico e social estarão ligadas? O impacto do 5G na natureza das habilidades cognitivas serão consideradas?

Estas e outras perguntas precisam ter respostas claras para que tenhamos ações estruturantes com efeitos educacionais duradouros e encadeados na formação de um círculo virtuoso.

Pesquisa da TekSystems, “State of digital transformation 2022” revela os cinco grupos de habilidades mais críticas do futuro: cibersegurança, análise de dados, computação na nuvem, análise de negócios e inteligência artificial.

Segundo o relatório “Future of Jobs Survey 2020” do Fórum Econômico Mundial, as profissões que mais crescem no mundo têm uma ou mais dessas habilidades: analista e cientista de dados, especialista em inteligência artificial e machine learning, especialista em big data, especialista em marketing e estratégia digital, especialista em internet das coisas, especialista em automatização de processos, analista de segurança de informação, para citar algumas.

Sem agregar esse cenário, a conexão nas escolas por si só perde o real poder transformador da internet na educação.

A potência da política educacional fica fragilizada. E o nosso quadro não é nada animador.

Levantamento da União Internacional de Telecomunicações mostra que apenas 20% da população brasileira possuem habilidades básicas em tecnologia da informação e comunicação. Essas habilidades são pré-requisitos mínimos para se ter condições para entrar nesse novo cenário. São ações de enviar emails com anexo, copiar e mover arquivo e pastas, transferir documentos do smartphone para o computador entre outras. Apenas 3% possuem habilidades mais avançadas.

Pesquisa do IBGE mostra que o percentual de crianças no Brasil que sequer sabem ler e escrever vem crescendo muito nos últimos anos. Saltou de 25,1%, em 2019, para 40,8%, em 2021.

Assim, é necessário urgentemente corrigir a rota da política de educação conectada no Brasil ou então ficaremos mais uma vez correndo atrás de um futuro inalcançável com elevados custos para as gerações futuras.

Desafios globais trazem riscos e oportunidades para o Brasil, por Armínio Fraga.

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País pode se qualificar para ser relevante na reconstrução de uma governança global ora em frangalhos

Armínio Fraga, Sócio-fundador da Gávea Investimentos, presidente dos conselhos do IEPS e do IMDS e ex-presidente do Banco Central.

Folha de São Paulo, 22/05/2022

O mundo vive um inferno astral de ameaças de curto e longo prazo. Em brilhante palestra recente, Tharman Shanmugaratnam, ministro sênior de Singapura, listou cinco riscos que, para ele, configuram uma “longa tempestade perfeita” para o planeta. Neste artigo, discutirei as implicações desse quadro para o Brasil, procurando também
identificar as oportunidades disponíveis.

O pano de fundo é conhecido. Ao acordar do sonho do mundo pacífico e integrado do fim da história de Fukuyama, nos deparamos com crescentes tensões, que se manifestam em múltiplas esferas. A mais chocante de todas e primeiro tema da lista de Tharman é a tragédia ucraniana, que configura o rompimento de uma governança global que garantia a soberania e a integridade territorial de todas as nações.

A esse retorno da Guerra Fria original, de natureza ideológica (modificada) e militar, se soma a Guerra Fria.2 entre os Estados Unidos e a China, também ideológica, mas muito mais complexa em suas frentes de disputa.

O embate entre os dois gigantes caracteriza um período de ausência de uma liderança global hegemônica que, como bem diagnosticou Charles P. Kindleberger, tende a ser muito instável. Do ponto de vista econômico, as duas guerras frias forçosamente demandam um importante repensar de alianças e relações de produção e comércio globais.

Para o Brasil, será necessário retornar à política externa tradicional do Itamaraty, voltada para a busca do interesse nacional através de boas relações viabilizadas pelo nosso histórico apego a princípios universais e pela nossa natural vocação multilateral. Nos cabe primeiramente e o quanto antes uma defesa inequívoca da integridade de todas as nações. Temos também que zelar pela manutenção de relações mutuamente benéficas com a maior parte dos países.

Em seu segundo grande tema, o autor discute o perigo de uma prolongada estagnação. O epicentro do problema encontra-se nos Estados Unidos, onde uma economia superaquecida por políticas expansionistas vem sendo atingida pelos choques de oferta da pandemia e das guerras frias. Para o Brasil, o risco maior advém da real possibilidade de o banco central americano ter de elevar os juros bem além do que os mercados já antecipam. Nos faria lembrar da frase “quando o Norte espirra, o Sul pega pneumonia”.

Um cenário alternativo, também nada reconfortante, seria uma queda ainda maior das Bolsas, acompanhada de um novo colapso nos preços dos imóveis, hoje acima em termos reais dos níveis da bolha que estourou em 2008.

Do lado de cá, o quadro é ainda mais complicado do que nos Estados Unidos, pois mesmo em recessão a inflação atingiu dois dígitos. Não é difícil imaginar uma tempestade perfeita para o Brasil, onde desafios externos e internos se reforçam. O próximo presidente terá que conduzir a política econômica com coragem e competência, de preferência com o apoio qualitativo das respostas aos demais desafios, que discuto a seguir.

A ameaça existencial da mudança climática é o terceiro tema do discurso. Aqui o Brasil terá a oportunidade de promover uma guinada verdadeiramente alquímica: trocar uma posição de pária ambiental, decorrente de posturas que aumentaram o desmatamento e o crime organizado, por uma guinada que nos poria em uma posição de liderança global no tema, com consequências extremamente positivas fora e dentro do país.

A criação de um mercado de carbono, como vem sendo discutido no Congresso e prometido pelo Executivo, seria um passo essencial nessa direção. É fundamental que o mercado seja desenhado de forma a permitir a plena inserção do país no mercado global de carbono, alternativa não disponível no momento. Vejo amplo potencial para investimentos no setor, em ambiente de concorrência e plenamente alinhados com o interesse público (estou investindo nessa área).

O elevado risco de novas pandemias vem a seguir. A ciência recomenda todo cuidado com o tema. Aqui também vejo amplo espaço para um cavalo de pau. Será necessário reforçar sob todos os ângulos o SUS, que, com seus 4% do PIB de recursos, precisa urgentemente subir na escala de prioridades dos orçamentos de todas as esferas de governo.

Cabe também incluir nas prioridades da nação mais apoio à pesquisa. Fontes de recursos para tais esforços não faltam, como tenho argumentado aqui. Falta sim transparência orçamentária e vontade política.

Em último lugar na lista, mas não menos importante, são as desigualdades de crescimento e bem-estar dentro dos países e entre eles, os mais ricos em vantagem em ambos os casos. Essa situação vem se agravando com as “tempestades perfeitas” e representa um terreno fértil para populismos e autoritarismos. O Brasil tem muito a fazer nessa área.

Com sucesso nessas frentes, o Brasil se qualificaria para ser relevante na reconstrução de uma governança global ora em frangalhos. As vantagens seriam imensas, pois ajudaria a si próprio em tudo mais. No entanto, sem sucesso, os prejuízos para a população seriam enormes. Um futuro melhor só virá se e quando a nossa democracia não mais estiver ameaçada e um tanto disfuncional.

A história do Estado de bem-estar, por Samuel Pessoa.

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Privilegiar os idosos sobre as crianças ajuda a explicar a redução do crescimento do Brasil

Samuel Pessoa, Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e da Julius Baer Family Office (JBFO). É doutor em economia pela USP.

Folha de São Paulo, 22/05/2022

Peter Lindert é pesquisador do departamento de economia da Universidade da Califórnia em Davis. É um acadêmico que se casou com um tema. Dedica-se a desvendar os segredos da evolução do Estado de Bem-estar social mundo afora.

Acaba de publicar “Making Social Spending Work”, continuação do “Growing Public”, de 2004. O livro de 2021 investiga a evolução do Estado de bem-estar social até hoje para um conjunto de sociedades bem maior do que o volume de 2004.

O livro divide-se em três partes. Na primeira, investiga as causas do crescimento e descreve o longo processo de aumento da carga tributária e de construção dos seguros públicos básicos, desde os programas privados na Inglaterra medieval de combate à pobreza.

Elabora os motivos de os gostos com educação terem ocorrido relativamente tarde no século 19 e mostra como o poder político da população com mais idade, “the grey power”, elevou em muito o gasto público com benefícios com aposentadorias.

Na segunda parte, o livro trata das consequências da construção do Estado de bem-estar. Documenta que a grande elevação da carga tributária não gerou perda de eficiência econômica e que houve grandes ganhos na melhora da qualidade de vida, na expectativa de vida e na produtividade, esta última fruto da expansão da escolaridade.

Na terceira parte, trata das tensões atuais do Estado de bem-estar. Em particular dos desafios de a sociedade aceitar a incorporação no Estado de bem-estar dos imigrantes e da necessidade de ajustar os sistemas previdenciários a uma sociedade que envelhece.

Das três principais áreas de atuação do Estado —saúde, educação e previdência—, transparece que saúde é aquela em que há maiores concordâncias. Há ganhos de escala, e a oferta por meio de um grande sistema público parece ser a maneira mais eficiente. Nesse sentido, os EUA constituem um caso excepcional e curioso.

As outras duas áreas, educação e previdência, apresentam o que me pareceu ser o grande tema do livro. Apesar de Lindert não tratar explicitamente do tema, fica muito claro que há uma complexa economia política e um surpreendente conflito distributivo. Não se trata do clássico conflito capital e trabalho. Mas sim do conflito geracional: os jovens contra os velhos.

Nesse sentido, para nós, brasileiros, o ponto alto do livro é a tabela 7.1 e a figura 7.3 do sétimo capítulo, que apresenta o gasto com aposentadorias e com educação como proporção do PIB. Para eliminar diferenças devidas à demografia, Lindert considera o benefício previdenciário médio como proporção da renda de cada trabalhador ativo, e o gasto público com cada aluno também como proporção da renda de cada trabalhador ativo.

Há países que gastam relativamente muito com a terceira idade, outros com a educação das crianças, e outros, na média. Para a amostra de 106 países em 2010 que Lindert considera, somente 5 países gastam mais com aposentadoria do que o Brasil: Sérvia, Turquia, Tunísia, Mongólia e Kuait.

Ou seja, o Brasil fez uma clara opção por sustentar a qualidade de vida dos idosos. Tem impactos positivos sobre o bem-estar, mas não tem impactos positivos sobre o crescimento de longo prazo. Esse padrão de privilegiar os idosos sobre as crianças é recorrente na América Latina. Esse fato ajuda a explicar a redução de crescimento do Brasil nos últimos 40 anos, como documentei na coluna da semana passada.

Há três lições que seguem da experiência internacional.

Primeira, não se deve vincular previdência ao contrato de trabalho. Deve haver um sistema único e universal para todos os trabalhadores, independentemente da natureza do contrato de trabalho.

Segundo, a experiência dos sistemas previdenciários em que as pessoas poupam em contas individuais, como o modelo chileno, não tem sido positiva.

Terceiro, um modelo de repartição, em que a contribuição dos ativos financia o benefício dos inativos, demanda seguidas reformas para garantir a sustentabilidade. O benefício tem que crescer abaixo do crescimento da produtividade do trabalho, e a idade mínima para requerer o benefício tem que crescer com a elevação da expectativa de vida.

O professor Bresser-Pereira gentilmente enviou-me email comentando a coluna da semana passada que pode ser lido no Blog do Ibre. Registro meu agradecimento ao professor.

Confronto e erosão como método, por Oscar Vilhena Vieira.

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Essa concepção tribal de política foi descaradamente plagiada pelo bolsonarismo

Oscar Vilhena Vieira, Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.

Folha de São Paulo, 21/05/2022

Bolsonaro pratica uma concepção primitiva de política, baseada no confronto, na intimidação dos adversários e no arbítrio, em detrimento de uma política fundada na competição eleitoral, no debate público e na legalidade.

Essa concepção tribal de política, defendida por Carl Schmitt, que marcou a ascensão de regimes totalitários nos anos 1930, repaginada pela extrema direita norte-americana nas últimas décadas —com sua idolatria fálica às armas,

à supremacia racial e a ideias liberticidas—, foi descaradamente plagiada pelo bolsonarismo.

Para os praticantes dessa concepção pervertida de política, a democracia constitucional —que pacifica e institucionaliza a competição política e impõe limites jurídicos àqueles que exercem poder— aparece como um entrave inaceitável ao poder soberano devendo, portanto, ser suprimido. A verdadeira soberania, de acordo com Schmitt, não pode ser confinada pela Constituição, pelo império do direito. Ela somente se expressa no contexto do estado de exceção.

Afirmar que se trata de um modelo primitivo de política, não significa, portanto, dizer que é uma concepção destituída de método. No caso brasileiro, o constitucionalismo democrático vem sendo atacado de duas formas: o intenso confronto político deliberado e a erosão difusa da ordem jurídica e da integridade das instituições.

Politicamente, o bolsonarismo conduz um interminável confronto com as instituições e os valores da democracia liberal. Promove uma guerra cultural permanente pelas redes sociais e, ao mesmo tempo, ataca as instituições de controle e aplicação da lei, com o objetivo de minar a credibilidade e a capacidade delas de exercerem a função de freios contrapesos ao poder presidencial.

O ataque às urnas eletrônicas, ao Supremo e aos ministros que têm conduzido o processo eleitoral é parte essencial dessa estratégia de fragilização institucional. Como demonstra relatório da organização Democracia em Xeque, publicado esta semana, após Bolsonaro propor ação de abuso de autoridade contra Alexandre de Moraes, o ministro vem sendo alvo de uma gigantesca onda de ataques nas redes sociais, voltada a intimidar e restringir sua credibilidade.

Dentro dessa mesma estratégia, o bolsonarismo fomenta a animosidade das Forças Armadas contra o Supremo e o TSE.

No plano jurídico, por sua vez, o governo tem empregado as prerrogativas presidenciais, como decretos, nomeações, restrições orçamentárias, estabelecimento de sigilo e ordens para institucionais, para subverter a ordem constitucional. Essa estratégia parece ser uma consequência da incapacidade do governo de promover mudanças mais amplas com apoio de ambas casas do Congresso Nacional.

Esse ataque infralegal fica muito evidente no campo do meio ambiente, dos direitos indígenas, do combate ao trabalho escravo, da reforma agrária, da Polícia Federal e, especialmente, na área das armas de fogo, prejudicando não apenas a política de segurança pública, como fortalecendo milícias e grupos radicalizados que ameaçam a democracia.

Trata-se, assim, de um perigoso avanço em direção ao estado de exceção, como decorrência da associação entre confronto político sistemático e erosão jurídica como método de subversão da ordem constitucional, que precisa ser imediatamente contido, sob o risco de comprometer definitivamente o edifício democrático brasileiro. Esse é o desafio colocado às elites políticas, econômicas e sociais brasileiras neste momento.