As empresas sob cerco, por Celso Ming.

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O Estado de S. Paulo – 04/06/2021

Ainda há quem pense que a agenda ESG (em inglês, Environmental, Social and Governance), cada vez mais cobrada de empresas, bancos e instituições para que, em seus negócios, sejam levadas em conta exigências socioambientais, seja onda passageira, coisa de fundamentalistas ou, ainda, de concorrentes incompetentes que pretendem tomar mercado no mole.

A questão deixou de ser puramente doutrinária. Empresas que não mudarem suas práticas perderão dinheiro – e muito – ou correm grandes riscos.

Ainda há quem pense que a agenda ESG (em inglês, Environmental, Social and Governance), cada vez mais cobrada de empresas, bancos e instituições para que, em seus negócios, sejam levadas em conta exigências socioambientais, seja onda passageira, coisa de fundamentalistas ou, ainda, de concorrentes incompetentes que pretendem tomar mercado no mole.

A questão deixou de ser puramente doutrinária. Empresas que não mudarem suas práticas perderão dinheiro – e muito – ou correm grandes riscos.

No início da semana, o jornal Financial Times publicou ampla matéria em que denuncia a gigante Nestlé (faturamento de US$ 93,3 bilhões em 2020) de manter no mercado nada menos que 63% de seus produtos com componentes prejudiciais à saúde humana. A revelação baseou-se em levantamentos internos feitos pela própria Nestlé. Também nesta semana, no que está sendo considerado caso sem precedente, a petroleira Exxon Mobil (faturamento de US$ 178 bilhões em 2020) teve de aceitar em seu conselho de administração dois ativistas do meio ambiente.

São pressões crescentes às empresas que governos vêm trabalhando para vê-las cumpridas.

Na última quinta-feira, o presidente do Banco da Inglaterra (BoE, pela sigla em inglês), Andrew Bailey, deixou de lado os temas puramente monetários para cobrar união de reguladores e formuladores de políticas destinadas a enfrentar ameaças de crises financeiras produzidas por desarranjos climáticos. No mesmo dia, o ex-presidente do Banco Central do Brasil Armínio Fraga advertiu que o derretimento do gelo, que agora pode estar provocando cheia recorde do Rio Negro, pode sepultar debaixo d’água as indústrias da Zona Franca de Manaus.

A BlackRock, que detém carteira de mais de US$ 8 trilhões em ativos, vem pressionando as empresas emissoras desses títulos a assumir o compromisso de reduzir a zero suas emissões até 2050 e a promover a diversidade nos seus conselhos de administração e colegiados.

Como comentado por esta Coluna, há duas semanas, o ex-vice-presidente dos Estados Unidos Al Gore avisou que montadoras, petroleiras, companhias de energia elétrica que operam com combustíveis fósseis poderão ser obrigadas a riscar dos seus balanços cerca de US$ 22 trilhões em ativos que deixarão de ter valor com o cumprimento das metas de descarbonização.

Por toda parte, governos de países industrializados vêm impondo prazos para o fim da venda de veículos movidos a combustíveis fósseis. Reino Unido, Bélgica e Irlanda fixaram essa proibição para 2030. A China pretende ter, até 2035, metade dos carros novos movidos a energia limpa. Alemanha e França definiram 2040 como prazo final. E o presidente Biden, dos Estados Unidos, avisou que planeja substituir os veículos federais em serviço por carros elétricos.

Com base nessas decisões ou, simplesmente, por encararem novas condições de mercado, as montadoras apressam o desenvolvimento de veículos elétricos e híbridos. A Volvo e a Volkswagen pretendem ter apenas elétricos em seus portfólios a partir de 2030. A General Motors deixará de vender carros a gasolina ou diesel a partir de 2035. A Mercedes-Benz pretende ser 100% elétrica em 2039.

Enfim, os tempos estão mudando. Quem ficar para trás pode se dar mal.

O dólar não para de cair em reais. Nesta sexta-feira, fechou a R$ 5,0356, queda de 3,6% em apenas três dias úteis de junho e de 7,3% em 30 dias.

Alguns analistas entendem que essa valorização do real é consequência da alta dos juros, que teria levado os investidores a trazer mais moeda estrangeira para o Brasil de modo a aproveitar o melhor retorno nas aplicações financeiras. Isso pode estar ocorrendo em certa medida. No entanto, o fator principal são os bons resultados da balança comercial.

The Economist: Bolsonaro não é única razão de o Brasil estar no buraco

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O sistema político que o ajudou a conquistar o cargo precisa de uma reforma profunda; próximo governo deve combater a corrupção sem preconceitos

The Economist, O Estado de S.Paulo – 04 de junho de 2021

Os hospitais estão lotados, as favelas ecoam tiros e um recorde de 14,7% dos trabalhadores estão desempregados.

Inacreditavelmente, a economia do Brasil está menor agora do que era em 2011 – e serão necessários muitos trimestres fortes como o relatado em 1.º de junho para reparar sua reputação. O número de mortos no Brasil pela covid-19 é um dos piores do mundo. Mas o presidente Jair Bolsonaro faz piada dizendo que as vacinas podem transformar as pessoas em jacarés.

O declínio do Brasil foi chocantemente rápido. Após a ditadura militar de 1964-85, o país conseguiu uma nova Constituição que devolvia o Exército aos quartéis, uma nova moeda que acabou com a hiperinflação e programas sociais que, com um boom de commodities, começaram a reduzir a pobreza e a desigualdade. Uma década atrás, o País estava cheio de dinheiro do petróleo e tinha sido escolhido para sediar a Copa do Mundo de 2014 e a Olimpíada de 2016. Parecia destinado a florescer.

Mas o Brasil não aproveitou a oportunidade. Como argumenta nossa reportagem especial desta semana, governos consecutivos cometeram três erros. Primeiro, eles cederam à visão de curto prazo e adiaram as reformas econômicas liberais. A culpa por isso pertence principalmente ao Partido dos Trabalhadores (PT) que ocupou a Presidência entre 2003-16. Ele alcançou um crescimento de 4% ao ano, mas não investiu para aumentar a produtividade. Quando os preços das commodities caíram, o Brasil enfrentou uma das piores recessões de sua história. Os governos de Michel Temer e Bolsonaro fizeram algum progresso nas reformas, mas pararam muito aquém do que é necessário.

Em segundo lugar, em seus esforços para se protegerem das consequências da Lava Jato, os políticos têm resistido às reformas que impediriam a corrupção. Os promotores e juízes por trás da Lava Jato são parcialmente culpados. Depois que alguns demonstraram ter uma agenda política, os inquéritos dos quais eram responsáveis ficaram estagnados no Congresso e nos tribunais.

Por último, o sistema político do Brasil é um fardo. Distritos estaduais e 30 partidos no Congresso tornam as eleições caras. Mais ainda do que em outros países, os políticos no Brasil tendem a apoiar projetos extravagantes para ganhar votos, em vez de reformas valiosas de longo prazo. Uma vez no cargo, eles seguem as regras erradas que os elegeram. Eles desfrutam de privilégios legais que os tornam difíceis de serem processados e de uma grande quantidade de dinheiro para ajudá-los a manter o poder. Como resultado, os brasileiros os desprezam. Em 2018, apenas 3% disseram confiar “muito” no Congresso.

A desilusão abriu o caminho para Bolsonaro. Ex-capitão do Exército com uma queda pela ditadura, ele convenceu os eleitores a verem seu jeito politicamente incorreto como um sinal de autenticidade. Ele prometeu eliminar políticos corruptos, reprimir o crime e turbinar a economia. E tem fracassado em todas as três tarefas.

Depois de aprovar a reforma da previdência em 2019, ele abandonou a agenda de seu ministro da Economia liberal, temendo que ela lhe custasse votos. A reforma tributária e do setor público e as privatizações estagnaram. O auxílio emergencial ajudou a evitar a pobreza no início da pandemia, mas foi reduzido no final de 2020 em razão do aumento da dívida. A taxa de desmatamento na Amazônia aumentou mais de 40% desde que Bolsonaro assumiu o cargo. Ele levou uma motosserra para o Ministério do Meio Ambiente, cortando seu orçamento e forçando a saída de funcionários.

Seu ministro do Meio Ambiente está sob investigação por tráfico de madeira.

Em relação à covid-19, Bolsonaro apoiou manifestações contra os bloqueios totais e curas de charlatões. Ele enviou aviões carregados de hidroxicloroquina para povos indígenas. Por seis meses ele ignorou ofertas de vacinas. Um estudo descobriu que o atraso pode ter custado 95 mil vidas.

Em vez de lidar com a corrupção, ele protegeu seus aliados. Em abril de 2020, demitiu o chefe da Polícia Federal, que investiga os filhos dele por corrupção. Seu ministro da Justiça pediu demissão, acusando-o de obstrução da justiça. Dias antes, Bolsonaro havia ameaçado a independência do Supremo Tribunal Federal (STF). Em fevereiro, seu procurador-geral acabou com a força-tarefa da Lava Jato.

A democracia brasileira está mais frágil do que em qualquer momento desde o fim da ditadura. Em março, Bolsonaro demitiu o ministro da Defesa, que se recusou a enviar o Exército às ruas para forçar a reabertura de empresas. Se ele perder a reeleição em 2022, alguns acham que ele pode não aceitar o resultado. Ele lançou dúvidas em relação ao voto eletrônico, aprovou decretos para “armar a população” e se gabou de que “só Deus” o tirará da cadeira presidencial.

Impeachment
Na verdade, o Congresso brasileiro poderia fazer o trabalho sem a intervenção divina. Sua conduta provavelmente se qualifica como passível de impeachment, incluindo “crimes de responsabilidade”, como encorajar as pessoas a desafiar os bloqueios totais, ignorar ofertas de vacinas e demitir funcionários para proteger seus filhos. O Congresso recebeu 118 petições de impeachment. Dezenas de milhares de pessoas foram às ruas em 29 de maio para exigir sua expulsão do cargo.

Por enquanto, ele tem apoio suficiente no Congresso para impedir o impeachment. Além disso, o vice-presidente, que assumiria, é um general também nostálgico do regime militar. A última vez que o Congresso votou pelo impeachment de um presidente no Brasil – Dilma Rousseff em 2016 por esconder o tamanho do déficit orçamentário – isso dividiu o País. Bolsonaro se apresentaria como um mártir. Muitos de seus apoiadores estão armados.

No longo prazo, além de substituir Bolsonaro, o Brasil deve lidar com o cinismo e o desespero que o elegeu, enfrentando o baixo crescimento crônico e a desigualdade. Isso exigirá uma reforma dramática. No entanto, a própria resiliência que protegeu as instituições brasileiras das predações de um populista também as torna resistentes a mudanças benéficas.

As ações necessárias são difíceis. Acima de tudo, o governo precisa servir ao público e não a si mesmo. Isso significa reduzir os privilégios dos trabalhadores do setor público, que consomem uma parcela insustentável dos gastos do governo. Os políticos também não devem poupar a si mesmos. Os titulares de cargos devem ter menos proteções legais. Eles deveriam reorganizar os sistemas eleitoral e partidário para deixar sangue novo entrar no Congresso.

O próximo governo deve combater a corrupção sem preconceitos, conter gastos desnecessários e aumentar a competitividade. A aplicação de medidas severas na Amazônia deve ser acompanhada de alternativas econômicas ao desmatamento. Caso contrário, mais cedo ou mais tarde, novos Bolsonaros surgirão.
Há um longo caminho pela frente.

A não ser que o impeachment de Bolsonaro ocorra, o destino do Brasil provavelmente será decidido pelos eleitores no ano que vem. Seus rivais deveriam oferecer soluções em vez de espalhar nostalgia. Seu sucessor herdará um País deteriorado e dividido. Infelizmente, a podridão vai muito além de um homem só.

TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA

The Economist: O capitão e o seu país

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O Brasil está retrocedendo. Jair Bolsonaro e a covid-19 são os mais recentes de uma década de desastres

The Economist, O Estado de S. Paulo – 05 de junho de 2021

Num determinado dia de abril, quando os hospitais brasileiros estavam sem oxigênio e 3 mil pessoas morriam diariamente em decorrência da covid-19, o chefe de gabinete de Jair Bolsonaro, Luiz Eduardo Ramos, 64 anos, foi vacinado. Era a sua vez e ele tomou a vacina em segredo. Seu chefe era contra a vacina. Indagado por que o Brasil estava bloqueando a aprovação da vacina da Pfizer, o presidente fez uma piada dizendo que vacinas transformavam as pessoas em jacarés.

O fato de Ramos, general quatro estrelas e o comandante das tropas de manutenção de paz no Haiti, ter se vacinado furtivamente revela o quão profundo o Brasil desabou sob a condução de Bolsonaro, cuja carreira como capitão do Exército se destacou apenas quando foi preso por insubordinação.

Antes da pandemia, o Brasil já estava doente há uma década, econômica e politicamente. Com Bolsonaro como seu médico, agora está em coma. Mais de 87 mil brasileiros morreram por causa da covid-19 em abril, o maior número mensal de mortos registrado no mundo inteiro na época. As vacinas são tão escassas que pessoas com menos de 60 anos

de idade não serão vacinadas antes de setembro. E 14,4% dos trabalhadores estão desempregados, um recorde.

Mas em 1º de maio, os bolsonaristas, com camisetas estampando a bandeira brasileira, foram às ruas.

Sem se abalar com a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investiga a condução da covid-19. pelo presidente, eles aplaudiram sua recusa em usar máscara, seu apoio à hidroxicloroquina e o seu desejo de enviar o Exército para as ruas e obstruir as ordens para as pessoas permanecerem em casa. Seus admiradores em São Paulo pediam “intervenção militar”. Uma mulher disse a um visitante que o Brasil jamais teve uma guerra civil. “Está na hora”, afirmou ela.

Mude o português pelo inglês e o verde e amarelo pelo vermelho, branco e azul, e a manifestação poderia ser nos Estados Unidos no ano passado. Bolsonaro tomou emprestado as táticas de Donald Trump para vencer a eleição em 2018: populismo, nacionalismo, chauvinismo e fake news. O Brasil estava traumatizado com a corrupção, recessão, a piora dos serviços públicos e o crime violento. Os brasileiros estavam fartos de políticos incapazes de resolver esses problemas. Bolsonaro canalizou essa frustração.

E se apresentou como um outsider, embora tenha passado 27 anos como deputado, gerando notícia apenas quando dizia algo ofensivo contra as mulheres, os povos indígenas e os gays. Admirador da ditadura militar que vigorou no Brasil de 1964 a 1985, ele sempre posou com seus polegares e indicadores apontados como se estivesse atirando com uma arma.

Investido no cargo, seu alvo direto foram as instituições democráticas do País.
Bons tempos, maus tempos. Há dez anos, a eleição de Bolsonaro seria algo impensável. Após a ditadura, o Brasil se reformou. A Constituição assinada em 1988 criou instituições independentes. Uma nova moeda em 1994 freou a inflação. Um boom de commodities em 2000 gerou empregos. Com dinheiro no bolso, os brasileiros viram sua vida melhorar.

Sob a Presidência de Luiz Inácio Lula da Silva, o Brasil se uniu à Rússia, Índia e China, formando o bloco dos BRICs, economias emergentes com rápido crescimento. Liderou conversas sobre o clima e hospedou a Copa do Mundo de Futebol em 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016.

Mas então o boom das commodities acabou. Protestos em 2013 contra o aumento das tarifas se transformaram em manifestações visando a derrubar o governo do Partido dos Trabalhadores, de esquerda. Uma investigação anticorrupção iniciada em 2014, conhecida como Lava Jato, revelou que dezenas de empresas pagaram propinas para políticos em troca de contratos firmados com a Petrobrás. A economia entrou em colapso depois dos gastos irresponsáveis feitos pela sucessora de Lula, Dilma Rousseff.

Manifestações maiores e mais enfurecidas levaram ao impeachment de Dilma Rousseff. Seu substituto, Michel Temer, foi acusado de atos de suborno e escapou por pouco de um impeachment em 2017.

A eleição de Bolsonaro foi após esses traumas. Ele contava com pouco financiamento para pagar tempo de propaganda na TV e rádio, mas sua candidatura alavancou quando foi esfaqueado durante um evento de campanha. Lançando-se como o salvador do Brasil, ele conquistou 55% dos votos. Seu apoio maior foi no Sul e Sudeste, as regiões mais ricas e mais brancas do País, e entre os conservadores, como fazendeiros e evangélicos. Milhões de eleitores o apoiaram por raiva do PT. Bolsonaro parecia, para muitos, o menor dos males.

Para muitos especialistas, as instituições brasileiras resistiriam aos seus instintos autoritários. Até agora parecem certos. Embora Bolsonaro afirme que seria fácil dar um golpe, não foi adiante. Mas, num sentido mais amplo, os especialistas erraram. Seus primeiros 29 meses no cargo mostraram que as instituições do País não são tão fortes como se imaginava e se debilitaram com suas investidas. Cláudio Couto, cientista político da Fundação Getúlio Vargas, compara as instituições aos breques de um carro indo colina abaixo. “Se pressionados com muita força, eles podem falhar”, disse ele.

É o caso do Judiciário. A Lava Jato parecia o triunfo da década. Os brasileiros esperavam que reformas anticorrupção produziriam legisladores mais honestos que atuariam em favor do povo e não em proveito próprio. Mas alguns procuradores e juízes da Lava Jato tinham uma agenda política. Isso abriu o caminho para Bolsonaro, diante de acusações contra seus filhos, para pôr fim à investigação, o que ajudou não apenas políticos corruptos, mas também grupos do crime organizado.

A economia necessita muito de reformas para frear o crescimento dos gastos públicos, impulsionar a competitividade e corrigir as desigualdades. Quando candidato, Bolsonaro expressou sua crença na economia liberal. Recrutou Paulo Guedes, defensor do livre mercado, formado na Universidade de Chicago, para ser seu ministro da Economia.

Mas em seguida ele se recusou a apoiar mudanças que lhe custariam votos. Depois de uma reforma do sistema de previdência social em 2019, a agenda de reformas de Guedes paralisou. Seis dos dez membros da sua “equipe do sonho” deixaram o cargo ou foram demitidos.

A pandemia eliminou todos os ganhos em termos de empregos criados desde a recessão de 2014-2016, com milhões de pessoas caindo de novo na pobreza.

Nenhum dos quatro ministros da Educação nomeados por Bolsonaro criou um sistema de ensino à distância funcional. Um desses ministros durou apenas cinco dias no posto, quando se descobriu que no seu currículo constavam dados falsos de formação na Argentina e na Alemanha. Cerca de 35 milhões de crianças estão fora da escola há 15 meses, um entrave para a mobilidade social nos próximos anos.

Em termos políticos, “a promessa de renovação foi uma grande mentira”, disse Couto. Em 2018 os eleitores expulsaram grande parte da classe política tradicional. Pela primeira vez, o Congresso tinha mais parlamentares novos do que reeleitos. Um pequeno grupo comprometido com a responsabilidade fiscal e outras reformas era a esperança do futuro.

Mas muitos políticos continuam famintos por privilégios.

Depois de denunciar o sistema, Bolsonaro também se juntou a ele para se salvar de mais de cem pedidos de impeachment.

Ele provocou mais danos à floresta amazônica, que agora no Brasil emite mais carbono do que armazena por causa da mudança climática e do desmatamento. O presidente não acredita em mudança climática e tem simpatia pelos que desmatam: madeireiras, empresas de mineração e fazendeiros. Cortou o orçamento do ministério do Meio Ambiente e

forçou a saída de funcionários competentes. Reduzir o desmatamento exige políticas mais concretas e investimento em alternativas econômicas. Nada disso parece provável.

No início, a covid-19 ajudou Bolsonaro. Grandes gastos em empresas e auxílio aos pobres desviaram a atenção do seu fracasso em aprovar as reformas fiscais.

Seu índice de popularidade chegou ao nível mais alto desde que assumiu a Presidência. Em julho passado ele contraiu a covid-19 e se recuperou rapidamente, como havia prometido. Parecia ocorrer o mesmo com a economia, abrindo caminho para sua reeleição em 2022.

Mas então, no início de 2021, o Brasil foi atingido por uma segunda onda com uma variante mais infecciosa do vírus originada na cidade de Manaus. Enquanto a mídia social estava repleta de imagens do vizinho Chile e as filas de vacinação, os coveiros no Brasil estavam atarefados. Bolsonaro continuou a atacar os lockdowns e as vacinas. Numa mudança de gabinete, demitiu o ministro da Defesa, que teria se recusado a lhe prestar lealdade.

Os comandantes das três Forças Armadas renunciaram em protesto, alimentando rumores de um golpe. Que não se verificou. Mas este relatório especial afirma que o Brasil enfrenta sua pior crise desde o retorno à democracia em 1985. Seus desafios são gigantescos: estagnação econômica, polarização política, ruína ambiental, retrocesso social e o pesadelo da covid-19. E tem de aguentar um presidente que vem corroendo o próprio governo. Sua camarilha substituiu os funcionários de carreira. Seus decretos desgastaram os pesos e contrapesos em todos os lugares.

Observe o Diário Oficial da União, onde todas as mudanças legais são publicadas, disse Lilia Schwarcz, historiadora. “Há um golpe todos os dias”.

TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO.

Bolsonaro e a anarquia militar

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A desgraça deste país é uma obra coletiva

Cristina Serra Folha de São Paulo, 05/06/2021

A indulgência do comandante do Exército, Paulo Sérgio Nogueira, ao ato de flagrante indisciplina do general Eduardo Pazuello, terá consequências de alto risco para a conjuntura política brasileira. Mas não se pode dar a essa decisão a responsabilidade pela instalação da anarquia entre os fardados. Ela fomenta a anarquia, é certo. Mas o caldo da insubordinação começou a ferver faz tempo.

O marco mais explícito da permissividade nos quartéis deve-se a outro comandante da força, o general Villas Bôas, e seu post ameaçando o STF na véspera da votação do habeas corpus de Lula, em 2018. Na campanha daquele ano, militares da ativa engajaram-se com desenvoltura em exércitos digitais, públicos ou não, a favor de Bolsonaro. Como se sabe, em instituição hierarquizada o exemplo vem de cima.

Também deu mau exemplo o então ministro da Defesa, Fernando Azevedo, quando acompanhou Bolsonaro em sobrevoo de apoio à manifestação contra o Congresso e o STF, que pedia “intervenção militar”. Ao ser defenestrado, em março, afirmou ter preservado as Forças Armadas como “instituições de Estado”. Cinismo ou ingenuidade?

É claro que há nuances e divergências de pensamento entre os militares. Mas essas diferenças não abalam, por ora, o projeto que os trouxe de volta ao poder. Este é um governo colonizado por e para militares, com seus salários, cargos, mordomias, privilégios e outras benesses.

As Forças Armadas carregam a mancha de 21 anos de ditadura, tortura e morte de opositores. Com Bolsonaro, reforçam sua tradição golpista, associam-se ao morticínio de brasileiros na pandemia, afundam-se no pântano da história. Mas não estão sozinhas. Bolsonaro fermenta o caos com a complacência de parcelas da sociedade civil, como o capital financeiro, oligarcas do agronegócio, setores do Legislativo e do Judiciário, mídia, igrejas. A desgraça deste país é uma obra coletiva.

Peso do agronegócio no PIB sobe de 5% para quase 7%, por Mauro Zafalon

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Mesmo com pequena retração na pecuária, a agropecuária mantém presença forte na economia

Mauro Zafalon, formado em jornalismo e ciências sociais, com MBA em derivativos na USP.

Folha de São Paulo, 02/06/2021.

O ano de 2021 prometia ser diferente para a agropecuária brasileira. A soja, o carro-chefe da agricultura, foi plantada com atraso, e, embora a área estivesse ganhando um bom impulso, a produtividade era incerta.
Mesmo com tantos empecilhos iniciais, o país volta a obter uma safra recorde com a oleaginosa, somando 132 milhões de toneladas, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

O volume apurado pelo IBGE é referência para a apuração do PIB (Produto Interno Bruto) da agropecuária. Outras avaliações de mercado, porém, apontam uma produção de até 137 milhões de toneladas.

Com o avanço nas produções de soja e de milho, a safra brasileira de grãos deste ano deverá atingir 264,5 milhões de toneladas, segundo o IBGE. Na avaliação da Conab (Companhia Nacional de Abastecimento), serão 272 milhões de toneladas.

Com números tão expressivos na lavoura, e mesmo com pequena retração na pecuária, a agropecuária mantém uma presença forte no PIB e na economia.

No primeiro trimestre deste ano, a evolução do PIB do setor foi de 5,2%, em relação a igual período de 2020. No acumulado dos últimos quatro trimestres, a alta é de 2,3%. Há 17 trimestres seguidos que a agropecuária vem registrando um PIB positivo no acumulado de 12 meses.

A taxa acumulada dos quatro últimos trimestres é a maior desde 2019, mas o melhor ano foi 2017, quando houve um crescimento de 14,2% no PIB do setor.

Com o recente crescimento da agropecuária, a taxa de participação do setor no PIB, que normalmente gira próxima de 5%, fechou 2020 em 6,8%, conforme os dados divulgados nesta terça-feira (1º) pelo IBGE.

A agropecuária adicionou R$ 209 bilhões na economia neste início de ano, bem acima dos R$ 125 bilhões de igual período de 2020.

O primeiro trimestre deste ano foi marcado por alta na produção e melhora na produtividade. A soja, cuja área de plantio cresceu 4,1%, obteve um rendimento, por hectare, 4,4% superior ao da safra passada.

A produção recorde, com alta de 9%, foi preponderante para uma participação melhor do produto no PIB geral.

Apesar do atraso no plantio, algumas regiões obtiveram um desempenho bem melhor do que o da safra anterior. O Rio Grande do Sul, que havia sido afetado severamente por problemas climáticos na safra 2020, conseguiu uma produção de soja 74% superior em 2021.

O milho, o segundo principal produto do setor agrícola, ainda é uma promessa. A primeira safra, que representa apenas 25% da produção do ano, foi colhida com queda de 3,1%, segurando a evolução do PIB.

A segunda, a chamada safrinha, foi semeada com atraso, e o clima adverso já faz o mercado rever estimativas de produção para baixo. Se concretizada essa quebra, o cereal vai afetar o desempenho do PIB agropecuário nos próximos trimestres.

As lavouras de fumo também cooperaram com o PIB. A produção é de 721 mil toneladas, com alta de 3,6%. O rendimento cresceu 6,1% por hectare.

Além do milho da primeira safra, a produção de mandioca, que tem queda de 3,4% na área plantada, inibiu o crescimento do PIB agropecuário. A produção recuou 1,3%.

O PIB da agropecuária deverá ser influenciado nos próximos trimestres por uma previsível queda na produção de milho, de laranja, de café arábica e de cana-de-açúcar, produtos importantes na composição do índice.

Mundo do trabalho

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Vivemos um momento caracterizado pela Quarta Revolução Industrial, um período de grandes transformações, marcadas por alta tecnologia, novas máquinas e novas habilidades, com isso, percebemos crises crescentes no mercado de trabalho, destacando novas formas de acumulação, novos modelos de negócios, rupturas econômicas e exigências crescentes de capacitação e de qualificação, onde a competição não é mais local, nem nacional, mas ao mesmo tempo, é internacional.

Na atualidade, ao analisarmos os dados mais recentes de emprego divulgados pelo IBGE, abarcando os três meses do ano, 14,7% da população se encontra desempregada, um contingente de quase 15 milhões de trabalhadores sem emprego. Mais de 33 milhões de subempregados, pessoas na informalidade ou intermitentes. Além de 5,9 milhões de desalentados, um verdadeiro desastre econômico e social, com impactos políticos generalizados.

Neste ambiente, percebemos que o Brasil vive três grandes crises, de um lado estamos sofrendo os impactos da covid-19, de outro lado vivemos uma crise econômica, com forte degradação produtiva e uma crise política. O país vive uma situação de inação, de destruição de empresas e de setores produtivos, crescimento da pobreza, fome em ascensão, desestruturação dos setores de serviços e o enfraquecimento das esperanças da população.

Estamos vivendo um momento de grandes transformações no mundo do trabalho, as novas tecnologias exigem mais qualificação dos trabalhadores, assertividade, flexibilidade, agilidade e a capacidade constante de aprender. Sem estas habilidades, os trabalhadores terão dificuldades em encontrar novos espaços no mercado de trabalho. Ao mesmo tempo, alguns setores que, anteriormente, eram intensivos em mão de obra, passaram a substituir trabalhadores por tecnologias, máquinas e inteligência artificial. Sem políticas públicas eficientes a massa de trabalhadores sem ocupação tende a crescer, inviabilizando o crescimento mais equitativo da economia.

Neste momento, quando convivemos com inúmeras crises, é fundamental que os setores produtivos trabalhem intimamente na construção de novas oportunidades, com investimentos em setores mais intensivos em mão de obra, tais como a construção civil e investimentos em infraestrutura, que tendem a fomentar um ciclo de investimentos produtivos, gerando emprego, empregabilidade e incremento na renda. Sem estes pactos entre os agentes econômicos e políticos, a recuperação da economia deve demorar mais e os custos sociais serão maiores.

A tecnologia deve ser estimulada com o intuito de melhorar o bem-estar social da sociedade, os setores econômicos devem crescer e gerar novas riquezas para a sociedade mas, cabem aos governos usar instrumentos para tributar setores que pagam menos tributos e canalizar estes recursos para a melhoria dos setores sociais e as políticas públicas, estimulando a criatividade e, ao mesmo tempo, melhorar os serviços de saúde, incrementado a educação, fortalecendo as universidades e os centros de pesquisas, dessa forma, os trabalhadores serão mais qualificados para compreender as demandas dos setores econômicos e produtivos.

O mundo do trabalho exige novos trabalhadores para compreenderem as novas tecnologias, as novas máquinas e os novos desafios. Além dos trabalhadores, os gestores, os empresários e os empreendedores devem compreender o novo ambiente de negócio, marcados pela concorrência e pela competição, se capacitando e se qualificando, deixando a busca de proteção de governos ineficientes e subsídios excessivos e exagerados, que engordam os lucros individuais e levam a estrutura econômica ao empobrecimento.

Neste ambiente precisamos recuperar a autoestima da população, construir ambientes de esperança e de solidariedade, resgatando os espaços de empatia e integração social. Num mundo marcado por grandes tristezas coletivas, mortes crescentes, pobrezas em ascensão, incremento da população, precisamos exercer sentimentos mais sólidos de acolhimento, respeito e compaixão.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 02/06/2021.

Governo Bolsonaro exerce a necropolítica e Brasil e o mundo vivem um desastre

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Em novo livro, professor afirma que as bases da civilidade perderam espaço no planeta

Folha de São Paulo, 31/05/2021

Plinio Fraga, Jornalista, doutorando em comunicação na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e autor de “Tancredo Neves, o Príncipe Civil” (Objetiva)

[RESUMO] Em novo livro, Muniz Sodré, um dos principais pensadores da área de comunicação no país, afirma que a cultura do algoritmo levou a uma sociedade incivilizada, que rejeita os avanços da cidadania, as diferenças e o discernimento crítico, em nome do capital financeiro e do desmonte do Estado e da política.

A cultura do algoritmo deixou a sociedade civil como definida por Gramsci de cabeça para baixo, aponta em novo livro Muniz Sodré, o pesquisador em comunicação mais citado na produção científica nacional. O espaço da sociedade civil está ocupado agora pela “sociedade incivil”, que dispensa negociação pública das diferenças, cooperação, solidariedade, discernimento crítico e amizade cívica.

“A Sociedade Incivil” (ed. Vozes), título do novo livro de Sodré, pode ser definida como um ordenamento humano regido globalmente por tecnologias de comunicação desestabilizadoras das formas clássicas de representação do mundo.

Rejeita as ideologias de bem-estar social, é refratária às instituições tradicionais e é inimiga dos avanços da cidadania. Na governança, fórmulas ocas hibridizam política estatal, demagogia e publicidade.

A política perde seu papel de mediação entre cidadãos e o Estado. O privado toma lugar do público. O burguês produtivista dá lugar ao rentista. Efemeridade e volatilidade passam a ser as bases do turbocapitalismo financeiro, alimentado por informação instantânea.

No mundo incivil, diz Sodré, a força da convicção é maior do que a da verdade. É tempo de saber sem sabedoria, de fala sem diálogo, de ação sem pausa e reflexão. A emoção substitui a fé, e a dopamina toma o lugar de Deus.

Em vez do monopólio da fala dos tempos televisivos, os algoritmos promovem o sequestro da fala por meio da total dissemetria entre aqueles que captam os dados, os oligopólios das big techs representadas no acrônimo FAANG (Facebook, Apple, Amazon, Netflix e Google), e aqueles que os fornecem, os usuários da sociedade em rede. As placas tectônicas do conhecimento se deslocam e deixam o humano sem solo firme para pisar.

É vivida a era da democracia das emoções, do enterro da discussão argumentativa. Era do segredo do voto desconstruído pela exposição informacional. Era do jornalismo sem povo, porque dominado pela busca única do clique.

Em suma, a sociedade incivil reflete a hegemonia do capitalismo financeiro e da cultura algorítmica. É uma nova máquina tecnossocial, articulada por meio da informação e da midiatização.

A velha sociedade civil morreu porque as mutações socioeconômicas desconstroem os laços representativos das instituições em benefício de formas tecnológicas e mais abstratas de controle social.

Essas mutações constituiriam evidências do evanescimento da sociedade civil, tal como interpretada pelo pensador italiano Antonio Gramsci (1891-1937), desenvolvendo conceitos estabelecidos antes por Hegel (1770-1831) e Lênin (1870-1924).

A sociedade em rede pode ser, no entanto, veneno e remédio. Pode ser a possibilidade de contramovimentação social necessária para a requalificação do político. Como o apoio da comunicação, que é separação e ponte, na definição do educador Paulo Freire, como citado por Sodré.

Aluno de Roland Barthes (1915-1980) e Emmanuel Carneiro de Leão, amigo de Jean Baudrillard (1929-2007) e Gianni Vattimo, Sodré é professor emérito da UFRJ e autor de 45 livros, sendo 42 de teoria da comunicação e três de ficção.

Aos 79 anos, domina sete línguas, luta caratê, toca violão e segue dando aulas e conferências. Contraiu Covid-19 no ano passado. Entre maio e junho, permaneceu internado por 43 dias. Precisou de respirador mecânico duas vezes, ficando 14 dias incubado. Contou lembrar-se de ter tido experiências extracorporais nesse período.

Ao deixar o hospital, por quase dois meses teve de se submeter à hemodiálise. Usou o tempo da convalescença para concluir “A Sociedade Incivil”, que lança agora. A seguir, os principais trechos da entrevista que concedeu à Folha.

O leitor desavisado pode associar de imediato a expressão sociedade incivil aos tempos do governo Bolsonaro. Apesar de em seu livro não haver nenhuma referência direta ao bolsonarismo, concorda que o senhor acaba por explicá-lo ao esmiuçar como a sociedade está ligada a projetos autocráticos populistas? Concordo absolutamente. Não mencionei Bolsonaro para não particularizar demais o conceito. Aparentemente, “sociedade incivil” pode parecer um trocadilho.

Pode parecer um jogo de palavras, mas na verdade é um conceito. É um conceito da sociedade civil como falado por Lênin, Hegel e aprofundado mais plenamente por Gramsci.

Mas é um conceito de sociedade civil de ponta cabeça, de cabeça para baixo. Porque é um esvaziamento daquilo que sustentava classicamente a sociedade civil: o esvaziamento da representação político-parlamentar.

É um conceito da ausência de representatividade política da sociedade contemporânea. Isso é geral no mundo, ainda que com gradações diferentes. Na maioria dos países latino-americanos, os partidos não têm importância. São máquinas burocráticas que giram ao redor dos interesses próprios, de verbas orçamentárias.

Não é possível fazer revolução pelo voto, mas sempre foi possível fazer reformas pelo voto. Mas esse poder se esgotou, porque ficou na mão da tecnoburocracia. O sistema político como um todo, a política de partidos, a política parlamentar, passou a não valer mais nada. São apenas jogadas entre grupos para se revezar no poder.

Incluo nisso também o PT. O que existe são apenas tonalidades afetivas diferentes.

O fenômeno da sociedade incivil, assim, é mundial, com intensidades diferentes. O Brasil vive um desastre incivil.

A política perde força, o Parlamento perde força. Por mais em crise em que estivessem, sempre foram garantias de civilidade, de preservação da sociedade civil.

O governo Bolsonaro exerce a necropolítica. Que importa se morrem 400 mil pessoas? O que importa é a economia. Como diria Gramsci: “O velho mundo agoniza, um novo mundo tarda a nascer, e, nesse claro-escuro, irrompem os monstros”.

Gramsci não usou a expressão sociedade incivil, um conceito que eu criei, mas ele pressentiu a morte da sociedade civil no que chamou de crise orgânica.

O sr. associa a sociedade incivil às políticas conservadoras de desmonte do Estado, de aniquilação da política e da predominância do capital financeiro. Elas crescem juntas? Crescem juntas. O neoliberalismo é o ativismo direto do capital. É o discurso desse novo capitalismo. O rentismo é uma nova forma de capitalismo. O neoliberalismo é um discurso, é uma nova forma de consciência do capitalismo.

No livro, o sr. afirma que do “monopólio da fala”, numa referência principalmente à televisão como elemento cultural central do passado, a sociedade algorítmica passou para o “sequestro da fala”. Este seria a perda de autonomia das pessoas? A ideia do monopólio da fala não desapareceu por completo porque ela se confunde com o monopólio econômico que explica as big techs. É fato que o monopólio da fala se refere inicialmente à televisão, em razão da impossibilidade de interatividade desse canal.

Verificamos agora que a fala contemporânea está condicionada por um sistema tecnológico, matemático, que funciona à base de algoritmos.

Esses algoritmos são um outro discurso, um outro universo, fundado com outras regras. Os algoritmos constituem uma língua própria porque eles são capazes de produzir mensagens, incitar comportamentos. E nós não sabemos que língua é essa, só dominada por seus programadores.

A sociabilidade que a rede gera, que o algoritmo gera, é uma sociabilidade de plataforma. Não é a sociabilidade histórica real. Não é a subjetividade vivida. É uma sociabilidade programada por algoritmos. Isso é o sequestro da fala, é pior do que o monopólio. É a produção de uma fala própria que, aos poucos, vai dominando a nossa. É a fala do robô. O algoritmo é um robô por software.

A ideia do monopólio da fala continua válida? Parecia que a interatividade viria a resolver o problema da possibilidade de resposta à televisão, mas não é bem assim. O monopólio da fala se deslocou para sistemas ainda mais remotos que formam a rede mundial de computadores, comandada por algoritmos. O supermonopólio da fala agora produz o sequestro da fala.

O que quer dizer quando afirma que a rede algorítmica produz um tipo novo de jornalismo, o jornalismo sem povo? O povo no Brasil ficou como um enigma étnico. A partir de 1964, tornou-se mesmo subversivo. Quando me refiro ao jornalismo sem povo quero dizer que a democracia sempre precisou de povo. E o jornalismo também.

O jornalismo tem de se reinventar. A forma de emprego não se esvaziou só no jornalismo. O emprego está sendo esvaziado no setor fabril, em todo lugar. A imprensa que elogiamos é o discurso de intervenção que o jornal faz na esfera pública. E esse discurso é necessariamente político.

A imprensa informa dentro do quadro de um povo específico. Na rede, você vê usuário de computador, mas não vê povo. Esse povo, como símbolo de exercício de soberania, pode se constituir na rede? Eu acho que pode.

O veneno seria também a cura? A rede é um megafone. Tem um poder de mobilização muito grande. Ela leva para rua, expõe. É a ideia do fármaco: veneno e cura. Paulo Freire dizia que a comunicação é separação e ponte. O jornalista é o curador da mediação. É um lugar ainda não bem pensado, mas que já é real.

É o lugar do desenvolvimento do jornalismo: investigação e curadoria, ou tratamento da mediação que pode assumir a forma da rede. O conceito de notícia se fragmentou tanto que desvalorizou a notícia. O jornalismo é um meio de busca da civilidade e, por consequência, da democracia.

Por que o sr. diz que a “democracia das emoções” é uma das construtoras da sociedade incivil? Vimos aparecer toda uma tecnologia emocional que não damos conta. A manipulação de todas as máquinas criadas pelas big techs é emocional. No cotidiano, a razão argumentativa dá lugar à razão sensível. As estratégias das redes, as táticas de aproximação, de discussão, de aproximação são estratégias sensíveis. São nessas estratégias que as emoções se encontram.

Esta é uma era, por exemplo, em que a própria ideia de fé pode ser substituída por impulsos, por dopamina [neurotransmissor que modula as emoções, também conhecido como hormônio da felicidade]. Esse fundamentalismo evangélico funciona com base na dopamina, não na fé. O discurso do pastor tem a ver com a emoção, com a dopamina.

O sr. conclui o livro lançando duas questões fundamentais. Os homens ainda podem ser ditos humanos? E as democracias ainda podem ser ditas democráticas? Pode parecer que estou abraçando a visão apocalíptica de mundo, da destruição, do esvaziamento, mas no livro abordo a possibilidade de recomposição do político, em articulação com as redes.

Acredito na política, como acredito no jornalismo. No jornalismo como força cívica. A democracia, por mais imperfeita que seja, é algo pelo qual temos de nos debater. Buscar algo radicalmente humano é buscar algo político.. Buscar algo radicalmente humano é buscar algo político.

Glenn Hubbard: a economia precisa de algo mais do que a receita neoliberal

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O professor de economia da Universidade Columbia diz que o Reaganismo precisa ser repensado e a abordagem de Biden não é coerente

Gillian Tett FINANCIAL TIMES – 26/05/2021 – Publicado no jornal Folha de São Paulo

No final do ano passado, Glenn Hubbard, ex-diretor da escola de administração de empresas da Universidade Columbia e consultor, pensador e planejador econômico veterano do Partido Republicano decidiu correr o risco.

Em um momento no qual muitos pensadores republicanos pareciam ter medo de criticar Donald Trump diretamente, por terem medo de que ele pudesse vencer a eleição de 2020, Hubbard atacou Trump por sua completa falta de um plano econômico tangível.

“[Trump] não tem plano econômico. Não estou dizendo que não gosto de seu plano; estou dizendo que ele não existe”, disse Hubbard. “Talvez ele devesse falar sobre reforma fiscal ou comércio internacional, de uma forma que engajasse nossos aliados”.

O economista lamentou o fato de que o então presidente não tivesse agido dessa maneira.

A crítica poderia parecer história antiga, já que Joe Biden venceu a eleição –e vem produzindo propostas dramáticas de política econômica, como seus planos de gastos públicos de por volta de US$ 4 trilhões (R$ 21,2 trilhões).

Mas não é: enquanto os republicamos se dilaceram em torno de questões não econômicas (como as acusações de fraude eleitoral de Trump), a questão de que políticas econômicas o partido de fato defende está se tornando cada vez mais complicada.

Será que os republicamos deveriam apoiar um projeto de infraestrutura? A dívida pública ainda importa? Como os republicanos se posicionam sobre questões como a desigualdade de renda ou a visão de livre mercado defendida por Milton Friedman? Será que os republicanos deveriam apoiar a política monetária ultrafrouxa promovida pelo Federal

Reserve, o banco central dos Estados Unidos? E será que Larry Summers –antigo assessor econômico da Casa Branca– está certo ao avisar sobre os riscos de inflação?

Nesta entrevista, Gillian Tett, editora especial do Financial Times nos Estados Unidos, propôs essas questões a Hubbard, que está bem posicionado para respondê-las porque foi presidente do conselho de assessores econômicos da Casa Branca no governo de George W. Bush, e este ano lançará um livro, “The Wall and the Bridge”, no qual propõe um novo manifesto.

Em resumo, Hubbard acredita que o neoliberalismo ao estilo da década de 1980 –ou seja, o mantra de Ronald Reagan– precisa ser repensado para o século 21, e que é preciso voltar a Adam Smith. Mas a abordagem, de Biden, ele insiste, não funciona.

Glenn –ou professor Hubbard—, é fantástico podermos conversar hoje, porque estamos lidando com pelo menos três coisas [na economia], neste momento. Os números do PIB (Produto Interno Bruto) mostram que a economia está se recuperando muito rápido da pandemia, o Fed acaba de informar que não pretende elevar os juros, em curto prazo, e o presidente Joe Biden prometeu um imenso pacote fiscal. Assim, qual é sua previsão para a economia dos Estados Unidos?

A reabertura enquanto o vírus recua sempre conduziria a um salto significativo no PIB. Por isso, o curto prazo não é realmente a grande questão. Certamente, surgirá uma alta transitória na inflação, mas acredito que o Fed esteja em geral correto, e que a alta será mesmo transitória. Minha preocupação é quando ouço o Fed falar, como seu presidente Jay Powell fez, sobre querer observar o mercado de trabalho e esperar que ele “volte a se curar”, antes de agir. O problema do mercado de trabalho é, em boa medida, estrutural. E manter a economia aquecida com a ajuda do Fed não vai corrigi-lo.

Quanto à política fiscal, não estamos falando só de um “estímulo”. O primeiro plano de Biden era um estímulo. O American Rescue Plan (plano de estímulos financeiros dos EUA) foi planejado para servir como estímulo. Mas o American Jobs Act e o American Families Plan são, na verdade, um esforço para fazer com que o governo volte a ser grande. Eles precisarão ser pagos, e aritmeticamente não há como pagá-los com impostos sobre os ricos. Não existe dinheiro suficiente para isso. Assim, a conversa honesta com o povo americano sobre política econômica deveria ser uma questão de escolha pública: se as pessoas desejam um governo grande que faça o que o presidente Biden deseja, será preciso pagar por isso.

Você está confiante em que as pressões inflacionárias serão transitórias?

Não se pode confiar nisso inteiramente, mas acredito que se o Fed tivesse uma linha de política monetária mais clara eu estaria confiante em que os aumentos nos preços das commodities são transitórios. O que me preocupa é o Fed pensar que pode se posicionar contra mudanças estruturais no mercado de trabalho por meio de política monetária. Os riscos de inflação em longo prazo podem ser um pouco preocupantes –parte das forças estruturais que seguravam a inflação se relacionava à demografia e ao crescimento dos países emergentes, especialmente a China, e isso tudo está mudando.

Você acha que o Fed deveria estar indicando sua disposição de elevar os juros caso a inflação cresça?

Creio que é improvável que o Fed aja assim. Mas uma das razões de estarmos vendo uma volatilidade implícita tão alta nas taxas e mercados de crédito, com relação ao mercado de ações, é o temor no mercado de títulos de que o Fed talvez esteja dizendo uma coisa mas, caso se veja encurralado, termine fazendo o contrário. Tenha em mente que o Fed adquiriu cerca de metade dos títulos do Tesouro americano emitidos no ano passado, e detém cerca de 40% dos títulos de Tesouro com vencimento em 10 anos ou mais que estão em circulação, e por isso a forma de pensar do Fed quanto a isso, que não parece muito clara para o mercado de títulos, é realmente muito importante.

Larry Summers declarou que o estímulo é grande demais, está acontecendo rápido demais, e criará riscos inflacionários. Você e Larry raramente concordam, mas você concorda com isso?

Eu concordaria quanto ao risco, mas não é esse problema que mais me incomoda. O que me preocupa ainda mais é que, ao tentar criar um governo tão grande estejamos vendo uma matemática orçamentária desonesta. Estamos vendo um cenário no qual alguns poucos anos de gastos terão de ser pagos por muito mais anos de impostos mais altos. Estamos escondendo do povo americano que, se eles desejam um governo que faça essas coisas, a carga tributária terá de ser maior.

Se você considerar a matemática da carga tributária, o aumento proposto no imposto das empresas ou o aumento do imposto sobre ganhos de capital não são, nem de longe, suficientes. A outra coisa estrutural que me preocupa é que vejo reduções de produtividade e reduções de investimento como resultado desses grandes aumentos de impostos.
Biden disse que se a pessoa ganha menos de US$ 400 mil ao ano, seus impostos não subirão.

Bem, isso simplesmente não é verdade, nem em curto prazo e nem em longo prazo. Tome como exemplo o imposto das empresas. Muitos economistas concluíram que o peso dos impostos pagos pelas empresas recai sobre os trabalhadores.

Na década de 1970 e no começo da década de 1980, acreditávamos que era o capital que arcava com a maior parte do custo dos impostos empresariais. Mas não é nisso que os economistas acreditam agora. Assim, não se pode simplesmente afirmar que as pessoas com renda inferior a US$ 400 mil (R$ 2,1 milhões) anuais não arcarão com parte alguma do aumento na carga tributária.

Da mesma forma, no caso do imposto sobre ganhos de capital, o presidente diz que “só vou afetar 0,3% dos contribuintes”, o que quer dizer aqueles que ganham mais de US$ 1 milhão (R$ 5,3 milhões) ao ano e pagam imposto sobre ganhos de capital. Mas esses indivíduos não recebem 0,3% dos ganhos de capital –é provável que eles recebam a maioria deles. Assim, se isso causar qualquer efeito sobre a disposição de aceitar riscos, sobre a poupança e o investimento, temos riscos muito grandes.

Esses efeitos incidem sobre a economia toda e não sobre os 0,3% mais ricos, e por isso em curto prazo a declaração dele é simplesmente uma mentira. E em prazo mais longo ela se torna mentira ainda mais escancarada, porque, se você considerar a matemática orçamentária, haverá um grande rombo na arrecadação. Alguém terá de pagar por isso.

E se esse “alguém” forem as grandes empresas?

Vamos colocar as mudanças nos impostos em dois baldes. Quanto às alíquotas, não acredito que vamos querer elevá-las tanto quanto o presidente está propondo, e certamente não queremos de volta as alíquotas do passado. Quanto à base tributária, o presidente Biden está propondo um aumento de impostos por meio do alargamento da base tributária –e essa é uma mudança muito, muito grande. Antecipo que as companhias venham a reconhecer que terão de pagar um nível mínimo, mas a matemática não vai bater.

E quanto a impostos criados sob a cobertura das ações contra a mudança do clima, por exemplo um imposto sobre o combustível ou um imposto sobre valor adicionado?

Considero que seja uma grande ideia. Há anos apoio um imposto sobre a emissão de poluentes porque acredito que essa seja uma das melhores maneiras de enfrentar a mudança do clima. Sou muito cético quanto a subsídios para projetos verdes, mas, se você estipular um preço para o carbono, os empresários correrão para inovar e para operar de forma mais eficiente, e o imposto não precisa ser regressivo. Não compreendo por que um governo que se define como ao mesmo tempo progressista e ecológico está desconsiderando o único instrumento capaz de ajudar quanto às duas coisas.

Sobre o imposto por valor adicionado —não há questão de que se desejamos aquilo que o governo Biden está sugerindo, ter um imposto sobre valor adicionado é essencial.

Os países europeus, que tem setores estatais muito maiores que o dos Estados Unidos como proporção do PIB, não têm suas despesas financiadas por impostos sobre o capital. Na verdade, em muitos países europeus os impostos sobre o capital são mais baixos do que nos Estados Unidos. E as despesas são bancadas por impostos sobre o consumo.

É desconcertante que o governo Biden não tenha colocado em discussão impostos sobre a emissão de poluentes. Por quê?

Há uma fascinação da esquerda por regulamentação de comando e controle. Mas isso não é nem de perto tão eficiente quanto impor um preço às más práticas, em lugar de subsidiar as práticas supostamente boas.

Por que você acredita que o pacote de Biden esteja prejudicando a produtividade?

Permita-me dar um passo para trás. Algumas discussões sobre a estagnação secular se referem à insuficiência da demanda agregada. Outra escola de pensamento acredita que estruturalmente tenhamos um problema de crescimento da produtividade, em relação ao “supply side” da economia e ao potencial da economia para crescer. É esse aspecto que me interessa. Os planos de impostos são claramente um desincentivo ao investimento, já que a falta de aprofundamento do capital explica o baixo crescimento da produtividade e os aumentos no imposto sobre o ganho de capital podem reduzir o interesse em aceitar riscos. Certamente não há coisa alguma que melhore a produtividade nos planos de Biden, e muita coisa que a desencoraja.

Não é só a política tributária. Preocupa-me que a política monetária possa criar empresas zumbis –um ambiente de taxas de juros baixíssimas que sustenta empresas de baixa produtividade. Para crédito do presidente Biden, partes do que ele está propondo e se relaciona à infraestrutura real poderiam, de fato, elevar a produtividade, mas essas propostas são apenas uma pequena parte daquilo a que ele está dando o nome de infraestrutura.

A possibilidade de uma crise futura de dívida o preocupa?

Bem, nós somos o país que emite a moeda de reserva mundial, e realizamos nossa captação em nossa moeda, e por isso acredito que uma doença lenta mas duradoura é a consequência mais provável. Para oferecer um exemplo prático, o fundo do Medicare pode esgotar seu dinheiro dentro de um ano ou pouco mais, e o da previdência social em cinco anos ou pouco mais. Isso forçará discussões em Washington sobre se o público deseja ter um governo tão grande.

Assim, você não antecipa uma crise de dívida propriamente dita, por conta do status do dólar como moeda de reserva?
Não no momento.

Os republicanos deveriam cooperar para criar um projeto de lei bipartidário?

Seria possível obter apoio bipartidário a uma nova “GI Bill” [lei posterior à Segunda Guerra Mundial que financiava a educação dos veteranos de guerra], que ajudaria os trabalhadores a se prepararem para o mundo da Covid, por exemplo, com apoio a faculdades locais.

Não estou falando de ensino superior gratuito em faculdades locais, mas em apoio “supply side” —melhorar sua capacitação para treinar pessoal. Mas não haverá apoio bipartidário à ideia de que precisamos deixar de lado o sistema de seguro social sustentado pelo trabalho em troca de uma rede de segurança que cubra a pessoa do berço ao túmulo.

O governo realmente causou confusão nesse aspecto ao definir o que está fazendo como um projeto de infraestrutura. Infraestrutura não precisa ser só estradas, pontes e aeroportos –pode também incluir banda larga. Mas não serviços de saúde.

O apoio a crianças e a idosos é parte da “infraestrutura?”

Não. Esses são gastos sociais.

Uma das maneiras interessantes pelas quais você enquadra esse debate é pelo contraste entre Keynes e Hayek, ou seja, se o objetivo é escorar o sistema atual ou encorajar uma transformação mais rápida. O que você quer dizer com isso?

Pode-se pensar na Covid em termos de uma resposta keynesiana –tivemos um colapso na demanda. A resposta keynesiana não é fantasiosa. Mas Hayek diria que o mundo novo posterior à Covid não se parecerá com o mundo velho, e por isso qual é o motivo de apoiar cada empresa? Os dois estão certos. Fizemos um bom trabalho de política pública quanto à parte keynesiana. Mas nos saímos pior com relação a Hayek.

Qual é sua opinião sobre o conceito de estagnação secular de Larry Summers?

Há uma cena em “Um Conto de Natal”, de Dickens, em que Scrooge pergunta algo como “isso são sombras de coisas que são ou de coisas que poderiam ser?” Sinto-me da mesma maneira com relação às descrições de Bob Gordon sobre a economia dos Estados Unidos –Larry e Bob estão falando sobre sombras de coisas que poderiam ser, caso nossas políticas públicas forem ruins o suficiente, para retornar à nossa discussão sobre medidas que prejudicam a produtividade. Mas não acho que isso seja inevitável.

Todos os empreendedores com quem converso estão bem otimistas sobre a fronteira tecnológica da produtividade. Se existe uma razão para pessimismo, é mais quanto à capacidade e disposição do sistema político para permitir que o crescimento da produtividade aconteça livremente.

Você acredita que o Partido Republicano saiba o que defende em termos econômicos?

Creio que essa seja uma grande questão em aberto. Dou ao ex-presidente [Trump] crédito republicano clássico por coisas como as mudanças nos impostos das empresas ou a análise de custo/benefício da regulamentação; mas é evidente que coisas como o protecionismo e, a hostilidade à imigração não ideias republicanas clássicas. Para o partido atual, creio que exista uma sensação do que foi perdido mas não do que precisa ser ganho. A economia como um todo precisa de algo mais do que a receita neoliberal.

O que virá a seguir? Um dos sabores é o protecionismo –medo do comércio internacional e medo dos trabalhadores imigrantes. Outra abordagem que os republicanos poderiam adotar seria a de passar do neoliberalismo ao liberalismo (com L minúsculo), recuando a Adam Smith. Ele era inimigo do mercantilismo —era isso que o enraivecia em “A Riqueza das Nações” — e estava muito interessado na capacidade de competir de cada economia.

Assim, uma nova agenda republicana poderia fazer mais para ajudar as pessoas a competir –isso seria mais parecido com Lincoln, ou com o “GI Bill” de Roosevelt. Mas não vejo o partido avançando de fato nessa direção.

Tett: E quanto ao segundo livro de Smith, “A Teoria dos Sentimentos Morais?”

Smith se referia à “simpatia mútua”, o que hoje definiríamos como empatia. Os empreendedores e líderes de negócios progressistas pensam desse modo. Não vejo as questões ecológicas, sociais e de governança como inimigas dos acionistas –não estamos falando de Milton Friedman contra o socialismo -, e sim como uma questão do que realmente serve aos interesses da empresa em longo prazo. Recorde que Smith protestou contra a East India Company britânica, que ele via como um câncer. Ele acreditava que é necessário ser muito cuidadoso na estruturação social das corporações. Os empreendedores atuais precisam compreender que a estrutura corporativa é algo que a sociedade lhes dá. Na verdade, o capitalismo é algo que nos é dado pela sociedade. Se o público não o quiser, ele não acontece.

Vou lançar um livro dentro de algumas semanas que enfatiza o aspecto social e cultural dos negócios e das finanças e economia, e argumenta que os líderes empresariais precisam deixar para trás sua visão de túnel e começar a usar a visão lateral. Você concorda com isso?

Sim. Quando leciono sobre economia política, lembro aos alunos que grandes pensadores como Friedman, Hayek e Smith escreveram para as épocas em que viveram. Friedman e Hayek estavam escrevendo em resposta a um sistema econômico corporativista ineficiente e desleixado, e o fascismo os horrorizava. Se Ronald Reagan estivesse entre nós hoje, não creio que ele seria o Reagan da década de 1980. Se Friedman e Hayek estivessem entre nós hoje, eles talvez tivessem visões diferentes. Mudanças de contexto.

Friedman também estava operando quando as pessoas presumiam que podiam terceirizar as decisões sociais difíceis para o governo, e quando não existia transparência radical e os consumidores, clientes e empregados não eram capazes de ver claramente o que as empresas estavam fazendo. Isso faz diferença?

Sim. Se Friedman estivesse entre nós, ele nos lembraria, corretamente, de que existem grandes externalidades sociais que nenhuma empresa é capaz de corrigir. Mas não existe motivo para que os empreendedores não possam ser líderes. Quando o Plano Marshall foi aprovado, não foi porque o Congresso, em sua imensa sabedoria, decidiu fazer alguma coisa. Foi porque a comunidade de negócios se reuniu e disse “meu Deus, vamos ter comunismo na Europa Ocidental, e o que isso pode causar ao nosso sistema econômico?” Eles pressionaram o Congresso. Compreendo que os empresários atuais tenham medo. Mas isso não é desculpa para não agir. Em muitas companhias, os trabalhadores mesmos os pressionarão a agir.

Estamos começando a ver um nível de cooperação por parte das companhias que era inimaginável na era de Thatcher e Reagan. Isso vai durar?

Creio que sim, e Hayek teria celebrado essa resposta coordenada, porque ela veio de baixo. Se você comparar a produção de vacinas, em geral uma atividade do setor privado, à distribuição de vacinas, em geral uma atividade do setor público, acho que fica claro qual das duas pareceu funcionar melhor.

Existem coisas que poderiam ajudar quanto a isso. Imagine se Biden criasse centros de pesquisa aplicada em todo o país, vinculados às universidades. Isso poderia ajudar as companhias a resolver problemas localizados, e também resolveria grandes problemas como o das vacinas.

Por que ninguém no Partido Republicano está propondo uma agenda política positiva como essa?

Acredito que isso vai acontecer –mas por enquanto existe um vácuo. Biden não será derrotado pelo niilismo – o presidente Trump perdeu por mais de sete milhões de votos, não é um resultado assim tão próximo. Por isso as pessoas vão terminar por propor políticas novas, já que o que mais o Partido Republicano poderia fazer? A outra escolha seria retornar ao neoliberalismo escancarado, e creio que nem Ronald Reagan conseguiria se tornar presidente hoje se essa fosse sua plataforma!

Você se preocupa por talvez estarmos vivendo em uma bolha em termos de questões ecológicas, sociais e de governança?

Sim, de diversas maneiras. Estamos correndo o risco de política industrial e de rentismo, com subsídios a todo tipo de “coisa verde”. Também me preocupo com a maneira pela qual os presidentes-executivos lidarão com isso – ninguém quer que o presidente de uma empresa dedique metade de seu tempo a preocupações sociais.

E quanto ao protecionismo? Os republicanos serão capazes de apresentar uma voz alternativa, quanto a isso?

Espero que sim, mas não tenho certeza. Como quase todos os economistas exceto talvez Peter Navarro, acredito no livre comércio. Assim, por que algo que parece tão óbvio em qualquer curso de introdução à economia termina por não ser popular junto ao público?

Creio que por dois motivos. Um é que sempre que o professor de introdução à economia falava dos ganhos propiciados pelo comércio externo, ele tinha a ideia de que haveria perdedores, mas que uma compensação ocorreria naturalmente –o que não aconteceu.

Segundo, o livre comércio é um daqueles exemplos, como o do velho padrão ouro, de sistema que funciona de fora para dentro. É preciso aceitar as regras do jogo, e depois você se ajusta. Creio que precisemos recuar a um período em que se possa dizer, olha, é preciso compreender os grupos nacionais de interesse. Isso talvez signifique muito mais apoio ao treinamento, ou poderia significar garantia de salários, poderia ser muitas outras coisas além de simplesmente dizer “livre comércio”.

Assim, o que importa é tentar falar de livre comércio considerando as duas metades das ideias de Adam Smith.

Sim, exatamente. Mesmo Smith, o campeão da abertura, não teria aceitado que áreas inteiras [de uma economia] simplesmente fossem deixadas para trás. Smith falava muito sobre lugares –ele disse algo como “um homem é um tipo de bagagem difícil de carregar”, o que significa que é preciso considerar lugares como um todo, e não só empregos… considerar a cultura.

Ei, uma combinação de antropologia e economia!
Exatamente, duas ciências sociais, farinha do mesmo saco.

O que está acontecendo com a Economia como profissão? Com questões como o debate em torno das críticas de Summers às políticas de Biden, será estamos vendo uma guerra tribal entre economistas? A Economia está sendo repensada? Biden está se afastando dos economistas?

Bem, vou começar com boas notícias: os jovens astros da profissão [Economia] tendem hoje a ser pessoas que discutem grandes problemas, que variam do desenvolvimento à política monetária e mercados de trabalho, usando novos recursos e técnicas. Acho que isso é completamente saudável.

Creio que o governo precisa de pessoas com grandes ideias sobre macroeconomia. Se eu estivesse no lugar de Janet Yellen, conversaria com economistas que continuem a me dar essa perspectiva, mas também obteria perspectivas micro do mercado financeiro e do mercado de trabalho. Não é preciso haver uma guerra, portanto. Mas me preocupa a maneira pela qual o governo Biden fala de políticas na formulação das quais não há muito envolvimento de economistas. Não é o primeiro governo em que vejo isso acontecer –mas é uma preocupação para a Economia como profissão.

Qual é o próximo passo para você? Você vai tentar criar a nova visão republicana sobre a economia?

Sim –mas não por ser republicana, e sim porque acredito que seja uma visão importante para as políticas públicas.

Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci

Entraves políticos

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Numa sociedade marcada pela concorrência e pela competição crescentes entre os agentes econômicos, os setores produtivos se sentem pressionados pelo incremento de seus lucros, buscando constantemente novos instrumentos de acumulação, reduzindo seus custos, investindo em tecnologia, máquinas e novos modelos de negócio. O ambiente da economia globalizada exige que todos os atores produtivos, empresas, trabalhadores e Estados, se reinventem, absorvam novas tecnologias, desenvolvam maior flexibilidade e agilidade, sob pena de perder espaços neste mundo altamente competitivos.

Neste ambiente de constantes transformações, percebemos um descompasso entre as questões econômicas e as respostas políticas. A lógica da economia prescinde de flexibilidade e agilidade, exigindo rapidez dos setores econômicos e produtivos, enquanto os setores políticos são mais lentos, exigem discussões e reflexões, estimulando debates e conversações. A conjunção dos setores é fundamental, compreender as diferenças auxilia na construção de um projeto de país, onde os setores, econômicos e políticos, devem caminhar em prol do desenvolvimento dos setores produtivos e na melhoria do bem-estar social da comunidade.

O cenário internacional exige a construção de um consenso econômico, social e político, como forma de angariar instrumentos para competir no novo mundo dos negócios. Diante deste ambiente de grande competitividade global, os atores econômicos e políticos precisam construir um ambiente saudável, definindo o papel de todos os agentes, mostrando que a dicotomia entre Estado versus Mercado é equivocada, gerando conflitos, ressentimentos e desgastes políticos. Os países que conseguiram ultrapassar a armadilha da renda média e conseguiram alçar a posição de uma sociedade desenvolvida, foram capazes de construir um consenso político entre todas as elites econômicas.

O desenvolvimento econômico é um assunto político que precisa da atuação de todos os atores sociais e políticos, com isso, cabe aos líderes a construção de um ambiente salutar para pensar a sociedade, imaginar os rumos e os passos necessários e fundamentais para que, num futuro mais próximo, a sociedade consiga vislumbrar novos espaços de desenvolvimento econômico. Neste desafio, precisamos agregar esforços de todos os setores, estimulando a participação das universidades, dos centros de pesquisas, os setores governamentais, os empresários, sindicatos, dentre estes.

Um dos grandes equívocos da sociedade é imaginar que o desenvolvimento econômico precisa apenas de lideranças econômicas e produtivas, neste ambiente é fundamental a construção de lideranças políticas com visão mais ampla, associados por profissionais capacitados, conscientes que vivemos numa sociedade dependente e periférica, criando consensos internos em prol da transformação social, estruturando os setores econômicos, preservando o meio ambiente, reduzindo as desigualdades sociais, aperfeiçoando a governança, melhorando os indicadores educacionais, capacitando os setores da saúde, consolidando as instituições e fortalecendo a democracia.

Numa sociedade marcada por grandes desigualdades como a brasileira, os desafios são imensos e crescentes, exigindo de todos os setores da sociedade um esforço que demanda muitos anos ou décadas, um verdadeiro projeto nacional, mesmo com a alternância de grupos políticos diferentes comandando o executivo, o projeto nacional deve continuar e sempre sendo aperfeiçoado, visando o objetivo do desenvolvimento econômico e da redução das desigualdades sociais.

Na contemporaneidade, percebemos na sociedade brasileira que os grupos políticos e forças econômicas estão sempre em confrontos abertos, criando espaços de desconfianças entre os atores sociais, o resultado deste ambiente é um incremento de inseguranças, incertezas e instabilidades. Neste ambiente de confrontos primários, agressividades e violências generalizadas, como vivemos na atualidade, o país caminha a passos largos a perpetuação da insignificância global, mesmo sendo dotados de grande potencial vivemos na indignidade e das desigualdades que nos aproximam da incivilidade e do retrocesso.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 26/05/2021.

A política do século 20 se foi para sempre, por Yascha Mounk.

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Em algumas democracias, partidos social-democratas parecem estar prestes a desaparecer por completo

Yascha Mounk O cientista social Yascha Mounk é professor associado na Universidade Johns Hopkins e autor de “O Povo contra a Democracia”.

Folha de São Paulo, 25/05/2021

Nos últimos anos uma sucessão interminável de autores previu a morte da social-democracia.

Eles tinham razão, em parte: os tempos áureos da social-democracia nunca vão voltar. Mas também estavam em parte errados: outros partidos-ônibus, como os democratas cristãos, também se encaminham para a lata de lixo da história.

Na era do pós-Guerra, partidos social-democratas conquistaram uma grande parcela dos votos em virtualmente todos os países europeus, em partes da América Latina e em países que vão da Austrália a Israel. Eles eram um dos dois principais “Volksparteien”, ou “partidos do povo”, na França, na Alemanha e no Reino Unido. Dominaram a política nos países escandinavos.

Desfrutaram períodos no poder no Reino Unido, na Austrália e em boa parte da América Latina. Na virada do século, ainda parecia provável que exerceriam um papel crucial no século 21.

Desde então, os partidos social-democratas se enfraqueceram significativamente em quase todas as grandes democracias. Em algumas delas, parecem estar prestes a desaparecer por completo.

Na França, o Partido Socialista se viu reduzido a 25 cadeiras na Assembleia Nacional e mal tem chance de participar do segundo turno das eleições presidenciais do próximo ano. Na Alemanha, a parcela do voto dada ao SPD encolheu
pela metade ao longo de 20 anos. No Reino Unido, Tony Blair ainda é o único político trabalhista em mais de meio século a ter conquistado um mandato para governar, e o Partido Trabalhista agora está sendo eviscerado em sua base tradicional do nordeste proletário do país.

Na Escandinávia, os social-democratas deixaram há muito tempo de ser o partido naturalmente governante. E, do Peru a Israel, os partidos tradicionais de centro-esquerda foram eviscerados.

Existem algumas razões específicas que motivam os estertores de morte da social-democracia. O proletariado deixou de ser um contexto social coeso. Como observou o político trabalhista britânico Douglas Alexander após a última eleição no Reino Unido: “Oferecemos aos eleitores um passeio até o museu local de mineração. Eles queriam ir à EuroDisney”.

Em consequência disso, partidos de centro-direita, como o Conservador britânico, ou de ultradireita, como o Rassemblement Nationale francês, hoje recebem a maioria dos votos da classe trabalhadora.

As previsões amplas se concretizaram: a social-democracia está morta. Mas, como vamos descobrir, os social-democratas não passavam da vanguarda de uma tendência muito mais ampla: o declínio e queda dos partidos-ônibus do século 20 de qualquer vertente ideológica.

Numa escala de tempo mais longa, os democratas cristãos vêm sofrendo um declínio semelhante. Os Republicanos franceses estão se saindo apenas marginalmente melhor que o Partido Socialista.

Os democratas cristãos alemães caíram para 23% nas sondagens atuais, atrás dos Verdes. Na Itália, a Lega, de ultradireita, que tem raízes separatistas, é hoje o principal partido de direita, seguida pelo Irmãos da Itália, de ultradireita, que tem raízes fascistas. E, do Brasil aos Estados Unidos, os partidos tradicionais de centro-direita foram capturados ou derrotados por populistas de ultradireita.

As razões disso correm em paralelo com a razão que explica a queda dos social-democratas. Assim como restam poucos proletários no século 21 (e os que existem tendem a ser culturalmente de direita), também restam poucos burgueses no século 21 (e aqueles que existem tendem a ser culturalmente de esquerda).

Mas não é apenas que os dois ambientes tradicionais das principais famílias partidárias europeias estejam desaparecendo —é que as perguntas para as quais eles trazem respostas deixaram de figurar no epicentro da política.

Quatro ou cinco décadas atrás, uma pergunta simples lhe permitiria adivinhar em quem votara uma pessoa na França ou na Suécia, no Peru ou na Austrália: “Você preferiria ter um Estado de bem-estar social maior e pagar mais impostos ou ter um Estado de bem-estar social menor e pagar menos impostos?”.

Aqueles que optavam pelo Estado de bem-estar social maior —predominantemente mas de modo nenhum exclusivamente proletários— provavelmente votavam em social-democratas. Os que optavam por impostos mais baixos – predominantemente mas de modo nenhum exclusivamente burgueses—provavelmente votavam em conservadores ou democratas cristãos.

Hoje o campo de batalha principal da política passou das questões econômicas para as culturais.

Questões relativas a alíquotas de impostos e o Estado de bem-estar social são menos cruciais para a política do que eram no passado. Portanto, se você quiser saber se um eleitor se identifica como sendo de esquerda ou direita, provavelmente terá que lhe fazer algumas perguntas culturais sobre imigração, patriotismo ou possivelmente sobre a confiança nas instituições de elite.

Pelo fato de seus eleitorados tradicionais terem visões divergentes sobre essas questões culturais, os partidos-ônibus tradicionais têm grande dificuldade em desenvolver um perfil claro em relação a essas questões. E, por isso, pelo menos em países ricos, eles estão sendo substituídos rapidamente por movimentos que foram fundados para responder a questões culturais, não econômicas.

A política do século 21 tem muito mais chances de ter a cara da batalha de Emmanuel Macron contra Marine Le Pen, ou do Partido Verde alemão contra o partido de direita radical Alternativa para a Alemanha, do que de parecer uma disputa entre social-democratas e democratas cristãos.

Quer você ame ou odeie o fato, a política do século 20 ficou para trás. As tentativas de ressuscitá-la acabarão inevitavelmente em fracasso.

É enorme equívoco associar o auxílio à redução eficaz da pobreza, por Cecília Machado.

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Se objetivo do auxílio fosse combater a Covid-19, ele deveria vir acompanhado por medidas mais severas de distanciamento social, o que não ocorreu

Cecília Machado Economista-chefe do Banco BOCOM BBM e professora da EPGE (Escola Brasileira de Economia e Finanças) da FGV

Folha de São Paulo, 25/05/2021

Depois de muitos anúncios sobre a reformulação da rede de assistência social, com direito a aumento do valor do benefício médio do Bolsa Família e registro de informações cadastrais via aplicativo, a semana passada terminou com a defesa —mais uma vez— da renovação do auxílio, em agosto deste ano, como a forma mais eficaz de combater uma possível terceira onda de Covid-19, o elevado desemprego e o aumento da pobreza.

Há, entretanto, muitas dúvidas sobre uma eficácia tão ampla do programa, e sua renovação por uma terceira vez parece indicar, ao contrário, despreparo e falta de planejamento no combate aos impactos adversos da crise sanitária na economia. Ou então ausência de compromisso com a redução das desigualdades sociais, já que há diversas vedações à distribuição de valores e benefícios em ano de eleição, e qualquer reformulação de programas sociais precisaria começar a valer ainda neste ano.

Primeiro, fosse o auxílio um programa estabelecido para mitigar a transmissão do vírus —garantindo a segurança alimentar das famílias em momentos de escalada da pandemia, quando o distanciamento social se torna necessário e a renda das famílias encolhe—, deveria ter sido pago nos momentos de recrudescimento da crise sanitária e retirado quando a economia reabrisse.

Mas, no primeiro trimestre do ano, quando a pandemia escalava para alcançar o seu pior momento —4.249 mortes, em 8 de abril—, a população enfrentava os efeitos adversos do distanciamento social sem nenhuma ajuda do governo.

Um auxílio emergencial que não responde ao número de caso e mortes ou às taxas de internação hospitalar —todos eles termômetros da crise sanitária— não cumpre o propósito de garantir subsistência das famílias quando a crise se amplifica. Pior, estabelecer uma transferência quando a mobilidade das pessoas segue sem restrição não casa com o objetivo de reposição de renda decorrente, justamente, do distanciamento.

Se o objetivo do auxílio fosse combater a Covid-19, ele deveria vir acompanhado por medidas mais severas de distanciamento social, o que não ocorreu.

Também vale lembrar que, ao fim do calendário de pagamento do atual auxílio, em agosto, muitos analistas estimam que grande parte da população já estará imunizada. São cerca de 600 milhões de doses contratadas até o fim do ano, tornando a renovação do auxílio, pelos motivos estritamente sanitários, menos relevante.

Tampouco é claro que o auxílio seja eficaz no combate ao problema do desemprego. Muitos indicadores apontam para a retomada da economia sem a recuperação do emprego, e é possível que o mundo pós-pandemia tenha uma confirmação do mercado de trabalho bastante distinta, já que o uso de tecnologias favorece mais que proporcionalmente trabalhadores mais qualificados e substitui serviços oferecidos pelos menos qualificados.

Mesmo em países que já se encontram avançados na vacinação e onde a retomada da economia é evidente, a taxa de desemprego ainda não retornou aos níveis pré-pandemia.

Ao que tudo indica, o problema do desemprego tem raízes mais estruturais, ainda que precipitadas pela conjuntura da pandemia, e a mera transferência de renda será incapaz de resolvê-lo, já que a inserção produtiva da mão de obra exige, ao contrário, um conjunto muito diferente de ações, como qualificação e treinamento dos trabalhadores sem emprego.

Por fim, é enorme equívoco associar o auxílio à redução eficaz da pobreza, pois, ainda que o orçamento do programa tenha sido expressivo, sua focalização foi baixa. Dito de outra forma, teria sido possível reduzir ainda mais a pobreza com maior direcionamento de recursos e ações para aqueles que realmente precisam.

Programas de combate à pobreza que fomentam a mobilidade social, ao contrário do auxílio, precisam também vir acompanhados da provisão de serviços, além de priorizar grupos onde os benefícios da assistência são maiores e mais persistentes no tempo, como crianças.

Faltam objetivos claros que justifiquem a renovação de um programa de baixo custo-efetividade, pouco relevante para frear a crise sanitária, combater o desemprego e dar fim a pobreza. Uma nova rodada do auxílio —sem maiores discussões— mostra de forma bastante clara que há dificuldades na definição de diagnósticos, prioridades e soluções para os problemas que emergiram e se amplificaram com a pandemia.

‘Ciberpopulismo não é fenômeno provisório, está instalado’, diz filósofo

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Em seu primeiro livro, Andrés Bruzzone afirma que democracia terá de lidar com o encontro do populismo tradicional com a tecnologia

Entrevista com
Andrés Bruzzone, filósofo e comunicador

Tulio Kruse, O Estado de S.Paulo – 23/05/2021.

O filósofo e comunicador Andrés Bruzzone, de 57 anos, vive seu segundo confronto com a armadilha da polarização na política. Brasileiro nascido na Argentina, nutre desgosto pela divisão na sociedade que se aprofundou durante os anos de kirchnerismo no país vizinho, a partir da década de 2000. Ele diz que vê, há pelo menos cinco anos, o mesmo ocorrer no Brasil e tem poucos motivos para ser otimista em relação às eleições de 2022.

Esse desconforto o levou à pesquisa para o recém-lançado livro Ciberpopulismo (editora Contexto), um ensaio sobre o uso da tecnologia e das redes sociais pela extrema direita. Em entrevista ao Estadão, Bruzzone diz que o fenômeno do populismo digital veio para ficar e que, enquanto partidos democráticos sofrem para se adaptar ao novo cenário, haverá menos espaço para moderação. É por isso que ele se diz cético quanto à chamada “terceira via” no Brasil. “A minha leitura é de que estão fora do jogo, o que é muito triste. Assim perdemos nuances, estamos entre branco e preto, doença ou saúde, não tem meio-termo. No limite, é preciso escolher de maneira binária. Isso é muito ruim para a democracia.”

O tom do seu livro parece pessimista. O sr. diz que expectativas frustradas – na economia, nas condições de vida em sociedade – explicam o surgimento da onda populista à direita, mas os movimentos democráticos ainda não têm uma resposta para isso. Ou têm?

Eu realmente não sou otimista. De alguma maneira, acho que a democracia está encontrando mecanismos para se proteger – assim como a mídia tradicional, uma vez que a tendência digital estava colocando em risco o próprio jornalismo. A democracia, nesse sentido, tem mecanismos de defesa. Mas não sou otimista. Nós votamos com três órgãos do corpo. Com o coração naquilo que amamos – nos identificamos com uma pessoa, um partido. Votamos com o cérebro também, fazemos escolhas racionais. Essas duas coisas funcionam, mas o populismo age diretamente no terceiro órgão: a tripa, as entranhas. O populismo apela de maneira mais intensa para paixões negativas, o medo e o ódio. São muito intensas, muitas vezes mais do que as paixões positivas. As redes sociais são muito mais eficazes para odiar do que para gostar. Há muito mais haters do que lovers. Num ambiente polarizado e populista, olhar para as taxas de rejeição passa a ser mais importante do que para as taxas de adesão. Quando se juntam esses dois fenômenos – das mídias digitais e do populismo – e os dois apontam para o ódio, para frustrações, fúria e canalização do medo, é muito difícil fugir da armadilha.

Parece mais fácil usar as redes sociais para promover ódio e desinformação. As instituições democráticas não conseguem aprender com as ferramentas do extremismo?

Idealmente, sim. Não consigo encontrar motivos estruturais para que isso não seja possível. Ocorre que, até agora, não vemos isso. Houve a fase do otimismo digital, a Primavera Árabe e discussões sobre a possibilidade do voto direto (em leis). Isso ainda não está acontecendo de maneira consistente. Ainda que seja possível em teoria, não vemos na prática. Com certeza há uma infinidade de ferramentas para avaliar o trabalho dos eleitos, e uma militância digital claramente democrática muito forte. Há uma fiscalização nas redes sociais. Quando um ex-secretário mente numa CPI, isso se espalha na rede, não há como esconder. Há um ganho de transparência, e isso não deveria nunca significar menos democracia. Talvez seja necessário ainda algum tempo para a democracia e suas instituições aprenderem a lidar com essa realidade nova. Isso ainda está por ser visto.

O ciberpopulismo é apenas o uso da tecnologia para promover a polarização, a mesma que já vimos no século 20, ou há mais do que isso?

Ele (o ciberpopulismo) nasce desse encontro entre o populismo tradicional e a tecnologia, que é muito recente. Ele nasce disso, mas provoca uma mudança estrutural. Primeiro se aproveita de mudanças nos sistemas de meios de comunicação e de partidos políticos e, ao mesmo tempo, acentua essas mudanças estruturais. Acho que é muito mais do que um fenômeno contingente. Não é, provavelmente, um fenômeno provisório e, sim, algo que está instalado. A democracia vai precisar lidar com esse encontro do populismo com as possibilidades que a tecnologia coloca à disposição dos especialistas em campanhas políticas.

Mais comunicação é um problema para a democracia?

É um paradoxo. Por enquanto, o maior acesso a informações está enfraquecendo e ameaçando as democracias. Mas não devia. O que provavelmente está faltando é o poder fiscalizador do Estado, a regulamentação dos processos de produção e distribuição de informações. Eu não acredito, e não acho que seja sustentável hoje, que uma desregulação total seja positiva.

O sr. cita no livro o ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair, que diz que o populismo de esquerda não tem chance de alcançar o apelo populista da direita. Concorda?

Eu não concordo com nenhum prognóstico tão taxativo. Acho que não. Em uma primeira fase, vimos a extrema direita se armar muito bem digitalmente, conseguiu canalizar uma série de frustrações. Ela fez com que partes da população, que estavam invisíveis, fossem visibilizadas – isso nos EUA, França, Brasil. Havia pessoas pouco importantes politicamente porque não tinham meios de participar. O que a extrema direita viu foi que poderia dar a essas pessoas um horizonte de representação, fazê-las visíveis. E aí veio essa onda que estamos vivendo no Brasil e no mundo. Não acho que partidos de centro e de esquerda não consigam também aprender. Acho que, no Brasil, estamos vendo um momento muito preocupante, mas, ao mesmo tempo, interessante. A esquerda brasileira está aprendendo a usar redes sociais, vemos isso no cotidiano. E vem aí uma eleição que vai ser muito pautada pelos sistemas digitais de construção de discurso. Cabe a cada um apostar a favor ou contra Tony Blair. (A eleição) terá, claramente, um dinâmica de ciberpopulismo. Será uma polarização extrema, na qual quem eu odeio será tão importante quanto quem eu amo. O Brasil vai viver essas polarizações sobrepostas.

O sr. cita a possibilidade incerta da construção de um populismo de esquerda, que não tenha vocação antidemocrática. Acha que essa é uma porta de saída viável para manter a democracia?

Essa é uma questão extremamente delicada. Polarização, assim como populismo, é uma palavra que nomeia muitas coisas diferentes. Precisamos tomar cuidado com essa noção. Na discussão sobre a Terra ser redonda ou plana, por exemplo, não existe polarização e não existe ponto médio entre os dois. De um lado há a ciência, e do outro um pensamento não racional. Não existem polos equivalentes quando, de um lado, há uma força antidemocrática. Não há nenhuma equivalência entre qualquer candidato democrático e outro que quer explodir o sistema. Pode existir polarização, mas não existe equivalência entre os dois. Às vezes se pensa que a polarização leva a um equilíbrio, ao colocar uma situação de equivalência entre dois polos, e isso não é verdade. Existe um limite, que é o do jogo democrático.

Dentro dele, tudo. E fora dele, nada. Essa deve ser, entendo eu, a posição de qualquer democrata que acredita no pluralismo. Isso te leva a um paradoxo. Você é obrigado a votar, muitas vezes, em um candidato que você detesta – mas detesta dentro do jogo democrático. A polarização te leva a essas situações. O polo democrático é sempre melhor para a democracia. Não há justificativa de qualquer pessoa com o mínimo de decência cívica para apoiar um candidato que claramente é antidemocrático. O que vai marcar o jogo da próxima eleição é a equação de quantas pessoas apoiam cada um dos dois candidatos e quantas pessoas os detestam, a ponto de votar em alguém que normalmente não votariam.

Em um cenário conflagrado como esse, o ‘centro democrático’ ou a chamada ‘terceira via’ perdem? Têm alguma chance de ganhar discussões?

A minha leitura é de que estão fora do jogo – o que é muito triste. Assim perdemos nuances, estamos entre branco e preto, entre doença ou saúde, não tem meio-termo. No limite, é preciso escolher de maneira binária. Isso é muito ruim para a democracia.

Existe alguma saída para a armadilha do ciberpopulismo?

Eu diria que somente com um acordo muito claro das forças democráticas. O Brasil tem uma vocação de diálogo e contemporização muito maior, por exemplo, do que a Argentina. É um país federal, em que o poder está mais fragmentado. Faço essa comparação por dois motivos: porque conheço o modelo argentino e porque é um lugar interessante para entender o que pode acontecer quando uma polarização se impõe e perdura. Eu acho que um pacto democrático seria a única saída para esta situação, essa armadilha. Havendo esse pacto entre as forças de esquerda e direita democráticas, dá para se deixar de fora os antidemocráticos. É preciso fomentar o diálogo, procurar entender e abrir espaço para o diferente. Aprender a escutar e promover escuta. É muito difícil construir um pensamento coletivo se, mesmo com diferenças à direita e à esquerda, os que temos uma vocação sinceramente democrática não conseguirmos acordos básicos. Tem alguém querendo tacar fogo no circo, não podemos deixar. Se o circo queimar, estamos todos incinerados.

O fim da unipolaridade, por Mathias Alencastro,

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Investida da China mudou cenário da América Latina

Folha de São Paulo, 24/05/2021

Mathias Alencastro
Pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento e doutor em ciência política pela Universidade de Oxford (Inglaterra).

Nenhuma dimensão da diplomacia contra a pandemia parece tão estruturante quanto o avanço da China na América Latina. Após atingir um milhão de mortos e com apenas 3% da população vacinada, a região depende, na quase totalidade, da alavancagem econômica e da cooperação sanitária promovida por Pequim para ter chance de sair da crise.

O caso da Colômbia, fortaleza de Washington e membro da OCDE, é o mais ilustrativo desse novo momento geopolítico.

A China enviou milhares de insumos e de ventiladores empacotados em campanhas com mensagens de Xi Jinping. Arrasado por uma explosão social, o governo de Bogotá não resistiu à operação de charme e desviou de décadas de alinhamento ocidental em nome da nova amizade.

A solidariedade chinesa é calibrada para atingir objetivos práticos. No caso do Paraguai e de Honduras, a China está aproveitando a pandemia para aprofundar o isolamento de Taiwan, independente desde 1949. Assunção chegou perto de aprovar o fim da aliança com Taipé no ano passado, e Tegucigalpa ameaça seguir o mesmo caminho.

Não deixa de ser curioso que a China avance com tanta facilidade numa região historicamente associada aos EUA.
Afinal, uma das premissas das relações internacionais é que uma superpotência precisa, primeiro, controlar a sua própria sub-região. Essa visão tem orientado o projeto hegemônico dos EUA nas Américas desde a Doutrina Monroe.

Como explicar a crise do sistema unipolar? Entre outros fatores, a diplomacia de “alinhamento automático” promovida por Donald Trump e Jair Bolsonaro criou a ilusão de que Brasília atuaria como o primeiro defensor dos interesses de Washington na América Latina.

Essa aposta desastrada nos talentos de Ernesto Araújo e de Eduardo Bolsonaro abriu espaço para a China. Na ausência do Brasil e de um poder moderador como o Mercosul, Pequim teve total liberdade para ampliar suas parcerias bilaterais. A administração Biden corre para reverter o desgaste, mas a América Latina parece ter entrado de forma irreversível numa nova era. Resta saber como os governos latino-americanos vão tirar proveito da competição entre superpotências. O balanço atual é cheio de contrastes.

Enquanto o Chile conseguiu emergir como o “Israel do Sul Global” da vacinação graças à cooperação com a China, Bolsonaro continua infantilizando a política externa brasileira. As últimas semanas foram dedicadas a superar mais um surto verborrágico do presidente, que associou, de novo, a pandemia a uma “guerra química” dos chineses.

Outros já experimentam mudanças nos sistemas políticos. A virada autoritária do governo de extrema direita de El Salvador, criticada pelo governo Biden, não parece trazer constrangimento à China. Da mesma forma, a aproximação do país com Honduras ganhou outro significado desde que o irmão do presidente Juan Orlando Hernández foi condenado por tráfico nos EUA em 2019.

Num passado recente, Pequim deu respaldo decisivo a um projeto de poder antidemocrático na Venezuela. Para os progressistas, o desafio será fazer com que a presença da China potencialize a autonomia da América Latina sem agravar a crise democrática que corrói a região.

Projeto da Câmara é incentivo à degradação ambiental, por M. H.Tavares.

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A destruição do licenciamento ambiental atesta o quanto o Brasil bolsonaresco descarta o futuro

Folha de São Paulo, 19/05/2021

Maria Hermínia Tavares Professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap. Escreve às quintas-feiras.

Patrocinado pelo centrão, saiu da Câmara rumo ao Senado o projeto que, a pretexto de modernizar o arcabouço de regras que norteiam o licenciamento ambiental no Brasil, praticamente destrói o pilar da Política Nacional de Meio Ambiente.

Se virar lei na versão atual, o projeto 37/2004 abrirá alas para a insegurança jurídica, ao transferir a estados e municípios o poder de definir o processo de concessão de licenças.

Ao introduzir exceções à obrigatoriedade do licenciamento ou facilitar a sua obtenção, multiplicará as chances de danos ambientais graves –do desmatamento à poluição do ar e dos rios por atividades industriais mal concebidas e a catástrofes semelhantes às que destruíram Mariana e Brumadinho, poucos anos atrás. Finalmente, elevará à enésima potência os riscos a que já estão submetidos os povos indígenas e quilombolas à medida que isentar de licenciamento os territórios ainda em processo de demarcação.

Muitas atividades podem ser mais bem executadas quando livres de interferência e regulação estatais: a imprensa é uma delas, as artes e a cultura, outras tantas. Não é, de forma alguma, o caso da proteção ambiental. Esta requer que o cálculo de ganhos coletivos futuros –e, por isso, difíceis de aquilatar– tenha precedência sobre interesses imediatos e palpáveis. Aqui, o poder público é insubstituível para definir a norma e fazê-la cumprir, criando incentivos apropriados para os agentes privados.

A destruição do licenciamento ambiental atesta o quanto o Brasil bolsonaresco descarta o futuro em prol de mesquinhos objetivos da hora –no caso, contingente não desprezível das bases eleitorais do ex-capitão. Indica também como o país envereda pela contramão do mundo civilizado, onde a preocupação em limitar a mudança climática vai de mãos dadas com medidas concretas –e de forte teor regulatório–, destinadas a proteger as populações dos inevitáveis desastres ambientais que ela já está provocando e poderá ocasionar mais adiante.

O projeto de lei aprovado pelos deputados da coalizão governista é a primeira de quatro medidas com o mesmo propósito estritamente eleitoreiro, que o Executivo encaminhou ao Congresso quando da eleição dos presidentes das duas Casas. Tratam de mineração em terras indígenas, concessões florestais, estatuto do índio e regularização fundiária, apropriadamente conhecido como o “PL da grilagem”. Madeireiros, grileiros, desmatadores e companhia feia, produtores de resíduos tóxicos ou de obras malfeitas agradecem.

Os brasileiros ficam ainda mais à mercê dos desastres ambientais –e o país, ainda mais desprestigiado na cena internacional.

Supersalários que envergonham, por Hélio Beltrão.

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Penduricalhos e conceito do vínculo duplo permitem estouro do teto

Folha de São Paulo, 19/05/2021

Hélio Beltrão Engenheiro com especialização em finanças e MBA na universidade Columbia, é presidente do instituto Mises Brasil.

Não duvido que nossa burocracia venha a regulamentar a profissão de “estouro -teto”. Há, por exemplo, batalhões de magistrados e servidores públicos dedicados a burlar o inciso XI do artigo 37 da Constituição de 1988 que estabelece o teto de remuneração de ocupantes de cargos públicos.

A remuneração —incluindo pensões, vantagens pessoais e outras remunerações, cumulativamente— não pode ultrapassar a dos ministros do STF, hoje de R$ 39,3 mil mensais. Caso ultrapasse, deveria se aplicar o chamado “abate-teto”, reduzindo-a ao teto.

Deveria, mas não ocorre. Segundo um estudo de 2019 do Partido Novo, a média salarial dos juízes do Brasil todo excedia R$ 46 mil mensais. Recebem acima do teto 65% dos juízes. Não é exceção: supersalários são o caso geral, pelo menos no Judiciário.

Já a partir de 1989, logo após a promulgação da Constituição, começou a dança frenética villa-lobiana (sem trocadilho) no STF para consagrar os “penduricalhos”, verbas variadas que ficariam fora do teto.
Entre os balangandãs, auxílio-paletó, dentista, auxílio-internet, alimentação, auxílio-transporte, moradia, verbas de representação, prêmios de produtividade, gratificação de Natal etc.

Ao longo do tempo, o STF aperfeiçoou a “hermenêutica criativa”, uma interpretação viva da Constituição. Não se tratou de uma mediação legítima entre a letra da lei, de um lado, e o espírito da lei, do outro. Ambos incontestavelmente bloqueiam o estouro do teto. Recorreu-se então a uma alquimia legal ao texto da carta magna: tinta e papel se transformaram em penduricalhos de ouro.

Mais recentemente, a mágica da discricionariedade interpretativa se sofisticou: o termo “cumulativamente” do artigo 37 passou a equivaler a “não cumulativamente” na jurisprudência vigente.

Anticonstitucionalissimamente, o STF decidiu que a Constituição é inconstitucional. Como disse o ministro Barroso, “é inconstitucional a Constituição, por emenda, dizer que um determinado trabalho legítimo, por ela autorizado, não vá ser remunerado”.

Assim, desde 2017 o STF estabeleceu o conceito de dois vínculos, um pé-direito duplo para o servidor público. Por exemplo, uma aposentadoria e a remuneração por um cargo de ministro se acumulam, implodindo o teto constitucional.

Na decisão, afirmou-se que a “acumulação de cargos não é para benefício do servidor, mas da coletividade”, e que o teto “gera enriquecimento sem causa do poder público”.

Em 2017, a ex-ministra do governo Temer Luislinda Valois argumentou em pedido oficial ao governo que não receber os valores acumulados corresponderia a trabalho escravo. É surreal como um roteiro de Orwell; menos para quem mora no Estado, no qual tudo observa precisamente a lógica do interesse interno.

O Ministério da Economia vinha resistindo a aplicar a “novisprudência” do STF, mas, após o parecer da AGU favorável ao duplo teto, capitulou.

Em Brasília, diz-se que o parecer foi encomendado por militares da reserva com cargos na Esplanada.

Na pandemia, milhares de empreendedores fecharam as portas e milhões de trabalhadores perderam o emprego ou tiveram o salário reduzido. Mas vergonhosamente a máquina pública continuou intacta, com supersalários pagos em dia.

Dentre 74 países, o Estado brasileiro tem o sétimo maior gasto com funcionários públicos, que, por sua vez, insistem na tese de que são mal pagos. Se fosse verdade, seria natural que os pedidos de demissão fossem equivalentes ou maiores que no setor privado. Porém, são praticamente inexistentes.

Há esperança. O Congresso pretende votar em breve a PEC 32, que, entre diversas mudanças, elimina o teto duplo, e o PL 6.726/16, que restringe os penduricalhos. Espera-se que sejam à prova de alquimia.

Escada Tecnológica

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O desenvolvimento econômico é o anseio maior das sociedades contemporâneas, todas as economias buscam uma melhor inserção na comunidade internacional, garantindo um incremento de suas rendas com melhorias nas formas de consumo, renda e bem-estar social. Neste ambiente, os países que conseguiram angariar avanços substanciais construíram estratégias que combinavam uma efetiva ação política interna, investimentos crescentes em pesquisa, ciência e Tecnologia, planejamento econômico e consenso político entre os grupos sociais e políticos, sem estes, as nações não conseguiriam construir seu desenvolvimento. A história nos mostra que o desenvolvimento econômico é um tema político, nunca esqueçamos isso.

O avanço da escada tecnológica é um dos maiores desafios para as economias se desenvolverem, exigindo a intervenção maciça dos Estados nacionais, atuando em variadas frentes, investindo recursos em universidades, em centros de pesquisas e centros de desenvolvimentos tecnológicos, ao mesmo tempo, é fundamental que os atores estatais emprestem recursos a taxas de juros subsidiados, a proteção dos setores produtivos, compras governamentais e a construção de ambientes de credibilidade e de confiança.

Num ambiente de forte crescimento tecnológico, os países que conseguiram alçar o desenvolvimento econômico, conseguiram aumentar a escada tecnológica, transformando suas estruturas econômicas e produtivas, passando de produtores de mercadorias pouco sofisticadas e, com o passar dos tempos, conseguiram alçar novas capacidades produtivas, produzindo produtos mais sofisticados, construindo tecnologias inovadoras e elevando seus degraus produtivos. Estes países conseguiram transformar suas estruturas econômicas, enriqueceram e angariaram desenvolvimento econômico e melhoraram as condições de vida da população. Países que não conseguiram alçar a escada tecnológica ficaram para trás, sua população continua pobre, dependentes da importação de produtos de alto valor agregado e suas perspectivas econômicas são negativas e preocupantes.

Os economistas estruturalistas acreditam que os países que apresentam relevância em setores de mineração e de agricultura se encontram no começo da escada tecnológica, possuindo apenas solo fértil e reservas minerais. Com o crescimento da escada tecnológica, encontramos um processo de crescimento industrial em setores de baixo valor tecnológico, low tech, tais como vestuário, couros, alimentos processados, sabonete, bebidas, toalhas, sapato, manteiga, dentre outros, onde encontramos muitos países, com exceção dos algumas nações africanas.

Com o desenvolvimento da estrutura produtiva, os países conseguem crescer na escada tecnológica, chegando nos chamados de midian tech, suas estruturas econômicas são dominadas por setores mais elevados em tecnologia, produzindo produtos sofisticados, tais como as indústrias de autopeças, pneus, algumas maquinarias, angariando algum desenvolvimento industrial, embora modesto.

Com o passar dos tempos as estruturas produtivas são mais sofisticadas, as high tech, são grandes conglomerados, muitos setores oligopolizados ou duopólios, com a produção de máquina fina, maquinários de ponta, fármacos e mecânica de precisão, são setores que demandam capital humano sofisticado, grande inovação, alta tecnologia, pesquisa e desenvolvimento em relação as vendas e o faturamento. Neste mercado, os grandes atores são muito fortes e são dotados de grandes recursos monetários e financeiros, controlam o mercado e impõem seu poder financeiro como forma de controlar as sociedades e impedir a entrada de novos competidores, criando um ambiente de concentração de mercado e inviabilizando o surgimento de novos atores econômicos.

Neste ambiente, a atuação dos Estados Nacionais é imprescindível no desenvolvimento da escada tecnológica, como China e Coréia do Sul, que construíram setores altamente capacitados para competir no mercado global. Sem o desenvolvimento da escada tecnológica, países como o Brasil continuarão reféns de uma economia baseada em baixo valor agregado, dependentes de tecnologias e subordinados aos ditames dos mercados internacionais.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Especialista em Economia, Mestre, Doutor em Sociologia, professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 19/05/2021.

Pobreza estrutural, por Michael França.

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Intervenções voltadas à primeira infância ajudam a quebrar o ciclo de perpetuação da pobreza

Michael França, Doutor em Teoria Econômica pela Universidade de São Paulo, foi pesquisador visitante na Universidade Columbia e é pesquisador do Insper.

Folha de São Paulo, 18/05/2021.

Existe vasta literatura voltada para compreender os mecanismos que retroalimentam a pobreza. Com o intuito de enfrentar esse desafio, diversas iniciativas e políticas públicas têm sido propostas e adotadas. Na economia, epidemiologia e psicologia têm ampliado a discussão em torno dos potenciais efeitos positivos de investimentos na primeira infância e na juventude.

Durante esse período da vida, são aprendidas habilidades que influenciam os resultados alcançados na idade adulta.
Considerando o contexto americano, estudos empíricos mostraram que o ambiente em que crianças e jovens estão inseridos consegue explicar uma parcela significativa das condições de saúde, desempenho educacional, engajamentos sociais e envolvimento futuro em atividades criminais.

Além do impacto social, também existem desdobramentos econômicos relevantes. Estima-se que cerca de 50% da variabilidade dos ganhos ao longo da vida entre as pessoas poderia ser explicada pelas habilidades desenvolvidas até os 18 anos de idade (“The economics of human development and social mobility”, 2014).

No entanto, construir essas habilidades não é algo trivial. Requer considerável esforço e políticas públicas bem orientadas. Existem inúmeros fatores que atuam conjuntamente no processo de formação de uma pessoa.

Um deles é a influência da família. Sabe-se que há uma expressiva correlação entre a renda domiciliar e o desempenho de um indivíduo. Isso ocorre porque a renda está associada a várias características que influenciam diretamente o progresso individual.

A literatura mostra, por exemplo, que crianças que vivem em ambientes desfavorecidos vão entrar em contato com um vocabulário significativamente menor, e isso leva a pior rendimento escolar.

Os pais, que podem ser considerados os primeiros professores de um indivíduo, costumam apresentar baixo conhecimento formal para transmitir a seus descendentes. Além disso, famílias carentes tendem a encorajar menos as crianças no seu processo de aprendizagem.

Possivelmente, o círculo de amizades dessas crianças será formado por pessoas que apresentam baixo nível educacional. Desse modo, o potencial aprendizado derivado das interações humanas também fica comprometido.

Isso tende a fazer com que transferências irrestritas de renda apresentem fraco efeito no processo de desenvolvimento das habilidades de um indivíduo. Deve-se pontuar que as políticas de transferências de renda desempenham um importante papel na suavização das restrições derivadas da pobreza. Entretanto, também é necessário realizar intervenções que ajudem a corrigir outras distorções sociais geradas pelos locais de nascimento.

Nesse cenário, estudos empíricos têm encontrado evidências de que intervenções voltadas para a primeira infância e juventude apresentam significativo potencial de ajudar a quebrar o ciclo de perpetuação da pobreza.

No caso dos Estados Unidos, iniciativas bem-sucedidas conseguiram impactar positivamente o desenvolvimento cognitivo de crianças e melhoraram as capacidades não cognitivas de adolescentes.

Simples programas de mentoria, por exemplo, têm significativo potencial de fornecer informações valiosas para os jovens desfavorecidos, ajudando, assim, a fazer melhores escolhas.

Sem uma intervenção profunda e organizada do Estado, é difícil imaginar que conseguiremos vencer a pobreza estrutural, pois existem muitos canais pelos quais o status socioeconômico se reproduz entre as gerações.

O texto é uma homenagem à música “Não é Sério”, interpretada por Charlie Brown Jr. e Negra Li.

Países em que algumas vidas valem menos explicam recordes na pandemia, diz ganhadora do Pulitzer

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Jornalista Isabel Wilkerson defende em livro que EUA não são apenas racistas, mas organizados em castas

ANGELA BOLDRINI – FSP – 16/05/2021

BRASÍLIA
“O coronavírus não liga para nacionalidade ou cor da pele, mas são os países com maior divisão hierárquica na sociedade que estão no topo de mortes e casos”, diz a autora americana Isabel Wilkerson, citando os três líderes globais em óbitos por Covid-19: EUA, Brasil e Índia.

Essas divisões, argumenta ela, fazem com que alguns grupos sintam ter menos responsabilidade pela vida de outras pessoas. “Isso tem impacto nas nossas sociedades”, afirma a autora de “Casta: As Origens de Nosso Mal-Estar”, que chegou ao Brasil no final de abril pela editora Zahar.

No best-seller, a vencedora do Pulitzer defende a tese de que os EUA são mais do que um país racista. São, como a Índia, uma sociedade de castas, em que a raça é apenas o elemento visível da divisão social.

À Folha Wilkerson afirmou que é preciso cautela quanto à disseminação de vídeos de casos com o de George Floyd, homem negro assassinado por um policial em 2020, cuja morte gerou comoção mundial. “Esse acesso irrestrito a vídeos de morte e abuso de pessoas negras pode ter a consequência não planejada de anestesiar as pessoas, de contribuir para a desumanização das pessoas negras”, diz.

Ela defende que um caminho para combater a noção de hierarquia embutida na sociedade é conhecer a própria história e o processo que levou a essa hierarquização, e cita semelhanças com a Alemanha nazista e o caminho de reconstrução feito no país europeu e ignorado nos EUA e no Brasil pós-escravidão.

A sra. defende que a sociedade americana é mais do que racista, é uma sociedade de castas. Como começou a desenvolver essa tese?

Ela surgiu a partir do meu primeiro livro, “The Warmth of Other Suns” [o calor de outros sóis], que trata da migração de seis milhões de pessoas negras do Sul dos EUA, fugindo do regime Jim Crow [conjunto de leis segregacionistas estabelecidas no sul dos EUA após o fim da escravidão]. Passei a olhar para os antropólogos que estudaram esse tema na época, e eles usavam a palavra “casta”, porque não era só uma questão de ódio a um grupo, era a manutenção de uma estrutura divisiva em que tudo que uma pessoa podia ou não fazer estava baseado na sua posição em uma hierarquia. E essa posição era baseada apenas na sua aparência.

Então, em 2012, aconteceu o caso Trayvon Martin, em que um adolescente negro foi morto por um homem que achou que ele, por sua aparência, não pertencia àquele local. A partir daí comecei a pensar sobre como a noção de casta ainda nos afeta, como ainda é presente e não ficou apenas na época do Jim Crow.

A sra. já afirmou que a casta dominante atua mais quando se sente ameaçada. É este o caso com o Black Lives Matter e os recentes casos de abuso contra negros?

Sim. Na história americana, qualquer brecha no sistema de castas é vista como uma ameaça à ordem social. Se você olhar para o período que seguiu a Guerra Civil, há por 12 anos a chamada Reconstrução, em que ex-escravos estavam tendo acesso a educação, construindo instituições para si mesmos. Isso gerou um rebote muito grande, e o governo federal deixou de ajudar. A partir daí essas pessoas foram arremessadas de volta para a base do sistema de castas, e se instituíram as leis Jim Crow, 
que duraram quase 90 anos. Então você tem um período curto em que os negros estavam livres, e isso levou a gerações e gerações de um regime brutal. Essa ideia de que pessoas negras podem estar na sociedade é muito nova, a maior parte da história americana foi de exclusão.

A sra. acha que as redes sociais atuam de maneira positiva para a geração atual de jovens negros no combate a esse sistema?

A habilidade de gravar os abusos a pessoas pretas e pardas nos EUA e no mundo significa que coisas que aconteciam antes agora têm milhões de testemunhas. O caso George Floyd, algo que não deveria acontecer com nenhum ser humano, foi testemunhado pelo mundo todo. Quantos George Floyds não existiam antes? Por outro lado, esse acesso irrestrito a vídeos de morte e abuso contra pessoas negras pode ter a consequência não planejada de anestesiar as pessoas, de contribuir para a desumanização das pessoas negras. Nós sabemos dos linchamentos que ocorriam durante o Jim Crow porque as pessoas que os perpetravam tiravam fotos e as transformavam em cartões postais para enviar à família, tinham orgulho. Antigamente 5.000, 10 mil pessoas se reuniam para ver uma atrocidade sendo cometida. Hoje, devido às redes sociais, esse número passou a ser de dezenas de milhões. Além disso, é profundamente perturbador pensar que, quando vemos um desses vídeos, ele é precedido por anúncios, que tem alguém ganhando dinheiro com isso.

Quando a sra. decidiu fazer uma comparação entre Índia, EUA e a Alemanha nazista?

Após o caso Trayvon Martin e dos que aconteceram depois, pareceu-me claro que havia algo que valia investigar. A primeira coisa que fiz foi olhar a definição de “casta” e o sistema mais antigo em que isso foi aplicado, a Índia.

A Alemanha é menos óbvia, mas em 2017 houve o protesto de Charlottesville [EUA] contra a derrubada das estátuas de generais confederados. E os próprios manifestantes fundiram os símbolos da Confederação com os ícones nazistas, eles viram essa conexão.

A sra. reconta no livro que Martin Luther King Jr. foi à Índia e, lá, foi comparado aos intocáveis, a casta mais baixa. É marcante, considerando sua tese. A sra. já conhecia esse episódio?

Não conhecia. Pesquisando sobre sua viagem à Índia descobri a visita a uma escola de dalits. Lá, o diretor o introduziu aos alunos assim: “Quero apresentar a vocês um colega intocável dos EUA”. Ele ficou irritado de ser chamado dessa maneira, mas refletiu e pensou nos 20 milhões de negros americanos que naquela época não podiam votar e concluiu que, sim, era um intocável.

E que todos os negros americanos eram intocáveis. Quando você toca um projeto de longo prazo você tem alguns marcos de que está na direção certa, e este certamente foi um deles.

E quais similaridades encontrou entre os três sistemas?

Foi chocante ver quantas intersecções havia. Eu terminei listando oito pilares para o sistema de casta e diria que o mais profundamente embutido em todas as três sociedades é o de “pureza”. Isto é, nos três casos as castas dominantes se preocupavam muito com evitar uma contaminação da sua suposta pureza a partir do contato com aqueles que eram supostamente sujos. Na Índia, a casta inferior é chamada de intocável literalmente porque essa pureza seria comprometida pelo toque. No caso dos nazistas, judeus eram proibidos de usar as mesmas águas que os “arianos”, no caso dos EUA os negros não podiam usar as mesmas piscinas e praias.

A noção de “pureza” foi o que criou nos EUA a regra da “gota de sangue” [leis que determinavam que qualquer ancestralidade negra, ainda que remota, é suficiente para que uma pessoa seja considerada negra]? Esse princípio ainda é levado em conta?

Essa noção existe há tanto tempo que nós ainda vivemos sob sua sombra. Se a raça é uma construção social, como definir quem é ou não é de algum grupo? Se você enfileirar pessoas com base na sua cor de pele, da mais escura para a mais clara, como você cria a nota de corte? É tão arbitrário que cada estado tinha uma regra.

Nos EUA, a escravidão era muito lucrativa, e se estabeleceu que só negros eram escravizáveis. Portanto, você tinha que criar uma regra que colocasse o máximo de pessoas possível sob esse guarda-chuva.

E um dos pilares da casta é a endogamia, então você tinha que ter definições muito claras de raça para poder saber quem podia casar com quem. Isso acabou gerando famílias e linhagens, já que as pessoas se reproduziam com aqueles que eram mais parecidos com eles próprios. Dá para dizer que a população americana foi “curada” por esse tipo de lei. E, ainda hoje, se a sua família é identificada como sendo de um dos grupos, não importa a sua aparência, você também será definido dentro dele.

É possível abolir as castas? Como?

Numa peça, o elenco [em inglês, “cast”, similar a casta, “caste”] sabe suas falas, sabe exatamente o papel de cada um e, se alguém sai do roteiro, todos sabem que há algo errado. O que precisa primeiro ser feito é que as pessoas reconheçam que há um roteiro e que, se ele foi escrito por humanos, ele também pode ser reimaginado por humanos.

Para isso, é necessário conhecer nossa história, saber qual a origem do que estamos batalhando.

Como engajar a casta dominante na sua destruição? 

Na Alemanha, eles lidaram com a própria história. Eles fazem questão que as crianças aprendam o que aconteceu, não há monumentos homenageando os perpetradores dos horrores, e os espaços de terror foram transformados em espaços de aprendizado. A sociedade pode não concordar em tudo, mas concorda com um básico de história. E isso não acontece em vários países que lidam com o passado de um horror diferente, o da escravidão. Isso não é um “capítulo triste” da história dos países, é algo que se embute na sua sociedade e que tem que ser reconhecido como tal. E, por fim, acho que é preciso reconhecer que isso machuca todos. A pandemia mostra isso com clareza. O coronavírus não liga para nacionalidade ou cor da pele, mas são os países com maior divisão hierárquica na sociedade que estão no topo de mortes e casos.

Os países que vêm à mente são os EUA, que estão em primeiro lugar nas mortes, o Brasil, que está em segundo, e a Índia, em terceiro. O que eles têm em comum?

Hierarquias embutidas, quer eles admitam, quer não. Essas divisões fazem com que grupos sintam que têm menos responsabilidade pela vida de outras pessoas, que lhes disseram que não têm tanto valor. Isso tem impacto nas nossas sociedades.

ISABEL WILKERSON, 60
Jornalista americana formada pela Howard University, é autora dos livros “The Warmth of Other Suns”, sobre a migração em massa da população negra para o norte dos EUA durante a época Jim Crow, e “Casta: A Origem de Nosso Mal-Estar”, lançado no Brasil pela editora Zahar. Em 1994, como chefe da sucursal de Chicago do jornal The New York Times, tornou-se a primeira mulher negra a ganhar um Prêmio Pulitzer de jornalismo.

FHC revê trajetória em novo livro e diz que Brasil naturalizou pobreza e desigualdade

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Às vésperas de completar 90 anos, ex-presidente publica memórias sobre origens familiares e formação intelectual

Ricardo Balthazar – Folha de São Paulo, 16/05/2021.

Na Folha desde 2010, foi editor de Poder e Mercado. É repórter especial.

[resumo] Em entrevista sobre seu novo livro de memórias, Fernando Henrique Cardoso analisa o impacto da formação acadêmica em sua carreira política e afirma que Brasil se acomodou diante da pobreza e da desigualdade, que não há avanços sociais sem luta por parte dos excluídos, que as instituições seguem funcionando a despeito de eventuais turbulências e que Bolsonaro não tem o propósito de instalar uma ditadura no país.

Nas páginas iniciais de seu novo livro de memórias, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso dedica algumas linhas à babá que cuidou dele na infância. Alzira era filha de uma ex-escrava de seu bisavô materno, ele conta, e viveu próxima da família por muitos anos como agregada, assim como sua mãe.

“De pequeno, e mesmo já grandote, eu não calçava meias nem sapatos: esticava as pernas e ela os punha”, escreve FHC. “Se perdi esses maus hábitos, eu devo isso à minha mãe e, mais tarde, à minha primeira mulher, Ruth. Se hoje não guardo esses costumes senhoriais, foi pela boa educação que delas recebi.”

Em “Um intelectual na Política”, que chega às livrarias nesta sexta-feira (14), o ex-presidente revisita suas origens familiares e sua formação acadêmica para discutir os efeitos que produziram em sua atuação na política e nos dois mandatos que exerceu como presidente da República, de 1995 a 2002.

Ele cita a empregada da família uma segunda vez perto do fim do volume, em um parágrafo em que também são lembrados o sociólogo Florestan Fernandes, o professor que mais o influenciou na USP, e o deputado Ulysses Guimarães, que liderou o antigo PMDB na oposição à ditadura militar (1964-1985).

“São pessoas que todos conhecem”, diz Fernando Henrique, que completará 90 anos em 18 de junho. “Mas existem aquelas que ninguém conhece que também tiveram muita importância.” Alzira entrou no livro como coadjuvante, mas saiu como símbolo dos que acompanharam à margem a trajetória do seu autor.

Professor de sociologia na USP até ser aposentado pelo regime militar, FHC dedicou seus primeiros estudos acadêmicos à escravidão e às cicatrizes que ela deixou na sociedade brasileira. Exilado e trabalhando na Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), da Organização das Nações Unidas, apontou a integração com as economias mais avançadas como caminho para o desenvolvimento do Brasil e de seus vizinhos.

Nesta entrevista, em que discute os principais temas do novo livro, o ex-presidente afirma que o Brasil não soube aproveitar as chances oferecidas pela globalização tão bem quanto outras nações, como a China, e lamenta que o país tenha se acomodado diante dos elevados índices de pobreza e desigualdade que marcam a sociedade brasileira.

Revendo o seu percurso no livro, é fácil perceber como sua obra acadêmica iluminou o entendimento de alguns problemas do país e orientou sua ação política no passado. De que forma ela ainda pode contribuir para enfrentar os problemas do presente? Nunca perdi meus laços com a academia. Minha formação sempre me obrigou a ter uma certa objetividade, o que me ajudou na política, mas também atrapalhou. Na política, é preciso mergulhar de cabeça. E tenho dificuldade de mergulhar, porque fico pensando nas alternativas e no que está errado.

O mundo mudou, obviamente. Nasci em 1931, em um país que era basicamente rural. Mudei do Rio para São Paulo em 1940. Foi um choque para mim. São Paulo já era uma cidade industrial, mas você olhava em volta e as ruas não tinham calçamento. Uma coisa que eu nunca tinha visto no Rio.

O Brasil tinha crença nesses anos, e o que talvez nos falte hoje é acreditar no futuro. Somos agora um país integrado ao mundo. Temos, portanto, os problemas do mundo, além dos decorrentes do nosso atraso. Não é fácil.
Nossa política reflete um pouco essa dualidade que há no país.

Hoje temos um presidente que não parece sofisticado, mas ele capta um pouco essa vulgaridade. É uma palavra forte, mas é algo que tem peso nas coisas do Brasil. Uma pessoa com a formação intelectual como a que eu tive tem mais dificuldade de se ajustar ao mundo das pessoas.

Nunca fui uma pessoa difícil para se relacionar. Pensam que eu sou metido a besta, mas sou mais simples do que parece. Mas como é que você vai fazer a síntese do Brasil de hoje? Não é fácil.

No livro, o sr. diz que a grande obra da sua geração foi a redemocratização após o regime militar. A ditadura acabou, e o país ganhou uma nova Constituição, mas muita gente acha que esse processo de certa forma ainda não se completou. Concorda? O Brasil não é fácil de entender. Dá impressão de ser uma geleia geral. A sociedade mudou rápido, e agora parece um pouco paralisada, ou sedimentada. Nosso sistema partidário é muito pulverizado. Mas temos liberdade, e a gente só dá valor à liberdade quando ela acaba.

Não dá para imaginar que não se tenha um sistema político que corresponda às aspirações populares. Bem ou mal, na hora da eleição todos votam, mas democracia não é só isso. Tem o sistema judiciário, o Parlamento, a imprensa, os partidos. Embora às vezes haja ímpetos autoritários de um ou de outro, nosso regime não é autoritário. Você tem liberdade, tem recursos, instituições que funcionam.

O desgaste que essas instituições têm sofrido no governo Jair Bolsonaro corrói a confiança que as pessoas depositaram nelas? Pode ser. Na democracia, você tem que estar sempre com o olho na liberdade, nas instituições, naquilo que se organiza, que garante a alternância no poder. Se você não toma cuidado, vira outra coisa. O regime político nunca é dado para sempre. Bem ou mal, conseguimos construir uma base institucional razoável para a democracia. Pode se perder? Pode. Mas está perdida? Não.

O aumento da presença de militares em postos-chave do governo representa um risco? Você tem gente competente nas Forças Armadas, e eles aderiram ao sistema democrático. Isso pode mudar? Pode. Todos nós podemos mudar de uma hora para outra. Mas não acho que exista um risco de militarização.

Tem muito militar no governo porque o presidente, além da origem no Exército, tem pouco contato com o resto da sociedade. Ele conhece esse pessoal, foram seus colegas na escola militar, ele tem mais naturalidade com eles. O risco é acabar perdendo a capacidade de falar com os civis.

Mas não creio que exista no meio militar hoje uma vocação para fechar as instituições. Conheço um ou outro. São
pessoas de cabeça normal, criadas com valores democráticos. Não atribuo ao presidente Bolsonaro o propósito de fazer aqui uma ditadura militar.

Meu pai era general, meu avô era marechal. Os militares, no passado, eram um partido político. Derrubavam governos. Agora não. Eles aceitam o resultado da vontade popular, aceitam a institucionalidade. O que não quer dizer que você não tenha que cuidar o tempo todo.

O sr. revisita mais uma vez seu trabalho sobre a teoria da dependência, em especial o livro escrito com o chileno Enzo Faletto. Acha que a obra foi mal compreendida? Ela foi exageradamente compreendida. O objetivo do trabalho era fazer uma crítica às teses da Cepal sobre o desenvolvimento econômico, chamando atenção para aspectos que não eram tomados em conta, como as instituições, a democracia e as diferenças na estrutura econômica dos países.

Muitos pensavam na época que éramos todos dependentes e continuaríamos sendo, a menos que viesse o socialismo. Nunca foi a nossa visão. Não era automático que passaríamos da dependência para o socialismo. Nem haveria, como não existe hoje, uma independência completa.

Muitos leram nosso livro como se fosse um manifesto terceiro-mundista, mas ele nunca foi isso. Queríamos que os países tivessem o máximo de autonomia que pudessem, mas no contexto da globalização, que ainda não tinha esse nome e estávamos descobrindo.

Acha que o Brasil aproveitou bem as oportunidades oferecidas pelo processo de globalização, ou perdemos esse bonde enquanto outros países aproveitaram melhor as chances que tiveram? A China aproveitou melhor. Entenderam a importância da tecnologia, deram muita atenção à ciência, à educação. No Brasil, as coisas se deram como se os ganhos viessem de barato, mas não era assim. Tinha que fazer mais esforço.

O Brasil está situado em uma região do mundo em que temos um peso grande e por isso ficamos, talvez, confortáveis demais na nossa cadeira. Teria sido melhor se tivéssemos um pouco mais de necessidade de competir, nos termos do futuro.

Nós aqui aceitamos muito a marginalização de pessoas e grupos sociais. Não incluímos essa gente. Então temos ainda uma agenda mais complicada do que a dos países que conseguiram incluir. Os chineses perceberam, com mais rapidez do que outros povos, e se ajeitaram.

Ainda temos aqui problemas que não se justificam, porque a desigualdade de renda no Brasil é muito acentuada. Além do que seria razoável, mesmo para um país capitalista. E acho que tem uma coisa mais grave do que isso, ou tão grave quanto. Nós naturalizamos a pobreza.

Tivemos um grande avanço na educação primária e com a criação do Sistema Único de Saúde, mas precisamos também de empregos para quem tem só esse nível de conhecimento.

Os danos causados pela pandemia serão duradouros? Não acho que o Brasil vá ficar paralisado quando isso terminar. O país levou um susto, claro, todo o mundo leva, mas tem capacidade de recuperação. Teremos momentos difíceis. Todo o mundo está com medo agora. Medo de morrer, principalmente. Mas você não tem trabalho também, e a renda diminuiu.

Depois da pandemia, teremos uma agitação grande. As pessoas vão querer espaço. E precisaremos de governos capazes de entender a realidade, que não fechem os olhos à realidade. O Brasil tem muitas bolhas, mas não dá para governar numa bolha.

Por muito tempo, em especial a partir do seu governo, houve a crença de que reformas e uma maior integração econômica permitiriam reduzir de forma mais expressiva as nossas desigualdades. Por que isso não aconteceu? Não foi só aqui. Muitas vezes os países crescem e você deixa de olhar os que ficaram para trás. Agora, quando é que você olha os que estão para trás? Quando eles reclamam. Quando não havia liberdade, era mais difícil perceber. Quando há liberdade, eles reclamam. É assim no Brasil também.

Em São Paulo, eu morei em uma região próxima de onde estavam as fábricas da família Matarazzo. Na hora do almoço, os operários comiam na calçada, com as marmitas que traziam de casa. Quando passava um engravatado, abriam espaço para o sujeito passar. Hoje, duvido que abrissem espaço.

Porque hoje essas pessoas existem. Quem está por cima não olha para baixo. A não ser que o de baixo machuque o pé de quem está em cima. É chato isso, mas é necessário. Quando o dominado começa a se movimentar é que você percebe. Nada vem de graça na vida, na sociedade.

O sr. dedicou boa parte de sua vida acadêmica ao estudo da escravidão e recorda no novo livro a babá da sua infância, filha de uma ex-escrava de seu bisavô. O que ela representa para o sr. hoje? Na casa do meu pai, Alzira comia na mesa conosco. Isso não era comum na época. Ela era quase branca. Mas o habitual era uma coisa mais discriminatória. Nesse tempo, as famílias tradicionais tinham muitos agregados, e Alzira sentava na nossa mesa. Na minha avó, não.

Então ela simbolizou para mim tanto a escravidão como a necessidade de tomar consciência de que os negros não eram mais escravos. Eles têm liberdade, e você tem que tratá-los como iguais. É fácil falar e dificílimo fazer. Você sentir o outro como igual.

As famílias tradicionais eram assim. Quer dizer, tinha muita empregada, era fácil, era barato. Viviam mal as empregadas. Eu nem percebia, não notava. Isso mudou completamente. Nós aqui nascemos com a ideia de que ter empregada é eterno. Não é. Cada um vai ter que cuidar de si.

Como o sr. vê as formulações teóricas mais recentes sobre a questão racial no Brasil, como o conceito de racismo estrutural? A sociedade está melhorando, está avançando, está reconhecendo o outro, independentemente da posição social. Agora, isso é fácil de falar, mas quando você tem posição de mando, é complicado.

O racismo estrutural existe. Vem da escravidão e está enraizado. Os estrangeiros que vieram para cá, que não conviveram com a nossa escravidão, sentiram isso também. Mas também existe hoje um sentimento de autossuficiência da parte dos negros, a valorização da cor, da religião, do seu modo de viver.

Então acho que as coisas melhoraram, no sentido de que o mundo atual permite mais convivência. Quando não tem convivência, você vê o outro como estrangeiro. Quando você está ao lado, percebe a humanidade da pessoa, se você for minimamente aberto. Acho que isso melhorou no Brasil.

Há espaço para aprofundar políticas afirmativas como as cotas para acesso à universidade pública? Sou favorável às cotas. Acho que foram benéficas, porque levam à convivência e ao respeito ao outro e dão uma certa garantia para aqueles que eram discriminados. Você já vê, mesmo em restaurantes melhores, pessoas negras com mais frequência. Eu acho isso um sinal positivo.

Tem que melhorar mais? Tem. Pode. Mas melhoraram. E isso em parte porque houve luta para que melhorasse. Sem luta, nada acontece. Tem que haver sempre quem reclame. Eu não sou do tipo de reclamar, porque nunca precisei reclamar muito. Mas quem precisa tem de reclamar.

Como tem sido sua rotina na pandemia? Durmo oito horas por dia. Levanto, tomo café, leio jornais, venho para o computador e começo a trabalhar. Paro, almoço, durmo depois um pouquinho. Vejo os amigos que moram perto, ando pelo bairro. Mas é chato. É uma vida pobre, esse semi-isolamento em que somos obrigados a viver.

Eu não tenho medo de morrer, nem de pegar o coronavírus. Tomei a vacina e tomo cuidados, por causa dos outros, mas não fico preocupado com esse negócio. Está chato.

TRECHOS DO LIVRO

Exílio em 1964 “No avião, chorei baixinho; não entendia por que eu. Por que comigo? Estava mais interessado na tese e em ocupar uma cátedra [na USP] do que em apoiar João Goulart ou ‘as esquerdas’.”

Maio de 1968 na França “Os operários haviam sido convidados a entrar [na universidade de Nanterre] e assistiam, com certo pasmo, as discussões nas quais se falava de amor, de solidariedade, da cultura, mas nada sobre salários.”

Teoria da dependência “Critiquei, às vezes duramente, os que acreditavam na inviabilidade do crescimento do capitalismo na região latino-americana e viam, por todo lado, o aumento das populações marginais. Não que estas inexistissem, mas eu julgava que não seriam empecilhos para que alguns países da região se industrializassem.”

Assembleia Nacional Constituinte “As discussões apaixonantes sobre o sistema de governo e mesmo sobre as regras para a formação de partidos passavam longe de algumas das questões sociais, como, por exemplo, as relativas aos preconceitos de cor (supunha-se fossemos uma democracia racial), ou ao desemprego. Mesmo nas econômicas, primava o interesse nacional, camuflando as questões da desigualdade de rendas. Era como se, havendo crescimento da economia e manutenção da democracia, a sociedade e também a política mudariam sem haver necessidade de que essas questões se colocassem.”

Candidatura presidencial em 1994 “Lula estava crescendo e alguém tinha que enfrentá-lo. O PT criticava duramente o Plano Real, a eleição de Lula parecia ser um risco de retrocesso. Foi por isso que aceitei ser candidato. Não era uma aspiração minha, pelo menos consciente. Pode ser que no fundo eu quisesse, não sei.”

Tucanos e petistas “Não é apenas a extrema direita que se perde em sua própria intolerância e negacionismo. Lula e o PT cometeram o erro estratégico de considerar o PSDB como seu principal inimigo. Não éramos, nunca fomos. A principal ameaça à democracia era e é a extrema direita autoritária e regressiva.”

Bolsonaro no poder “Enganam-se os que pensam que ‘o fascismo’ venceu. Enganam-se tanto quanto os que vêm o ‘comunismo’ por todos os lados. Essa polarização não existe mais no mundo real, apenas na mente dos que acreditam nos delírios que propagam.”

Entenda o fim da escravidão no Brasil e as consequências do 13 de maio de 1888

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Há 133 anos, Lei Áurea oficializou abolição, mas não criou mecanismos de inserção dos ex-escravos na sociedade; movimento negro critica a data

Tayguara Ribeiro, Folha de São Paulo, 13/05/2021.

Em 13 de maio de 1888, há 133 anos, o Brasil oficializava o fim da escravidão no país, com a assinatura da Lei Áurea. A data, entretanto, não é celebrada pelo movimento negro. Um dos motivos alegados é que, apesar da lei, a situação dos que se tornaram ex-escravos quase nada mudou à época.

O governo brasileiro, seja o então Império, seja a República proclamada no ano seguinte, não realizou projetos de inserção dos ex-escravos na sociedade, tampouco indenizou-os após gerações permanecerem escravizadas por mais de 300 anos.

As mazelas desse período apresentam reflexos em desigualdades sociais que ocorrem até os dias de hoje, outro dos motivos pelos quais o movimento negro não celebra a data. O processo também é chamado de “abolição não concluída”.
O tráfico de negros para o país começou no século 16. Estima-se que mais de 12 milhões de africanos cruzaram o Atlântico, trazidos à força, e desembarcaram em terras do continente americano durante o período. A maior parte deles, mais de 5 milhões, foram trazidos para o Brasil.

Confira alguns aspectos do processo de abolição da escravatura brasileira.

Como foi a escravidão no Brasil? Milhões de pessoas foram escravizadas no Brasil pelos portugueses após a chegada dos europeus, em 1500.

Em um primeiro momento, os índios —nativos do território— eram usados como mão de obra para o trabalho forçado. Depois de algumas décadas, os negros começaram a ser trazidos à força para o país, vindos da África.

Entre as principais atividades que utilizavam pessoas escravizadas estavam o cultivo da cana-de-açúcar e a mineração. Além de trabalhos forçados, os africanos e seus descendentes eram comercializados e recebiam punições físicas.

Quanto tempo durou a escravidão no Brasil? Mais de três séculos. O tráfico de negros ao Brasil começou nas primeiras décadas do século 16 e a escravidão terminou somente em 1888, com a assinatura da Lei Áurea.

Os escravos eram trazidos nos porões de navios, em condições sub-humanas e com alimentação e higiene precárias. Milhares de pessoas morreram durante as viagens.

Segundo Kleber Amâncio, professor de história da UFRB (Universidade Federal do Recôncavo da Bahia), a maioria das pessoas escravizadas chegaram ao Brasil no século 19, inclusive, no momento em que o tráfico de escravos já estava proibido.

Quantas pessoas foram trazidas da África para o Brasil à força? O Brasil recebeu a maior parte dos cerca de 12 milhões de africanos trazidos à força para as Américas. O país abrigou também o maior porto de receptação de escravos da história, no Rio de Janeiro. Ao todo, mais 5 milhões de pessoas foram traficadas da África para o Brasil, ao longo do período, sendo que mais de 600 mil morreram durante a viagem.

Quando foi oficializado pelo governo brasileiro o fim da escravidão? Em 13 de maio de 1888, a princesa Isabel, filha do imperador dom Pedro 2º, assinou a Lei Áurea, que marcou o fim da escravidão no país.

Como foi o processo de abolição? A abolição está longe de ter sido uma consequência da benevolência da monarquia que governava o Brasil à época.

O fim da escravidão foi resultado de um processo complexo e longo que envolveu diversos fatores, como o crescimento das adesões ao movimento abolicionista, pressões políticas externas e as revoltas e fugas organizadas pela população negra.

Em 1850, o tráfico de escravos foi proibido. Apesar disso, a escravidão prosseguiu. Alguns anos depois, foi decretada a liberdade das crianças negras nascidas no Brasil, embora seus pais continuassem a ser escravos, em sua maioria.

Pouco depois, foi implantada a liberdade para os escravos sexagenários, embora a expectativa de vida de uma pessoa negra que exercia trabalho forçado fosse muito menor do que 60 anos.

Além disso, o Brasil foi pressionado pela Inglaterra, que desejava expandir o mercado consumidor de seus produtos. Esse foi um dos fatores que impulsionou o debate sobre o fim do trabalho escravo na primeira metade do século 19.

Pressionados pela expectativa de um fim total da escravidão, agricultores de várias províncias começaram a buscar alternativas, e a fuga de pessoas negras se intensificou.

Como foi a luta pela abolição? Entre as formas de resistência, estavam debates, manifestações artísticas, revoltas e fugas de escravos.

Ao longo de séculos de escravidão, ocorreram diversos momentos de luta protagonizados pelos negros como a Revolta dos Malês, a Rebelião de Santana e a Revolta de Carrancas.

Os negros também organizaram quilombos, locais nos quais os escravos fugidos recebiam abrigo e que serviam como simbolo de resistência, sendo o mais famoso deles o Quilombo dos Palmares, liderado por Zumbi (1655-1695).

Em 1884, quatro anos antes do governo brasileiro, a província do Ceará decretou o fim da escravidão, impulsionada por movimentos locais.

A mobilização seguiu mesmo após a libertação oficial. A luta passou a ser pela implantação de políticas de inserção, distribuição de terras para os ex-escravos e indenizações. Entretanto, nenhuma dessas medidas foi
implementada pelos governos brasileiros.

QUEM ERAM ALGUNS DOS PRINCIPAIS ABOLICIONISTAS?
Luiz Gama
Ex-escravo, virou advogado e ativista. Entrou com processos para conseguir a libertação de escravos na Justiça. A estimativa é que ele tenha conseguido libertar centenas de pessoas.

André Rebouças
Engenheiro, nascido em uma família negra livre. A partir da década de 1870, ele intensificou sua participação nas manifestações pelo fim da escravidão, se tornando um dos principais articuladores do movimento abolicionista. Ele defendia o fim da escravidão, acesso à terra e integração à sociedade.

Francisco José do Nascimento, o Dragão do Mar
Participou do movimento abolicionista no Ceará. Na década de 1880, ele liderou uma greve entre os jangadeiros que levavam os negros escravizados para navios que os transportavam a outras províncias.

Maria Firmina dos Reis
Maranhense, negra e livre, ela se tornou professora e publicou no ano de 1859 o romance “Úrsula”, que tratava de questões ligadas à abolição. Maria Firmina também publicava poemas e textos contrários à escravidão na imprensa do Nordeste.

A Lei Áurea foi a única lei relacionada ao fim da escravidão? O Brasil teve algumas leis antes de oficializar o fim da escravidão, entre as mais famosas estão a Lei do Ventre Livre e a Lei dos Sexagenários.

Em 1850, a Lei Eusébio de Queirós proibiu o tráfico de escravos no país e está relacionada às pressões britânicas sobre o governo brasileiro para o fim da escravidão.

Em 1871, foi decretada a Lei do Ventre Livre, que dava liberdade a todos os negros nascidos no país a partir daquela data. Embora na prática não funcionasse muito bem, já que os pais das crianças seguiam escravizados, a lei é considerada um dos primeiros passos concretos para a oficialização do fim da escravidão no Brasil.

Em 1885, foi instituída a Lei dos Sexagenários, que concedia liberdade aos escravos com mais de 60 anos de idade. Finalmente, no dia 13 de maio de 1888, a princesa Isabel, que substituía seu pai, d. Pedro 2º, no governo, assinou a Lei Áurea.

O Brasil demorou para abolir a escravidão? O Brasil foi o último país independente das Américas a abolir completamente a escravatura.

Por que os negros não comemoram o 13 de maio? Embora a data marque oficialmente o fim da escravidão no Brasil, ela não é celebrada pelo movimento negro. Um dos motivos alegados é o tratamento dispensado aos ex-escravos.

É criticada a falta de políticas públicas para que a população negra fosse inserida na sociedade brasileira. Após mais de três séculos como escravos, essa população não recebeu nenhum tipo de indenização ou ajuda.
Historiadores apontam este como uma das origens para problemas sociais enfrentados até hoje, como a profunda desigualdade social no Brasil.

Qual a diferença entre as datas de 20 de novembro e 13 de maio? O dia 13 de maio está associado à assinatura da Lei Áurea pela princesa Isabel. O episódio costuma ser retratado como um ato de generosidade da elite branca da época, o que ofuscaria o papel dos próprios negros no processo de conquista da liberdade.

Por isso, o dia 20 de novembro, que faz referência à morte do líder negro Zumbi dos Palmares, foi escolhido como o Dia da Consciência Negra para simbolizar a resistência dos próprios negros contra a escravidão, com a formação de quilombos, por exemplo.