”O planeta está atravessado por múltiplas fraturas de desigualdade, que a pandemia irá agravar ainda mais” segundo Piketty.

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Novos indicadores permitem uma compreensão mais precisa e abrangente das desigualdades em nível mundial, detalha o economista em sua coluna

Thomas Piketty – Carta Maior, 17/11/2020

Graças ao esforço conjunto de 150 pesquisadores de todos os continentes, o World Inequality Database acaba de colocar online dados inéditos sobre a distribuição de renda em diferentes países do mundo. O que eles nos ensinam sobre o estado das desigualdades mundiais?

A principal novidade é que esses dados abrangem quase todos os países. Graças a pesquisas realizadas na América Latina, África e Ásia, já há 173 países com dados submetidos a tratamento, representando 97% da população mundial. Os novos dados também permitem analisar para cada país a evolução detalhada de toda a distribuição, dos mais pobres aos mais ricos.

Concretamente, já sabíamos que o aumento das desigualdades produziu-se de cima no curso das últimas décadas, com a explosão do famoso 1%. A novidade é oferecer uma comparação sistemática da situação das classes populares nas diferentes partes do mundo. Constata-se assim que a participação dos 50% mais pobres varia consideravelmente dependendo do país: oscila entre 5% e 25% da renda total. Em outras palavras, para uma mesma renda nacional, o padrão de vida dos 50% mais pobres pode variar de um fator que vai de 1 a 5. Isso mostra o quão urgente é ir além do PIB e dos agregados macroeconômicos para privilegiar o estudo das distribuições e grupos sociais concretos.

Patrimônio e renda
Deve-se notar também que as desigualdades são fortes em todos os países. A parcela dos 10% mais ricos representa entre 30% e 70% da renda total. É sempre significativamente mais elevada do que aquela dos 50% mais pobres. A diferença seria ainda mais acentuada se olhássemos a distribuição do patrimônio (o que se possui) e não da renda (o que se ganha em um ano). Os 50% mais pobres não possuem quase nada (geralmente menos de 5% do total), inclusive nos países mais igualitários (como a Suécia). Os dados disponíveis sobre patrimônio continuam todavia insuficientes e serão atualizados em 2021.

Em relação à distribuição da renda, há variações muito fortes entre países, inclusive no interior de determinada região e para um mesmo nível de desenvolvimento. Isso mostra que as políticas podem fazer a diferença. Na América Latina, podemos observar que Brasil, México e Chile são historicamente mais desiguais do que Argentina, Equador ou Uruguai (onde políticas sociais mais ambiciosas foram implementadas por várias décadas), e que a diferença entre esses dois grupos de países aumentou nos últimos vinte anos. Na África, as desigualdades mais extremas são encontradas no sul do continente, onde nenhuma redistribuição real de terras e da riqueza ocorreu desde o fim do apartheid.

De modo geral, o mapa das desigualdades mundiais reflete ao mesmo tempo os efeitos da antiga discriminação racial e colonial e o impacto do hipercapitalismo contemporâneo e de processos sociopolíticos mais recentes. Em vários dos países mais desiguais do planeta, como Chile e Líbano, os movimentos sociais dos últimos anos têm alimentado a esperança de profundas transformações.

O Oriente Médio aparece como a região mais desigual do planeta, tanto por um sistema de fronteiras que concentra recursos em territórios petromonárquicos, como por um sistema bancário internacional que permite transformar a renda do petróleo em renda financeira eterna. Na ausência de um novo modelo de desenvolvimento regional mais equilibrado, social-federativo e democrático, o temor é que as ideologias totalitárias e reacionárias em ação continuem a ocupar o terreno, como na Europa há um século.

Choque de desigualdade
Na Índia, onde as diferenças entre o topo e a massa da população atingiram níveis nunca vistos desde o período colonial, os nacionalistas hindus acreditam poder acalmar as frustrações socioeconômicas alimentando tensões identitárias e religiosas, cujo efeito é agravar a discriminação enfrentada pela minoria muçulmana, ameaçada de empobrecimento e marginalização duradoura.

Nota-se também a progressão contínua das desigualdades na Europa Oriental desde os anos 1990. Logo após a queda do comunismo, o choque de desigualdade foi muito mais brutal na Rússia, que em poucos anos tornou-se a capital mundial dos oligarcas, dos paraísos fiscais e da falta de transparência financeira, depois de ter sido o país da abolição total da propriedade privada. Mas, quase trinta anos depois, a Europa Oriental parece estar gradualmente se aproximando do nível de desigualdade observado na Rússia. A estagnação dos salários e a magnitude do fluxo de lucros para fora desses países alimentam uma frustração que o Ocidente do continente tem dificuldade em compreender.

A nível mundial, constata-se, é verdade, que a participação dos habitantes 50% mais pobres do planeta aumentou significativamente, passando de 5% da renda mundial total em 1980 para cerca de 9% em 2020, graças ao crescimento dos países emergentes. Esta progressão deve, porém, ser relativizada, na medida em que a participação dos 10% mais ricos do planeta se manteve estável em torno de 53% e a dos 1% mais ricos passou de 17% para 20%. Os perdedores são as classes médias e populares do Norte, o que alimenta a rejeição da globalização.

Resumindo: o planeta está atravessado por múltiplas fraturas de desigualdade, que a pandemia irá agravar ainda mais. Só um esforço acumulado de transparência democrática e financeira, hoje muito insuficiente, permitiria desenvolver soluções aceitáveis para o maior número.

Thomas Piketty é diretor de estudos da École des Hautes Etudes en Sciences Sociales e professor da Ecole d’économie de Paris. 

A desastrosa marcha à ré do combate à pobreza e à desigualdade, por M. H. Tavares.

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Os mais ricos ficaram com quase todo o crescimento da renda de 2017 para cá.

Folha de São Paulo, 19/11/2020.

Nos últimos dez anos, perdemos a luta contra a pobreza e a desigualdade, objetivo incontornável de qualquer país que se quer decente. Essa é a conclusão do primoroso trabalho “Distribuição de renda nos anos 2010: uma década perdida para desigualdade e pobreza”, escrito por três ases –os pesquisadores Rogério Barbosa, Pedro Ferreira de Souza e Sergei Soares– e recém-publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), do Ministério da Economia, na série Textos de Discussão.

Ali se lê que os ganhos conseguidos entre 2012 e 2014 –e que davam prosseguimento a uma longa trajetória virtuosa de redução do número de pobres e das disparidades de renda– cessaram com a crise econômica de 2015-2016 e foram literalmente revertidos nos dois anos seguintes.
O desarranjo da economia não atingiu a todos da mesma forma nem ao mesmo tempo. A derrocada começou no governo Dilma, provocada por uma leitura míope dos obstáculos da hora, conduzindo a soluções ineficazes para superá-los.

Mas foi ao longo da difícil recuperação que teve início em 2017, já sob o comando da centro direita de Temer & Meirelles, que a sorte dos mais pobres foi selada. Segundo os estudiosos citados, os brasileiros mais ricos se apropriaram de cerca de 80% do crescimento da renda no período, enquanto os ingressos da metade mais pobre caíram 4%. Na mesma proporção cresceu a desigualdade. Sem sombra de dúvida, esse aumento foi o responsável pela ampliação da pobreza.

Os pesquisadores demonstram que o inchaço do desemprego e a queda dos salários foram os vilões da tragédia que desfez sonhos e esperanças de milhões de famílias e multiplicou o número dos sem-teto nas grandes cidades.

A Previdência Social também teve seu papel: os maiores benefícios destinaram-se aos grupos de melhor remuneração. Finalmente, o estudo revela terem sido quase nulos os efeitos compensatórios dos programas de proteção da renda, como o Benefício de Prestação Continuada, o Seguro Desemprego e o Bolsa Família, cujos recursos não acompanharam o aumento dos que a ele teriam direito.
Uma administração que produziu muito progresso, mas não as condições fiscais para sustentá-lo, seguida de outra que em dois anos promoveu impressionante retrocesso social são responsáveis pela marcha à ré do país e pela perda de uma década de mitigação das injustiças.

Não é provável que o quadro melhore neste governo: reduzir pobreza e desigualdade não faz parte de sua agenda retrógrada. Que, ao menos, os democratas com preocupações sociais aprendam com o estrago e se preparem para fazer melhor.

Maria Hermínia Tavares

Professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap. Escreve às quintas-feiras.

 

Dinheiro há, falta vontade, por Daniela Stefano

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Estudo mostra que 32 multinacionais estão fazendo lucros extraordinários com a coronacrise

Folha de São Paulo, 18/11/2020

Serão necessários cerca de US$ 9,4 trilhões anualmente, por dez anos, para superar os custos da pandemia, combater a crise climática, reparar a escravidão nos EUA e atingir as metas de desenvolvimento sustentável, estima recente estudo do Transnational Institute. Influenciado por pesquisas da Tax Justice Network (TJN), o trabalho aponta que esses recursos existem, basta aplicar dez políticas progressivas.

O dinheiro viria de um imposto global proporcional sobre a riqueza. Ainda que exija ultrapassar uma série de obstáculos, entre eles a falta de vontade de bilionários em redistribuir riquezas, muitos países já estão implementando a ideia unilateralmente. O Chile aprovou uma lei em fins de maio que deve arrecadar US$ 6 bilhões do 1% mais rico do país.

E qual o motivo para os super ricos e as multinacionais terem de contribuir mais para a superação dessa crise? Se comparados à maioria da população, pagam menos imposto e nem sequer foram afetados pela coronacrise, pelo contrário: a concentração de riquezas aumentou. A TJN estima que haja pelo menos US$ 32 trilhões escondidos em paraísos fiscais.

Estudo recente da Oxfam mostra que 32 multinacionais estão fazendo lucros extraordinários durante a coronacrise e esperam distribuir 88% deles aos acionistas, a maioria já bilionários. Ao mesmo tempo, muitas dessas empresas pedem empréstimos emergenciais aos governos. Na França, sete empresas pagaram dividendos aos acionistas enquanto recebiam dinheiro público para pagar seus funcionários.

E ainda existem os abusos fiscais. Estima-se que cerca de US$ 500 bilhões de impostos corporativos não são pagos e vão para paraísos fiscais devido a brechas nas leis e ao lobby das multinacionais para que sigam beneficiadas. Desde os anos 1980, super ricos e grandes corporações vêm pagando cada vez menos impostos.

O movimento de justiça fiscal pressiona por mudanças com propostas de transparência. Se as multinacionais fizessem relatórios de suas atividades país por país, seria possível evitar o envio dos lucros para países onde pagam pouco ou nenhum imposto. Se elas fossem entendidas como uma única empresa, em vez de cada subsidiária ser tratada como empresa distinta, tornaria possível taxá-las de forma única e global, de acordo com as atividades que exercem em cada país. Registro público de beneficiários finais das corporações fecha três medidas essenciais.

Essas e muitas outras propostas são abordadas mensalmente no podcast É da Sua conta, da TJN, e só precisam de vontade política para serem aplicadas. Cabe a nós exigir reformas fiscais justas.

Daniela Stefano É jornalista e apresentadora do podcast É da Sua Conta

Desafios e oportunidades da Nova Economia

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A sociedade internacional está passando por grandes transformações em todas as áreas e setores, estas alterações estão gerando impactos generalizados, neste momento as bases da economia estão passando por construções ou por reconstruções. Neste momento, percebemos o nascimento de uma Nova Economia, gerando novos atores sociais, políticos e culturais, com isso, percebemos novos desafios e novas oportunidades, trazendo medos e esperanças e, ao mesmo tempo, novos comportamentos, concorrênciase riscos crescentes, estamos numa outra sociedade, numa nova coletividade e construindo novos modelos de civilizações.

Como destacou o criador do Fórum Econômico Mundial, Klaus Schwab, a Nova Economia traz novos conceitos para a economia contemporânea, como Indústria 4.0, Inteligência Artificial, Internet das coisas, robótica, civilização digital, Startups, 5G, computação quântica, biotecnologias, dentre outras. Estes novos conceitos estão transformando todas as economias, desafiando as nações, criando um mundo cheio de oportunidade, mas ao mesmo tempo percebemos grandes instabilidades, inseguranças e desesperanças.

Nesta sociedade, muitos teóricos importantes para a academia, intelectuais como os economistas Joseph Stiglitz, Paul Krugman e Amartya Sem, laureados com o Prêmio Nobel, além de grandes personalidades da sociedade contemporânea, intelectuais de peso como Noam Chomsky, Edgar Morin, além do Papa Francisco, dentre outros, estão destacando que a sustentabilidade da sociedade deve ser reconstruída, as bases da sociedade deve ser reconstruída, a estrutura econômica deve servir para a sociedade e não como o que está acontecendo neste momento da história, onde os grandes conglomerados econômicos estão cada vez mais fortalecidos, garantindo seus privilégios, pagando tributos reduzidos e angariando novos espaços em todas as nações, controlando as estruturas de poder, perpetuando seu domínio político e garantindo uma reduzida parte da sociedade global, os benesses da acumulação e dos prazeres do capital.

A Nova economia está exigindo uma constante transformação cotidiana, os trabalhadores devem incorporar novas inovações, as invenções devem impulsionar a coletividade, os desafios devem ser crescentes, as atividades repetitivas do mundo do trabalho devem ser repassadas para as máquinas. Os trabalhadores devem ser estimulados para o pensamento crítico, exigindo novas mentalidades e a construção de novos equilíbrios emocional e espiritual, sem estes equilíbrios não conseguirão se adaptar a esta nova sociedade, marcadas por incertezas crescentes, instabilidades gerais, volatilidades, complexidades e transformações constantes. Destes desafios, destacando os modelos educacionais, das escolas e das universidades, que prescindem de novas metodologias para a construção dos novos conhecimentos, se a sociedade demanda cidadãos conscientes e críticos, os novos modelos de ensino devem capacitar para a construção dos trabalhadores do século XXII, deixando de lado os modelos repetitivos, superficiais e baseados nas decorebas constantes, criando novos modelos dinâmicos e reflexivos para na auxílio da construção da nova economia contemporânea.

Os novos modelos de negócios atuam na construção de ecossistemas de empreendimentos, tais como startups, empresas de tecnologias e marcadas pelo crescimento das inovações, com suas mentalidades dinâmicas, com seus comportamentos marcados pela ambiguidade, por modelos revolucionários de negócios, mais marcados pela flexibilidade, pelo dinamismo e menos burocracias, dominados por aplicativos e produtos intangíveis. Neste novo modelo de organização, encontramos o cenário da nova economia, centrados nas incertezas e constantes mudanças, esta nova sociedade pode ser definida pela disrupção, que tem como base um rompimento com o velho marcado e abertura para o novo, mais tecnológico, flexível e prático.

A disrupção em curso na sociedade contemporânea está gerando muitas oportunidades e desafios, de um lado, percebemos que aqueles que apresentam boas oportunidades de formações intelectual e técnica, além de valores mais consistentes, conseguem ganhos crescentes profissionais, novas oportunidades de empregos ou a construção de novos negócios, muitos delas iniciando novos empreendimentos, centrados de fortes tons de liderança, garantindo o crescimento de negócios e atuações neste mercado volátil e altamente instável.

Vivemos num mundo marcada pelos excessos de tecnologias, máquinas e equipamentos dominando todos os setores, a sociedade está construindo um mundo digital, os prazeres está se concentrando no mundo imaterial, os jogos, os aplicativos crescem todos os instantes, sua importância não deve ser questionada, mas não podemos aceitar que os valores da tecnologia gerem constrangimentos para as relações sociais e as integrações entre os seres humanos, a tecnologia deve ser vista como um grande ativo da coletividade, os avanços das máquinas não deve ser desprezadas mas, os seres humanos precisam construir novos arranjos de sociedade. As amizades devem ser consolidadas, os toques e os contatos humanos devem ser estimulados, as conversas devem ser estimuladas, os relacionamentos devem ser consolidados, sem estes vocabulários, esquecidos neste mundo marcado por tecnologias e exageros digitais, a sociedade contemporânea não conseguirá dar um salto civilizacional, ainda neste momento marcado por pandemias, desajustes morais e fragilidades espirituais.

Neste ambiente, percebemos a importância crescente da educação, na contemporaneidade a formação educacional é fundamental, todos os governos devem canalizar fortes investimentos científicos, incremento do conhecimento da sociedade, melhorando a infraestrutura das escolas, das faculdades e das universidades, aproximando estas instituições do mercado, aumentando os recursos na pesquisa, aumentando os dados e as informações disponíveis para a sociedade, subsidiando os tomadores de decisões e construir planos econômicos, centrados em políticas pragmáticas e consistentes, deixando de lado posições caracterizadas pelo viés ideológico, sem comprovação científico e sem experiências comprovadas por pesquisas científicas.

A sociedade mundial se caracteriza por grandes transformações, a rapidez destas alterações cresce de forma acelerada. Neste ambiente, os indivíduos estão atordoados, assustados, os trabalhos estão se tornando escassos, com isso, o mundo de trabalho está gerando instabilidades, desesperanças, depressões e ansiedades. Neste mundo contemporâneo, a tecnologia acelera rapidamente, neste ambiente, enquanto os indivíduos não conseguem acompanhar estas transformações impulsionadas pelas novas tecnologias, vivemos um grande paradoxo, os consumidores percebem inúmeras mercadorias disponíveis no mercado, mas de outro lado percebem seus rendimentos se reduzindo, seus salários diminuem e as perspectivas de sobrevivência dignas diminuem de forma acelerada, impulsionando conflitos, violências e a convivência social, neste momento, percebemos a importância de uma discussão maior sobre os rumos da sociedade mundial.

Os grandes pensadores da sociedade mundial, desde os intelectuais que foram fundamentais para a compreensão do mundo, seus desafios, seus medos e as limitações, todos eles teóricos destacaram que o crescimento da civilização só seria possível se os seres humanos conseguissem encontrar uma fórmula de equilíbrio que concatenar os avanços da sociedade em vários setores: o crescimento intelectual, o crescimento econômico, o crescimento moral e o crescimento espiritual. Neste momento, percebemos que a sociedade está se concentrando apenasnum dos eixos da equação, a sociedade está se concentrando no eixo do crescimento econômico, estamos nos preocupando apenas na economia, aumentando as riquezas, aumentando as cargas de trabalho e levando os indivíduos a degradação, acreditando que o mundo conseguirá o tão sonhado seu desenvolvimento. Neste momento, percebemos que se não conseguirmos nos fortalecer nas bases da moral, do espírito e da intelectualidade, o mundo tende a aprofundar rapidamente a degradação, os confrontos, a incivilidade e o retrocesso, reflitamos sobre estes ensinamentos da história, sem esta reflexão o mundo caminhará, a passos largos, a momentos sombrios, assustadores e longe dos conflitos existenciais e morais.

‘Educação remota afeta ainda mais os vulneráveis’, diz Paes de Barros

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No combate à pandemia, governo deveria, eventualmente, ‘fechar a economia e abrir as escolas’, diz especialista

Entrevista com

Ricardo Paes de Barros, professor do Insper

dnana Tomazellli, O Estado de S. Paulo, 14 de novembro de 2020

BRASÍLIA | O governo deveria centrar esforços no controle da pandemia do novo coronavírus para criar as condições necessárias à reabertura das escolas, afirma ao Estadão/Broadcast o economista Ricardo Paes de Barros, professor do Insper, economista-chefe do Instituto Ayrton Senna e um dos formuladores do programa Bolsa Família: “Não adianta fazer a economia voltar e manter escolas fechadas. Eventualmente, tem de fazer o contrário, fecha a economia e abre as escolas.”

Segundo ele, é preciso criar incentivos, inclusive financeiros, para que jovens de famílias mais carentes voltem às aulas em vez de engordar estatísticas de evasão escolar. Ao mesmo tempo, será necessário reforçar a oferta de professores para ampliar a assistência aos alunos e recuperar o tempo perdido. Se nada for feito, o prejuízo no aprendizado pode impactar a renda do estudante em até R$ 70 mil ao longo de sua vida. Em caso de abandono dos estudos, o prejuízo chega a R$ 400 mil para ele e a sociedade.

Leia os principais trechos da entrevista:

As escolas estão fechadas há oito meses, há uma disparidade nos Estados sobre o acesso dos alunos a atividades remotas. Qual é o impacto disso na economia e na desigualdade?

Não tem como ter essa educação remota, em certo sentido improvisada, durante oito meses. É impossível achar que não vai ter consequências graves. Os alunos vão aprender menos, a chance de evadir é maior, e tudo isso acontecendo de uma maneira extremamente desigual, porque esse esforço meritório de educação remota requer um apoio da família em termos de recursos digitais, espaço, lugar para estudar, tempo para estudar. Vai ser uma perda grande e desigual.

E qual é o tamanho da perda?

A gente só vai saber na hora em que começar a medir o que aconteceu com o aprendizado à medida que os alunos voltarem. Agora, a principal preocupação é o cara voltar para a escola. Se não voltar para a escola, a perda é gigantesca. Num trabalho que fizemos no Insper junto com a Fundação Roberto Marinho, a gente calcula que cada jovem que não voltar para a escola é um prejuízo de R$ 400 mil para ele e para a sociedade brasileira. Não é o que ele perdeu este ano, mas o que ele vai perder também nos próximos anos por ter saído da escola. É uma perda gigantesca de PIB, de renda, de empregabilidade e de tudo que a educação traz, desde menos violência a melhores condições de saúde.

Quem está mais exposto?

Quem tem mais risco de não voltar para a escola são os mais pobres, os mais vulneráveis, e quem se beneficiou menos da educação remota foram os mais pobres e mais vulneráveis. Então tudo é muito desigual, uma perda muito grande, mas tem uma prioridade. Primeiro, garantir que todo mundo volte. Segundo, recuperar a perda de aprendizado. A pior coisa que a escola pode fazer é naturalizar essa perda de aprendizado. A gente deveria estender, por exemplo, o terceiro ano (do ensino médio) e segurar os jovens que não aprenderam tudo que deveriam, porque ensinar para eles é mais importante do que eles entrarem no mercado de trabalho.

O público do terceiro ano é justamente o que está no maior risco de evasão, muitos precisam ajudar a família. Como garantir que ele não só volte, mas fique mais um ano na escola? É preciso algum incentivo?

Custa R$ 400 mil (o abandono escolar). Qualquer incentivo que a gente der para eles é mais do que bem-vindo. O governo está gastando R$ 600 bilhões, deixando de arrecadar R$ 200 bilhões (em 2020). Faz todo o sentido uma bolsa de estudos para todos os jovens pobres se manterem na escola. É um dos melhores incentivos que o Brasil pode fazer para o próximo ano. Mas não adianta manter ele na escola se a gente não tiver um programa de ensinar para ele, acelerar o aprendizado. A solução mais evidente são tutorias, turmas com poucos alunos. É preciso entender no detalhe o que ele sabe, o que não sabe e ajudar. Isso requer uma relação de número de alunos por professor muito baixa, é quase uma tutoria individualizada.

Isso implica contratação, horas adicionais dos professores? Como seria feito?

Vai envolver os professores trabalharem mais horas, afinal estamos nos recuperado de uma pandemia. Gastou-se mais com o auxílio emergencial, nós vamos ter que gastar agora com educação.

Tem uma pressão grande sobre governadores e prefeitos para reabrir escolas, alguns tentaram e voltaram atrás, mas há ainda grande temor. Como conciliar isso?

A única maneira de fazer isso é reduzir o número de mortes, reduzir a transmissibilidade. Enquanto o Brasil tiver o número que mortes que tem hoje, vai ser impossível voltar seriamente com as escolas. Só vai voltar para fechar de novo. Não adianta fazer a economia voltar e manter escolas fechadas. Eventualmente tem que fazer o contrário, fecha a economia e abre as escolas, que parece ser o que alguns países europeus estão fazendo. É mais importante abrir as escolas do que abrir a economia. O direito à vida está em primeiro lugar. O Brasil tinha que ter no máximo 200 mortes por semana. Aí poderia sair de uma propagação comunitária, avaliar cada morte para saber de onde veio e tomar as medidas para evitar transmissão, que é o que a Alemanha fez. Depois disso pode começar a falar em abrir as coisas.

 

Radiografia do desmonte da Ciência brasileira, por Ergon Cugler.

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Universidades públicas lideraram 2 mil iniciativas contra a covid-19, mas governo quer cortes de 32%. Fundo de desenvolvimento científico perderá 4,8 bilhões; CNPq cortará mais bolsas. Não basta exaltar ciência, é preciso lutar por investimentos

Por Ergon Cugler – Outras Palavras – 15/11/2020.

Em maio deste ano escrevi ao Nexo Jornal como o subfinanciamento e o desmonte da Ciência, Tecnologia & Inovação limitavam o enfrentamento da pandemia da COVID-19. Ainda assim, esperançamos e nos mobilizamos enquanto sociedade pela valorização da Ciência para superarmos o cenário pandêmico — chegando a afirmar que a pandemia nos ensina que sem Ciência não há futuro. Evidente que a comunidade científica ocupou a linha de frente junto aos profissionais da saúde em todo país, porém, ainda assim, os cortes de bolsas seguem ocorrendo e diversas pesquisas estão sendo interrompidas. Será que realmente estamos aprendendo algo enquanto sociedade?

Desvalorização em números

Em todo país, as Universidades Públicas brasileiras foram responsáveis por mais de 2000 iniciativas contra os efeitos da pandemia da COVID-19, resultando em milhões de vidas beneficiadas direta ou indiretamente pela vasta produção de equipamentos de proteção individual, respiradores, além de inovações tecnológicas, estudos e pesquisas que não se intimidaram em dar suporte à sociedade (mapeamento das iniciativas contra COVID-19).

Apesar de todo empenho, os cortes para 2021 no Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) chegam a 32%, se comparado a 2020. A perda maior é de R$ 4,8 bilhões para o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), além de cortes em bolsas do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) – como aponta a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SPBC).

Destacando as bolsas do CNPq como exemplo, a redução de recursos chega a 64% no próximo ano. Na prática, o orçamento de 2021 prevê garantir apenas 4 meses de bolsas de pesquisa, pois 60,55% dos recursos dependeriam de eventual e incerta aprovação de créditos suplementares pelo Congresso. Atualmente, a Capes concede bolsas a 100 mil pesquisadores e o CNPq financia 80 mil bolsas de pesquisa (Agência Senado).

Em alguns estados a realidade não é diferente. Segundo levantamento (Folha de São Paulo), mais de um terço dos estudos e pesquisas publicados em todo o país sobre a COVID-19 (38,7%) tiveram a participação das universidades públicas estaduais paulistas. Ainda assim, o Governo do Estado tentou aprovar o trecho do PL 529/2020 que previa confiscar mais de um bilhão de reais do caixa das universidades públicas estaduais paulistas, com o argumento de promover “ajuste fiscal e equilíbrio das contas públicas”.

Mesmo após mobilização da sociedade contra a tentativa de confisco, uma manobra no Orçamento de 2021 também proposta pelo Governo do Estado – via PL 627/2020 — busca reduzir em 30% o financiamento da Fapesp e da pesquisa científica estadual, cortando R$ 454,7 milhões de projetos científicos, inclusive em andamento. Tal valor, no entanto, poderia pagar um ano inteiro de 54.465 pesquisas de iniciação científica (R$ 695,70 por mês) ou 18.547 bolsas anuais de mestres e doutores pesquisadores (R$ 2.043 por mês).

Sobre as bolsas, aliás, há quem insista em uma falsa ideia de que são um “privilégio” pago com dinheiro público. Pelo contrário, um pesquisador universitário, por exemplo, recebe uma bolsa de R$ 400,00 mensais; valor que há anos não tem reajuste, que não conta com décimo terceiro, licença, seguro de vida, férias ou quaisquer direitos trabalhistas (Nexo Jornal). Além, tal pesquisador não pode ter qualquer vínculo empregatício, sendo obrigado a se dedicar exclusivamente para a pesquisa em que é bolsista. Isto é, cortes e contingenciamentos significam, muitas vezes, a suspensão de toda e qualquer fonte de renda de um pesquisador — além da interrupção da pesquisa.

Porém, se as universidades estão sempre a postos e tais pesquisadores se dedicam exclusivamente para a produção científica brasileira, por que tal empenho não se reflete na construção de um orçamento que fortaleça e valorize a Pesquisa, Ciência, Tecnologia & Inovação?

Quem tem medo da Ciência?

Ciência não se faz do dia para a noite, apenas para atender à um imediatismo de ocasião. Não é possível, também, interromper uma pesquisa por falta de financiamento e depois retomá-la no mesmo ponto. Com Ciência, Tecnologia & Inovação é necessário investimento programático, estratégico, ininterrupto, de qualidade e progressivo para que conhecimentos diversos estejam mobilizados e a postos para com a sociedade nos mais diversos cenários.

Não é possível também existir um suposto apoio de ocasião. Além, não basta apenas dizer apoiar a Ciência, é preciso defender seu financiamento. Pois, ou se valoriza na prática a Ciência como elemento central para a superação de crises e plataforma para construção de uma sociedade mais saudável, ou será apenas discurso.

No entanto, não faltaram figuras públicas que aproveitaram da onda em ascensão para fazer da Ciência um slogan ao buscar legitimar decisões em meio à crise. Tão grave quanto polarizar com a cloroquina e desmobilizar uma eventual vacinação contra COVID-19, por exemplo, é fazer uso oportunista da Ciência para surfar na narrativa em alta e, ao mesmo tempo, usar o “ajuste fiscal e equilíbrio das contas públicas” como desculpa para desmontar o financiamento público da Ciência.

Até porque, ainda que se ignore todo potencial e transformação que o acesso a conhecimentos científicos traz para a sociedade, é impossível chamar Ciência apenas de gasto e negar que investimentos em Ciência, Tecnologia & Inovação trazem ganhos futuros, impulsionando toda uma cadeia produtiva e agregando valor econômico ao país.

Porém, enquanto tentam uberizar a Ciência brasileira, é preciso estar atento e forte enquanto sociedade, pois ainda que a comunidade científica entre em campo para estar na linha de frente, tal protagonismo não garante automaticamente um orçamento justo. Além, não se trata de uma batalha única, pois a disputa por uma sociedade que use a Ciência como plataforma de promoção de justiça social deve ser travada diariamente por todos nós.

Assim, a provocação está em construir uma mobilização contínua de valorização da Ciência, da divulgação e da popularização científica em nosso cotidiano, envolvendo organizações, associações e principalmente a sociedade como um todo na discussão dos rumos e desafios do que é público e comum da pólis. Até porque, se mesmo em meio a pandemia nos deparamos com ainda mais cortes e com tamanha desinformação negacionista circulando para legitimar tal desmonte, o que restará se não nos colocarmos diariamente no papel de defesa da Ciência brasileira?

 

Em tempos sombrios, é possível educar para a polidez?, por Claudia Costin.

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Estamos ensinando as crianças a construir uma sociedade melhor do que a que lhes legamos?

Folha de São Paulo, 13/11/2020.

Volto ao tema da polidez, já que, em tempos de populismos, vem ocorrendo uma tendência de associar linguajar vulgar a autenticidade. É como se, para ser “um de nós”, o eleito deva ser grosseiro, explosivo, sem autocontrole e “falar verdades”.

As famílias e as escolas, quando educam crianças, levam muito tempo ensinando exatamente o inverso. As palavras têm sentido e podem ferir, daí a importância de utilizá-las com respeito à condição humana do outro, para selar uma convivência pacífica e construtiva. Além disso, ensinar autorregulação é uma das chaves de um processo pedagógico bem-sucedido.

Os alunos reproduzem aquilo que observam no comportamento dos adultos que lhes são próximos. Se pais ou autoridades não respeitam leis de trânsito, jogam lixo na rua e ofendem os que lhes são, por algum critério, desagradáveis, é isso que adotarão como conduta. E cuidado, o agredido poderá ser justamente aquele de quem emulou o comportamento.

Da mesma maneira, quando governantes divulgam teorias conspiratórias ou as mencionam em discursos chamados à agressão, como bem analisou Levitsky em seu “Como morrem as democracias”, autorizam exércitos de seguidores a fecharem os olhos para crimes governamentais e a, no limite, espancarem os inimigos citados em discursos.

Quem estudou história sabe que a origem do triste episódio da Noite dos Cristais em que judeus tiveram lojas vandalizadas e foram espancados e mortos por civis, foi exatamente um discurso autorizativo.
A implementação de boas políticas públicas, numa federação, demanda competência, capacidade de articulação e negociação, conhecimento técnico e sentido de propósito. Isso se torna ainda mais importante em crises, quando coragem, e não virilidade, torna-se componente adicional para lidar com os desafios vividos.

O historiador John Lukacs, ao se referir ao período entre guerras, em seu “O Duelo”, relata que a juventude inglesa, à época, admirava Hitler, associando-o a uma maior “virilidade” que a demonstrada pela democracia do Reino Unido. Vários queriam que o país se alinhasse à Alemanha no conflito iminente.

A virilidade inconsequente, percebida como qualidade, pode nos levar rapidamente para a direção errada.

E a assertiva de que teríamos “que evitar de ser um país de maricas” (sic), além de subentender que não devemos levar a pandemia a sério, traz uma ofensa implícita para com uma parcela da população brasileira que merece nosso respeito.

As crianças, na sala, observam. Afinal, estamos lhes ensinando a viver em sociedade e a construir uma sociedade melhor do que a que lhes legamos?

Claudia Costin

Diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais, da FGV, e ex-diretora de educação do Banco Mundial.

 

O fiasco da privatização, por Luiz Gonzaga Belluzzo.

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Carta Capital, 14/11/2020.

O colapso no fornecimento de energia no Amapá deixou expostas as inconsequências e inconveniências da privatização de empresas que produzem insumos universais. São universais aqueles ingredientes sem os quais uma economia moderna não pode funcionar. A energia elétrica é um desses insumos universais. Seria de bom alvitre explicar essa banalidade para a turma do Paulo Guedes e seus sequazes da Faria Lima.

Para não vender gato por lebre, cumpre explicar que a febre de privatizações avassalou o planeta desde o início dos anos 80 do século passado. Nesse momento, tornaram-se dominantes as palavras de ordem que afirmavam a superioridade e maior eficiência econômica dos empreendimentos privados vis-à-vis com as empresas públicas.

Na verdade, informa o economista Michel Aglietta em seu livro Capitalisme le Temps de Rupture, as operações de fusões e aquisições estão na origem de um intenso processo de concentração de capital que visa aumentar a rentabilidade da empresa, aderindo a uma posição monopolista ou oligopolista, dependendo das condições de concorrência nos diversos mercados. A estratégia de “crescimento externo” é provável que cumpra diferentes metas para a empresa, como acesso a novos mercados, particularmente no plano internacional. Na linguagem de Aglietta, o “crescimento externo” – fusões e aquisições – contrapõe-se ao “crescimento interno”, aquele sustentado pelo aumento da capacidade produtiva mediante a compra de máquinas, equipamentos e contratação de mão de obra.

Nas décadas posteriores à ruptura dos anos 1980, o Ocidente assistiu a uma redução progressivamente significativa do investimento em nova capacidade, enquanto o Dragão do Oriente subia sua taxa de investimento produtivo para 50% do PIB (esse exagero foi corrigido posteriormente e a taxa de investimento da China recuou para 41,5%).

As transformações nas estratégias das empresas explicam a sanha das privatizações de bens públicos, sobretudo os chamados monopólios naturais, como é o caso de energia, saneamento, logística. Isso para não falar dos serviços públicos, tais como saúde, educação, transporte urbano. A pandemia, diga-se, escancarou a insuficiência da oferta de bens e serviços públicos nas sociedades capitalistas.

No caso das privatizações, a financeirização rentista exercita seus propósitos ao se beneficiar de um ativo existente e gerador de renda monopolista, criado com dinheiro público. A onda de privatizações obedece à lógica patrimonialista e rentista do moderno capital financeiro, em seu furor de aquisições de ativos já existentes. Nada tem a ver com a qualidade dos serviços prestados, mesmo porque os exemplos são péssimos. Em geral, no mundo, a qualidade dos serviços prestados pelas empresas privatizadas declinou, acompanhando o aumento de tarifas e a deterioração dos trabalhos de manutenção.

A decepção popular com as experiências de privatização contamina gregos e troianos, países ditos adiantados e outros nem tanto. A experiência privatista revela suas entranhas: os capitais desejam ardentemente adquirir empresas produtoras de serviços públicos, primeiro para realizar formidáveis ganhos de capital no momento das aquisições, depois para abocanhar a renda monopolista.

Já relatei nesta coluna que, na Era Thatcher, a Inglaterra privatizou o abastecimento de água e os transportes interurbanos. Num e noutro caso as tarifas subiram muito rapidamente. Em algumas cidades inglesas, as tarifas de água tornaram-se abusivas. O serviço? Uma droga. Os lucros naturalmente aumentaram de forma explosiva.

Os privatistas, com a maior cara de pau, usam a evolução da rentabilidade para mostrar a maior eficiência da empresa privada. Eficiência privada, ineficiência social. No caso dos ônibus interurbanos, além da brutal elevação de tarifas, os concessionários privados simplesmente fecharam as linhas menos rentáveis, deixando muitos ingleses sem transporte.

O economista e jornalista Will Hutton, em seu livro A Situação em Que nos Encontramos, descreve com requintes de crueldade a condição do consumidor inglês de serviços públicos submetido aos caprichos e arbitrariedades dos controladores e administradores dos monopólios naturais, como transporte público e abastecimento de água. Só não reclamam, é claro, os possuidores de ações dessas empresas, que celebram os preços de seus ativos subindo sem descanso. E a farra do bode.

Imaginam os crédulos do mercado que a vida poderia estar melhor se os gordos benefícios fossem utilizados para sustentar um programa de investimentos destinados a garantir a melhora dos serviços. Nada disso. Os resultados vão forrar os bolsos dos acionistas, sob a forma de recompra de ações e distribuição de dividendos. Enquanto isso, os consumidores se lascam.

Luiz Gonzaga Belluzzo é economista e professor da Universidade de Campinas (SP).

RH medieval, por Rodrigo Zeidan

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No Brasil e na China, salário é gasto, não investimento, portanto deve ser minimizado

Folha de São Paulo, 14/11/2020.

“Por favor, não conte para a minha chefe que estive aqui”, foi o que me disse uma funcionária da NYU Shanghai que veio me pedir conselhos sobre a carreira.

Assim como em muitas empresas no Brasil, há uma corrida pela mediocridade em organizações privadas na China. Essa corrida começa com a ideia de que o funcionário deve se dedicar à empresa, sem buscar receber ofertas dos concorrentes.

Pensar em mudar de empresas é visto como traição. Quando alguém recebe uma oferta, os gestores ficam indignados, mas deixam a pessoa ir porque acreditam que sempre podem contratar alguém por um salário mais baixo.

Está assim montada a estrutura da corrida pela mediocridade. E quem patrocina isso? A diretoria de recursos humanos. Afinal, no modelo brasileiro (e chinês), salário é gasto, não investimento, portanto deve ser minimizado.

Não há real medição de desempenho e não se dá feedback honesto aos funcionários. Os empregados não aceitam receber críticas. Quando alguém é criticado, em vez de ouvir, começa a se defender. Contrata-se um funcionário e espera-se que ele vá fazer o mesmo trabalho por anos a fio, sem plano de carreira.

Ao longo do tempo, os que têm valor no mercado acabam saindo por ofertas melhores, e só ficam os que não têm opção. Cria-se uma cultura de medo, na qual uma funcionária teme conversar sobre seu futuro com um colega.

Entre os novos contratados, os que se destacam são vistos com ressentimento, pois já se prevê que o mercado vai roubá-los.

Mas um modelo diferente é possível. O principal requisito é um processo transparente de medição de produtividade, mas com desenho que não transforme tudo em números sem contexto. Afinal, há várias razões para um desempenho ruim de um funcionário em um mês, ou semestre, e tais flutuações já são esperadas como algo normal; afinal, ninguém é uma máquina.

Na minha universidade, o mais difícil tem sido quebrar a cultura da aversão a crítica, construtiva ou não.

Para profissionais de várias outras nacionalidades, críticas construtivas são não somente aceitáveis como bem-vindas. Mas na China, assim como no Brasil, não.

Vários processos de recursos humanos no Brasil parecem saídos da Idade Média, mais se assemelhando com instrumentos de tortura que práticas de geração de valor.

Lembro-me de quando pedi uma licença sem vencimentos para poder passar um tempo como professor visitante no exterior. A primeira pergunta do diretor foi: quanto você vai ganhar lá fora? O medo era que outros professores fossem fazer algo parecido, “inflando” o mercado.

No fim das contas, a cultura de recursos humanos no Brasil é de contencioso, de empregados contra empregadores, e vice-versa. Um modelo de ganha-ganha é possível. Essa foi uma lição que aprendi com o bolso.

No meu primeiro emprego no exterior, descobri que um amigo ganhava £ 2.000 a mais por ano. A razão? Assim como eu, ele recebeu a oferta de emprego horas depois da entrevista. Mas usou essa celeridade como poder de barganha. Disse que aceitaria a oferta por £ 3.000 a mais de salário. Recebeu contraproposta de £ 2.000. Aceitou.

Eu? Brasileiro “pede” emprego e, assim, pensava que só tinha como opções dizer sim ou não à oferta. Aprendi. E não trabalho para quem tenta me torturar, ou só quer sugar meu valor, sem dar muito em troca.
Há empresas com boas práticas no Brasil. Mas não se chega ao século 21 sem esforço.​

Rodrigo Zeidan

Professor da New York University Shanghai (China) e da Fundação Dom Cabral. É doutor em economia pela UFRJ.

 

 

Desindustrialização e degradação das classes médias

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O filme “A grande virada” destaca o incremento do desemprego em setores que poderíamos ser descritos como os altos executivos, os diretores e os grandes funcionários das empresas multinacionais ou dos transnacionais. Neste filme, o ator vivido por Ben Affleck, um dos diretores da companhia é dispensado depois de muitos anos dedicado a conglomerado, iniciando um verdadeiro calvário de recolocação no mercado de trabalho, convivendo com a indústria da recolocação dos executivos, as degradaçõessociais, a perda de condição social e muitas humilhações e explorações,mostrando as grandes mudanças no mercado trabalho em uma sociedade marcado por grandes transformações, aumentando os conflitos pessoais, familiares  e desesperanças generalizadas.

Ao assistir este filme, percebi que vivemos numa sociedade cujas mudanças estão gerando grandes desafios individuais e coletivos, ao analisar a sociedade norte-americana, que sempre foi vista como um espaço de valorização de todos os cidadãos que se dedicassem solidamente, vivenciando inúmeras oportunidades, marcadas pela liberdade e as grandes perspectivas de ascensão social, melhorando as condições sociais e aumentando as possibilidades de enriquecimento pessoal e entesouramento coletivo, garantindo ao país alcançar o pódio do desenvolvimento econômico e incremento na democracia, um país invejado e com forte propensão ao sucesso.

As grandes transformações na sociedade contemporânea estão deixando rastros de degradação nas classes sociais, onde destacamos as alterações nas classes médias, uma classe muito invejada por todos os conjuntos da sociedade, marcados por espaços clássicos de empreendedorismo, marcados pela ascensão social e pelo crescimento de seu poder de compra, angariando novos espaços de consumo e comportamentos sociais, transformando-a para a sociedade um verdadeiro farol de crescimento político, econômico e ascensão cultural. Nesta classe, encontramos os filhos dos operários e dos médios empresários no período posterior na segunda guerra mundial, cidadãos que tiveram a oportunidade de estudar, de se capacitar e se formar em universidades de ponta, muitos deles são frutos das universidades públicas e privadas de destaque, sendo responsáveis por grandes avanços da ciência, do conhecimento e das bases das tecnologias em variadas áreas e setores, garantindo um avanço científico para a sociedade contemporânea e abrindo novas perspectivas para os rumos da sociedade mundial.

A classe média está no centro das grandes transformações contemporâneas, são os grupos mais afetados pelo incremento das mudanças no mundo do trabalho, são trabalhadores que sentem os impactos das novas tecnologias, dos novos modelos de produtivos e sentem os avanços tributários dos governos nacionais, que veem nestes grupos como os mais frágeis na defesade seus interesses, com isso, perdem seus recursos e sentem o crescimento dos tributos, empobrecendo esta classe central no desenvolvimento das economias. O enfraquecimento dos setores industriais nos países ocidentais como agentes geradores de empregos, impacta fortemente sobre a classe média, reduzindo a demanda por empregos e incrementando o desemprego, o subemprego e a desalento.

Nos últimos séculos, segundo os especialistas, o setor terciário seria o grande gerador de emprego, absorvendo uma grande leva de trabalhadores expulsos dos setores agrícolas e industriais, se refugiando nos setores comerciais e de serviços. Nesta época, as visões otimistas acreditavam que os trabalhadores seriam empregados no terciário, mas percebendo que este último está passando por novas tecnologias, novos modelos de gestão e, com isso, reduzindo a absorção de trabalhadores, criando um futuro marcado pela redução de empregos formais e incremento dos setores informais, com cidadãos desprotegidos e sem benefícios sociais, incrementando os desequilíbrios sociais e aumentando as sensações de mal-estar e desesperanças de todos os grupos sociais.

No filme “A grande Virada”mostra, num dos momentos do filme, os personagens relembrando os momentos de crescimento da instituição, o incremento dos empregos e a melhoria das condições sociais dos trabalhadores e de todos os cidadãos do seu entorno, gerando melhora das condições de vida das cidades, aumento da arrecadação de impostos das cidades, atraindo novos investidores, novos conglomerados, empreendimentos imobiliários e estimulando o desenvolvimento das regiões.

Este ambiente passou por grandes transformações, os grandes setores industriais contribuíram para estimular os setores de classe média, com a desindustrialização dos países ocidentais, estes grupos sociais sentem os impactos da desindustrialização, exigindo novos modelos produtivos e novos instrumentos de absorção de levas de trabalhadores capacitados, levando-os buscar novas formas de remuneração, sem empregos estes cidadãos se entregam aos mercados de aplicativos, buscando trabalho para sobreviver, sem proteções, sem seguranças, sem amparos, sem perspectivas e sem remunerações condignas, estamos retornando, quando pensamos no mundo dos trabalhos, a momentos mais sombrios da sociedade industrial nos séculos XVII e XVIII, onde as explorações eram a tônica da sociedade, onde os trabalhadores estavam condenados a jornadas maiores de 16 a 18 horas por dia, uma verdadeira escravidão branca e degradante.

Christopher Guilluy, geógrafo francês, em seu livro “O fim da classe média”,publicado em 2019, faz uma reflexão sobre a desagregação das classes sociais, destacando o papel que sempre desempenhada por esta crise social que, na atualmente, perdeu a capacidade de se organizar, de auxiliar os grupos mais capacitados e passou a pensar e agir de acordo com seus interesses imediatos, acabando com a solidariedade de classe, se afastando das bases da sociedade e se fechando em seu mundinho interior, mais egoísta, angustiado e imediatista.

O modelo de produção que reina na sociedade internacional, centrados em estruturas flexíveis e dinâmicas, marcadas pelo crescimento de máquinas e de equipamentos, marcados pelas novas tecnologias da Indústria 4.0, centradas na biotecnologia, na internet nas coisas, na robótica, das estruturas de telecomunicação 5G, nas estruturas em nuvens, na empresa de streaming, das mídias sociais, exigem novas organizações produtivas e novos modelos de recrutamento e seleção de trabalhadores, mais dinâmicos, comunicativos, proativos e equilibrados emocionais e espirituais, exigências distantes da grande parte das forças de trabalhos, contribuindo para o incremento do desemprego e do subemprego, o desalento, da ansiedade, da depressão e, em muitos casos, ao suicídio.

Os grupos das classes médias sentem todas estas alterações dos modelos de trabalho, nos servidores percebendo a redução da empregabilidade, estes setores percebem a diminuição das contratações, sobrecarregando os trabalhadores que continuam empregados, com isso, percebemos que as cargas de trabalho crescem e as exigências aumentam, gerando síndromes variadas, desesperanças e preocupações crescentes, reformas crescem de forma aceleradamente, a Previdenciária, a Administrativa… dentre outras, levando estes funcionários a cargas de estresse, de desagregação social e emocional.

Muitos grupos sociais da classe média se apressam para conseguir aposentadoria, sonham com o descanso e tempos maiores para o lazer e para o descanso, infelizmente percebem que seus sonhos, em muitas vezes, são obrigados a buscar novos empregos como forma de manter seu padrão de vida, novas rotinas, novas ocupações e novas levas de estresses, incrementando os já crescentes desequilíbrios emocionais e espirituais.

Nestes momentos de pandemia, muitos setores das classes médias percebem uma redução considerável em seus rendimentos, muitos salários estão sendo diminuídos, muitas empresas estão falindo, muitos empresários que sempre sonharam em serem donos de seus negócios, acordam endividados, sem crédito e sem perspectivas, os sonhos para muitos empreendedoresacabaram se tornando um verdadeiro pesadelo. Neste ambiente de instabilidades e incertezas, inúmeras são obrigadas a retirar seus filhos das escolas privadas, muitos estudantes universitários são obrigados a abandonar os sonhos de um diploma superior, muitas famílias são obrigados a abandonar os planos de saúde, neste caso, mais de 2 milhões de trabalhadores tiveram que deixar seus planos, recorrendo aos serviços do Sistema Único de Saúde (SUS), que neste momento de pandemia, mostrou para a sociedade a importância deste modelo universal criado pela Constituição de 1988, que é responsável pela cobertura de mais de 200 milhões de cidadãos, o único país do mundo, com mais de cem milhões de habitantes, que ousou garantir um sistema de saúde universal para todos os concidadãos, um serviço público que deveria ser visto por todos os brasileiros como um exemplo para a sociedade.

A classe média tem grande importância para a sociedade brasileira, desde os anos 90, percebemos que este grupo social perde espaço na sociedade, deste então estão sendo muito tributados, seus rendimentos são retirados diretamente dos respectivos holerites, seus recursos monetários estão degradando e levando-a a crises generalizadas, endividamentos crescentes, medos angustiantes e desesperanças sem fim. Percebemos que este grupo social precisa de um socorro imediato, sem este auxílio o futuro da classe média é a transformação em grupos mais fragilizados e empobrecidos, degradados e sem perspectivas futuros, corroendo as bases da sociedade e abrindo espaço para a degradação da sociedade, com aumento da pobreza, da indigência e a desesperança, abrindo espaço para grupos políticos populistas, inescrupulosos e aproveitadores.

Nos últimos anos, o sonho de um país de classes médias está ficando cada vez mais distante, estamos num momento inédito da história do país, precisamos repensar as bases do nosso desenvolvimento e as perspectivas para os anos vindouros, estamos próximo do caos generalizado e as expectativas para os próximos anos deve ser definidos na atualidade, reconstruir os sonhos do crescimento da classe média é o mesmo repensar os sonhos da cultura brasileira, da civilização nacional, retornando de teóricos que ousaram a pensar o nosso país, como Celso Furtado, Darcy Ribeiro, Florestan Fernandes, Caio Prado Júnior, dentre outros, intelectuais que pensaram no Brasil como uma potência tropical, soberano e autônomo, mesmo num mundo marcado por degradação ambiental e subserviências política e cultural.

 

 

 

 

 

 

 

 

Sem renda, classe média corta plano de saúde e escola.

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QUATRO PERGUNTAS PARA…. Renato Mairelles, presidente do Instituto Locomotiva:

O presidente do Instituto Locomotiva faz uma reflexão sobre os impactos da pandemia sobre o consumo das classes sociais, enfatizando a classe média, classe que sentiu fortemente as consequências das mudanças geradas na contemporaneidade.

1. O que aconteceu com a classe média na pandemia?

A classe média não recebeu o auxílio emergencial, como a baixa renda, e não tinha poupança, como a alta renda. Assim, ela viu uma pressão grande sobre seu orçamento. E, como muitos integrantes da classe média trabalham em profissões em que é possível fazer home office, muitos dos gastos da casa também subiram, o que explica haver aumento das contas em atraso.

2. Parte da classe média recebeu o auxílio dado pelo governo quando houve redução de jornada e salário. Mas o valor não compensou toda a perda salarial ocorrida?

Se a pessoa está em um emprego formal, sim, ela recebeu. Mas e o advogado? A dentista? O salão de classe B que ficou fechado? O dono de bar? O pequeno empresário sofreu muito. Nós fizemos uma pesquisa sobre financiamento e descobrimos que somente 6% dos empresários conseguiram algum tipo de ajuda, de refinanciamento.

3. Qual a consequência da perda de renda da classe média para as demais?

A classe média teve menos proteção que a baixa renda, mas qual é a consequência dessa vulnerabilidade? A pessoa manda embora a empregada doméstica. O resultado disso na baixa renda é a perda do emprego. Em um caso, estamos falando de uma situação em que a pessoa terá de comprar menos roupas. Em outro caso, falamos de alguém que vai passar fome. A classe média sofreu um impacto direto no seu consumo e, como é o maior mercado consumidor do Brasil, acabou gerando efeitos nas outras classes, em especial na baixa.

4. A classe média foi uma grande base de apoio para a eleição do presidente Jair Bolsonaro em 2018. Ao avaliar o que está ocorrendo com ela neste momento, o senhor acredita que o apoio vai mudar?

Temos visto um movimento de mudança gravitacional da base de apoio de Bolsonaro. Do mesmo jeito que o programa Bolsa Família trouxe um conjunto de votos para o presidente Lula no passado, o auxílio emergencial abaixou a renda média do bolsonarista. A classe média tradicional foi a que, no início da pandemia, mais atacou as ações do governo, porque a covid-19 chegou primeiro até ela. O que vimos foi um aumento do descontentamento da classe média em relação às medidas do governo. Esta classe média é mais crítica, por exemplo, quando surge a polêmica em relação às vacinas. Essa mesma classe média tem uma dificuldade enorme de entender o auxílio emergencial para os mais pobres, porque ainda tem uma visão estereotipada das classes baixas.

 

Vilipêndio dos direitos trabalhistas causada pela uberização é culpa dos algoritmos? por Ricardo Antunes

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Entregador arca com custos, mas não define preços e pode ser bloqueado sumariamente; por certo, não é autônomo

Folha de São Paulo, 07/11/2020.

O que explica, em pleno século 21, o (aparente) paradoxo que estamos vivenciando?

De um lado temos explosão dos algoritmos, inteligência artificial, big data, 5G, internet das coisas, indústria 4.0 etc.

De outro, encontramos uma massa crescente de trabalhadores e trabalhadoras (dada a desigual divisão sociossexual do trabalho) laborando 12, 14 ou 16 horas por dia, durante 6 ou 7 dias da semana, sem descanso, sem férias, com salários rebaixados e mesmo degradantes, sem seguridade social e previdenciária.

Para compreender essa realidade, é preciso retornar à década de 1970, quando eclodiu uma crise estrutural que levou à reestruturação global de todo sistema produtivo.

O incremento técno-informacional-digital encontrou, então, um fértil espaço para sua expansão, visto que era necessário incrementar a produtividade. E isso ocorreu enquanto o desemprego se ampliava, gerando uma força sobrante de trabalho disponível para realizar qualquer trabalho, sob quaisquer condições.

Com o aguçamento da crise, a partir de 2008/9, as grandes corporações globais, sob o comando financeiro, intensificaram suas ações para “flexibilizar” o trabalho, eufemismo bacana para corroer, devastar e precarizar ainda mais o enorme contingente ávido por emprego.

E, se esse movimento vem ocorrendo no Norte (Inglaterra e EUA são emblemáticos), sua intensidade é muito mais intensa no Sul, onde a classe trabalhadora vem comendo o pão que o diabo amassou.

Da China à Índia, passando por México, Colômbia e Brasil, os níveis de exploração do trabalho se exacerbam ainda mais. E, assim, o desmonte da legislação protetora do trabalho se tornou um imperativo corporativo (com desculpas pela horrorosa rima).

Foi nesse contexto que as plataformas digitais deslancharam. Lépidas no trato com o mundo digital, dotadas de (insustentável) leveza, desbancaram as corporações tradicionais e hoje se encontram no topo do tabuleiro do capital.

Conseguiram essa proeza combinando alta tecnologia digital e absorção ampliada de força de trabalho sobrante.

Mas era necessário ainda, nessa alquimia empresarial, que o assalariamento assumisse uma aparência inversa, de modo a “evitar” a legislação social do trabalho.

Muitos milhões foram gastos com escritórios de advocacia corporativa, para encontrar a rota do sucesso. Era preciso driblar os direitos do trabalho, a qualquer preço.

E mais: o novo léxico corporativo precisava se revitalizar, para que o cenário se assemelhasse a algo distinto: além de colaborador, parceiro, resiliência, sinergia etc., as plataformas deram novo impulso ao empreendedorismo, personagem que sonha com a autonomia, mas se defronta cotidianamente, como se viu nas reivindicações do breque dos apps, com adoecimentos sem seguro-saúde e sem previdência, baixos salários, ausência de direitos, traços que se acentuaram ainda mais durante a pandemia.

E foi assim que proliferou o que já se convencionou chamar de trabalho uberizado.

Transfigurados e convertidos em “empreendedores”, os entregadores ainda arcam com os custos dos instrumentos de trabalho (carros, motos, bicicletas, mochilas, celulares).

Sua condição “autônoma”, então, é um tanto curiosa: quem define a admissão? Quem determina atividade, preço e tempo das entregas? Quem pressiona, através de incentivos, para a ampliação do tempo de trabalho? Quem pode bloquear e dispensar sumariamente, sem nenhuma explicação? Por certo, não é o “autônomo”.

Assim, essa condição se desvanece, aflorando a subordinação e o assalariamento. E exigir direitos é princípio basilar da dignidade mínima do trabalho.

As plataformas dirão: mas são os entregadores que as procuram. É verdade, mas seria bom acrescentar que essa é a única alternativa hoje contra o desemprego. Aqui reside a base do regozijo das plataformas. Será, então, que a culpa de todo esse vilipêndio é dos algoritmos?

Ricardo Antunes

Professor titular de sociologia do trabalho no IFCH/Unicamp. Foi visiting professor na Universidade Ca’Foscari (Veneza/Itália), visiting scholar na Universidade de Coimbra (Portugal) e visiting research na Universidade de Sussex (Inglaterra). É autor de livros sobre temas como uberização, trabalho digital e indústria 4.0

 

Economia Brasileira: Desemprego, Dívida Pública e Inflação

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A economia brasileira está apresentando indicadores macroeconômicos preocupantes, estamos num momento de grande apreensão, medos e desesperanças. Em plena pandemia, que levou mais de 160 mil óbitos, as perspectivas sociais são assombrosas, a crise sanitária não ceda, os indicadores econômicos estão cada vez mais negativos, a dívida pública cresce acelerada, o desemprego aumenta de forma insustentável e a inflação, que durante décadas foi presente na vida de cada brasileiro, se mostra claras de retorno, piorando os indicadores econômico e gerando incertezas e instabilidades.

Vivemos num momento de pandemia, mais de 160 mil brasileiros foram enterrados, gerando muitas tristezas e revoltas generalizadas. Neste ambiente, estamos buscando novos espaços de esperança, forças internas para superarmos neste momento de dores, cada indivíduo tenta se fortalecer intimamente, se fortalecer para superar uma pandemia que nasce em outras regiões e se dissemina para todos os rincões do mundo, levando destruição, desestruturação e força os indivíduos a enterrar medos e desesperanças, deixando rastros de solidariedade como forma de superar estas máculas mais íntimas e pessoais.

A economia é fortemente atingida em todos os locais, famílias passam por momentos de desestruturações, violências crescem de forma acelerada, negócios são fechados, falências crescem de forma imediata, relacionamentos passam por instabilidades e os indivíduos se entregam a depressões, ansiedades, divórcios e suicídios, alterando os equilíbrios emocionais e psicológicos, deixando um forte vazio espiritual, levando os cidadãos a buscarem novos sentidos e valores para a sobrevivência humana, vivemos um momento de grandes inquietações, onde a solidariedade perde espaços para uma sociedade que se compraz com a concorrência e pela competição, valores de um mercado que se assenta e se concentra na destruição e no egoísmo material.

Neste ambiente, percebemos uma degradação dos indicadores macroeconômicos, o desemprego passou dos 14,4% da população, números assustadores que podem criar, na sociedade nacional, um caldo de violência generalizada, onde os indivíduos perdem as esperanças e podem ser acossados por sentimentos de revolta, ódio e ressentimentos. O desemprego é um dos mais degradantes flagelos da sociedade contemporânea, sem emprego os indivíduos perdem a dignidade, perdem as esperanças com relação ao porvir e, muitos se entregam para a depressão, incrementando os transtornos, os desequilíbrios emocionais e o suicídio, indicadores que crescem de forma acelerada e preocupam as autoridades nacionais e internacionais.

O desemprego vem apresentando indicadores muitos negativos neste ano, a pandemia impactou fortemente para a economia brasileira, levando a números recordes e preocupantes, segundo os dados do Instituto Brasileira de Geografia e Estatístico (IBGE), os números chegaram a mais de 14% dos trabalhadores, o que significa mais de 13,8 milhões de pessoas no desemprego, gerando problemas sociais variados para a sociedade, obrigando o governo a adoção de políticas mais ativas para combater este flagelo. Os indicadores não estão maiores ou mais assustadores, porque o governo adotou uma política de socorro para os grupos mais fragilizados, costurando uma política ativa de intervenção estatal, chamado de auxílio emergencial. Este auxílio emergencial acolheu mais de 60 milhões de brasileiros em situação de vulnerabilidade, algo em torno de 34% para população nacional, esse socorro custou aos cofres públicos mais de 55 bilhões de reais ao mês, um valor que teve um impacto fiscal para o orçamento na casa dos 350 bilhões de reais, que exigiu uma forte política de endividamento público que aumentou a dívida para algo mais de 90% do produto interno bruto (PIB). Estes valores estão gerando graves constrangimentos para a economia brasileira, levando vários grupos a questionar os valores e as perspectivas do perfil do endividamento, os valores e as condições de pagamento, com isso, os credores utilizam vários instrumentos de pressão do governo, tais como os juros pagos para o financiamento da dívida.

Neste ambiente, percebemos a ausência de políticas públicas direcionadas pelo emprego de jovens, cujos números de desemprego são assombrosos, que levam jovens e adolescentes para situação degradação moral, muitos se entregam em negócios escusos, se alistando em exércitos do crime, uns buscam na prostituição, nas entorpecentes, no tráfico, com estes grupos sociais perdidos neste ambiente de degradação, poucos podemos esperar desta sociedade que se degradam a olhos vistos, angustiados pelo cotidiano, nas amarguras da desesperanças e dos suicídios.

Nestas pressões dos credores externos, muitos investidores vendem seus papéis e buscam proteção da moeda norte-americana, levando seus recursos para o mercado dos Estados Unidos, gerando uma saída de dólares que contribuem para a desvalorização da moeda, impactando sobre a economia brasileira, prejudicando os importadores, elevando seus custos de importação e gerando fortes pressões dos preços nacionais, neste movimento, percebemos um incremento da inflação. O aumento dos preços internos prejudica muitos setores do sistema econômico, gerando instabilidades e insegurança dos agentes produtivos, reduzindo os investimentos, diminuindo as matérias-primas e pressionando para os preços dos consumidores nacionais. Outro impacto deste movimento é a busca do mercado externo por inúmeros produtores nacionais, que percebem os preços mais rentáveis no mercado internacional e buscam as vendas externas, melhorando suas receitas em moedas estrangeiras e reduzem as vendas internas, neste movimento os preços internos crescem, os rendimentos aumentam e garantem maiores lucros dos empresários nacionais, mas ao mesmo tempo, gerando perdas consideráveis para os consumidores nacionais.

Percebemos, neste momento, que os indicadores macroeconômicos estão com perspectivas bastantes negativas, desemprego crescente, endividamento interno caminhando para números assustadores, inflação em ascensão, perdas generalizadas de renda, reduzindo salários e investidores em queda, números econômicos sombrios. Neste momento, faz-se necessário, uma atuação mais sóbria e organizada pelos agentes governamentais, onde todos os entes do Estado Nacional precisamos estruturar conjuntamente, cada um dos entes federativos precisamos assumir suas responsabilidades, trabalhando para minorar os desequilíbrios econômicos da sociedade e contribuindo para abrir novas perspectivas para a coletividade. Neste instante, o que conseguimos visualizar é algo completamente diferente da união e da solidariedade, percebemos na sociedade um clima de conflitos constantes, brigas de governadores, discursos degradantes, grosseiros, confrontos políticos, interesses mesquinhos, piadas degradantes, desrespeitos e a ausência de solidariedade para todos os mais de 160 mil de brasileiros que tombaram vitimados pela pandemia que impactam sobre a sociedade nacional.

Para superarmos uma crise desta magnitude, faz-se necessário, a construção de um grande Projeto Nacional, para isso, percebemos a incapacidade dos grupos políticos e dos partidos políticos a organizar e costurar instrumentos políticos, centrado em um grande planejamento para a sociedade nacional, onde devem organizar em todos os agentes sociais, políticos e econômicos, juntando todos os setores da sociedade, as minorias, os sindicatos, as organizações não governamentais, as federações, as confederações, as universidades, os intelectuais, os artistas e todos os agentes que representam a sociedade nacionais. Ao pensarmos em um amplo projeto nacional, percebemos que, no atual governo, nossos governantes estão aquém dos desafios que a sociedade nacional está exigindo, neste ambiente, percebemos que a sociedade está batendo cabeça rapidamente, os gestores estão brigando sobre assuntos secundários e desnecessários, com isso, estamos levando o país a uma degradação econômica, social e política mais acelerada, cujos resultados negativos e degradantes estão aparecendo todos os dias.

Vivemos numa sociedade marcada por desemprego acelerado, com o final do auxílio emergencial que deve encerrar em dezembro, os indicadores do mercado de trabalho tendem a piorar no início do próximo ano, piorando os dados macroeconômicos e as condições de vida de uma parcela da comunidade. Neste ambiente, percebemos que o atual governo não possui nenhum plano econômico viável, muito menos um plano B, com isso, consolidamos uma inação governamental, degradando as condições daqueles que ainda permanecem no mercado de trabalho, defendendo privatizações de todos as empresas da economia, prometendo um futuro melhor sem mesmo saber compreender as condições da conjuntura da economia brasileira, vendendo ilusões, aumentando os lucros de poucos barões financeiros, enganando os incautos e criando perspectivas positivas, sem se atentar das duras realidades dos fatos.

Nos últimos meses, percebemos a inexistência de um projeto econômico para a economia brasileira, percebemos um discurso baseado na austeridade e redução dos gastos públicos, infelizmente muitas pessoas abraçam este discurso sem entender as consequências destas teses, continuando suas falas e seus pensamentos como se fossem verdadeiros papagaios de repetição. A austeridade e a redução dos gastos públicos, defendidas pelos barões econômicos, servem para reduzir os investimentos da população mais carentes, arrochando os recursos públicos em prol dos grandes grupos econômicos e financeiros, estes sim, os grandes detentores dos capitais nacionais, vivemos em uma verdadeira guerra contra os mais pobres, reduzindo as assistências sociais, diminuindo os investimentos em educação e em saúde. Com esta redução, os verdadeiros beneficiados dos desmontes dos setores públicos são os dos grandes grupos econômicos que ganham bilhões com educação e saúde, com a educação os investimentos crescem de forma acelerada, aprisionando o Ministério da Educação com sua omissão e incompetência, perpetuando um ensino de péssima qualidade, formando profissionais sem preparo e sem perspectivas para a compreender as realidades e os desafios da contemporaneidade, neste ambiente rumamos para a total degradação social, econômica e política.

Neste ambiente, marcado pelas brigas políticas desnecessárias e crescentes, onde os governantes gastam energias em confrontos sobre o futuro de uma vacinação que ainda não existe, precisamos concentrar esforços em confrontos mais importantes, como o desemprego que crescem de forma acelerada, onde o fim do auxílio emergencial, marcado para o final do ano, pode aumentar estes números de forma crescentes, deixando grande parte da sociedade sem recursos para a sobrevivência mais dignas. Vivemos um momento de grandes instabilidades e incertezas, neste instante precisamos de gestores, de porte de verdadeiros líderes, capacitados para empreitada, para combater este ambiente marcado pelo vírus, pelas instabilidades e pelas incertezas, precisamos de líderes verdadeiros e pessoas dotados de solidariedades, sensibilidades e capacidades políticas, de gestão da economia, que falem menos e trabalhem de forma mais consistentes, sem estes líderes, estamos condenados a perpetuação de um certo país do futuro.

 

 

Capitalismo e democracia saíram dos trilhos, diz Paul Collier.

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Economista avalia que crise levou à criação de ‘identidades opostas’ sociais e econômicas

Vinícius Torres Freire – FSP, 31/10/2020

O capitalismo é o único sistema conhecido capaz de tirar massas de pessoas da pobreza. A democracia é o único sistema político sustentável e compatível com o capitalismo. Mas ambos saíram dos trilhos nos últimos 30 ou 40 anos, diz Paul Collier, economista do desenvolvimento e professor da escola de governo da Universidade Oxford (Reino Unido).

Em conferência do projeto “Fronteiras do Pensamento”, nesta quarta-feira (28), ele afirmou que uma das manifestações dessa crise é a formação de “identidades opostas”, fissuras (“rifts”) sociais e econômicas.

Por exemplo, opõem-se metrópoles bem-sucedidas e comunidades menores do interior; trabalhadores com alto nível de instrução e valorizados e aqueles menos instruídos e que vivem de trabalho manual. As comunidades abandonadas estão em revolta. Essas divisões, afirma Collier, seriam um motivo importante da vitória do brexit no Reino Unido e de Donald Trump nos Estados Unidos.

Capitalismo e democracia não funcionam no “piloto automático”. Precisam de uma espécie de intervenção sociopolítica que reforce objetivos comuns e o espírito de reciprocidade (“mutuality”). Com o declínio dessas iniciativas e sentimentos, desenvolveu-se uma sociedade da ganância, na qual a ideia de dever e obrigações seria atributo quase apenas do Estado e em que as decisões são tomadas de cima para baixo e de modo centralizado, nas empresas e no governo. Tais problemas teriam dificultado também o combate à epidemia do novo coronavírus.

Há exemplos de que as coisas não precisam ser assim, afirma Collier. Dinamarca e Nova Zelândia são casos de países de alto desenvolvimento econômico e social, com sentido comunitário. A Nova Zelândia teria tido sucesso contra a Covid-19 porque uma líder como a primeira-ministra Jacinda Ardern convenceu os cidadãos de seu país de que o enfrentamento da doença dependia da formação de uma “equipe de 5 milhões de pessoas [a população neo-zelandeza]”, que ela não tinha certeza de saber de tudo a ser feito e que precisava de colaboração.

Jacinda e líderes como ela criam e reforçam o espírito de uma “comunidade conectada”, de sacrifícios bem-distribuídos em nome do bem comum. Além do mais, promovem “comunidades adaptativas”, em que líderes e cidadãos aceitam a incerteza e procuram inovações, um experimentalismo pragmático de olho no futuro, não em um suposto mundo idílico do passado.

Collier recorreu frequentemente a exemplos da biologia da evolução e do mundo animal para mostrar que os seres humanos não são apenas egoístas e gananciosos. Existiria uma propensão à colaboração social que deve ser explorada (“caçar juntos rende mais do que caçar sozinho”). Como se valer dos bons sentimentos?

O economista e professor de políticas públicas sugere que é preciso ter líderes diferentes, em governos e empresas, embora não diga como. O bom líder é um “comunicador-chefe”, não um “comandante-chefe” que, como macho alfa, lidera pela dominância, por se arrogar o conhecimento de tudo e pela punição. O bom líder demonstra ser capaz de sacrifício em prol do bem comum, é modesto (admite falhas e que não sabe tudo), olha para o futuro e é pragmático (não vem com “pacotes de ideologias prontas” e “manuais”).

Assim, consegue merecer confiança dos liderados: favorece a disseminação da ideia de “objetivo comum” e de que todos possam ter a “dignidade” de contribuir para esse objetivo geral. Logo, o bom líder suscita o espírito de colaboração em sua comunidade, na empresa ou na política. A empresa que muda sua “missão” de “ser a melhor empresa do mundo” para “maximizar o valor do acionista”, um objetivo ridículo, tende a falir, diz Collier, citando exemplos (como o da ICI britânica).

  1. Com “diálogo”, uma “troca entre iguais”, com respeito às regras do jogo da conversa (como se respeitam as regras do pingue-pongue), genuíno interesse em entender os motivos das opiniões diferentes, a firme intenção de chegar a um entendimento mútuo. Tal conversa inclui aquela entre líderes e a comunidade. Esse tipo de atitude, dos líderes em particular, desenvolve a capacidade de iniciativa (“agency”);
  2. Com “devolução” do poder de decidir. Trata-se de mais um incentivo ao espírito de iniciativa, de colaborar ativamente para o bem comum. A “devolução” depende da descentralização das decisões (de governos centrais para cidades, de metrópoles para comunidades menores, do líder para outros cidadãos). O experimentalismo é a receita de sociedades autônomas, participativas, capazes de iniciativa e senso de dever: haverá erros, mas haverá também uma solução inovadora em algum lugar.
  3. Com “pilotos”. Isto é, cidades, empresas, líderes ou entidades de governança em geral capazes de, por assim dizer, “dar o exemplo”, sugerir novos caminhos, sejam formas de produzir ou governar. O exemplo que Collier dá desse tipo de líder, seu “herói”, é Lee Kwan-Yew (1923-2015), “pai fundador” e homem forte de Cingapura de 1959 a 1990, anos em que o país saiu da miséria para a riqueza. Um país bem-sucedido na descentralização seria a Escócia.

Enfim, Collier diz que o capitalismo não é individualismo e ganância, mas inovação e dinamismo, que não depende do “líder no topo”, mas de experimentação descentralizada. A democracia não é apenas eleição regular, mas depende de um tipo de inclusão que promova a capacidade de iniciativa e do diálogo para que se chegue ao “objetivo comum”.​

 

Rio está tomando o mesmo caminho de São Paulo’, avalia Bruno Paes Manso, autor de livro sobre milícias

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Jornalista e pesquisador da USP escreveu ‘República das milícias: dos esquadrões da morte à Era Bolsonaro’ a partir de estudo sobre os grupos paramilitares do Rio

Gabriela Goulart – O Globo – 17/10/2020

Jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP, o paulista Bruno Paes Manso viajou várias vezes ao Rio ao longo de um ano em busca de informações para o livro “República das milícias: dos esquadrões da morte à Era Bolsonaro’’ (Editora Todavia), lançado no último dia 7. Até o início da pandemia da Covid-19, ouviu milicianos, policiais, promotores, moradores de comunidades. Como ele diz, queria fazer “um resgate histórico para entender o presente”.

No panorama montado por Manso, o cenário atual é o de um estado dividido em territórios, que exercem sua tirania local e brigam entre si, como na série “Game of Thrones’’. Nesse roteiro da vida real, grupos paramilitares usam o terror para exercer sua autoridade, se associam ao tráfico de drogas para lucrar mais e replicar seus modelos de negócios e fazem alianças políticas para expandir seus domínios. “Como aconteceu com o PCC em São Paulo, o que se vê no Rio é a busca pela hegemonia da governança criminal”, diz o pesquisador, que, junto com Camila Nunes Dias, é autor de “A guerra: a ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil”.

Você acha que a milícia se tornou uma questão endêmica no Rio?

A milícia é o principal problema por sua capacidade de se infiltrar nas instituições, em todas as esferas. O tráfico nunca conseguiu ter isso. Sempre foi associado ao medo das drogas, à guerra permanente, à desordem da violência imprevisível. O político que surge defendendo o traficante é visto como traidor. A milícia se fortalece contrapondo isso, com o marketing de defensora da ordem. Com isso, tem a tolerância de vários grupos em um estado traumatizado pela violência.

Mesmo “rivais”, o tráfico e a milícia se uniram em vários territórios da cidade, sob a égide de narcomilícia. Como você observa essa associação?

É um desdobramento natural do modelo do negócio: extrair o máximo de receita possível. Venda de drogas sempre foi uma atividade muito rentável. Dentro de uma visão pragmática e empresarial, a milícia ia cobrar comissão a partir disso.

Nesta semana, houve uma grande operação para minar o braço financeiro do Comando Vermelho, maior facção do Rio, e outra contra a milícia, com a morte de 12 integrantes. O que esse cenário indica?

Tudo indica que o Rio está tomando o mesmo caminho de São Paulo, onde há apenas o PCC. Seria a busca de uma hegemonia de governança criminal por um grupo da milícia. Uma espécie de paz de cemitério.

Nos últimos anos, números mostram que a milícia mata mais que o tráfico. Você acha que milícia e tráfico também replicam modelos em sua cadeia de violência?

No começo dos anos 2000, casos assustadores de mortes já faziam parte do vocabulário das milícias, com cabeças cortadas e centenas de tiros disparados em uma única vítima. Tanto quanto no tráfico, o terror é usado por esses grupos paramilitares para manter a autoridade nos seus territórios.

Como você enxerga essa divisão de territórios?

No Rio, o papel dos territórios para o negócio do crime, seja ele milícia ou tráfico, é único. Durante a pesquisa e as entrevistas para o livro, a imagem que me passaram é de “Game of Thrones”. São 700 comunidades tiranizadas por “governos” locais autônomos brigando entre si. Isso leva ao grande volume de armamento, que é usado para defender cada território. O que me chamou muito a atenção é a questão: “você prefere tráfico ou milícia?’’ Como se não existisse uma terceira opção, que é a liberdade, a garantia da lei e da cidadania.

O miliciano Ecko é apontado hoje como o cabeça dessa expansão para novos territórios.

Sou cético com o que a polícia vende sobre a cena do Rio. Acho que ele tem um papel relevante, principalmente em Campo Grande e Santa Cruz. Mas ao mesmo tempo que ele é o “Big Boss” da milícia, ele não é pego nunca. Ele está amparado por quem? Essa é a pergunta que tem que ser feita. Se não houvesse conivência e alianças políticas ele teria tanto poder e se manteria tanto tempo impune?

A relação entre milícia e política é indissociável?

É impossível um domínio como o que existe sem conivência dos batalhões, delegacias, integrantes da cúpula, políticos. O presidente Jair Bolsonaro era apologista das milícias na carreira parlamentar. Imagina isso no âmbito de um vereador, que busca votos nos territórios? Políticos e milicianos acabam se associando, e isso é aceito.

 

 

‘EUA e China têm de ser parceiros na rivalidade’, diz Graham Allison

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Sociólogo americano afirma que as duas potências caminham para um confronto inevitável

Entrevista com Graham Allison, cientista político de Harvard e autor do livro ‘A caminho da guerra’

Rodrigo Turrer, SÃO PAULO – Estado de São Paulo – 24/10/2020

Sempre que uma potência hegemônica em determinada época percebe a ascensão de outra potência, pode provocar uma guerra que seria inevitável. Essa dinâmica é chamada de “a armadilha de Tucídides” pelo cientista político americano Graham Allison, e estaria acontecendo neste momento entre China e Estados Unidos.

Allison usa as ideias do historiador grego, que há dois mil anos narrou o conflito entre Atenas e Esparta, para demonstrar como um conflito crescente entre as duas superpotências atuais é inevitável.

Em A Caminho da Guerra, lançado pela editora Intrínseca, o professor de Harvard analisa o impacto do crescimento da potência asiática sobre os EUA e sobre a ordem mundial. Em entrevista ao Estadão, Allison, que foi consultor de Ronald Reagan, Bill Clinton e Barack Obama, diz que os países seguem em rota de colisão.

A era de domínio dos EUA pode estar chegando ao fim?

Para os americanos que cresceram em um mundo em que os EUA eram o número um – e isso seria todo cidadão desde aproximadamente 1870 – a ideia de que a China poderia derrubar os EUA como a maior economia do mundo é impensável. Muitos americanos imaginam que a primazia econômica é um direito inalienável, a ponto de se tornar parte de sua identidade nacional. A menos que os EUA se redefinam para se contentar com algo menos do que ser o “número 1”, os americanos cada vez mais acharão que a ascensão da China é perturbadora e intimidadora. Este não é apenas mais um caso de “competição entre as grandes potências”, mas uma rivalidade clássica da ‘armadilha de Tucídides”, em que cada um vê o outro como uma ameaça à sua identidade.

O sr. acha que os EUA perderam influência? 

Estamos vendo uma mudança tectônica do poder internacional. O PIB nacional cria a subestrutura do poder internacional. A participação dos EUA no PIB global diminuiu de metade em 1950 para um quarto no final da Guerra Fria em 1991; é um sétimo hoje e está em trajetória para ser um décimo em meados do século. Em 1991, a China mal aparecia em qualquer tabela de participação. Desde então, disparou para ultrapassar os EUA em PIB em paridade de poder de compra, ou PIB (PPP), uma medida que a Agência Central de Inteligência (CIA) e o Fundo Monetário Internacional (FMI) consideram como o melhor parâmetro de comparar economias nacionais. O impacto dessa mudança é sentido em todas as dimensões, não apenas entre EUA e China, mas entre cada um deles e seus vizinhos. Quando a China entrou na Organização Mundial do Comércio (OMC) em 2001, o principal parceiro comercial de cada grande nação asiática eram os EUA. Hoje, o parceiro comercial predominante de cada um é quem? China. Dito isso, seria prematuro excluir os EUA. Como o investidor mais bem-sucedido do mundo, Warren Buffet lembra repetidamente aos investidores: ninguém nunca ganhou dinheiro no longo prazo vendendo a descoberto os EUA.

Como evitar a armadilha?

Ao longo dos quatro anos desde que meu livro foi publicado tenho procurado maneiras de dar uma resposta positiva a essa pergunta – na verdade, para escapar da armadilha de Tucídides. Até o momento, identifiquei nove possíveis “vias de escape”. Aquela que estou agora explorando mais ativamente com acadêmicos chineses e americanos combina um antigo conceito chinês de “parceiros na rivalidade”, uma abordagem que o presidente John Kennedy adotou depois de ter sobrevivido à crise dos mísseis cubanos – ele pediu para que EUA e União Soviética coexistam em um “mundo seguro para a diversidade”. Parceiros na rivalidade descreve a relação que o imperador Song da China concordou em estabelecer com Liao, uma dinastia da Manchúria na fronteira norte da China, após concluir que seus exércitos não seriam capazes de derrotá-los. No Tratado de Chanyuan, de 1005, Song e Liao concordaram em competir agressivamente em algumas arenas e, simultaneamente, cooperar em outras. O Tratado exigia que Song prestasse homenagem a Liao, que concordou em investir esses tributos no desenvolvimento econômico, científico e técnico da China. A questão hoje é se os estadistas americanos e chineses poderiam encontrar seu caminho para um análogo do século XXI da invenção de Song, que lhes permitiria competir e cooperar simultaneamente. A possibilidade de que as nações possam competir implacavelmente e cooperar intensamente, ao mesmo tempo, soa para os diplomatas como contradição. No mundo dos negócios, porém, é chamado de vida. Apple e Samsung oferecem um exemplo poderoso. Os dois são rivais implacáveis no mercado global de smartphones. Mas quem é o maior fornecedor de componentes da Apple para smartphones? Samsung.

O sr. acredita que China e EUA entraram numa nova guerra fria?

As relações entre EUA e  China estão destinadas a piorar antes de piorar muito. A razão subjacente é a armadilha de Tucídides. Quando um poder crescente ameaça substituir um poder governante, alarmes soam: perigo extremo à frente. Tucídides explicou essa dinâmica no caso da ascensão de Atenas para rivalizar com Esparta na Grécia antiga. Nos séculos desde então, essa história se repetiu indefinidamente. Os últimos 500 anos viram 16 casos em que uma potência em ascensão ameaçou deslocar um grande poder governante e 12 terminaram em guerra. França contra os Habsburgos, França contra Reino Unido, China e Rússia contra Japão, Reino Unido contra Alemanha. Enquanto os americanos estão começando a descobrir que a China é um rival sério em todas as frentes, a analogia para este embate é cada vez mais a “Guerra Fria”. Mas as diferenças entre as rivalidades EUA e China e EUA e União Soviética são mais significativas do que as semelhanças. Compreender como essas grandes rivalidades são diferentes será fundamental na elaboração de uma estratégia dos EUA para o desafio da China. A possibilidade de uma guerra real entre os EUA e a China, por incrível que pareça, é maior do que a maioria das pessoas avalia.

É irônico as pessoas brancas serem tão sensíveis a falar de raça, diz DiAngelo.

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Robin DiAngelo, autora de livro há 111 semanas na lista dos mais vendidos nos EUA, fala de branquitude, privilégio e negação do racismo sistêmico

Fernanda Mena – Folha de São Paulo, 25/10/2020

O mito da democracia racial é uma ideologia daltônica que funciona para proteger a hierarquia de raça da sociedade brasileira ao simplesmente negar que ela exista.

É assim que a norte-americana Robin DiAngelo, consultora em questões de justiça social e racial e autora de “Não Basta não ser racista: Sejamos Antirracistas” (Faro Editorial), avalia um aspecto central na história das relações raciais no Brasil.

Professora de educação da Universidade de Washington, em Seattle (EUA), Robin cunhou o termo “fragilidade branca”, título original deste best-seller que está há nada menos de 111 semanas na lista de mais vendidos do jornal The New York Times.

A expressão designa a dificuldade de pessoas brancas de conversar sobre racismo e reconhecerem a si próprias como beneficiárias, ainda que involuntariamente, de um sistema que as valoriza em depreciação de outros grupos étnico-raciais.

“A identidade branca tem sido usada para desprezar a análise racial, rotulando tudo como ‘politicamente correto’, e interditando o debate ao acusá-lo de identitário, alegando que é preciso falar de todos, de maneira inclusiva”, explica ela.

“É como dizer Black Lives Matter [vidas negras importam] e alguém retrucar que todas as vidas importam [all lives matter]. É claro que todas as vidas importam, mas, num mundo em que isso não ocorre na prática, precisamos nomear quais vidas, afinal, parecem não importar.”

Robin participa, nesta segunda-feira (26), da abertura do encontro Branquitude: racismo e antirracismo, organizado pelo Instituto Ibirapitanga com a co-curadoria de Lia Vainer Schucman.

Ao longo de três dias e cinco debates transmitidos ao vivo pelo canal do Ibirapitanga no YouTube, o encontro pretende refletir sobre as relações raciais no Brasil e os caminhos para a desconstrução do racismo estrutural.

“A grande ironia é justamente as pessoas brancas serem supersensíveis quando o assunto é raça”, brinca Robin.

Do que falamos quando falamos de privilégio branco?

Privilégio branco é a vantagem automática que as pessoas brancas têm por viverem numa sociedade em que elas são valorizadas e, na maior parte dos casos, controlam e dominam. É como nadar numa correnteza. Há pessoas que estão batendo braços e pernas, mas a correnteza favorece seu deslocamento mesmo sem que elas percebam. E há outras pessoas também batendo braços e pernas, mas a correnteza faz resistência constante a seu movimento.

Só que quando é apontado que as pessoas brancas têm uma vantagem automática imerecida, elas ficam bastante defensivas. Interpretam que essa vantagem é uma acusação de que elas não trabalharam duro o suficiente para estarem onde estão. E eu preciso ser clara: sim, nós trabalhamos duro. Mas o sistema nos recompensa por esse trabalho de maneira diferente. E nós não estamos trabalhando duro contra uma resistência racial. Outro jeito de olhar para o privilégio branco é observar o voto das mulheres.

Como assim?

E eu me refiro ao sufrágio como o momento em que homens nos concederam direitos civis, como apenas eles poderiam fazer. Antes disso, mulheres poderiam ser preconceituosas em relação a homens ou discriminar homens individualmente, mas não podiam, coletivamente, negar para todo e qualquer homem seus direitos civis.

Os homens podiam. Por que? Porque os preconceitos deles eram sustentados por autoridade legal e controle institucional. E essa é a chave para diferenciar o viés racial, que todos temos, de racismo. Racismo é quando preconceito e discriminação são sustentados por poder.

Por que é tão difícil reconhecer privilégios?

Por causa de algumas ideologias. Uma é a meritocracia: somos ensinados que temos o que temos porque trabalhamos pra isso e merecemos.

Ninguém nega que pessoas negras estejam em pior situação a partir de qualquer dado que se observe. E só existem dois jeitos de explicar essa situação. Ou as pessoas negras são inferiores e somos, os brancos, superiores. Ou existe racismo estrutural!

E, se você negar a existência do racismo estrutural, é porque está usando uma chave explicativa racista.

A outra ideologia que incide nessa dificuldade de reconhecer privilégios é o individualismo. Ainda que exista um crescente movimento nacionalista branco, a maior parte das pessoas brancas, no nível consciente, acredita em justiça racial e não quer, intencionalmente, que pessoas negras sofram.

Se a maioria acredita em justiça racial, como existe racismo?

Eu, que sou branca, não nasci conhecendo o racismo, mas eu aprendi o que é racismo e supremacia branca.

Ainda antes de eu nascer, as forças do racismo e da supremacia branca operavam a minha vida: por serem brancos, meus pais podiam viver em qualquer lugar que pudessem pagar e eles dificilmente seriam discriminados em serviços de saúde. Mas quem entrou no quarto da maternidade na noite em que eu nasci para limpar o chão e recolher o lixo foi muito provavelmente uma pessoa negra.

Ou seja, eu nasci e fui criada num ambiente racialmente hierarquizado que me influenciou. Pesquisas mostram que crianças de 3 ou 4 anos entendem que é melhor ser branco. É um processo que se consolida muito cedo.

Como explicar o privilégio branco em relação a pessoas brancas desprivilegiadas?

Pessoas brancas sem dúvida sofrem outras formas de opressão e também enfrentam barreiras, mas o racismo não é uma delas, o que as ajuda. Você pode pensar em qualquer grupo minoritário, como mulheres e pessoas LGBTI, e, dentro deles, as pessoas negras também vão estar nas piores posições.

Eu sei que o classismo é algo poderoso no Brasil e sei que racismo e classismo têm grande intersecção, o que faz com que classe e raça pareçam ser quase a mesma coisa. Mas não é.

Eu cresci em situação de pobreza urbana dos EUA. Minha família ficou sem casa e morávamos no nosso carro. Eu tinha uma sensação muito profunda de vergonha de classe. Mas eu não sou menos racista ou tenho menor privilégio racial porque experimentei o classismo.

Você poderia dar um exemplo dessa relação entre hierarquia social e hierarquia racial?

Vivemos em situação de rua, pasamos fome… E, ao mesmo tempo, eu fui ensinada a não tocar em nada que uma pessoa “colored” [termo pejorativo usado para se referir a uma pessoa negra] havia tocado. Mesmo quando fosse comida e estivéssemos com fome.

A mensagem era clara: estará sujo se uma pessoa negra tiver encostado. Mas a verdade era que, por causa da situação de rua, nós é que éramos sujos. Só que, nesses momentos, eu não sentia tanta vergonha da minha pobreza porque eu me realinhava com a cultura branca de classe média dominante contra um outro racializado.

Qual é, então, a fragilidade branca?

A fragilidade se refere à hipersensibilidade da branquitude quando confrontada com questões de raça, que as faz reagir ficando chateadas, bravas ou defensivas. Mas o impacto dessa fragilidade não tem nada de frágil.

É bastante poderosa porque vem amparada na autoridade legal e no domínio institucional. Funciona como um policiamento racial. Tornamos tão punitivo para pessoas negras nos desafiarem e nomearem essas dinâmicas que, na maior parte das vezes, eles simplesmente decidem não falar.

É mais um jeito de silenciar pessoas negras. A grande ironia é justamente as pessoas brancas serem supersensíveis quando o assunto é raça.

Para quais mudanças o assassinato de George Floyd e os protestos que o seguiram apontam?

Conceitos como o de racismo sistêmico entraram no debate principal. E isso é fundamental. Porque enquanto continuarmos a achar que uma pessoa racista é alguém intencionalmente mau, que quer machucar os outros, não vamos sair deste lugar.

E não existe nada melhor para eximir as pessoas brancas do que permitir que elas se ofendam quando confrontadas com essa acusação, o que protege perfeitamente o sistema do racismo. Eu diria que todo racismo que eu perpetrei na minha vida, e foi bastante, não foi algo consciente e intencional, mas machucou as pessoas do mesmo jeito.

É preciso olhar como isso se manifesta na sua vida, no seu trabalho, nas suas relações. E isso é muito libertador!

E então você pode parar de achar que você está sendo acusado de ser mau. E se liberar para alinhar o que você diz acreditar, que é a justiça racial, com o jeito como você se posiciona e age no mundo. ‘`” por isso que o oposto do racismo não é sua ausência, mas o antirracismo.

ROBIN DIANGELO, 64

Consultora e educadora há mais de 20 anos em questões de justiça social e racial, e professora da Universidade de Washington, em Seattle (EUA). Seu livro, “Não basta não ser racista: sejamos antirracistas” (“White Fragility: Why It’s So Hard For White People To Talk About Racism”), está há 111 semanas na lista de mais vendidos do NYT.

Capitalismo consciente é um gozo para idiotas inventado pela esquerda, por Pondé.

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Levar seu pet à empresa não ‘humaniza’ a produção de riqueza

O capitalismo se caracteriza, entre outras coisas, por ser um sistema em que o capital tende a se reproduzir como entidade autônoma. Nesse processo, ele se torna o único valor absoluto e tudo mais se torna relativo à sua dinâmica. Esse sistema se tornou total: não há vida fora dele, mesmo quando você se ilude pensando que está operando contra ele.

O documentário “Dilema das Redes” é um exemplo desse ciclo: de dentro do próprio algoritmo (da Netflix), os entrevistados criticam a tecnologia de rastros usada pelos algoritmos, tecnologia esta que existe pra servir a você e ao revolucionário da Faria Lima no seu momento iFood. Você não sabe quem é esse revolucionário? Calma.

Antes vamos refletir sobre a ideia do capitalismo consciente, fetiche desse revolucionário. Essa ideia só é possível se a tomarmos como uma franja muito tênue do processo total, mais como um espectro da consciência do que ela própria.

Isto é, a suposta consciência crítica é falsa na medida em que direitos humanos, inclusão de minorias, combate a preconceitos, defesa de causas ambientais só se sustentam se tais processos reproduzirem o próprio capital. E uma vez dentro do ciclo, tudo é relativo ao ganho reprodutivo dele. É neste cenário que surge o revolucionário da Faria Lima.

Esse revolucionário é um idiota ou um cínico. O idiota crê que está “melhorando o capitalismo”, o cínico age de má-fé pura e simples. Este tem mais consciência do processo do que o idiota. Daí que só há consciência dentro desse processo se for cínica. Fazendo uma apropriação selvagem do conceito de razão cínica do filósofo alemão Peter Sloterdijk, podemos dizer que ela, paulatinamente, atinge sua maior idade. Toda razão cínica é, no final do dia, uma forma de mau-caratismo.

O revolucionário da Faria Lima goza com sua condição de defensor de causas na medida em que finge não perceber que será eliminado do sistema de reprodução do capital assim que fizer 40 anos. Pessoas mais jovens do que ele suprirão o exército de revolucionários da Faria Lima que creem, piamente, na ideia de que podendo levar seu pet para a empresa descolada, ele estará “humanizando” a produção de riqueza.

Obcecado com a alimentação, a saúde, a natureza, a população trans, essa moçada acha que encontrará a qualidade de vida prometida pela propaganda de um mundo melhor, mesmo que a cada dia aumente a dose de ansiolítico para aguentar o medo do mundo, do desemprego, do amor, de ter filhos, da pandemia.

O capitalismo é inigualável na produção de riqueza, e isso tem melhorado a condição material de muita gente no mundo, apesar da desigualdade crescente. Vacinas, medicina, celulares, computadores, aviões, direitos humanos, enfim, tudo de bom à nossa volta depende de grana.

Eis o impasse: a riqueza é fruto de um sistema que alimenta a competição, a mentira do marketing, a obsessão pela eficácia, a exaustão, a tirania do consumidor nas redes, a desconfiança como laço afetivo, o esgotamento das relações pessoais.

A ideia de que jovens entrando na política mudará isso é para iniciantes: grande parte deles é mal preparada e busca a política como meio de vida, logo, como mercado. E, esse mercado está crescendo com todo tipo de oportunista ou desinformado.

Imagine você, caro leitor, que muitos desses revolucionários da Faria Lima, que fazem ioga e trabalham em startups, creem na publicidade de bancos e afins. Quando você vê um banco fazendo propaganda “do bem”, saiba que algo está errado se você supõe que ele esteja fazendo uma revolução a partir da fidelização de seus clientes. E se você hoje está em home office, aproveite o que ainda resta de vida privada à sua volta.

Enfim, o capitalismo consciente, maior produto da esquerda fetiche que imanta o mundo a partir da política histérica americana, é um gozo para idiotas ou cínicos. Nosso revolucionário vegano passeia com seu pet e usa a ciclofaixa da Faria Lima para ir trabalhar. Sente-se como um milênio na Dinamarca, quando, na verdade, é um mero produto do capitalismo, como o ketchup orgânico.

Luiz Felipe Pondé

Escritor e ensaísta, autor de “Dez Mandamentos” e “Marketing Existencial”. É doutor em filosofia pela USP.

 

Desemprego, pandemia e desagregação social

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Estamos vivenciando um momento muito específico do sistema econômico e produtivo internacional, marcado por pandemias, medos e desesperanças, que geram desestruturações e conflitos generalizados, levando os indivíduos a momentos de preocupações e desesperos, aumentando os conflitos internos e abrindo espaços para confrontos entre nações, guerras comerciais, ofensas constantes que podem culminar em conflitos armados, destruições materiais, espirituais e degradações morais, neste momento nos perguntamos, para onde caminha a humanidade?

Um dos grandes problemas da sociedade contemporânea é o desemprego que cresce de forma rápida e acelerada, levando as comunidades inteiras a degradações variadas, o desemprego se espalha em todas as nações, desde os países mais ricos e afortunados, até os países menos dotados de recursos monetários e financeiros, espalhando a desestruturação, os saques, os conflitos e as violências crescem de forma aceleradas. Neste ambiente, percebemos a destruição dos espaços sociais de convivência e de respeito entre os povos, antes agrupamentos eram caracterizados como ordeiros e hospitaleiros, estão se transformando em verdadeiros animais dotados de fúrias e de ódios em ascensão.

O sistema econômico capitalismo revolucionou a sociedade mundial ao abrir novas oportunidades de ascensão social, com isso, possibilitou uma grande parte da sociedade europeia ao garantir seu crescimento econômico e melhorias de vida, ascendendo profissionalmente e angariando recursos monetários, gerando novos espaços de investimentos e melhorias sociais, este movimento trouxe legitimidade para a comunidade, construindo laços sociais e novas oportunidades de crescimento e, posteriormente, desenvolvimento econômico.

Os trabalhadores saíram nos meios rurais e buscaram novos espaços de emprego, surgiram as novas estruturas produtivas, baseadas em fábricas e, posteriormente, estruturas industriais, que empregavam levas de trabalhadores, gerando renda e garantindo salários e benefícios sociais, este período a sociedade passava por momentos de grandes transformações, um período extraordinário de ascensão social, impulsionando a ciência, o conhecimento, os cientistas e pesquisadores ganhavam espaços na sociedade e impulsionaram as descobertas científicas, novas máquinas, equipamentos, descobertas de novas áreas e oportunidades crescentes.

Os trabalhadores urbanos cresciam e se estruturaram, garantiam direitos e benefícios variados, famílias eram constituídas, as escolas se consolidavam, a ciência mudava os ambientes de atuação social, levando um papel central para os pesquisadores, os cientistas e homens do conhecimento, que passavam a ser vistos pela coletividade com respeito e admiração, indivíduos centrais para a sociedade da época, com novos paradigmas do mundo de trabalho, da produção, da produtividade, das escalas, das metas, dos lucros, da acumulação e da sobrevivência.

Nesta época, meados do século XIX, um intelectual alemão destacou questões que geravam grandes controvérsias na sociedade europeia, segundo Karl Marx o sistema capitalista era o maior sistema gerador de riquezas da sociedade, nenhum outro modelo econômico e produtivo gerava tanta riquezas e espaços de acumulação na sociedade, mas destacou ainda, que o sistema econômico capitalista tem um defeito central, o capitalismo concentra nas mãos de poucos grupos sociais, gerando confrontos crescentes entre capital e trabalho, um conflito irreconciliável entre estes grupos sociais, seus interesses eram diferentes e antagônico e este conflito era o grande motor da sociedade, neste confronto os grandes ganhadores eram os espoliados, os trabalhadores, os proletários, os mais pobres e explorados. A mais de 150 anos, os escritos deste alemão foram responsáveis por grandes controvérsias na sociedade capitalista, alguns teóricos defendendo seus estudos e suas conclusões, outros grupos rechaçando seus pensamentos, gerando controvérsias constantes e dissensos na sociedade, conflitos e agressões variadas.

No século XXI, as controvérsias continuam atuais, os teóricos atrelados acreditam que vivemos numa sociedade marcada pelo crescimento no desemprego estrutural, que crescem de forma acelerada, gerando um verdadeiro calvário nas classes dos trabalhadores, que percebem o incremento do desemprego, onde levas gigantes de trabalhadores estão perdendo seus empregos, seus salários, suas rendas e sua dignidade, levando novos confrontos, desesperos crescentes e violências generalizadas, desestruturações sociais, egoísmos variados e competitividades crescentes entre todos os grupos sociais , acabando com a solidariedade de classe, as amizades entre os indivíduos e a integração social, estamos rumando para uma forte desagregação das comunidades.

De outro lado, percebemos grupos enormes de pessoas e pesquisadores, atrelados aos ideários das classes dominantes, defendendo o incremento da concorrência, da redução do Estado Nacional, da privatização das empresas estatais e o crescimento de entidades privadas, garantindo novos espaços do mercado, visto como o grande agente construtor do crescimento econômico, gerador de riqueza e garantindo melhorias crescentes das condições sociais e bem-estar social.

Na sociedade brasileira, percebemos esta discussão constante em todos os poros da coletividade, neste momento, percebemos o desemprego crescendo de forma acelerada, mais que o desemprego, percebemos o aumento da desesperança, as pessoas perderam as esperanças de encontrar novos postos de trabalho, os investimentos se reduzem e os investimentos estrangeiros fogem da sociedade brasileira, levando as taxas de câmbio desvalorizações históricos, aumentando o endividamento das empresas nacionais e abrindo espaços para ganhos dos setores exportadores, exportações ganham espaço mas, ao mesmo tempo, esquecemos que nossa indústria morreu, perdeu dinamismo e foi superada pela concorrência internacional, principalmente das nações asiáticas, que ganharam espaços no comércio global e deixando o Brasil como exportador de produtos primários, com isso, estamos nos restringindo apenas a um exportador de produtos primários, tais como soja, laranja, minério de ferro, petróleo, dentre outros. Seu momento de reprimarização das exportações nacionais, somos referências no comércio internacional, exportamos muitos commodities, garantindo grandes recursos de moeda estrangeira, mas os empregos gerados na economia interna são limitados, evidenciando as grandes dificuldades da geração na economia nacional.

Devemos destacar ainda, que a sociedade mundial está passando por um momento de pandemia com impactos generalizados em todas as nações, gerando desemprego em todas as regiões, levando grandes levas de trabalhadores para o subemprego, empresas para a falência, famílias com reduções orçamentários consideráveis, além de desestruturação social, medos elevados e desesperanças crescentes. No caso brasileiro, a pandemia desnuda a péssima degradação social, mostrando as desigualdades nacionais que são estruturais, de um lado, um pequeno grupo de famílias perceberam o alto crescimento de suas fortunas, seus patrimônios cresceram de forma acelerada e, em contrapartida, uma grande parte da sociedade nacional perceberam a redução de seus rendimentos, levando uma parte crescente da sociedade nacional buscar recursos do auxílio emergencial do governo federal, sem estes recursos, grande parte da coletividade estava sem recursos de sobrevivência de forma digna e decente, aumentando o fosso social na sociedade brasileira.

A miséria social brasileira está sendo desnudada por completa, mais de sessenta milhões de brasileiros receberam recursos oriundos do auxílio emergencial, embora percebamos que mais de 10% das pessoas que receberam estes recursos e foram de forma indevida, pessoas que fraudaram ou que burlaram o recebimento, mesmo assim, os números são expressivos e assustadores, vivemos num momento de grande apartheidsocial, exclusão, violência, os impactos desta indigência nacional estão em plena degradação da nossa identidade nacional.

A miséria social vem sendo construída a muitos séculos, explorações crescentes são continuadas, neste momento percebemos que as perspectivas para o Brasil são negativas e preocupantes, de um lado percebemos a saída de investimentos estrangeiros, com isso, percebemos a desvalorização da moeda nacional, com isso, percebemos o aumento dos preços internos, principalmente nos produtos fundamentais, resultado da atuação tímida e limitada do governo nacional nos estoques reguladores que foram vendidos no mercado externo. Sem estoques de regulação, que sempre foram utilizados pelo governo nacional para conter os preços internos, com isso, os preços nacionais crescem e seus impactos na renda dos trabalhadores são imediatos, neste ambiente as perdas foram acentuadas para a classe trabalhadora.

A pandemia está apresentando um novo modelo de trabalho, o trabalho remoto impulsionou muitas empresas e garantiu a continuidade de seus mercados, garantindo novos espaços de produtividade e, ao mesmo tempo, reduziu a interdependência dos trabalhadores, afastando-os dos espaços de conversação, de negociação e trocas de experiências, com isso, os novos modelos de trabalhos estão desmobilizando os trabalhadores e levando os sindicatos, uns poucos que ainda conseguiram sobreviver, perdendo mais espaços de negociação, fragilizando os instrumentos de questionamentos, afastando-os dos agentes de representatividades, fragilizando as pautas dos trabalhadores e garantindo forças mais crescentes nas negociações dos confrontos entre capital e trabalho. Neste ambiente, os sindicatos perderam a centralidade na sociedade contemporânea, as reformas trabalhistas que bradavam que trariam novos empregos e traria novas oportunidades na classe trabalhadora, com isso, percebemos que os trabalhadores mais uma vez foram enganados, explorados e desmobilizados, criando um ambiente, na contemporaneidade, onde os mais fracos são degradados pelos mais fortes.

Pesquisas recentes feitas pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), nos últimos cinco anos mais de 46% dos empregos gerados na economia nacional foram de trabalhos de baixo valor agregado, trabalhadores mal remunerados, sem qualificação ou com baixa capacidade, com isso, uma reflexão sobre os dados destacados na pesquisa nos leva a uma grande preocupação pelos rumos da sociedade nacional, sem empregos qualificados, bem remunerados e sem trabalhadores capacitados, o futuro da sociedade brasileira será assustador e preocupante.

Na sociedade brasileira estamos caminhando num momento de degradação social com data marcada, sem projeto nacional e sem credibilidade internacional, o país está se aproximando do caos. O desemprego cresce todos os dias, o fim do auxílio emergencial terminará em dezembro, deixando uma parcela crescente da sociedade sem proteção, sem emprego e sem perspectivas, estamos rumando para a degradação, com subemprego crescente, desalento em ascensão, dívida pública acelerando, rumando para 100% do produto interno bruto, gerando instabilidade no mercado e gerando constrangimentos no governo e na sociedade.

Neste ambiente, percebemos a grande dificuldade do governo para encontrar um novo rumo para a sociedade brasileira, rumamos para a degradação econômica, a pandemia acelerou a desagregação social e mostrando que a elite nacional fracassou na construção de um país mais viável, mas sustentável e novos espaços de crescimento inclusivo, onde todos os grupos sociais, desde os ricos aos pobres e miseráveis, todos conjugando com os valores da civilização, com emprego e salário dignos e decentes, com novos espaços de desenvolvimento social.

O maior economista brasileiro de todos os tempos, Celso Furtado, nos faz um grande alerta, num momento de suas andanças, escreveu que durante mais de cinquenta anos que estudo da economia brasileira, nunca encontrou um problema eminentemente econômico na sociedade nacional, todos os problemas que temos são, todos são problemas eminentemente políticos, para resolver este problema nacional temos de construir respostas originais no campo da política.

Piketty: hora de fazer os ricos pagarem

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Os trilhões emitidos pelos bancos centrais na pandemia irrigaram as elites e os cassinos financeiros. Este “resgate” produzirá desigualdade obscena. Há alternativa: como no pós-guerra, criar dinheiro para o Comum e taxar pesadamente as fortunas

Por Thomas Piketty, no Le Monde Diplomatique, traduzido pelo OUTRAS MÍDIAS

Como os Estados enfrentarão o acúmulo de dívidas geradas pela crise da Covid-19? Muitos já ouvem a resposta: os bancos centrais assumirão em seus balanços uma parcela crescente das dívidas, e tudo será resolvido. Na verdade, as coisas são mais complexas. O dinheiro faz parte da solução, mas não será suficiente. Mais cedo ou mais tarde, os mais ricos deverão dar sua contribuição.

Recapitulemos. A criação de dinheiro tomou proporções sem precedentes em 2020. O balanço do Federal Reserve saltou de 4,159 trilhões de dólares em 24 de fevereiro para 7,056 trilhões em 28 de setembro, perto de 3 trilhões de dólares de injeção monetária em sete meses, o que jamais foi visto. O balanço do Eurossistema (a rede de bancos centrais dirigida pelo Banco Central Europeu, BCE) passou de 4,692 trilhões de euros em 28 de fevereiro para 6,705 trilhões em 2 de outubro, uma alta de 2 trilhões.

Em relação ao PIB da zona do euro, o balanço do Eurossistema, que já tinha passado de 10% para 40% do PIB entre 2008 e 2018, saltou para perto de 60% entre fevereiro e outubro de 2020

Para que todo este dinheiro? Em tempos normais, os bancos centrais contentam-se em conceder empréstimos de curto prazo a fim de garantir a liquidez do sistema. Como as entradas e saídas de dinheiro nos diferentes bancos privados nunca se equilibram exatamente a cada dia, os bancos centrais emprestam por alguns dias somas que os estabelecimentos reembolsam depois.

Após a crise de 2008, os bancos centrais começaram a emprestar dinheiro com prazos cada vez mais longos (algumas semanas, depois alguns meses, ou mesmo vários anos) a fim de tranquilizar os atores financeiros, paralisados com a ideia de seus parceiros de jogo irem à falência. E havia muito o que fazer, pois, na falta de regulação adequada, o jogo financeiro tornou-se um gigantesco cassino planetário ao longo das últimas décadas.

Todos começaram a emprestar e tomar emprestado numa escala sem precedentes, se bem que o total de ativos e passivos financeiros privados detidos pelos bancos, empresas e famílias ultrapassa hoje 1.000% do PIB nos países ricos (inclusive sem incluir os derivativos), contra 200% nos anos 1970. O patrimônio real (isto é, o valor líquido dos imóveis e das empresas) também aumentou, passando de 300% para 500% do PIB, mas bem menos intensamente, o que ilustra a financeirização da economia. De certa forma, os balanços dos bancos centrais apenas seguiram (com atraso) a explosão dos balanços privados, a fim de preservar sua capacidade de ação diante dos mercados.

O novo ativismo dos bancos centrais permitiu-lhes igualmente recomprar uma parte crescente dos títulos da dívida pública, enquanto reduz as taxas de juros para zero. O BCE já detinha 20% da dívida pública da zona do euro no início de 2020, e poderia possuir perto de 30% daqui até o final do ano. Uma evolução similar ocorre nos Estados Unidos.

Como é pouco provável que o BCE ou o Fed decidam um dia remeter estes títulos aos mercados ou exigir o reembolso deles, poderíamos desde agora decidir não mais contabilizá-los no total das dívidas públicas. Se desejamos inscrever esta garantia no mármore jurídico, o que seria preferível, então isto arriscaria levar um pouco mais de tempo e de debates.

A questão mais importante é a seguinte: devemos continuar neste caminho, e podemos considerar que os bancos centrais detenham no futuro 50% e depois 100% das dívidas públicas, aliviando ainda mais a carga financeira dos Estados? De um ponto de vista técnico, isto não representaria problema algum. A dificuldade é que, resolvendo a questão das dívidas públicas com uma mão, esta política cria outras dificuldades a mais, especialmente em matéria de crescimento das desigualdades de riquezas. Na verdade, a orgia da criação monetária e de compra de títulos financeiros leva ao aumento dos preços das ações e imóveis, o que contribui para enriquecer os mais ricos. Para os pequenos poupadores, as taxas de juros nulas ou negativas não são necessariamente uma boa notícia. Mas, para os que possuem meios de emprestar a baixas taxas e que dispõem de competência financeira, legal e fiscal permitindo encontrar os investimentos corretos, é possível obter excelentes rendimentos. Segundo a revista Challenges, as 500 maiores fortunas francesas passaram de 210 a 730 bilhões de euros entre 2010 e 2020 (de 10% para 30% do PIB). Uma tal evolução é social e politicamente insustentável.

Seria diferente se a criação monetária, no lugar de alimentar a bolha financeira, fosse mobilizada para financiar um verdadeiro impulso social e ecológico, isto é, assumindo uma forte criação de empregos e aumentos salariais nos hospitais, nas escolas, na renovação térmica, nos serviços locais. Isto permitiria aliviar a dívida ao mesmo tempo em que se reduzem as desigualdades, investindo nos setores úteis para o futuro e deslocando a inflação dos preços dos ativos para os salários e para os bens e serviços.

Para tanto, não seria o caso de uma solução milagrosa. Assim que a inflação retornasse novamente a níveis substanciais (de 3% a 4% ao ano), seria necessário atenuar a criação monetária e regressar à arma fiscal. Todas as histórias das dívidas públicas mostram: o dinheiro sozinho não pode oferecer uma solução pacífica para um problema desta magnitude, pois, de um modo ou de outro, envolve consequências distributivas descontroladas. Foi recorrendo a taxas excepcionais sobre os mais ricos que as grandes dívidas públicas do período pós-guerra foram extintas, e que o pacto social e produtivo das décadas seguintes foi reconstruído. Vamos apostar que o mesmo se passará no futuro.

Thomas Piketty é diretor de pesquisas na École des Hautes Études en Sciences Sociales e professor na Paris School of Economics. Autor, entre outros livros, de O capital no século XXI (Intrinseca).