O contrato social está no limite, por Marcos Mendes.

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Enfraquecimento do Executivo e baixo crescimento aumentam risco de crise institucional

Marcos Mendes, Pesquisador associado do Insper, é autor de ‘Por que É Difícil Fazer Reformas Econômicas no Brasil?’

Folha de São Paulo, 22/04/2022.

O contrato social desenhado após a redemocratização está se esgotando. As condições de governabilidade estão se deteriorando. Isso sinaliza problemas institucionais à frente.

Um alto grau de conflito distributivo é inerente a uma sociedade desigual, como a brasileira. No topo da pirâmide há pessoas com poder político e econômico para usar o Estado a seu favor, por meio de políticas como crédito subsidiado provido por bancos públicos, proteção contra a concorrência de produtos importados ou contratos privilegiados com a administração pública. No outro extremo, há uma grande pobreza a demandar políticas de assistência social.

Terreno fértil para o populismo redistributivista entrar em choque com a preservação de privilégios. O resultado é instabilidade política, um roteiro conhecido na história da América Latina.

O contrato social da redemocratização brasileira procurou amenizar esse conflito usando o Estado para atender a todos ao mesmo tempo. Foram preservados e ampliados privilégios da elite e se instaurou ampla política de benefícios aos mais pobres e à classe média. O Estado brasileiro distribui para todos: do Bolsa Empresário ao Bolsa Família. O que os grupos de pressão pedem ao Congresso, levam: pisos salariais, subsídios setoriais, alíquotas preferenciais.

Com todos atendidos, diminuiu a tensão social. O custo, porém, é o crescimento da carga tributária, da dívida pública e da despesa com juros. Ademais, políticas para favorecer grupos geram perda de eficiência econômica, reduzindo o potencial de crescimento. O cobertor fica curto e não dá para continuar distribuindo a todos.

As manifestações de 2013, cuja principal característica foi juntar diversos grupos que pediam mais do Estado, já foi um sinal de estresse.

Desde os anos 1990 já se percebeu a insustentabilidade desse modelo. Diferentes governos tentaram limitar o acesso aos cofres e a distorção das decisões regulatórias do Estado, por meio de reformas institucionais.

Para fazer essas reformas avançarem, e manter as finanças públicas sob controle, contava-se com uma divisão de poderes em que o Executivo era forte e tinha instrumentos para manter uma coalizão majoritária no Congresso, facilitando a aprovação de seus projetos. Instrumentos tortos, como a liberação de emendas em troca de votos, somavam-se ao poder de agenda (Medidas Provisórias) e de veto.

Porém, a força do Executivo vem sendo desidratada. A governabilidade, que sempre foi precária, está se tornando impossível.

As MPs, que podiam ser livremente editadas e reeditadas, foram limitadas pelo STF e são frequentemente alteradas ou rejeitadas pelo Congresso. Vetos presidenciais, que não eram contestados, agora caem frequentemente. Projetos de lei do Executivo encalham e as iniciativas dos parlamentares prosperam. Agências reguladoras, instituições de Estado, estão sendo loteadas entre políticos.

As emendas parlamentares se tornaram obrigatórias, perdendo poder de cooptação. Foi necessário criar outra modalidade de emenda, a de relator, para usar como instrumento de cooptação. Com isso, as emendas deixaram de consumir uma franja do orçamento e já representam 24% da despesa não obrigatória, engessando o espaço fiscal do Executivo.

A multiplicação de partidos, financiados por régias transferências públicas, pulverizou a representação política e dificultou ainda mais a formação de coalizões.

Frente às limitações fiscais, as lideranças do Congresso transformaram o modelo de distribuir para todos em distribuir prioritariamente para eles mesmos: financiamento de campanhas eleitorais, dos partidos e das emendas orçamentárias paróquias. Ao fazê-lo, desmoralizam o sistema político e alimentam o discurso de que democracia não dá certo.

Qualquer presidente que assuma em 2023 terá dificuldade em recuperar o controle do orçamento e da agenda política.

Em ambiente polarizado, não será fácil redesenhar o contrato social sem maiores turbulências.

Tive o prazer e o privilégio de trabalhar com Eduardo Guardia. Se tivesse lido esta coluna, ele me diria: “Marcos, você sempre pessimista. Vamos trabalhar e melhorar esse país!”. Edu, obrigado.

As entranhas expostas de uma Lava Jato global, por Ladislau Dowbor.

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Em livro devastador, executivo francês narra pressões políticas, policiais e judiciais que EUA exercem contra seus concorrentes. Relato evoca fatos ocorridos no Brasil e sugere: será preciso ação ousada (inclusive reestatizações) para reconstruir país

Ladislau Dowbor – OUTRAS PALAVRAS – 03/02/2022

É raro um depoimento, por parte de um executivo de uma grande corporação multinacional, no caso a Alstom, gigante francês do nuclear, de energia e transportes, detalhar como funcionam o que chamamos curiosamente de “mercados”, e que na realidade envolve guerra entre os grandes grupos, com uso aparelhado do Judiciário, com envolvimento profundo dos governos, e um conjunto de comportamentos que raramente afloram na mídia ou nas pesquisas. Somente uma pessoa de dentro, e em nível elevado de responsabilidade, poderia escrever como funciona o capitalismo realmente existente

Estamos falando da Alstom, que segundo o autor é um grupo “que tem a maior experiência nuclear do mundo. É a número um no fornecimento de centrais elétricas completas, bem como na sua manutenção, e equipa cerca de 25% do parque mundial. A empresa também é líder mundial na produção de energia hidrelétrica.”(164) O livro relata, capítulo por capítulo, como a General Electric americana, grupo ainda maior, conseguiu comprar a Alstom, usando para isso perseguições judiciais, prisões, e naturalmente este cavaleiro branco da política que é a luta contra a corrupção, em nome da qual podem ser feitas as maiores barbaridades.

Frédéric Pierucci, o próprio executivo da Alstom, escreve em primeira pessoa, com a ajuda do pesquisador e jornalista Matthieu Aron. Li o livro em um dia e meio, porque é muito bem escrito, um relato do dia a dia da guerra, mas pesquisado com muito detalhe, uma janela que nos permite entender como funciona efetivamente o sistema.

Há tempos apareceu um livro semelhante, Confissões de um Assassino Econômico, obra que apesar do título que sugere um policial, constitui também uma explicitação detalhada sobre os grandes contratos internacionais. Foi escrito por John Perkins, economista-chefe de uma grande empresa de construção americana.[1] Teve grande sucesso nos Estados Unidos, justamente por levantar o véu sobre como funcionam as grandes negociações internacionais.

Controlar a energia, a tecnologia do nuclear, grandes infraestruturas que representam imensos recursos e tecnologias de ponta, é vital para a soberania de um país. Como foi que a França, quinta potência econômica mundial, permitiu que este “florão da economia francesa” fosse arrebatado pela General Electric? Imaginamos o mercado como nos ensinam nos cursos de economia, do tipo que “vence quem presta o melhor serviço”, e não quem tem a máquina do poder político, militar e judiciário para abocanhar os concorrentes. Não achei no livro nenhuma simplificação ideológica, e sim um relato, dia a dia, de como funciona a guerra econômica. Com isso, abre-se uma janela sobre o funcionamento da política em geral.

A política se torna compreensível: “Qualquer que seja o ocupante da cadeira de Presidente dos EUA, seja democrata, seja republicano, carismático ou detestável, o governo em Washington sempre atende aos interesses do mesmo grupo de industriais: Boeing, Lockheed Martin, Raytheon, Exxon Mobil, Halliburton, Northrop Grumman, General Dynamics, GE, Bechtel, United Technologies, dentre outros…Os Estados Unidos, que se arvoram em dar lições de moral a todo o planeta, são os primeiros a fechar negócios fraudulentos nos diversos países sob sua zona de influência, a começar pela Arábia Saudita e o Iraque.” (329)

Os Estados Unidos são os primeiros e únicos a aprovar uma Lei Extraterritorial – de 1970, expandida de 1988 – que lhes permite prender uma pessoa de qualquer nacionalidade, por negócios nos mais diversos países, porque a justiça americana – empurrada por uma corporação americana – decide que foram violados interesses americanos. (172, 249, 326) Ou podem processar qualquer empresa que fizer negócios com um país que os Estados Unidos decidem unilateralmente como sendo submetido a um bloqueio. Ou seja, os grupos econômicos norte-americanos dispõem de uma arma de perseguição em escala mundial, com o Judiciário formalmente envolvido (o DOJ). E com o envolvimento, graças à colaboração das grandes plataformas de mídia social, da própria NSA, ou seja, do sistema de inteligência do governo.

O Brasil é mencionado em várias ocasiões, e não há como não fazer o paralelo entre a guerra pelo controle das tecnologias mais avançadas e dos maiores contratos internacionais, com o que foi a Lavajato no Brasil. Também desenvolvida em nome da luta contra a corrupção, com o apoio dos Estados Unidos, ela terminou por quebrar grandes concorrentes da construção como a Odebrecht, e por privatizar grande parte da base energética do país, em particular pedaços da Petrobrás e da Eletrobrás, sem falar de outro florão tecnológico do Brasil que é a Embraer. É guerra, e utilizar o Judiciário americano e brasileiro de forma escandalosa faz parte do sistema. O primeiro passo, como no caso da Alstom, é a privatização, que permite a apropriação externa por mecanismos financeiros. As ameaças e intervenções políticas e policiais fazem o resto. Você magina a China entregando o controle da sua base energética a corporações internacionais? Pela clareza e profundidade da exposição, uma leitura indispensável.

Desglobalização

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Vivemos num momento de grandes incertezas, as estruturas econômicas estão movimentando rapidamente, exigindo comportamentos diferenciados, a competição cresce de forma acelerada, a tecnologia se tornou o grande motor do desenvolvimento das nações, obrigando as nações a repensar as estratégias e retomar o planejamento econômico como forma de se adaptar as novidades e as incertezas da sociedade contemporânea.

O termo globalização ganhou relevância nas últimas décadas e levou as nações a repensarem suas estratégias de desenvolvimento econômico, investindo em capital humano e estimulando a pesquisa científica, renovando a integração entre os setores econômicos, construindo um verdadeiro ecossistema de inovação, fortalecendo as empresas nacionais e consolidando os atores produtivos para se adaptarem a concorrência externa, angariando novos mercados e garantindo espaços de lucratividade.

Os países que conseguiram desenvolver estratégias consistentes de inserção no ambiente globalizado foram os grandes ganhadores da globalização, construindo empresas internacionais, investindo fortemente na capacitação de seu capital humano e garantindo melhoria nas condições de vida da população e, muitos países conseguiram caminhar a passos largos para o desenvolvimento econômico.

Recentemente, percebemos muitas novidades no cenário internacional, a ascensão do modelo chinês, fortemente centrado no planejamento governamental, a crise imobiliária de 2008 que fragilizou os sonhos liberais que defendiam a pouca intervenção estatal e que gerou, ironicamente, um forte intervencionismo dos governos para evitar a bancarrota do capitalismo global, que contribuiu para a fragilização do pensamento neoliberal. Além disso, a pandemia desagregou as estruturas produtivas da economia internacional, gerando rupturas em cadeias de produção, falta de insumos fundamentais, aumento de preços e renascimento da inflação. Para piorar, vivemos uma verdadeira tempestade perfeita da sociedade global, a guerra em curso na Ucrânia está impactando fortemente sobre as nações, perdas de vida e destruições generalizadas, deixando claro a necessidade de repensarmos o paradigma econômico global.

Neste ambiente, percebemos o renascimento do protecionismo em todas as regiões, nações desenvolvidas que preconizavam a abertura econômica e o aumento da competição global passaram a adotar novos receituários econômicos, retomando medidas intervencionistas agressivas, com políticas fiscais expansionistas, incrementando a proteção de suas estruturas produtivas, aumentando os subsídios para seus setores produtivos e impondo barreiras para produtos importados como forma de defender setores nacionais. Vivemos um momento marcado pela construção de novos paradigmas econômicos e produtivos, onde destacamos o retorno do planejamento econômico e da adoção de uma nova forma de intervenção governamental.

As duas primeiras décadas do século XXI estão trazendo novos desafios para a sociedade global, o modelo globalizado nos levou a uma ampla terceirização produtiva que entrou em xeque em decorrência da covid-19, obrigando as nações a buscarem a superação de suas dependências externas, diminuindo a proximidade dos fornecedores externos, construindo novos atores internos competitivos, aumentando os investimentos internos em ciência e tecnologia, priorizando produtores locais que geram empregos qualificados no mercado interno e diminuindo o hiato tecnológico que caracteriza as economias em desenvolvimento.

Os desafios das próximas décadas são imensos e assustadores, mas precisamos compreender que um novo mundo está surgindo, com novas oportunidades, com novos modelos de negócios, com novas perspectivas monetárias, com novas hegemonias que exigem a construção de novos consensos e novos canais políticos, exigindo líderes visionários e competentes. A globalização trouxe grandes vantagens para muitos setores da economia internacional, melhorando a qualidade de vida da população, garantindo avanços substanciais na saúde, incrementando as tecnologias e garantindo alimentos para toda a comunidade internacional, mas infelizmente, não conseguiu garantir que os avanços sejam socializados para toda a sociedade mundial, quem sabe na desglobalização tenhamos mais sucesso.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 20/04/2022.

Brasil, o país das commodities, por Paulo Gala.

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Paulo Gala – 19/04/2022

Nos dois primeiros meses deste 2022 o valor total de nossas exportações foi 36% maior do que no mesmo bimestre de 2021. O volume de bens exportados cresceu 17% e os preços do que exportamos subiram 16% na mesma comparação. Os preços de importação também subiram muito, 34%, mas os volumes importados tiveram queda de quase 3% na comparação entre esses mesmos bimestres. Em março a balança comercial teve superavit de US$ 7,4 bilhões e até a segunda semana de abril registramos superávit de US$ 15,36 bilhões no acumulado do ano. A corrente de comércio, soma de exportações e importações, subiu 20,5% em relação a 2021, para US$ 147,1 bilhões, com as exportações chegando a US$ 81,23 bilhões e as importações a US$ 65,87 bilhões. Os dados que já temos para 2022 apontam para um superávit em nossa balança comercial de mais de US$ 80 bilhões, um feito histórico. Na mente dos investidores estrangeiros, o Brasil se consolida como o paraíso das commodities, o que ajuda a trazer dinheiro ao país. Por tudo isso, o real readquiriu seu status de “commodity-currency”: moedas que se apreciam muito em booms de commodities.

O Brasil já está no time de países com maiores reservas de petróleo do mundo graças à descoberta do pré-sal. Em 2022 estaremos entre as dez maiores produções de petróleo do planeta, com quase 4% da oferta mundial. O custo de exploração se revelou muito menor do que se imaginara e a qualidade do petróleo do pré-sal é ótima. Nosso setor de mineração segue também robusto. Os grandes projetos da Vale se concretizaram, com destaque para o S11D em Carajás, com uma das maiores capacidades produtivas do mundo. Nosso volume de exportação é enorme, além do boom de preços do mineiro de ferro, níquel, litium, cobre, etc. Para se ter ideia da força de Vale e Petrobras hoje, basta observar que em 2021 essas duas companhias distribuíram mais dividendos do que todas as empresas da bolsa brasileira somadas.

No setor agro a situação também é exuberante. O preço da arroba do boi acima de R$ 300, tendo chegado em R$ 350, promoveu grande ganho exportador do mercado da carne. Só para China exportaremos quase US$ 2 bilhões em carnes no primeiro trimestre desse ano, um recorde absoluto. Segundo índice da UN/FAO, só em Março os preços de alimentos subiram mais de 12%. Recorde histórico da série para um único mês. O setor agro brasileiro teve um superávit de U$105 bilhões em 2021, compensando nosso déficit de bens tecnológicos e industriais. Em 2021 o saldo negativo do setor industrial chegou a US$ 53 bilhões, o pior resultado desde 2015, mesmo num ano em que o superávit total da balança fechou em nível recorde. O boom de preços de commodities decorrente da pandemia e do conflito com a Ucrânia acabou favorecendo o Brasil pela via da alta de preços de bens agrícolas e energéticos, apesar do risco de falta de fertilizantes. A alta de preços de commodities sempre nos favoreceu no passado, inclusive quando viramos grau de investimento em 2008. Nesse cenário não teremos falta de dólares e investidores estrangeiros seguirão comprando Brasil. Nosso grande desafio continua sendo, entretanto, gerar empregos de qualidade para 90 milhões de pessoas.

Sem a recuperação de nossa indústria não conseguiremos tamanha façanha. O atual boom de commodities resolve nosso problema de divisas e ajuda no controle da inflação pela via da apreciação da moeda brasileira; fica faltando ainda a essencial retomada de nosso desenvolvimento industrial e tecnológico.

Como a Coreia do Sul tornou-se um país de insones, por BBC Brasil.

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Ritmo selvagem de trabalho e pressões sociais pelo “sucesso” e “produtividade” alimentam adição epidêmica em drogas do sono. À margem do distúrbio, surge uma indústria lucrativa, que vende de apps de meditação a travesseiros “ideais”

BBC Brasil – OUTRAS MÍDIAS – 18/04/2022

Ji-Eun começou a ter dificuldade para dormir quando sua jornada de trabalho ficou tão exaustiva que ela simplesmente não conseguia relaxar. Em média, ela trabalhava das 7h às 22h. Mas a jovem de 29 anos, que trabalha com relações públicas, às vezes ficava até 3h da manhã no escritório. Seu chefe chegava a ligar no meio da noite pedindo que alguma tarefa fosse feita na mesma hora.

“Eu quase esqueci como fazer para relaxar”, ela explica.

E seu caso não é isolado. A Coreia do Sul é um dos países com os maiores índices de privação de sono do mundo, com enormes efeitos sobre sua população.

Na Clínica Dream Sleep, no distrito Gangnam, em Seul, Ji-hyeon Lee, psiquiatra especializada no sono, diz que é comum receber pacientes que tomam até 20 comprimidos de remédios para dormir diariamente.
“Geralmente leva um tempo para pegarmos no sono, mas os coreanos querem dormir rapidamente, então se medicam”, ela conta.

O vício em remédios para dormir se tornou uma epidemia nacional. Não há estatísticas oficiais, mas estima-se que esse vício atinja 100 mil coreanos.

Sem conseguir dormir, muitos recorrem ao álcool misturado à medicação – com consequências potencialmente perigosas.
“As pessoas se tornam sonâmbulas. Vão até a geladeira, comem coisas de modo inconsciente, até comida crua”, diz Lee. “Houve casos de acidentes de carro em Seul causados por pacientes sonâmbulos.”

Lee está acostumada a receber insones crônicos que sofrem do que é conhecido como hiperexcitação (condição que produz ativação cerebral e nos impede de dormir bem). Alguns de seus pacientes lhe dizem que não dormem mais do que algumas horas por noite há décadas.

“Eles choram, mas ainda têm um fio de esperança (quando vêm à consulta). É uma situação muito triste”, diz a psicóloga.

Excesso de trabalho, estressado e privação do sono

A Coreia do Sul é uma das nações com mais privação do sono do mundo. Também tem a maior taxa de suicídio entre os países desenvolvidos, o maior consumo de bebidas destiladas per capita e um grande número de pessoas tomando antidepressivos.

Existem razões históricas que explicam essas estatísticas.
Em apenas algumas décadas, o país passou de um dos mais pobres do mundo para um dos mais tecnologicamente avançados.

Além disso, por meio de sua crescente influência na cultura pop, exerce considerável “soft power” (termo usado nas relações internacionais para descrever a capacidade de influenciar ações ou interesses por meios culturais e ideológicos).

Nações com um histórico semelhante, como a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos, poderiam explorar seus recursos naturais, mas a Coreia não tem essa riqueza oculta. O país transformou-se pela pura dedicação de uma população movida por um nacionalismo coletivo que os impelia a trabalhar mais e mais rápido.

O resultado é que os sul-coreanos estão sobrecarregados, estressados e privados de sono.

Agora, toda uma indústria se formou ao redor das pessoas incapazes de dormir – e essa indústria do sono foi estimada em US$ 2,5 bilhões em 2019.
Indústria em crescimento

Na capital Seul, as lojas de departamento são dedicadas a produtos para dormir, desde os lençóis perfeitos até o travesseiro ideal, enquanto as farmácias oferecem prateleiras cheias de medicamentos her/bais.

E há abordagens tecnológicas contra a insônia. Cerca de dois anos atrás, Daniel Tudor lançou um aplicativo de meditação – Kokkiri – focado em ajudar jovens coreanos estressados a dormir.

Embora a Coreia do Sul seja historicamente um país budista, os jovens pensam que a meditação é um passatempo para os mais velhos, não algo que um funcionário de escritório em Seul poderia fazer.

Daniel diz que teve que reimportar e reembalar a meditação como uma ideia ocidental para que os jovens coreanos a achassem atraente.

Instituições mais tradicionais também estão entrando em ação.

Hyerang Sunim é um monge budista que ajuda a organizar retiros em um templo fora de Seul, onde pessoas com privação de sono podem meditar e absorver ensinamentos budistas.

No passado, esses tipos de mini-pausas eram reservados para aposentados que buscavam ensinamentos e oração. Agora, os participantes tendem a ser coreanos mais jovens em idade de trabalhar.

Mas esses mesmos templos budistas também foram criticados por lucrar com esses tipos de retiros.
“É claro que há preocupações. Mas acho que os benefícios as superam”, argumenta Hyerang Sunim.
“Tradicionalmente, era raro ver jovens virem buscar os ensinamentos budistas. E eles têm agora muita interação com o templo.”

“Mudanças fundamentais”

Lee Hye-ri, que participou de um desses retiros budistas quando a pressão no trabalho se tornou intolerável, diz que aprendeu a assumir a responsabilidade por seu estresse.

”Tudo começa comigo; todos os meus problemas começam em mim. Foi o que aprendi aqui”, explica a jovem.
Mas enquadrar a solução para o estresse e a privação de sono como algo a ser tratado em um nível individual pode ser problemático.

Aqueles que acreditam que o problema é causado por uma cultura de trabalho irracional e pressões sociais criticaram essa abordagem individualista, dizendo que isso equivale a culpar as vítimas.

Esses críticos dizem que a meditação ou o relaxamento são uma colcha de retalhos e que soluções reais só podem surgir por meio de mudanças fundamentais na sociedade.

Ji-Eun, a personagem que abre esta reportagem, acabou tão privada de sono e estressada que decidiu deixar o emprego.

Ela agora trabalha horas muito mais razoáveis como freelancer e, devido à pandemia, pode trabalhar em casa. Também procurou ajuda profissional na clínica do sono de Lee para controlar sua insônia.

“Qual é o sentido de trabalhar tanto agora que chegamos ao topo como país?” diz Ji-Eun. “Devemos ser capazes de relaxar.”

O que perpetua a iniquidade brasileira? por César Locatelli.

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Livro analisa a dinâmica da desigualdade no Brasil e seus elos com a questão racial. Revela que o país teve três oportunidades históricas – perdidas – de alterar essa condição. O que aprender com a história para as lutas de hoje e amanhã?

Por César Locatelli

OUTRAS PALAVRAS – 18/04/2022

Parece existir uma força, equiparável à gravitacional, que faz a sociedade desigual sempre retornar ao seu curso secular após fugazes divergências de seu padrão. Três momentos da história brasileira marcam notavelmente essa breve saída do rumo e rápido retorno à reprodução da iniquidade.

Ainda na primeira metade do século XIX, aos africanos libertos, que exerciam a profissão de pedreiros, alfaiates, sapateiros etc., foi instituído um imposto exorbitante, do qual seriam isentos aqueles que se retirassem do Brasil.

A antropóloga e historiadora Manuela Carneiro da Cunha estima que cerca de 8 mil libertos deixaram o país rumo a África. “O Brasil renunciava à criação de uma classe média negra”, revela Mário Theodoro em A Sociedade Desigual. A Lei de Terras (1850) e os estímulos dados aos imigrantes europeus viriam a agir no mesmo sentido.

“Assim, ao final do século XIX, fosse no campo ou na cidade, os negros no Brasil pareciam condenados à pobreza e à miséria. Quando houve a possibilidade de alguma ascensão social, como ocorrido na primeira metade daquele século, ela foi refreada, inclusive com sanções de ordem econômica e jurídica por parte do poder público e incentivo para deixar o país. Progressivamente alijados dos setores mais dinâmicos da economia – a produção exportadora, a indústria e os ramos mais prósperos do comércio –, os negros ficaram restritos aos serviços pessoais e subalternos.
A pobreza urbana no Brasil do século XIX é negra.” (p. 117)

O segundo momento, que continha todos os ingredientes que foram necessários e suficientes para, em outros países, reduzir-se a desigualdade e a pobreza, foi o longo período de industrialização do país, entre 1930 e 1980. O crescimento per capita médio do produto interno brasileiro foi de “impressionantes 3,86% anuais”, por 50 anos!

Mais uma vez os negros foram excluídos. Explica Theodoro que “a concentração de renda observada no período foi reforçada a partir da clivagem racial. A população negra não participou diretamente dessa festa, não logrou compartilhar plenamente os frutos desse que foi um dos períodos de maior crescimento de um país na história recente. Crescer gerando pobreza, miséria e desigualdade: esse foi o preceito do período de maior prosperidade vivenciado pelo Brasil. Um ‘milagre’ para poucos” (p. 138).

Entre 2004 e 2014, os governos Lula e Dilma promoveram a retirada de 30 milhões de pessoas da pobreza. Além do crescimento econômico do período, concorreu para essa redução inédita da pobreza na história brasileira o processo sustentado de redistribuição de renda, pela via de aumentos reais do salário mínimo, do Bolsa Família e da
Previdência Social.

Os benefícios impactaram brancos e negros, entretanto, não o fizeram de modo homogêneo: “Apesar da benfazeja evolução de redução da pobreza, houve um aumento da participação da população negra no grupo que se manteve em situação de pobreza: o percentual de negros entre os 10% mais pobres subiu de 73,2% em 2004 para 76% em 2014” (p. 154).

A despeito dessa “anomalia”, uma década de desvio de rota, a sociedade desigual volta aos trilhos: “desde 2016 adotou-se no país uma estratégia de política econômica e fiscal que terminou por fragilizar os direitos do trabalho e enfraquecer e reduzir a base financeira, contributiva e orçamentária da seguridade social brasileira. Os impactos nocivos aos trabalhadores são evidentes, bem como as consequências para o fortalecimento da informalidade e da precariedade do trabalho”. (p. 164)

Por mais que a sociedade desigual se perpetue como se estivesse sujeita a uma força gravitacional, que sempre a devolve para as condições de reproduzir as desigualdades, é evidente que as forças que a tornam imutável são forças sociais que nada têm de natural. Que força poderosa seria essa, então? Mário Theodoro responde logo na introdução de seu livro:

“A pobreza, a miséria e, principalmente, a desigualdade são fenômenos que remontam à própria criação do Brasil, e têm raízes na questão racial. Os quase quatro séculos de escravidão forjaram as condições para o aparecimento, o fortalecimento e o consequente protagonismo do racismo como fator de organização e estruturação das relações sociais no país. Desse modo, o racismo consolidou-se como a ideologia que diferencia e hierarquiza as pessoas em uma escala de valores que tem como polo positivo o biotipo branco caucasiano e como polo negativo o biotipo negro africano. É sob essa valoração que a sociedade brasileira se organiza e opera — e é nela que se baseia o reconhecimento social do indivíduo, historicamente construído e que explica a perpetuação da desigualdade.” (p. 15)

Em outras palavras, está marcada a ferro nos valores da sociedade brasileira que o que é branco é superior. Ao olhar para a desigualdade, a partir dessa perspectiva superior, parece “natural” que uma parte da sociedade tenha mais direitos que a outra. “O racismo assume, desse modo, papel central como elemento organizador da sociedade desigual”, complementa Theodoro. Desse modo, o que perpetua a sociedade desigual é o racismo e seus desdobramentos.

O profundo trabalho do autor é testar suas premissas, de que a naturalização da desigualdade é funcional e que os grupos hegemônicos têm interesses na existência e na perpetuação do racismo, contra a história do país desde sua constituição escravagista até os dias atuais.

Seu estudo caminha através do mercado de trabalho brasileiro (capítulo 2), com abundantes evidências das limitações da força de trabalho negra à informalidade e ao subemprego. Prossegue com os sistemas de educação e saúde (capítulo 3), que atende privilegiadamente as classes com mais recursos, ou seja, segmentos majoritariamente brancos. A análise da ocupação dos espaços urbanos e rurais (capítulo 4) constata a expulsão dos trabalhadores negros do campo e a semiapartação das cidades, onde à população negra restam as favelas, os mocambos e as periferias.

A violência como prática de Estado (capítulo 5), com amplas evidências de que o racismo marca as decisões do sistema de justiça e seus operadores, é entendida como o elemento aglutinador da sociedade. O aprofundamento analítico da sociedade desigual (capítulo 6) é a tentativa de, ao juntar as partes, desvendar a razão de sua perenidade.

Um de suas constatações fundamentais é que:
“Em resumo, o racismo se desdobra em discriminação e preconceito no cotidiano, nas relações pessoais, no trabalho, nas escolas, nas repartições públicas, nos hospitais e postos de saúde, nos bares e nas esquinas e o combustível para esses comportamentos é a vigência em nível macro de outras facetas desse mesmo racismo: a branquitude, que legitima a ideia de superioridade e de poder do branco; o biopoder, que desincumbe o Estado de qualquer obrigação ou responsabilidade social para com a população negra; e por fim, e mais diretamente letal, a necropolítica, que faz do Estado o executor de uma política de morte e de genocídio.” (p. 335)

Serviço

Livro: A Sociedade Desigual: Racismo e branquitude na formação do Brasil
Autor: Mário Theodoro, economista e mestre pela UFPE e doutor pela Universidade Paris I – Sorbonne. Consultor legislativo aposentado do Senado Federal, foi secretário-executivo da Seppir e diretor da área de estudos internacionais do Ipea. É professor visitante no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos da UnB.
Editora: Zahar, 2022

A vitória do SUS, por Márcia Castro.

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Necessidade de um sistema de saúde universal e de qualidade deve ser prioridade nas escolhas eleitorais

Marcia Castro, Professora de demografia e chefe do Departamento de Saúde Global e População da Escola de Saúde Pública de Harvard

Folha de São Paulo, 18/04/2022.

O Sistema Único de Saúde (SUS), uma conquista de movimentos sociais, é um dos maiores mecanismos de redução de desigualdades em saúde que o Brasil já teve.

Ao longo de 30 anos, o SUS teve papel fundamental na redução da mortalidade infantil, de mortes e hospitalizações evitáveis, de iniquidades raciais na mortalidade, de desigualdades no acesso a atenção primária, na produção de vacinas e imunização da população, e na distribuição de medicamentos sem custo, dentre outras conquistas.

Desde sua criação, o financiamento do SUS não tem sido ideal para permitir a universalidade prevista na Constituição.

A instituição do teto de gastos em 2016 impôs dificuldades ainda maiores. Um estudo publicado na Revista Lancet em 2019 estimou que o teto de gastos não só poderia reverter conquistas do SUS, mas que o retrocesso seria maior em áreas mais vulneráveis, o que aumentaria as desigualdades regionais em saúde. O que era uma estimativa virou realidade.

A chegada da pandemia de Covid-19 no Brasil encontrou o SUS extremamente subfinanciado. A pífia atuação do governo federal na resposta à pandemia tornou a situação ainda pior. Entretanto, não fosse o SUS, muito mais do que 662 mil vidas teriam sido perdidas.

O trabalho de cada pessoa que move a complexa máquina de atenção à saúde (o que inclui portaria, triagem, segurança, transporte, lavanderia, limpeza, cozinha, atendimento médico, exames laboratoriais, enfermagem, cirurgia etc.) foi incansável. Muitos perderam a vida.

Essa realidade do SUS foi brilhantemente retratada no documentário Quando falta o ar. Produzido pelas irmãs Ana e Helena Petta, o documentário foi o vencedor do É Tudo Verdade, o 27º. Festival Internacional de Documentários, o mais importante prêmio do gênero na América Latina.

A morte, tão constante durante a pandemia, é um tema presente no documentário. A genialidade da obra, entretanto, está em ter trazido o dia a dia dos trabalhadores do SUS durante a pandemia, o saber ouvir e cuidar, a empatia e a solidariedade, os gestos de carinho, e a coragem de enfrentar o medo apesar da exaustão emocional.

Ao mostrar os desafios do atendimento a populações ribeirinhas na Amazônia, a rotina de uma UTI, o trabalho em uma unidade prisional e a rotina de agentes comunitários de saúde e médicos de família, o documentário expõe uma realidade ignorada por uma parcela da população brasileira.

Quando falta o ar é um relato humanizado da vitória de um sistema de saúde que remou contra a maré para salvar vidas, é uma obra de arte e de conscientização social. Deve ser visto por todos que se importam com o Brasil.

Durante a vacinação contra a Covid-19 foram comuns as manifestações de apoio ao SUS com cartazes, declarações e postagens orgulhosas de cartões de vacinação em redes sociais. Esse apoio precisa continuar.

As críticas, tão comuns ao SUS antes da pandemia, deveriam se transformar em cobranças da sociedade para que as lideranças priorizem a atenção à saúde com equidade e, portanto, fortaleçam o SUS. Criticar sem buscar mudança é inútil.

Como disse a médica de saúde da família Rafaela Pacheco, no documentário Quando falta o ar, “O SUS é uma política de estado, não é uma política de governo.” Governos ruins vêm e vão. Causam retrocessos. Mas o SUS há de prevalecer. Caso contrário, 160 milhões de pessoas no Brasil não teriam acesso a saúde.

Que a importância do SUS durante a pandemia, apesar das dificuldades, jamais seja esquecida. E que a necessidade de um sistema de saúde universal e de qualidade no Brasil seja uma prioridade nas escolhas eleitorais em outubro.

Ilegalismo autoritário é obra de juristas, por Conrad Hubner Mendes.

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Existe diferença entre instrumentalizar o direito e arrebentá-lo

Conrad Hubner Mendes, Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade – SBPC

Folha de São Paulo, 14/04/2022

Democracias pelo mundo passam por processo gradual de autocratização na última década. Sobretudo algumas emergentes ali pelos anos 90, que buscaram romper, por meio de nova Constituição, com o passado autoritário à esquerda ou à direita.

O Brasil integra esse clube de elite, que reúne Venezuela e Hungria, Polônia e Nicarágua, entre outros. O governo Bolsonaro fez acelerar o processo e virou um dos líderes dessa onda. Um meteoro.

Quem diz isso não é o PT, nem “a esquerda”, nem os cavaleiros da távola comunista, mas relatórios globais produzidos por centros de pesquisa no mundo. Seja por qual ângulo se observa (o da democracia, estado de direito, liberdade de expressão, liberdade acadêmica, liberdade de imprensa etc.), as curvas apontam para baixo.

Um dos esforços empreendidos por estudiosos do fenômeno foi entender qual tem sido o papel ou a contribuição do direito nessa história. De que formas um autocrata pode autocratizar o regime sem chamar atenção até que fique tarde demais e os dispositivos de autodefesa da democracia já estejam dilacerados?

A resposta tem sido: reformando, peça por peça, com aparência de regularidade jurídica e procedimental, a espinha dorsal da arquitetura constitucional. De um modo tão dissimulado que deixe os grilos falantes da mensagem “instituições funcionando” cantando tranquilos. A professora norte-americana Kim Scheppele deu a isso o nome de “legalismo autocrático”. O termo pegou.

Bolsonaro criou seu repertório para se relacionar com o direito. Entre suas técnicas está a hiperprodução de normas clamorosamente ilegais (decretos, resoluções, portarias), ou, a partir da aliança com Arthur Lira, de uma avalanche de projetos de lei de clara inconstitucionalidade.

A estratégia desafia instituições judiciais, que recebem o peso político de fazer seu dever: declarar a ilegalidade ou inconstitucionalidade da norma. Gera estresse e fadiga da legalidade. Podem haver razões jurídicas óbvias para a invalidação, mas faltam a juízes força e vontade de segurar o rojão.

Bolsonaro acrescenta ao repertório um discurso incivil que estimula o desrespeito à lei e promete ao crime organizado (como garimpeiros, grileiros e traficantes de madeira) a leniência fiscalizatória.

O discurso incivil também intimida e estigmatiza grupos sociais, que passam a viver em estado de apreensão (cientistas, professores, jornalistas, artistas, indígenas, defensores de direitos etc.). Alguns desses indivíduos são mortos, outros assediados.

O erro de caracterizar esse repertório da delinquência política como legalismo autocrático ou, na versão brasileira, infralegalismo autoritário, é supor que, em qualquer lugar da operação, haja “legalismo”. Ou que, na manipulação escancarada de procedimentos e na violação explícita da substância de normas constitucionais ou legais, pelo menos a formalidade jurídica está sendo respeitada. Não está. Nunca esteve. Nem a letra, nem o espírito da lei.

Parece uma firula acadêmica, mas não é. O termo “legalismo” tem uma tradição. Filósofos do direito dos mais diversos enxergam no legalismo valores formais que, ainda que insuficientes, são pré-requisitos para a autonomia individual e o governo livre.

O pedigree “legalismo” foi conferido a uma prática que não cumpre sequer exigências formais elementares como publicidade e estabilidade das normas, o limite à discricionariedade manipulativa, ou a congruência entre o conteúdo da lei e o ato do agente público. Parece pouca coisa, mas é pouca coisa que autocrata não respeita. Não dá para dar o nome de “legalismo” à chula ilegalidade.

Melhor, portanto, chamá-lo de “ilegalismo” autoritário. Esse processo não instrumentaliza o direito, apenas o arrebenta. Instrumentaliza, sim, juristas invertebrados que dão seu selo de expertise à violência institucional.

Como cada ministro da Justiça, cada advogado da união e procurador, cada jurista que, dentro ou fora do governo, por meio de pareceres abstrusos, buscou validar juridicamente a corrosão institucional do país (“cupinização”, na metáfora de Cármen Lúcia).

Ou chamá-lo, alternativamente, e com mais exatidão, de “juristismo” autoritário, pois ilumina a face humana e encarnada da operação. É o jurista servil e alpinista, barato e saltitante, que opera a máquina. A legalidade formal, ou legalismo, passa longe desses “técnicos” do direito. Um problema concreto de ética individual e profissional, não só de hermenêutica jurídica.

Juristas sem compromisso com os valores pressupostos pelo estado de direito, valores sem os quais a defesa do estado de direito se torna vazia e desprovida de sentido, são personagens onipresentes na história universal do autoritarismo.

Por onde tenha passado um autocrata, havia no seu bolso um chaveirinho que se dizia jurista. Esse bibelô verborrágico e perverso nunca praticou legalismo.

Emergência alimentar, por Nathalie Beghin.

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Responsável pela alimentação básica, agricultura familiar deve ser valorizada

Nathalie Beghin, Economista e coordenadora da assessoria política do Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos) e ex-conselheira do Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional)

Folha de São Paulo, 13/04/2022

Na última semana de março, o Datafolha revelou resultados assustadores de uma pesquisa que perguntou à população brasileira se achava que a comida dentro de casa era considerada suficiente para os seus moradores.

Como é possível que, em uma das economias mais ricas do mundo, uma em cada quatro pessoas responda que a alimentação domiciliar está muito aquém do necessário? E mais: entre os mais pobres, 35% avaliaram que não há comida suficiente. A pesquisa também explicitou as enormes desigualdades regionais, pois é no Nordeste que a situação de insegurança alimentar e nutricional é pior. Urge a implementação de medidas emergenciais.

Sim, o país voltou a esse grave e conhecido quadro, de onde havia saído, em 2014 (poucos anos atrás), do Mapa da Fome das Nações Unidas.

As causas que explicam a deterioração do quadro alimentar e nutricional no Brasil são muitas. Temos um modelo agroalimentar que, infelizmente, pouco valoriza a agricultura familiar, principal responsável por nossa alimentação básica. As energias estão direcionadas para a agropecuária de grande porte, voltada à exportação. Assim, cresce a produção de soja e milho em detrimento da de arroz, feijão e mandioca, entre outras. Os trabalhadores do campo são expulsos de suas propriedades, engrossando as periferias empobrecidas das cidades, com enormes dificuldades para se alimentar.

A crise econômica que caracteriza o Brasil dos últimos anos e que se agravou em decorrência da pandemia de Covid-19 jogou milhões de pessoas no desemprego e na precariedade. A renda insuficiente dificulta e, em muitos casos, impossibilita a compra de alimentos. O levantamento do Datafolha revela que, entre os desempregados, 38% disseram que não tiveram comida suficiente.

Outro fator agravante é o da inflação e, especificamente, da inflação alimentar, que penaliza os empobrecidos. Os preços dos alimentos subiram mais de 20% desde o início da pandemia. O efeito da elevação dos preços é mais severo sobre os mais pobres. De acordo com o IBGE, os gastos com alimentação representam cerca de 20% da renda dos brasileiros. Se analisado entre as famílias que vivem com 1 a 5 salários mínimos, o peso da alimentação chega a um quarto de seus rendimentos. Dai que a combinação da queda da renda com o aumento dos preços dos alimentos resulta em falta de comida dentro de casa.

Uma causa relevante do significativo aumento da fome no Brasil está fortemente relacionada ao desmonte da institucionalidade federal da segurança alimentar e nutricional operado pelas gestões Michel Temer (MDB) e Jair Bolsonaro (PL), associada a uma política fiscal contracionista implementada desde 2016 por meio, especialmente, do teto de gastos.

O abandono de uma atuação intersetorial e sistêmica, assim como a extinção das instâncias de participação social, impediu a identificação dos principais problemas alimentares e das demandas da sociedade; o enfraquecimento de mecanismos de regulação do mercado dificultou o controle da inflação, particularmente a alta de preços dos alimentos; a desarticulação de estratégias de fortalecimento da agricultura familiar, principal responsável pela alimentação básica da população brasileira, contribuiu para a inflação de alimentos e para a carestia; os programas de aquisição e de distribuição de alimentos, como o Programa das Cisternas, o Programa de Alimentação Escolar e o Programa de Aquisição de Alimentos foram enfraquecidos —desse modo, pouco mitigaram o problema da fome.

Essa situação agrava as desigualdades raciais, pois é a população negra a mais afetada pela fome. Agrava também as desigualdades regionais, pois como vimos o Nordeste é o mais penalizado. E piora as desigualdades geracionais: de acordo com o Unicef, 61% das crianças e dos adolescentes vivem na pobreza, sendo, portanto, mais impactados pela carestia alimentar.

A fome tem pressa, não pode esperar. Urge implementar desde já uma ação emergencial de combate à fome. Urge, ainda, retomar a política nacional de segurança alimentar e nutricional para enfrentar as causas estruturais da fome no Brasil.

Movimentos geopolíticos

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Vivemos momentos de grandes transformações na sociedade contemporânea, a pandemia está gerando novos paradigmas econômicos e geopolíticos, novos desafios e oportunidades, além de abrir espaços para novos modelos produtivos. O mundo do trabalho vive mudanças avassaladoras, os relacionamentos estão em constante movimento e os indivíduos seguem atônitos e marcados por fortes desesperanças, gerando ansiedades, instabilidades financeiras e incertezas sociais, além do crescimento dos desequilíbrios emocionais, afetivos e espirituais. O cenário descrito não se restringe a países como o Brasil, vivemos movimentos globais que impactam sobre todas as nações, organizações e indivíduos.

A globalização ganhou espaço na agenda dos governos nacionais desde o período posterior a segunda guerra mundial, difundindo e uniformizando os modelos econômicos e produtivos, impondo estruturas de consumo e definindo o comportamento dos indivíduos e comunidades, tendo a moeda norte-americana, o dólar, como o instrumento monetário internacional, garantindo ganhos extraordinários para seu emissor. Neste instante, percebemos que os modelos construídos anteriormente vêm perdendo espaço na geopolítica mundial, os Estados Unidos perderam força econômica e dinamismo produtivo, além de vivermos num período de grandes conflitos geopolíticos e confrontos militares que tendem a se perpetuar por algumas décadas e que devem redefinir as estruturas de poder com impactos generalizados para todas as regiões, reconfigurando o conceito de autonomia e soberania.

Neste momento, os países que conseguirem construir estratégias mais consistentes tendem a ganhar espaço na comunidade internacional. No caso brasileiro, precisamos capacitar e desenvolver políticas públicas que estimulem as potencialidades mais evidentes da comunidade e construindo um forte planejamento estratégico em setores imprescindíveis para a sociedade, fortalecendo setores nacionais que mostrem potenciais de concorrência e angariando aumentos constantes de produtividade e de eficiência, além de estimularmos a construção de um mercado interno consistente e diversificado, que garanta dinamismo econômico, fortalecendo a empregabilidade da população, incremento da renda agregada, consolidando salários e garantindo recursos para satisfazer as necessidades materiais, reduzindo a pobreza generalizada que crassa na sociedade nacional.

As mudanças geopolíticas em curso na sociedade mundial podem abrir novas oportunidades para as nações que se prepararem para os novos cenários que estão sendo redesenhados na contemporaneidade. As nações que conseguirem diversificar as estruturas produtivas, reduzindo as fragilidades econômicas, buscando a autossuficiência interna em setores estratégicos e criando espaços para desenvolvimentos regionais.

Está nascendo na sociedade global um novo paradigma de produção, que tende a valorizar os parceiros regionais, a cultura local deve ser estimulada, os laços históricos devem ser consolidados e as rivalidades devem ser deixadas de lado, em prol de uma construção mais consistente e equilibrada, sob pena de perdermos mais uma oportunidade de construirmos uma sociedade menos desigual e mais equilibrada.

A ascensão das economias asiáticas nos traz novas oportunidades e, ao mesmo tempo, novos desafios, que exigem consensos internos para participarmos num ambiente marcado pela alta concorrência e pela forte competição, deixando de lado futilidades, mesquinharias e interesses políticos imediatos que caracterizam o nosso subdesenvolvimento. O sucesso dos países asiáticos demonstra o papel central e fundamental dos Estados Nacionais na construção de um projeto nacional, garantindo mercados internos dinâmicos e consolidados que garantam demandas internas e estimulem os investimentos produtivos, ao mesmo tempo, criando estratégias macroeconômicas que reduzam as taxas de juros e garantam preços reduzidos de insumos fundamentais para o crescimento da economia.

A experiência internacional nos mostra que a construção de um mercado interno é fundamental para o desenvolvimento de uma nação, mostrando que o que estimula o crescimento dos investimentos produtivos é a perspectiva de retorno financeiro e ganhos adicionais. Novamente, estamos no caminho equivocado.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 13/04/2022.

Piketty: “é preciso lutar mais pela igualdade”

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No rastro do lançamento de seu novo livro, pensador francês provoca: “o neoliberalismo está no fim”. Ele prossegue: ou a esquerda tira as consequências deste fato ou, como no século passado, os fascistas o farão

OUTRAS PALAVRAS – 06/04/2022

George Eaton é editor-chefe de “New Statesman”.

Thomas Piketty não é um pensador conhecido pelo otimismo. Sua obra mais notável, O capital no século XXI (2013) alertou que o mundo estava regredindo para uma era de “capitalismo patrimonial” na qual enormes desigualdades de riqueza são mantidas através de gerações.

Mas o novo livro do economista francês, A Brief History of Equality [Uma breve história da igualdade, publicado originalmente em francês e lançado agora em inglês], adota uma perspectiva radicalmente diferente. Ele argumenta que tem havido, desde o final do século XVIII, um “movimento histórico em direção à igualdade” – e que é provável que esta tendência continue.

Será que Piketty escreveu o livro porque teme que a esquerda tenha se tornado muito negativa? “Vai além dela; acho que todos estamos obrigados a ser mais propositivos”, disse ele quando falamos por vídeo-chamada. “Se você olhar para as evidências históricas que recolhi, o que verá é que, a longo prazo, há um movimento em direção a mais igualdade política, mais igualdade social e mais igualdade econômica”.

Ele referia-se “ao fim da escravidão, à emergência do sufrágio universal masculino e ao aumento dos direitos dos trabalhadores”. O processo continuou no século XX com a descolonização, a Previdência Social, com a tributação progressiva e o sufrágio feminino, e prossegue hoje com movimentos como o #MeToo e o “Black Lives Matter”.

A intenção de Piketty não é minimizar o aumento da desigualdade de renda e riqueza que definiu a era da supremacia do mercado, muito menos sugerir que vivemos no melhor dos mundos possíveis. Ao contrário, ele quer que “façamos um balanço de todas essas melhorias para pensar nos próximos passos possíveis”.

Uma motivação secundária para o livro foi seu desejo de “escrever algo mais curto” do que suas duas obras anteriores (O capital no século XXI tem 696 páginas; sua sequência, Capital e Ideologia, tem 1150). “Havia tanta gente me dizendo: ‘Por que você não escreve algo mais curto que eu possa compartilhar com amigos e familiares?

Durante alguns anos, achei que precisava escrever uma síntese que fosse direto ao ponto principal”.

A vez anterior em que entrevistei Piketty foi no início de fevereiro de 2020, antes da pandemia de covid-19 redesenhar o mundo econômico. Será que ele acredita que a era neoliberal está definitivamente terminada? “Já estava perto do fim após a crise financeira de 2008, mas, sim, a pandemia confirmou à sua maneira que a era do neoliberalismo, que começou nos anos 80, está em grande parte terminada”.

“A grande questão”, acrescentou ele, citando Donald Trump, o Brexit e a ascensão de nacionalistas autocráticos como Vladimir Putin, Jair Bolsonaro e Narendra Modi, é “se o fim do neoliberalismo é o começo do neonacionalismo”.
Na Europa, a pandemia foi agora eclipsada pela guerra na Ucrânia, e Piketty não está impressionado com a resposta econômica do Ocidente. “Nesta fase, tudo o que reclamamos sobre sanções e oligarcas está próximo de um pensamento ilusório. Seria preciso um movimento de transparência em relação à propriedade de bens, o que não está acontecendo.

Se queremos ser sérios quanto às sanções, não são apenas algumas centenas de pessoas; há cerca de 20 mil russos que possuem mais de 10 milhões de euros e cerca de 50 mil com mais de 5 milhões de euros”.

“Construímos um sistema legal que dá enorme proteção aos indivíduos de alta riqueza, de onde quer que venham – Rússia, China ou Ocidente – e muito pouca… às pessoas normais”. Enquanto tivermos esse sistema, será muito difícil convencer a opinião russa, ou internacional, de que somos sérios quando falamos de justiça econômica e democracia”.

A guerra na Ucrânia intensificou a crise dos padrões de vida no Reino Unido e na Europa e elevou ainda mais as contas de energia em boa parte do mundo. Piketty acredita que será necessária uma intervenção dramática do Estado, do tipo da que foi vista durante a pandemia?

“É claro que se não mudarmos completamente nossa abordagem da política climática, teremos movimentos de coletes amarelos por toda parte”, advertiu ele, referindo-se aos manifestantes franceses que sacudiram a presidência de Emmanuel Macron. Ele ressalta que as emissões de carbono per capita dos 50% mais pobres do mundo estão de acordo com as metas de 2030. “O problema é que… os primeiros 1% emitem entre 70 e 75 toneladas” – trinta vezes o limite per capita para limitar o aquecimento global a 1,5°C.

Piketty nasceu em 1971 no subúrbio parisiense de Clichy, filho de pais de esquerda, que foram membros do partido trotskista Lutte Ouvrière. Seu filho, entretanto, nunca se identificou com a esquerda revolucionária. (Uma visita à União Soviética em 1991 o convenceu dos méritos de uma economia com mercado). Ao contrário, ele é um reformista radical cujas propostas políticas, tais como alíquotas de imposto sobre renda e propriedade de até 90%, e um teto de 10% para o poder de voto dos acionistas, não visam humanizar o capitalismo, mas sim forjar o que ele chama de “socialismo participativo”.

Piketty, que completou seu doutorado em redistribuição de riqueza aos 22 anos na London School of Economics, atuou em 2007 como assessor econômico da Ségolène Royal, que era a candidata presidencial francesa do Partido Socialista.

Hoje, ele atribui a reeleição antecipada de Emmanuel Macron à maneira como covid-19 “congelou a discussão política” na França e permitiu ao liberal Macron “parecer um presidente mais social”.

Em Capital e Ideologia, Piketty traçou a ascensão da “esquerda brâmane” (a elite educada/cultural, que mudou a
esquerda nas últimas décadas) e da “direita mercante” (a elite rica). O sucesso político de Macron, ele pensa, foi unir os dois grupos.

Piketty despertou a atenção política no Reino Unido pela primeira vez quando apareceu no parlamento em 2014 e se encontrou com o então líder trabalhista, Ed Miliband. Mais tarde ele se juntou ao comitê consultivo econômico de Jeremy Corbyn, em setembro de 2015, mas deixou-o junho de 2016, alegando falta de tempo e preocupações com a “fraca campanha dos trabalhistas” durante o referendo sobre a permanência na União Europeia. Qual é a sua avaliação sobre Brexit agora?

“Penso que a longo prazo será um fracasso para o Reino Unido, mas também é um fracasso para a União Europeia. Em meu país, e em muitos países europeus, as pessoas olhavam para Brexit e diziam: ‘Oh, esses estúpidos nacionalistas britânicos, não há nada que possamos fazer a respeito deles’ – um pouco como os democratas norte-americanos, para os quais não há nada que se possa fazer a respeito dos racistas brancos que votam em Trump. Mas eu acho que esta é a maneira errada de olhar para o problema.”

“A forma como organizamos as relações econômicas, a concorrência dentro da Europa e em especial a globalização, tem sido benéfica principalmente para as pessoas com o mais alto capital humano e o mais alto capital financeiro. Se não encontrarmos uma maneira de mudar isso, teremos outros Brexits em algum momento”.

Sua mensagem para o Partido Trabalhista inglês, agora dirigido por Keir Starmer, é semelhante: “Se vocês não mudarem sua plataforma econômica e social para convencer os eleitores da classe trabalhadora de que oferecem algo melhor do propõem os nacionalistas e os antiimigrantes, não vai funcionar”.

Embora Piketty tenha poucas palavras de elogio a qualquer governo, ele permanece, talvez paradoxalmente, otimista. “O neonacionalismo e o recuo identitário são sempre mais fáceis; eles proporcionam linhas de atração e estratégias de mobilização muito mais simples. Mas no final, isso não vai resolver os problemas que temos diante de nós: desigualdade, aquecimento global, migração. No final, teremos que continuar o movimento em direção à igualdade, porque é o que permitirá resolvê-los”.

Livro revela atuação da ditadura brasileira no golpe contra Allende

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Enquanto lia ‘O Brasil contra a Democracia’, o ronco dos gorilas ecoava de Brasília, ocupada pela xepa do regime militar

Karla Monteiro, Jornalista e escritora, publicou os livros “Karmatopia: Uma Viagem à Índia”, “Sob Pressão: A Rotina de Guerra de um Médico Brasileiro” (com Marcio Maranhão) e “Samuel Wainer: O Homem que Estava Lá”

Folha de São Paulo, 12/04/2022

No capítulo 13, intitulado 11 de setembro de 1973, meu queixo tremeu: o La Moneda sob intenso bombardeiro, Salvador Allende entrincheirado, a opção pelo suicídio. Quando já não mais podia resistir, o presidente do Chile, eleito democraticamente no pleito de 1970, apoia o maxilar na ponta do cano da AK-47 que Fidel Castro lhe presenteara e aperta o gatilho.

Nas últimas três semanas, mergulhei neste livro espetacular: “O Brasil contra a Democracia”, do jornalista Roberto Simon. Enquanto eu devorava as quase 500 páginas, de Brasília, a capital ocupada pela xepa do regime militar, chegavam-me roncos dos gorilas, celebrando o 31 de março. Aliás, os gorilas não merecem a associação. Mas era assim que os fardados traidores da democracia eram chamados no tempo retratado na obra.

Muito bem-documentado e muito bem-escrito, o livro de Simon nos planta na América do Sul das quarteladas, costurando com maestria a trama que conecta a ditadura brasileira a Washington, com Brasil e Estados Unidos atuando em paralelo para desestabilizar o Chile de Salvador Allende. Não satisfeita em aniquilar a liberdade em território nacional, a gorilada se esforçava para exportar barbárie para todo o Cone Sul.

A imagem cristalizada do Brasil cordeiro dos Estados Unidos tomba. Como nos demonstra o autor, o presidente Médici tinha suas próprias motivações. Além das questões de ideologia e geopolítica, o Chile dos anos 1970 era um ninho de “subversivos” brasileiros.

Entre esses, nomes notórios, como Darcy Ribeiro, Almino Afonso, José Serra, Carlos Minc. Para estender os tentáculos da repressão, tornava-se urgente golpear a “Cuba do Pacífico”.

A CIA NO CHILE
Por sua vez, o republicano Richard Nixon também encontrava-se incomodado com a ascensão de um socialista ao governo do Chile. A documentação que Simon amealhou nos arquivos americanos é riquíssima. Nas conversas de Nixon com seus assessores, a trama que, anos antes, derrubara Jango no Brasil, surge em frases casuais.

Por exemplo: “Walters é agressivo, criativo, impiedoso e teve muito a ver com o que aconteceu no Brasil em 1964”, comenta orgulhoso o presidente dos Estados Unidos, falando de Vernon Walters, adido militar na embaixada no Rio à época do golpe.

Em 1971, ao visitar a Casa Branca, Médici contou a Nixon que estava em contato com militares chilenos para apear Allende e previu que este desfecho não tardaria. De pronto, o presidente americano, atolado até o pescoço no Vietnã, ofereceu “dinheiro ou outra ajuda discreta”.

Antes mesmo de Allende ser eleito, na verdade, Henry Kissinger, conselheiro de Segurança Nacional e eminência parda da política externa do governo Richard Nixon, já havia decidido o destino de Allende. Na sua avaliação, os Estados Unidos não deveriam “ficar parados e ver um país virar comunista por causa da irresponsabilidade do seu próprio povo”.

“Nixon acreditava que, do México para baixo, apenas ditaduras eram realmente confiáveis e boas para os Estados Unidos. Regimes civis davam dores de cabeça”, escreveu o autor.

A IMPRENSA
Curiosas duas passagens de “O Brasil contra a Democracia” sobre o papel da imprensa brasileira nesta história. Em junho de 1973, na primeira tentativa de derrubar Allende, um cinegrafista argentino filmara a própria morte. Na cena encontrada no rolo de filmes, o militar aparecia apontando a pistola na direção da câmera, até apertar o gatilho.

Com as imagens correndo o mundo, o Globo resolveu dar uma forcinha aos golpistas, publicando uma entrevista em que um jornalista chileno atribuía o assassinato a allendistas. O diário de Roberto Marinho, notório apoiador da ditadura brasileira, só se esqueceu de avisar aos leitores que o jornalista em questão era partidário do Patria y Libertad, o mais notório grupo de extrema direita do Chile.

Na mão oposta, no dia seguinte ao famigerado 11 de setembro, o Jornal do Brasil saiu com uma capa histórica.

Proibido pela censura de dar manchete para o ocorrido no Chile, o saudoso Alberto Dines, então diretor de Redação, soltou uma edição sem manchete alguma. Pela primeira vez, uma primeira página sem título ganhava as bancas.

A obra de Roberto Simon é fundamental, inquietante, triste. Nos anos 1960-1970, a democracia brasileira fora a primeira a escorrer pelo ralo das conspirações que engolfavam a convulsionada América do Sul no auge da Guerra Fria.

Exatos 58 anos depois, o Brasil está de novo na vanguarda, sob ameaças abjetas dos gorilas aboletados no governo de Jair Bolsonaro, eleito após um longo e tenebroso processo de desestabilização. Fico imaginando o que os pesquisadores encontrarão nos arquivos daqui a meio século.

Gabriel Boric que se segure!

Renovar a frota rodoviária: como não fazer política pública, por Marcos Mendes.

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Proposta motivada por interesses privados, sem avaliação de impacto ou transparência

Marcos Mendes, Pesquisador associado do Insper, é autor de ‘Por que É Difícil Fazer Reformas Econômicas no Brasil?’

Folha de São Paulo, 09/04/2022

A Medida Provisória 1.112/22 criou o Programa de Aumento da Produtividade da Frota Rodoviária no País – Renovar, anunciado como incentivo à substituição de caminhões antigos por novos.

São muitos os benefícios sugeridos pela Exposição de Motivos da MP: Redução dos custos de fretes, dos acidentes e mortes nas rodovias e da emissão de poluentes. Haveria, também, aumento da eficiência e produtividade no setor de transportes, menor gasto do governo com assistência médica a feridos no trânsito.

Melhorariam as condições de trabalho dos caminhoneiros e cairiam os seus custos de manutenção. Haveria estímulo à indústria de reciclagem e geração de emprego. Até queda da inflação é colocada na lista dos benefícios.

Ainda segundo a Exposição de Motivos, não haveria custo fiscal relevante, porque a principal fonte de financiamento viria das empresas exploradoras de petróleo. Nos seus contratos de exploração de óleo e gás, há a obrigação de investir em pesquisa e inovação. A MP estabelece que recursos aplicados no Programa Renovar contarão no cumprimento da obrigação.

Muitos benefícios e poucos custos! Há motivos para desconfiar.

Não foi apresentado estudo para mensurar os benefícios acima listados. A Exposição de Motivos mostra números não diretamente relacionados a uma simulação do impacto da retirada de caminhões antigos de circulação. Por exemplo, cita estudo do IPEA, segundo o qual “os custos dos acidentes de trânsito em estradas federais (…) são estimados em R$ 12,8 bilhões/ano”. Mas esses se referem a todos os acidentes, e não àqueles gerados por falha mecânica em caminhões velhos.

Muitos outros dados genéricos, de fontes diversas, são empilhados no texto. Fica claro que não se fez o dever de casa de estimar ex-ante o impacto efetivo do programa.

Não são respondidas perguntas básicas. Qual o custo total do projeto? Quais os benefícios que se deixará de obter, ao diminuir investimentos em pesquisa e inovação, substituindo-os pelo financiamento ao Programa (que não representa nem pesquisa nem inovação)? Há experiências internacionais de sucesso que sejam adaptáveis ao contexto brasileiro? Haveria efeitos colaterais adversos como, por exemplo, incentivo a um meio de transporte poluente e ineficiente? Subsidiar é mais eficiente que fiscalizar e retirar das estradas caminhões sem condições de uso? A baixa renda dos caminhoneiros vem de caminhões velhos ou de excesso de caminhões no mercado?

Como a adesão das petroleiras é voluntária, pode não haver recursos suficientes para financiar o programa (a menos que se empurre para a Petrobrás, o que seria mais uma tentativa de intervenção indevida). Por isso, já foi deixada uma porta aberta para entrar mais recursos públicos no jogo.

A MP nomeou como coordenadora do Programa a Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI). Trata-se de uma instituição de direito privado, não sujeita a regras orçamentárias, porém financiada por dotações do orçamento federal. Triangulações de verbas entre a ABDI, empresas estatais ou bancos públicos viabilizariam o financiamento com dribles nas regras fiscais.

Mas o problema central é que a MP não limita o programa a caminhões velhos. Ela define como “bem elegível” todo “veículo ou equipamento sobre rodas, motorizado ou não, ou máquina autopropulsionada, que atenda aos critérios de elegibilidade do Renovar”. Um decreto pode ampliar o programa para todo tipo de veículo.

Há décadas a indústria automobilística faz lobby por subsídios à renovação da frota. No Governo Temer, tentou-se emplacar um “Programa de Sustentação Veicular”, que tinha “foco na pegada de carbono para um carro verde” e visava a substituição de até 1 milhão de automóveis por ano.

Será que não haveria outras prioridades ambientais, como a contenção do desmatamento, com maior impacto, e que não subsidiaria grandes empresas e consumidores de alta renda?

Vale lembrar que quando se deu crédito subsidiado do BNDES para a compra de caminhões, a título de renovar a frota e gerar todos os benefícios agora novamente elencados, o resultado foi muito lucro para vendedores de caminhões e um excesso de oferta de fretes, que desembocou na greve dos caminhoneiros.

Mais uma vez, desenha-se uma política pública para atender interesses privados, buscando-se uma narrativa para apresentá-la como de interesse público

Autora de ‘Como a China escapou da terapia de choque’ descreve como Pequim tomou direção oposta à da Rússia pós-soviética

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Em entrevista ao GLOBO, economista Isabella Weber diz que não existe um ‘modelo chinês’ a ser transplantado, mas que outros países podem tirar lições da experiência da potência asiática

André Duchiade

O Globo – 18/07/2021

Na década de 1980, um dos grandes debates entre os líderes chineses que sucederam Mao Tsé-tung era como reformar a economia e gerar crescimento. A China deveria adotar uma terapia de choque que destruísse o funcionamento da economia socialista, ou poderia usar mecanismos da economia planificada para assim criar um mercado?

Como essa discussão se desenrolou e conduziu a uma política diferente da seguida pelas ex-repúblicas soviéticas e o Leste Europeu é o tema de um dos livros mais comentados no campo da economia deste ano: “How China Escaped Shock Therapy” (“Como a China escapou da terapia de choque”).

Sua autora, a professora de Economia Isabella Weber, da Universidade de Massachusetts em Amherst, ainda se surpreende com o sucesso de sua obra de estreia, uma das indicações de leitura do Financial Times. Em entrevista ao GLOBO, ela fala sobre a economia chinesa ontem e hoje, e sobre o que Pequim aprendeu com o Brasil.

No livro, várias vezes a senhora afirma que o caminho seguido pela China não era inevitável. Qual foi a principal diferença da transição chinesa para uma economia de mercado em comparação a outros países socialistas?

A comparação com a Rússia, que seguiu uma política de terapia de choque, é o que mais chama a atenção. As circunstâncias políticas eram muito diferentes entre os países, claro, mas as políticas econômicas foram drasticamente distintas. Após a implementação da terapia de choque, a Rússia passou por um período de recessão mais prolongado do que os EUA na década de 1930. Isso também desencadeou em uma crise social muito profunda. Em contraste, na China, embora também tenha havido tensões sociais e desigualdades, em vez de uma recessão profunda e hiperinflação, houve um crescimento muito rápido, descrito como sem precedentes em ritmo e escala na História moderna. E, no lugar da hiperinflação, houve uma estabilidade geral de preços.

O que era a terapia de choque, exatamente?

Trata-se de um pacote de políticas específico, que deveria ser composto por quatro elementos: primeiro, a liberalização de preços o mais rápido possível, combinada com a austeridade macroeconômica. A liberalização dos preços deveria provocar um choque no sistema e levá-lo a um novo estágio. A austeridade macroeconômica, por sua vez, visava estabilizar o nível geral de preços. Essas medidas deveriam ser seguidas por privatizações e liberalização comercial. O elemento de choque, de fato, era a liberalização de preços da noite para o dia, o chamado Big Bang. A terapia de choque é uma doutrina de transição, que assume que a economia está mudando de equilíbrio.

Por que a China buscou um caminho diferente?
A China escapou da terapia de choque antes que ela fosse adotada na Europa Oriental ou na Rússia, antes de suas consequências serem conhecidas. Por que não a adotaram? Por terem à disposição uma abordagem alternativa para a reforma, o chamado sistema de duas vias. Este sistema se desenvolveu a partir das reformas agrícolas e depois foi transferido para a economia industrial urbana. Em vez de dar um choque no sistema, o governo chinês manteve relações de comando que eram características da economia planificada. Ao lado disso, permitiu também que as unidades produzissem acima do planejado, para o mercado. À medida que começaram a produzir para o mercado, as próprias unidades de produção mudaram a sua lógica de operação.

As duas abordagens, a chinesa e a de choque, tiveram algum papel nos resultados políticos posteriores?
Sim. Na Rússia, o desmonte do Estado comunista era considerado uma condição indispensável para a adoção da terapia de choque. Portanto, não é que a terapia de choque tenha ocasionado a transição política, e sim que transição política provocou a terapia de choque. Já os chineses chegaram perto de adotar a mesma doutrina, mas, sempre que quase o fizeram, recuaram. Em última análise, o compromisso com a estabilidade social e política e com o monopólio de poder do Partido Comunista era tão forte que parecia perigoso demais. Isso aconteceu porque o Partido Comunista continuava no poder, e sua liderança ainda era influenciada por pessoas que eram da primeira geração revolucionária. A primazia do Estado comunista era fundamental.

Podemos especular sobre quais teriam sido seus efeitos?
Não é inconcebível que a terapia de choque na China tivesse desencadeado um caos econômico tão dramático que poderia ter induzido uma transição política. É uma questão aberta o que teria acontecido politicamente, mas poderia ter havido consequências políticas de alcance muito amplo.

A senhora também discute como os reformistas buscam inspiração em outros lugares, inclusive com o Brasil…

No final dos anos 1980, o problema da inflação começou a ser bastante grave na China. Discutia-se muito se seria possível alcançar a industrialização sem inflação, ou se ela poderia ser administrada. As experiências latino-americanas se tornaram assim muito relevantes para Pequim. Na época, o milagre brasileiro já estava há muito encerrado, mas as conquistas da industrialização ainda estavam aí. Então, quando a delegação chinesa visitou o Brasil, impressionou-se muito, com a modernidade de Brasília, com o número de carros, os padrões de vida e assim por diante. Portanto, a China estava olhando para o Brasil em termos de seu nível de desenvolvimento. Ao mesmo tempo, tentou aprender com a experiência inflacionária brasileira para evitar algumas das dificuldades.

E quais foram os aprendizados?
Há uma grande controvérsia de quais foram exatamente as implicações dessas aulas brasileiras. Alguns dizem que uma delegação voltou do Brasil em 1988 e disse que a inflação é inevitável no processo de desenvolvimento, e, portanto, não deveriam se preocupar muito com isso. Mas, a meu ver, voltaram do Brasil e disseram: sim, eles disseram que a inflação é inevitável. Mas isso não quer dizer que não temos que nos preocupar com isso, e, sim que devemos administrá-la com muito cuidado.

Em suas palestras e entrevistas, a senhora jamais afirma que a China ofereça uma alternativa real de modelo econômico. Por quê?

O modelo da China foi desenvolvido de uma forma gradual, sempre levando as circunstâncias históricas específicas locais extremamente a sério, e introduzindo lições de outros países a partir de reflexões sobre quais eram as condições nesses outros países. Portanto, se levarmos essa lógica a sério, não acho que podemos agora pegar o modelo chinês como um todo e apenas transplantá-lo para outro contexto. Mas isso não significa que não haja lições da experiência de desenvolvimento chinesa que possam ser adaptadas.

E que lições seriam essas?
Uma grande lição no contexto do declínio do neoliberalismo é, claro, um papel muito mais ativista do Estado, que envolve a participação do Estado em mercados específicos, o que é totalmente contra a lógica da economia neoliberal, onde você quer ter preços livres e ajustáveis. No caso das recentes iniciativas de investimento público nos Estados Unidos, penso que haja pessoas estudando cuidadosamente a prática chinesa, e, em seguida, tirando suas próprias lições, como os próprios chineses fizeram. Por outro lado, o rápido aumento do sucesso econômico da China ajudou a legitimar a política industrial, o investimento público e um papel mais ativista do Estado dentro dos EUA.

Quais especificidades do período que a senhora estudou permitiram ao governo se mobilizar durante a pandemia?
Passou-se muito tempo entre os anos 1980 e 2020. Mas um elemento-chave que veio junto com a não adoção da terapia de choque é que o Estado manteve um envolvimento bastante direto nos chamados patamares de comando da Economia, ele continua a ter um forte envolvimento nos principais setores econômicos. O Estado também continua na parte crucial do abastecimento de alimentos, e, em particular, de grãos, com políticas que são notavelmente semelhantes a algumas políticas tradicionais chinesas. Existem enormes reservas estatais e um sistema comercial estatal, que participam do mercado sempre que há fortes flutuações de alimentos básicos. Isso permitiu o tipo de enorme quarentena que o Estado chinês impôs nas primeiras semanas da pandemia, quando era importante ter um sistema de abastecimento de alimentos que permitisse às pessoas ficarem em casa.

Quais perigos a senhora entende haver nesse contexto de extrema rivalidade entre Estados Unidos e China?
Essa enorme tensão geopolítica é provavelmente o maior risco atual não só para a economia chinesa, mas para o mundo como um todo. Há enormes desafios que só podem ser enfrentados pelas maiores economias do mundo em colaboração, como percebemos na pandemia, e também é o caso da mudança do clima. Em vez disso, há uma competição cada vez mais acirrada, que parece ser suspensa para cooperação em raríssimos casos. Vejo esse como o maior desafio mesmo para a economia chinesa.

E quais outros desafios você identifica?
A reorientação da economia chinesa para um modelo mais voltado para a demanda doméstica, o que, é claro, assumiu uma nova urgência no contexto de tensões crescentes em torno da guerra comercial. Outro grande desafio é a contínua dependência tecnológica em áreas-chave, como semicondutores. Além disso, há, claro, todo o desafio de como reestruturar a economia para um modelo mais verde e mais sustentável. E isso tem implicações mundiais, pois, como sabemos, a China tem sido a oficina do mundo, e tem feito todos os negócios sujos para o resto do mundo.

Os desafios da educação pós-pandemia, por Mozart Neves Ramos.

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Escola deve transformar base conteudista em aprendizados essenciais

Mozart Neves Ramos, Membro do Conselho da Mind Lab e titular da Cátedra Sérgio Henrique Ferreira de Estudos Avançados da USP (Ribeirão Preto); ex-secretário da Educação de Pernambuco

Folha de São Paulo, 10/04/2022

Desde o fechamento das escolas em razão da pandemia de Covid-19, há dois anos, e à medida que o número de casos da doença crescia país afora, toda a comunidade escolar passou por inúmeros percalços. Reflexos disso são sentidos até hoje, mesmo com a vacinação avançada, inclusive entre crianças, e as aulas presenciais retomadas em todas as regiões do Brasil.

Consenso entre especialistas, a demora em reabrir as escolas comprometeu ainda mais a qualidade do ensino. O relatório “Resposta Educacional à Pandemia de Covid-19 no Brasil”, conduzido pelo Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), mostrou que as escolas brasileiras passaram cerca de 279 dias fechadas no primeiro ano de pandemia.

Esse cenário provocou um grande retrocesso educacional aferido pelos níveis de proficiência escolar nas redes públicas e privadas. Os resultados recentes do Saresp (Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do Estado de São Paulo) revelaram que um estudante da rede estadual paulista terminou o ensino médio em 2021 com uma defasagem de quase seis anos em matemática e, em língua portuguesa, quatro.

O que mais preocupa é que estamos falando da primeira rede escolar a oferecer atividades de ensino remoto e uma das primeiras a retomar as aulas presenciais. Ainda assim podemos ver grandes perdas em todas as etapas escolares.

As primeiras avaliações também mostram que o impacto foi mais acentuado nas crianças em fase de alfabetização ou concluindo o último ano do ensino fundamental. Ainda de acordo com os dados do Saresp, as crianças concluintes desta etapa tiveram um retrocesso em matemática equivalente aos resultados de 2013. Para se ter uma ideia mais tangível, 61,6% dos estudantes do quinto ano não sabem resolver uma simples questão de subtração como esta: “uma construtora encomendou 10 mil parafusos a uma loja, que possuía apenas 3.825 em estoque. Quantos itens são necessários para completar a encomenda?”. Em língua portuguesa, a situação é igualmente grave. Um aluno do quinto ano em 2021 apresenta uma proficiência de um estudante do terceiro. Se isto ocorre em São Paulo, é ainda mais preocupante quando nos deparamos com o restante do país.

Ainda em 2020, segundo o Censo Escolar, 2.449 municípios não tiveram nenhuma aula ao vivo. E apenas 417 cidades tiveram estrutura suficiente para oferecer aulas online de maneira satisfatória. O censo mostrou também que a internet está disponível em 89,4% das escolas da rede federal, 74,1% nas da rede estadual e em apenas 39,8% nas municipais. Para além desses problemas estruturais, ficou nítida também a defasagem de habilidades socioemocionais de alunos e professores, já que o convívio entre pares sempre foi importante para cultivarmos respeito e empatia.

Por outro lado, entendo que o cenário pós-pandemia pode ser também uma janela de oportunidade para mudar nossa maneira de ensinar e aprender. É hora de inovar com base em dados e evidências. É necessário que a escola passe por uma metamorfose, que transforme sua base conteudista em aprendizados essenciais para a vida atual e futura dos estudantes, que os prepare de maneira autônoma para fazer escolhas em seus projetos de vida. Para isso, temos a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) como uma bússola efetiva, que vai nos orientar quanto às demandas reais dos alunos.

Se ficarmos presos ao retrovisor, o desastre será inevitável. Mas, se tivermos a coragem de olhar para onde aponta o farol e fazer as mudanças necessárias, talvez a educação brasileira tenha chances. Para isso, devemos buscar o que este país tem de melhor, pois sou daqueles que entendem que o Brasil pode aprender com o Brasil. Precisamos de líderes educacionais, capazes de romper com o atual status quo —e isso, infelizmente, está nos faltando.

São as entranhas brasileiras, por Jânio de Freitas.

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Demonstrações que Bolsonaro deveria ser investigado com rigor não cessam

Jânio de Freitas, Jornalista.

Folha de São Paulo, 10/04/2022

Nenhum presidente legítimo, desde o fim da ditadura de Getúlio em 1945 —e passando sem respirar sobre a ditadura militar – deu tantos motivos para ser investigado com rigor, exonerado por impeachment e processado, nem contou com tamanha proteção e tolerância a seus indícios criminais, quanto Jair Bolsonaro. Também na história entre o nascer da República e o da era getulista inexiste algo semelhante à atualidade. Não há polícia, não há Judiciário, não há Congresso, não há Ministério Público, não há lei que submeta Bolsonaro ao devido.

As demonstrações não cessam. Dão a medida da degradação que as instituições, o sistema operativo do país e a sociedade em geral, sem jamais terem chegado a padrões aceitáveis, sofrem nos últimos anos. E aceitam, apesar de muitos momentos dessa queda serem vergonhosos para tudo e todos no país.

Nessa devastação, Bolsonaro infiltrou dois guarda-costas no Supremo Tribunal Federal. Um deles, André Mendonça, que se passa por cristão, na pressa de sua tarefa não respeita nem a vida. Ainda ao início do julgamento, no STF, do pacotaço relativo aos indígenas, Mendonça já iniciou seu empenho em salvá-lo da necessária derrubada.

São projetos destinados a trazer a etapa definitiva ao histórico extermínio dos indígenas. O pedido de vista com que Mendonça interrompeu o julgamento inicial, “para estudar melhor” a questão, é a primeira parte da técnica que impede a decisão do tribunal. Como o STF deixou de exigir prazo para os seus alegados estudiosos, daí resultando paralisações de dezenas de anos, isso tem significado especial no caso anti-indígena: o governo argumentará, para as situações de exploração criminosa de terras indígenas, que a questão está sub judice. E milicianos do garimpo, desmatadores, contrabandistas e fazendeiros invasores continuarão a exterminar os povos originários desta terra.

Muito pouco se fala desse julgamento. Tanto faz, no país sem vitalidade e sem moral para defender-se, exangue e comatoso. Em outro exemplo de indecência vergonhosa, nada aconteceu à Advocacia-Geral da União por sua defesa a uma das mais comprometedoras omissões de Bolsonaro. Aquela em que, avisado por um deputado federal e um servidor público de canalhices financeiras com vacinas no Ministério da Saúde, nem ao menos avisou a polícia. “Denunciar atos ilegais à Polícia Federal não faz parte dos deveres do presidente da República”, é a defesa.

A folha corrida da AGU é imprópria para leitura. Mas, com toda certeza, não contém algo mais descarado e idiota do que a defesa da preservação criminosa de Bolsonaro a saqueadores dos cofres públicos. Era provável que a denúncia nada produzisse, sendo o bando integrado pela máfia de pastores, ex-PMs da milícia e outros marginais, todos do bolsonarismo. Nem por isso o descaso geral com esse assunto se justifica. Como também fora esquecido, não à toa, o fuzilamento de Adriano da Nóbrega, o capitão miliciano ligado a Bolsonaro e família, a Fabrício Queiroz, às “rachadinhas” e funcionários fantasmas de Flávio, de Carlos e do próprio Bolsonaro. E ligado a informações, inclusive, sobre a morte de Marielle Franco.

Silêncio até que o repórter Ítalo Nogueira trouxesse agora, na Folha, duas revelações: a irmã de Adriano disse, em telefonema gravado, que ele soube de uma conversa no Planalto para assassiná-lo. Trecho que a Polícia Civil do Rio escondeu do relatório de suas, vá lá, investigações. O Ministério Público e o Judiciário estaduais e o Superior Tribunal de Justiça não ficam em melhor posição, nesse caso, do que a polícia. São partes, no episódio de implicações gravíssimas, de uma cumplicidade que mereceria, ela mesma, inquérito e processo criminais. O STJ determinou até a anulação das provas no inquérito das “rachadinhas”, que, entre outros indícios, incluía Adriano da Nóbrega.

Desdobrados nas suas entranhas, os casos aí citados revelariam mais sobre o Brasil nestes tempos militares de Bolsonaro do que tudo o mais já dito a respeito. Mas não se vislumbra quem ou que instituição os estriparia.

O sono dos motoristas de aplicativo, por Juliano Spyer.

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Quem tem contas chegando e filhos para alimentar ou tem insônia na cama, ou dorme no volante de exaustão

Juliano Spyer, Antropólogo, pesquisador do Cecons/UFRJ, autor de Povo de Deus (Geração 2020) e criador do Observatório Evangélico.

Folha de São Paulo, 09/04/2022

Um anônimo dividiu os holofotes na semana passada com a bofetada de Will Smith em Chris Rock durante a premiação do Oscar. Kaique Reis é o motorista que admitiu corajosamente ter cochilado no volante e, assim, causado a batida envolvendo o ex-BBB Rodrigo Mussi.

O acidente me dá a oportunidade de compartilhar algumas conclusões sobre a condição desses trabalhadores. Escrevo como antropólogo que estuda desigualdade no Brasil e que, por vício profissional, há muitos anos entrevista informalmente –para passar o tempo durante os traslados– motoristas de aplicativo. Aqui estão os itens mais importantes:

1. Antes da pandemia, muitos motoristas expressavam sua gratidão pela oportunidade aberta pelos aplicativos de transporte, que, para eles, representavam uma fonte de renda quando outras não estavam disponíveis, e também algo para fazer diferente de ficar em casa flertando com a depressão. Alguns motoristas, os mais pobres, pediram demissão de seus trabalhos CLT apostando nas vantagens do empreendedorismo para ampliar seus rendimentos pelo próprio esforço. Hoje o mesmo trabalho é comparado recorrentemente a uma forma de exploração a que a pessoa se submete pela ausência de outros meios de sustento.

2. Antes da pandemia e agora, os motoristas explicam que esse trabalho só é rentável quando a pessoa dedica a ele muitas horas por dia e muitos dias por semana. A vantagem financeira vem da multiplicação do baixo rendimento por corrida pelas muitas corridas –em torno de 30– feitas ao longo do dia.

3. Nos últimos anos, a crise econômica, os aumentos do preço dos combustíveis, a pandemia, que reduziu muito a circulação de pessoas nas cidades, as taxas altas pagas aos aplicativos e reajustes de preço praticados inferiores à inflação corroeram a renda desses motoristas.

4. Por causa dessas condições, uma parte dessa força de trabalho abandonou a atividade, reduzindo a disponibilidade do serviço, enquanto outras aprendem “hacks” em tutoriais na internet para selecionar as corridas que pagam melhor ou circular apenas nas áreas mais lucrativas da cidade.

5. Como outros tantos brasileiros pobres e/ou precarizados, muitos motoristas de aplicativo fizeram malabarismos com empréstimos e cartões de crédito durante a pandemia para sobreviver, assumindo o ônus de ficar com o nome sujo na praça. Pois os carros usados nesse serviço devem ser relativamente novos, os motoristas sem outras alternativas de renda, com o nome sujo e endividados, recorrem a serviços de locação.

Você mesmo pode averiguar isso perguntando a motoristas nas próximas vezes que utilizar esse serviço.

Em resumo, o motorista hoje entra no carro para trabalhar em dívida, tendo que cobrir o custo da gasolina e do carro, e só para quando ultrapassa esse valor e alcança uma meta de rendimento. Geralmente o tempo de expediente mínimo é de 12 horas dirigindo.

Não sei detalhes sobre o caso de Kaique Reis, o motorista que levava o ex-BBB Mussi. Mas, tendo como referência o panorama apresentado acima, a responsabilidade por acidentes nesses casos parecem ter menos a ver com escolhas individuais do que com as exigências de uma rotina desumana de trabalho. O motorista tem a alternativa de ficar com insônia pensando nas dívidas na cama ou dirigir até a exaustão para tentar quitá-las.

Uma solução fácil aqui seria responsabilizar as empresas de aplicativos, seguindo uma argumentação da luta de classes e da exploração do trabalho. Mas esses motoristas provavelmente estariam ainda mais vulneráveis sem essa chance para se manterem ativos em um contexto de crise acentuada pela desaceleração econômica que a pandemia produziu.

Conversei com motoristas de aplicativo sobre o caso. Eles reconhecem que, racionalmente, é responsabilidade de quem dirige saber quando precisa descansar. Ao mesmo tempo, entendem e se identificam com os prováveis dilemas do colega, que é o mesmo deles: estar desempregado e precisar trabalhar.

Eles sentem pelo provável destino de Kaique: porque ele levava um passageiro famoso, por ter admitido candidamente seu erro em frente a câmeras de TV e pela publicidade ruim que o acidente causou, ele deve retornar ao anonimato responsabilizado pela dívida pelo carro destruído e desligado do aplicativo, portanto, sem ter seu ganha pão.

Até quantos anos uma pessoa pode viver? por Drauzio Varella.

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Para que mais indivíduos cruzem a faixa dos cem anos, serão necessárias soluções para doenças como câncer e Alzheimer

Drauzio Varella, Médico cancerologista, autor de “Estação Carandiru”.

Folha de São Paulo, 06/04/2022

Ao morrer, em 1997, a francesa Jeanne Calment tinha 122 anos e cinco meses. É considerada a pessoa mais longeva de quantas viveu. Sua competidora mais próxima foi Sarah Knauss que morreu em 1999, com 119 anos.

No início do século 20, a expectativa média de vida nos países mais ricos da Europa mal chegava aos 40 anos. Quando o século acabou estava perto dos 80. O mesmo fenômeno se repetirá na passagem para 2100?

Em 1825, o demógrafo britânico Benjamin Gompertz enunciou a “lei da mortalidade”, segundo a qual ao redor dos 30 anos de idade o risco de morrer começa a aumentar de forma exponencial, até um horizonte em que o risco final alcança 100%.

O limite de duração da existência humana divide os pesquisadores em dois grupos: os que julgam estarmos nas imediações do teto e os que defendem não haver evidências de que exista essa limitação.

Em janeiro deste ano, a Nature trouxe uma discussão sobre esse tema. Tomo a liberdade de resumir a opinião de alguns especialistas ouvidos pela revista.

Um estudo conduzido entre italianos com 105 anos ou mais pelo grupo de Elizabetta Barbi, da Universidade Sapienza, de Roma, mostrou que a curva de Gompertz atinge um platô nessa idade, isto é, para de aumentar exponencialmente.

Embora estável, a taxa de mortalidade a partir dos 105 é alta: 50% a cada ano que passa.

Você, leitor otimista, pode interpretar esse dado com boa vontade. Se a cada ano morrem 50%, a outra metade sobrevive sem que seja possível estabelecer um limite claro para a duração da vida.

Uma análise matemática de Caleb Finch, da Southern California University, calculou que esse limite seria de 120 anos. A estimativa é compatível com o recorde estabelecido por Jeanne Calment.

Progressos capazes de estender a expectativa média de vida da população aumentam as chances de alguns privilegiados alcançarem idades extremas. A mortalidade infantil e os acidentes, por exemplo, impedem que uma pessoa com genética favorável complete cem anos.

A expectativa média de vida na Suécia e no Japão tem aumentado três meses por ano, desde 1840. Esse aumento persistirá? A julgar pelos dados obtidos no Reino Unido e nos Estados Unidos, não, já que neles a expectativa média cresceu pouco nos últimos dez anos. Foi encurtada pelas mortes prematuras por abuso de álcool, drogas ilícitas, suicídios, obesidade e transtornos psiquiátricos.

Em 2020, a ONU estimou em 573 mil os centenários do mundo. Esse número é 20 vezes maior do que o de 50 anos atrás.

Em 1946, as 30 pessoas mais longevas do mundo tinham em média 99 anos. Em 2016, essa média atingiu os 109 anos.

Continuará a crescer nesse ritmo?

É provável que não. Hoje, os que ultrapassam cem anos chegam a tal idade em maior número e em melhores condições de saúde. Mas nesse grupo a expectativa de vida remanescente tem se mantido a mesma nos últimos 80 anos.

Você, leitora inconformada, poderá argumentar: se a expectativa média de vida duplicou no decorrer do século passado, por que não poderei viver 150 anos?

Vamos deixar claro dois conceitos. A expectativa média de vida se refere à média de anos vividos por determinada população. Essa expectativa no Brasil, em 1940, não passava de 45 anos, enquanto em 2019 atingia 76, ganho obtido às custas da redução da mortalidade infantil e das mortes na infância e na juventude —graças às vacinas, ao soro caseiro, aos antibióticos, as melhores condições de higiene e à assistência médica.

A longevidade só leva em conta o grupo que viveu mais tempo em determinado grupo populacional.

Considere o caso das mulheres japonesas. É a maior expectativa média de vida na Terra: 87 anos. Como esse número se refere à média, o número das que passam dos cem anos é maior do que o de brasileiras ou de moçambicanas, mas isso não impede que uma moçambicana quebre o recorde mundial de longevidade.

Mesmo que não exista um limite fisiológico formal para a duração da vida, cruzar as fronteiras atuais da longevidade vai requerer grandes avanços nas ciências médicas.

Não se tratará apenas de reduzir a mortalidade infantil e evitar as mortes precoces, mas de encontrar soluções para doenças cardiovasculares, reumatológicas, câncer, diabetes e ainda ter que lidar com degenerações neurológicas, como a doença de Alzheimer.

Você quer viver muito, não quer? Eu também, mas não a qualquer preço.

À margem da lei, por Oscar Vilhena Vieira.

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A qualidade do Estado de Direito no Brasil vem caindo nos últimos três ano

Oscar Vilhena Vieira, Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.

Folha de São Paulo, 08/04/2022

O Brasil vive às turras com a lei desde sua origem. A ideia de que pessoas e instituições devam se conduzir em conformidade com regras gerais —aplicadas sem qualquer distinção— e de que todos são sujeitos de iguais direitos, jamais conseguiu superar os enormes obstáculos levantados por uma sociedade estruturada em torno da desigualdade, da discriminação, dos privilégios e das exclusões. Daí a incompletude de nosso governo das leis.

A consequência mais imediata da fragilidade da lei no Brasil é a submissão de enormes contingentes da população à violência e ao arbítrio, que brutaliza a vida cotidiana dos mais pobres, mas também cria mal-estar os mais afluentes. A consequência mais difusa dessa incompletude é que o país não consegue consolidar uma trajetória de desenvolvimento. Onde não há lei prevalece o oportunismo e a rapinagem, em detrimento da cooperação, do planejamento, do investimento de longo prazo, da boa governança democrática.

A qualidade do Estado de Direito no Brasil vem caindo nos últimos três anos. O Brasil se encontra no bloco dos países que mais declinaram na América Latina, conforme aponta o último “Rule of Law Index”. Essa deterioração não chega a surpreender, em face da hostilidade do presente governo —e das múltiplas forças autoritárias, milicianas e liberticidas que o apoiam— ao governo das leis.

A espessura desse declínio pode ser percebida em múltiplas esferas. Particularmente grave é o crescimento do crime organizado na região amazônica, associado não apenas ao controle das rotas de tráfico, mas também ao garimpo ilegal, ao desmatamento e à grilagem. As taxas de homicídios em cidades pequenas e médias na Amazônia superam hoje a média nacional (“Cartografias das Violências na Região Amazônica”, produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2022). O desmonte dos órgãos e mecanismo de controle e aplicação da lei, além de um claro incentivo a práticas ilegais, tem colocado em risco nosso principal ativo estratégico, sob o olhar cúmplice daqueles que sustentam o presente governo.

A deterioração também é clara no âmbito da corrupção, seja pela institucionalização do orçamento secreto, que azeita as relações do parlamento com o Executivo, seja pela fragilização de instituições como a Controladoria Geral da União e a Polícia Federal.

Não se deve negligenciar também o fortalecimento do milicianismo e do tráfico em muitas regiões do país. Estima-se que mais de 60% do território do Rio de Janeiro estejam sob o controle dessas forças, o que tem contribuído para um dramático declínio econômico do estado, além de perdas humanas inestimáveis.

O Brasil não superará os seus inúmeros desafios no campo do desenvolvimento econômico, do controle da corrupção política, da preservação ambiental, da qualificação de seus jovens ou da pacificação social e controle do crime sem enfrentar a questão da integridade do Estado de Direito. A sua deterioração nos lança num caminho perigoso.

É surpreendente que muitas pessoas que compõem setores do empresariado, das classes armadas, de grupos religiosos e mesmo do estamento jurídico não se deem conta da estratégia deliberada de erosão da lei e da ordem patrocinada por esse governo. À margem da lei só há o crime.

Homenageio com esse artigo o ilustre jurista e brasileiro Dalmo de Abreu Dallari, que jamais se acovardou face àqueles que afrontaram o Estado de Direto.

O futuro do dólar

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Vivemos num momento de grandes transformações na sociedade internacional, a globalização aumentou a competição entre pessoas, empresas e nações numa busca insana por aumento de produtividade, de retornos financeiros e novos modelos de negócios, levando a sociedade global a novas formas de desigualdades e exclusões sociais, novas pandemias e conflitos militares, com mortes e destruições em massa, não apenas na Europa, mas em inúmeras regiões da sociedade mundial.

Nas últimas décadas percebemos alterações em todas as áreas e setores, o mundo do trabalho se transforma rapidamente exigindo novas qualificações e capacitações cujas escolas se mostram incapazes de acompanhar estas atualizações, gerando levas de trabalhadores sem empregos e, muito pior, neste momento percebemos a descartabilidade dos trabalhadores, que mesmo capacitados não conseguem acompanhar as mudanças das tecnologias que crescem de forma acelerada, gerando bolsões de desigualdades e exclusões sociais.

Neste momento, percebemos que as transformações no ambiente econômico estão alterando os modelos monetários e os padrões financeiros, o dólar que se transformou na moeda mundial desde a segunda guerra mundial, responsável por grande parte das transações internacionais, vem perdendo poder e sua hegemonia tende a perder espaço no mercado global.

O poderio do dólar sempre contribuiu diretamente para sustentar o poder dos Estados Unidos no ambiente global, garantindo ao país a capacidade de manter durante décadas grandes déficits nas suas contas externas, sendo que era o país responsável pela emissão da moeda que embalava as transações financeiras internacionais.

Como as transações internacionais eram feitas com a moeda norte-americana, todas as nações deveriam acumular reservas internacionais em dólares, garantindo indiretamente forte poder na economia global e fortalecendo o poder no ambiente externo. Vivemos momentos de medos e apreensões, ao refletirmos sobre o conflito militar na Ucrânia percebemos que muitas nações passaram a se preocupar com suas reservas externas em dólares, desde que o governo dos EUA, como forma de fragilizar a economia russa e reduzir a sua ofensiva militar, confiscou suas reservas internacionais em moedas norte-americanas depositadas nos bancos ocidentais, com esta política muitos países que possuem dólares depositados em bancos ocidentais passaram a se preocupar com a adoção de sanções como esta, gerando desconfiança, incertezas e fortes preocupações dos mercados globais.

Estas medidas extremadas adotadas pelo governo norte-americano estão levando países a repensarem a moeda dos Estados Unidos como o padrão monetário do comércio internacional, abrindo espaço para que alguns países estudem a comercialização de seus produtos com suas moedas. A assinatura de acordos entre países que comercializam petróleo, além de países exportadores de produtos primários como a Arábia Saudita, Irã, Índia, China, Rússia, dentre outros, podem inaugurar novos espaços de comércio, diminuindo o poderio do dólar, abrindo espaço para novas moedas no cenário internacional, fortalecendo as trocas regionais e aumentando as fragilidades, cada vez mais evidentes, da economia dos Estados Unidos.

As movimentações em curso no cenário financeiro internacional acontecem rapidamente, mas o poderio dos Estados Unidos permanecerá nos próximos anos, mesmo assim, percebemos o crescimento de novos modelos monetários e financeiros, que tendem a gerar novos desafios para as autoridades monetárias, como o crescimento das criptomoedas, as bitcoins e o crescimento de startups financeiras que tendem a crescer e a ganhar relevância no cenário financeiro internacional.

O mundo está em polvorosa, as estruturas que sustentam o modelo econômico global estão desmoronando, o dólar tende a perder espaço, nascem novas hegemonias financeiras e industriais e outras nações, como o Brasil, se perdem em discussões desnecessárias, postergando nossa recuperação e perpetuando nossa insignificância.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 06/04/2022.