Riscos Externos

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O processo de globalização intensificou a integração e a interdependência entre as nações, aumentou a competição entre os atores econômicos e aumentou as incertezas e as instabilidades na sociedade global, surgiram novas oportunidades e desafios, exigindo novos comportamentos, inaugurando modelos de negócios, exigindo novas qualificações para o capital humano e aumentaram os riscos econômicos e produtivos.

A pandemia nos trouxe novos desafios e, ao mesmo tempo, abriu novas oportunidades, novas empresas surgiram, setores esquecidos ganharam relevância e a mão de obra precisou se reinventar e se tornar mais flexível, sob pena de serem alijados de um mercado altamente competitivo e centrados em novas tecnologias que, infelizmente, não dominamos, mas sabemos que é fundamental para sobrevivermos na nova sociedade global.

Neste momento, a sociedade mundial percebe conflitos militares, crises financeiras e instabilidades generalizadas, cujos impactos para a sociedade brasileira são imprecisos, mas sabemos que os desequilíbrios globais impactam sobre a economia nacional, principalmente num momento de incertezas, proximidade eleitoral, constrangimentos internos, desorganização econômica e produtiva, além de indicadores sociais sofríveis.

Um possível conflito militar pode gerar graves constrangimentos para a comunidade internacional, acirrando ressentimentos, gerando instabilidades nas cadeias produtivas, com impactos sobre custos e incrementos de preços fundamentais para a economia global, além de criar instabilidades financeiras, elevação das taxas de juros, aumento de preços internacionais e redução dos investimentos produtivos, com isso, o cenário de recuperação econômica tende a demorar, gerando graves desequilíbrios sociais.

Os movimentos econômicos, financeiros, militares e políticos internacionais, além da pandemia que ainda mostra forte resiliência, estão gerando grandes instabilidades para empresas, nações e trabalhadores. Para superarmos o ambiente adverso, percebemos a importância de construirmos consensos internos para atravessarmos as incertezas do cenário internacional, evitando conflitos desnecessários, criando falsos dilemas e mostrando os rumos que queremos trilhar para que o país alcance números mais consistentes de sucesso econômico, garantindo oportunidade para todos os cidadãos e aspirando a um espaço entre as grandes nações da comunidade internacional.

Os desequilíbrios produtivos globais levaram os preços das mercadorias as alturas, a escassez de chips retardou a recuperação das economias e os governos entraram em campo para auxiliar na oferta de chips, despejando trilhões de dólares para estimular os setores privados para aumentar a produção deste produto de grande relevância para a quarta revolução industrial. Neste momento, as nações desenvolvidas mostram suas forças, usam recursos públicos para superar esta dificuldade produtiva, estimulando a indústria de semicondutores, os chamados chips, deixando de lado os pudores da intervenção governamental em prol de políticas de planejamento estatal, auxiliando na redução dos riscos produtivos e garantindo o fornecimento de um produto central na economia da informação.

De outro lado, percebemos que o ambiente financeiro tende a passar por grandes incertezas com o incremento nos juros norte-americanos, com isso, os países dependentes destes ativos devem passar por momentos de instabilidades financeiras, com fortes impactos sobre todo o sistema econômico, com juros maiores para atrair ativos e fechar suas contas externas, garantindo uma estabilidade ilusória.

Os efeitos imediatos desta política é a contração dos investimentos produtivos, o aumento dos recursos canalizados para a especulação financeira, a redução nos níveis de emprego e a degradação social, mostrando claramente a dificuldade de construirmos um ambiente mais propício para a retomada do crescimento econômico, fundamental para superarmos o subdesenvolvimento que nos aflige.

Os desafios da sociedade brasileira contemporânea são enormes e exigem maturidade, planejamento e estratégias bem definidas, sem elas dificilmente conseguiremos sobreviver numa sociedade centrada nas instabilidades e nas incertezas generalizadas.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 23/02/2022.

Lawfare e a destruição da política, por Silvio Almeida.

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O sistema de justiça brasileiro é um parque de diversões para o uso do direito como arma de guerra

Sílvio Almeida, Advogado, professor visitante da Universidade de Columbia, em Nova York, e presidente do Instituto Luiz Gama.

Folha de São Paulo, 18/02/2022

Em meu último artigo para essa Folha, teci alguns breves comentários sobre o que considero contradições e fragilidades do pré-candidato Sergio Moro. Na esteira do que declarou esta semana o prefeito do Rio de Janeiro Eduardo Paes, não é compreensível que um homem que nitidamente nada sabe sobre o que o Brasil possa pleitear o posto de comando mais elevado do país.

Entretanto, no dia de hoje, mantendo as observações que fiz anteriormente, gostaria de fazer ao pré-candidato Moro algo que ele nem sempre observou em sua atuação como magistrado: justiça. No meu caso, “fazer justiça” é reconhecer que o candidato teve sim, um papel muitíssimo importante na política brasileira, mais precisamente, no processo de destruição da política institucional do país.

Foi Sergio Moro que, juntamente com os vingadores da Lava Jato, introduziu uma das grandes inovações tecnológicas da política do nosso tempo, o chamado Lawfare. Mas o que é lawfare?

Uma boa resposta pode ser encontrada no livro “Lawfare: uma introdução”, de autoria dos advogados e professores Cristiano Zanin Martins, Valeska Teixeira Zanin Matos e Rafael Valim. É importante ressaltar que Cristiano e Valeska atuaram na defesa jurídica do ex-presidente Lula, o que faz com que os aspectos teóricos revelados pelo livro sejam baseados em uma experiência direta com o fenômeno que descrevem.

No texto aprende-se que o termo lawfare é um neologismo que resulta da junção dos termos law (direito) e warfare (guerra ou estado de guerra). Isso indica que a palavra se refere à utilização do direito ou, melhor, das instituições e das técnicas jurídicas, como armas de guerra.

Como definem os autores lawfare é “o uso estratégico do direito para fins de deslegitimar, prejudicar ou aniquilar um inimigo” (p. 26).

Destaco aqui o uso de “inimigo” e não “adversário” ou “oponente”. Inimigo porque o lawfare pressupõe um ambiente de guerra, em que o diálogo, a conciliação e a diplomacia são impossíveis. A oposição, portanto, não pode ser institucionalizada; há que ser extirpada, retirada completamente do jogo. O inimigo deve ser apresentado como uma ameaça vital contra a qual todos os meios podem ser empregados, sejam legais ou ilegais.

Como explicam os autores o lawfare é resultado de reflexões sobre diferentes estratégias e táticas possíveis em uma guerra. Do ponto de vista estratégico o lawfare requer a observação das dimensões da geografia (levar o conflito judicial para a jurisdição onde se tenha maior chance de vitória), do armamento (utilização e criação de normas que facilitem a perseguição do inimigo e o uso de medidas excepcionais contra ele) e da externalidade (o uso dos meios de comunicação para coletar, transportar ou deturpar informações produzidas fora do sistema processual).

Já dentre as inúmeras táticas de lawfare que se ligam às dimensões estratégicas, podemos destacar a violação de competência, a proposição de ações em diferentes localidades para confundir ou estressar o litigante, o uso abusivo de prisões preventivas, o vazamento seletivo de informações para contaminar o ambiente social, o excesso de acusações (e.g. o famoso “power point”) e a intimidação de críticos —especialmente jornalistas— por meio de ações judiciais.

Se a Sergio Moro e à força-tarefa da Lava Jato cabem o mérito de terem servido como suporte material para o fantasma do lawfare que encarnou no Brasil, é preciso considerar que a introdução dessa tecnologia de guerra só foi possível por que havia um ambiente propício.

Antes de colonizar as grandes estruturas econômicas e políticas nacionais, o uso do direito para extermínio e produção da exceção já estava disseminado no sistema de justiça brasileiro, como muito bem sabem os pobres e, especialmente, os negros e os indígenas.

A desigualdade social, o autoritarismo e o racismo que nos caracterizam historicamente foram centrais para que a prática do lawfare encontrasse tanta acolhida no Brasil.

Nos próximos anos o Brasil terá que repensar seu sistema a fim de impedir e responsabilizar os assediadores judiciais e aqueles que, diante da função que ocupam nas instituições jurídicas, participam ou são coniventes com a devastação do país. Lawfare não é apenas a destruição do direito. É a destruição da política.

Reformas na Espanha podem servir de inspiração para enfrentar desigualdades no Brasil, por Cida Bento

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País europeu adotou diversas medidas para mitigar desigualdades na última década

Cida Bento, Conselheira do CEERT (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades), é doutora em psicologia pela USP

Folha de São Paulo, 17/02/2022

Neste início de 2022, ainda sob os pesados efeitos da pandemia, diversas instituições importantes vêm debatendo formas de enfrentar o agravamento das desigualdades no mundo do trabalho, que se expressa, dentre outros indicadores, nas taxas de desemprego ou subemprego e na ampliação da informalidade para segmentos sociais mais vulneráveis a violações de direitos, como a população feminina, jovem e negra do país.

Iniciativas pontuais mas crescentes de organizações públicas, privadas e da sociedade civil vêm acontecendo em programas de equidade e diversidade, que, no entanto, não dão conta de tamanho desafio.

De fato, como a economista e professora da Unicamp Marilane Teixeira e o pesquisador Rogério Barbosa, da USP, chamaram a atenção, já em 2020, os principais impactos da pandemia incidem sobre o trabalho de mulheres e negros.

Segundo eles, o impacto mais intenso ocorre para as mulheres por serem maioria no trabalho doméstico (o Brasil sofreu a maior perda de trabalhadores domésticos em nove anos) e por serem minoria em boa parte dos serviços essenciais. Não podemos esquecer que mulheres negras representam o maior contingente de trabalhadoras domésticas do país.

No caso da população negra, o impacto mais intenso se dá por ter maior participação na informalidade, que abriga as primeiras posições de trabalho a serem atingidas na crise. Em ambos os casos, aos efeitos da crise sanitária acrescentam-se os efeitos crônicos de uma situação histórica de discriminação no trabalho.

Nesse sentido, é alvissareiro o acordo tripartite celebrado no ano passado na Espanha entre governo, entidades sindicais e empresariais, pois a equidade para jovens e mulheres foi colocada no centro desse acordo, e a iniciativa pode servir de inspiração para o enfrentamento das desigualdades raciais e de gênero no Brasil.

Como sinaliza o sociólogo Clemente Ganz em artigo recentemente publicado no site Poder 360, a Espanha adotou nas últimas décadas diversas reformas trabalhistas que impactaram de forma dramática as desigualdades, atingindo mais duramente jovens e mulheres.

No caso brasileiro, acrescentaria que o diálogo deveria ser quadripartite para incluir os movimentos sociais que são força motriz fundamental no campo da luta pela equidade.

A pauta da concertação espanhola é extensa, tratando de trabalho remoto e teletrabalho, da igualdade salarial entre mulheres e homens, de medidas para assegurar os direitos trabalhistas no campo das plataformas digitais de aumento do salário mínimo e de políticas para a criação de emprego, entre outras tantas iniciativas fundamentais.

Clemente chama a nossa atenção para o quão relevante é essa concertação, pois focaliza um ambicioso projeto de desenvolvimento socioambiental, econômico, político e cultural que objetiva recuperar o significado do trabalho decente e a partilha de seus resultados pela sociedade. Revitaliza e confere sentido à democracia, já que o diálogo entre as diferentes partes envolvidas é a base para os compromissos que vão sendo assumidos.

Esses debates entre diferentes segmentos sociais são fundamentais para trazer uma outra maneira de negociar e estruturar as reformas necessárias e urgentes que a sociedade brasileira precisa realizar.

No reconhecimento da pluralidade de grupos que compõem a sociedade com suas necessidades, interesses e posicionamentos diversos é que se pode criar bases sólidas e seguras para que os acordos que precisamos realizar, em particular no mundo do trabalho, sejam marcados pela justiça e pela equidade.

E quem sabe em 2022 nós possamos avançar na construção de políticas públicas e privadas que incorporem as ações afirmativas com centralidade em todos os planos de trabalho, para acelerar a verdadeira democratização da sociedade brasileira, com vistas à universalização do direito ao trabalho digno, sem deixar mais de metade da população brasileira de fora de novos modelos de desenvolvimento.

Esta coluna foi escrita em coautoria com Flavio Carrança, jornalista da Cojira (Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial)

Lenta recuperação

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A economia brasileira vem apresentando grandes dificuldades de estimular o crescimento econômico, os indicadores são sofríveis, os investimentos produtivos caem constantemente, os dados sobre desemprego ou subemprego são assustadores, a fome e a miséria crescem e as perspectivas econômicas são preocupantes.

A economia brasileira não cresce de forma consistente desde a estagnação de 2014, com degradação dos indicadores fiscais, aumento do desemprego, redução dos investimentos produtivos e a falta de consensos políticos internos, levando a economia a crescimentos pífios que aprofundam a degradação social e afugentam os investimentos produtivos, tanto interno quanto externamente. Numa sociedade marcada por instabilidades jurídicas e institucionais, conflitos entre os poderes constituídos, desconfiança e instabilidades crescentes, medos e riscos generalizados, quedas de renda são comuns, além da violência em ascensão e aumento assustador nos preços, deprimindo cada vez mais a renda dos setores mais fragilizados. Com isso, percebemos uma recuperação econômica cada vez mais distante, gerando mais instabilidades sociais, aumento da desesperança e piora das perspectivas econômicas

Vivemos num momento marcado por graves constrangimentos fiscais que exigem uma política mais efetiva, uma verdadeira reconfiguração das prioridades do Estado Nacional, reduzindo privilégios de alguns grupos, que se apropriam dos recursos públicos e aumentam seus lucros privados, contribuindo para a crescente desigualdade que caracteriza a sociedade brasileira, situação que, neste momento de pandemia, se mostra mais claras e evidentes.

Para estimular a discussão sobre as engrenagens que contribuem para a degradação da sociedade brasileira, o economista Fernando de Holanda Barbosa está publicando a obra “O Flagelo da Economia de Privilégios: Brasil, 1947-2020: Crescimento, Crise Fiscal e Estagnação”. Na obra, o autor reflete sobre as grandes dificuldades da economia brasileira e as fragilidades do crescimento econômico, salientando, que para sairmos da condição de baixo crescimento econômico, precisamos encarar os grandes privilégios existentes na sociedade. O autor destaca as renúncias fiscais e tributárias, trabalhadores registrados como pessoa jurídica para pagar menos Imposto de Renda, funcionários públicos com salários acima do setor privado e até anistiados com aposentadorias e pensões especiais.

Segundo o autor, as renúncias fiscais e tributárias exageradas e injustificáveis criam constrangimentos fiscais para os órgãos governamentais, obrigando-os a reduzirem os investimentos produtivos e impactando diretamente sobre os serviços públicos, degradando-os e gerando prejuízos para a comunidade, aumentando a desigualdade social, sucateando o sistema produtivo e aumentando a dependência tecnológica de outras nações.

O Estado Nacional (federal, estados e municípios) precisa rever suas políticas fiscais, reduzindo os privilégios, estimulando os investimentos produtivos estratégicos, alavancando gastos em infraestrutura, investindo em ciência, pesquisa e inovação, fortalecendo as agências de regulação, reduzindo a ingerência dos governos de plantão e reestruturando setores responsáveis pela compliance na gestão pública, além de aumentar a transparência, reduzir a burocracia e melhorar a qualificação do capital humano.

Neste momento, precisamos de um Estado planejador, reduzindo os privilégios, combatendo os desequilíbrios fiscais e financeiros, reduzindo os setores ineficientes, cobrando rentabilidade, estimulando setores estratégicos e direcionando as políticas públicas para a redução da pobreza e da indignidade, retirando recursos de setores mais aquinhoados que vivem de especulação financeira e que canalizam seus recursos para a financeirização da economia, contribuindo apenas para a melhora de seus indicadores econômicos e financeiros em detrimento da grande maioria da população.

Acreditar que o mercado será o agente do desenvolvimento econômico não encontra eco na literatura econômica, todas as nações que se desenvolveram contaram com a atuação do Estado, do Mercado e da sociedade civil, sem essa parceria não existe desenvolvimento econômico, e sem desenvolvimento não melhoramos as condições de vida da população.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 16/02/2022.

Compromisso com o atraso, por Marcos Lisboa

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Superar a nossa estagnação requer aceitar os fracassos

Marcos Lisboa, Presidente do Insper, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005) e doutor em economia.

Folha de São Paulo, 13/02/2022

Nos últimos 30 anos, as pesquisas sobre os determinantes do crescimento econômico tiveram avanços importantes, beneficiadas pelo acesso a grandes bases de microdados. Esses resultados ajudam a entender algumas das razões da longa estagnação do Brasil.

Parte importante do aumento de produtividade nos países ricos decorre da concorrência entre empresas que resultam em inovações, empreendedores experimentando novos negócios e a falência de empresas ineficientes.

Nos Estados Unidos, que têm historicamente uma baixa taxa de desemprego em comparação com os demais países, há um fluxo relevante de destruição e criação de empresas e de empregos anualmente, com elevada mobilidade dos ativos produtivos, capital e trabalho, que são transferidos de firmas ineficientes para as suas concorrentes, mais produtivas.

Alguns estudos na década de 2000 identificaram que, em países ricos, entre 5% e 10% das empresas nasciam ou fechavam suas portas por ano, e esse processo contribuiu significativamente para o aumento da produtividade e da renda dos trabalhadores. O livro “Producer Dynamics”, organizado por Timothy Dunne, J. Bradford Jensen e Mark J. Roberts, sumariza esses, e muitos outros, resultados.

Essa agenda de pesquisa ganhou impulso com os trabalhos de Cheng-Tai Hseih e Peter Klenow. Eles observaram que havia bem mais desigualdade na produtividade das empresas nos países emergentes do que em países ricos. Políticas públicas que protegem firmas ineficientes parece ser parte do problema.

Hseih e Klenow estimaram que se capital e trabalho fluíssem de empresas ineficientes para as demais, como ocorre nos Estados Unidos, a produtividade da manufatura na China aumentaria entre 30% e 50%, e na Índia, entre 40% e 60%.
Diego Restuccia e Richard Rogerson sumarizaram os principais resultados, controvérsias e desafios dessa agenda de pesquisa no artigo “The Causes and Costs of Misallocation”, publicado no Journal of Economic Perspectives em 2017.
Crescimento econômico, aumentar a renda média de um país ao longo de muitos anos, requer ganhos de produtividade, conseguir produzir mais com os recursos disponíveis. Esse processo nada tem de trivial.

Ele requer melhoras contínuas no processo produtivo, nas técnicas de gestão ou na escolha das atividades a serem realizadas.

Karl Marx percebeu a relevância da concorrência em uma economia de mercado para esse processo. (Marx pode ter errado em muitos argumentos lógicos, mas era um notável observador da economia).

Empresas disputam mercados, e quem consegue produzir com melhor tecnologia, eficiência na gestão ou desenho de produtos tem vantagem sobre as demais. Avanço contínuo, seguidas inovações bem-sucedidas, é o nome do jogo, mas é um jogo tumultuado.

Empreendedores tentam construir soluções novas para fazer frente às firmas estabelecidas. A maioria fracassa. Empresas antigas tentam antecipar as novidades para não serem soterradas por elas. Nem sempre conseguem.

A IBM era um exemplo de modernidade nos anos 1970, mas tomou decisões que se revelaram equivocadas, como apostar nos grandes computadores e delegar a uma empresa novata a responsabilidade pelo sistema operacional dos seus microcomputadores. A novata tornou-se a Microsoft.

Josepeh Schumpeter, que havia lido Marx, cunhou o termo “destruição criativa” para esse processo descentralizado de busca por melhora contínua, que promete o lucro extraordinário em caso de sucesso, e a obsolescência em caso de fracasso.

Philippe Aghion e seus coautores sistematizam a evidência da pesquisa sobre esse tema em seu livro recente, “The Power of Creative Destruction”.

Nos EUA, a IBM encolheu frente à Microsoft. No Brasil, na mesma época, a lei de informática protegeu empresas que produziam computadores obsoletos.

O restante da economia foi condenado a utilizar tecnologias defasadas em razão de uma política pública que prometia o desenvolvimento. Ela, contudo, apenas preservou o atraso.

A agenda do nosso Legislativo revela o quanto ainda insistimos em conceder benefícios fiscais e proteger empresas pouco eficientes.

Um exemplo recente foi a prorrogação do Padis, com a lei 14.302 de 7/1/2022, que garante incentivos “à fabricação de componentes ou dispositivos eletrônicos semicondutores”, beneficiando uma quantidade impressionante de produtos, como cimento de resina; silicone, na forma elastômero —encapsulante; chapas, folhas, tiras, autoadesivas de plástico, mesmo em rolos, à base de polímeros; chapas e tiras de cobre de determinado tamanho; condutores elétricos para certa tensão; e muito, muito mais.

Líderes do Legislativo defenderam a medida em razão da “perda de competitividade” nos últimos anos das empresas que fabricam esses produtos, como sintetizado em nota do Senado Federal.

O Judiciário, na mesma toada, continua a postergar falências por meio de longos processos, usualmente beneficiando os acionistas de empresas encalacradas.

O nosso capitalismo de Estado defende subsídios para o investimento privado e a preservação do patrimônio de empresários que fracassaram. Isso ocorreu no governo autoritário do general Geisel, e na gestão Dilma que se dizia de esquerda. O oportunismo se ajusta à ideologia.

Associações empresariais, financiadas com recursos extraídos dos trabalhadores por meio de tributos, como o Sistema S, se insurgem contra as propostas de abertura ao comércio exterior em bens de capital ou de informática que são adotadas em muitos países desenvolvidos ou emergentes.

Optamos por coibir a chegada de novas tecnologias vindas do exterior enquanto continuamos a preservar o patrimonialismo que se remunera graças aos favores oficiais. O que teria sido do combate à pandemia se tivéssemos tentado desenvolver uma vacina inteiramente nacional?

Conspirando contra o futuro, por Oscar Vilhena Vieira.

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A desonestidade do Estado e de parte da sociedade brasileira com seus jovens é constrangedora

Oscar Vilhena Vieira, Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.

Folha de São Paulo, 12/02/2022

A perversa e persistente estratégia de desenvolvimento nacional, fundada em altos níveis de concentração de renda, baixos padrões educacionais, desigualdade social, racismo estrutural e na violência e arbítrio como formas de ordenação social, nunca foram tão evidentes como no presente momento.

Dois relatórios publicados recentemente escancaram o quanto a sociedade brasileira, leia-se os adultos, temos descumprido nossas obrigações, plasmadas no artigo 227 da Constituição Federal, de assegurar às crianças e adolescentes “com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação… à dignidade…, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

A desonestidade do Estado e de parte da sociedade brasileira com seus jovens é constrangedora, comprometendo não apenas o processo de desenvolvimento econômico e social do Brasil, mas, também, a própria aspiração de vivermos em paz, sob o estado democrático de direito.

O movimento Todos pela Educação, que vem mapeando o desempenho da educação brasileira nas últimas décadas, sinaliza em seu último relatório um preocupante crescimento de 66,3% no número de crianças, entre 6 e 7 anos, que não foram alfabetizadas.

Se é fato que uma parcela substantiva desse crescimento se deve à Covid-19 e ao fechamento das escolas públicas, onde estudam mais de 80% de nossos alunos, predominantemente pobres, o que mais preocupa, como argutamente aponta Claudia Costin, nesta Folha, é que esse crescimento se dá sobre um número já extremamente alto de crianças —cerca de 55%— que não se encontra alfabetizada no 3º. ano do ensino fundamental. Mantidos esses padrões educacionais, o Brasil jamais conseguirá ingressar numa economia cada vez mais pautada no conhecimento, ficando fadado à produção de commodities.

Nossas crianças não têm apenas uma educação deficiente, em face de políticas educacionais insuficientes. Como aponta o relatório “Tiro no Futuro”, recentemente publicado pelo Centro de Estudos de Segurança Pública e Cidadania (CESeC), a violência, em grande medida decorrente de uma política equivocada de “guerra às drogas”, tem tido um forte impacto sobre a trajetória educacional, psíquica e social de jovens que vivem em comunidades, encontrando-se expostas ao tráfico, a operações policiais bélicas, tiroteios e balas perdidas.

Nada menos do que 1.115 escolas públicas ficaram expostas aos 4.346 episódios de trocas de tiros registrados na cidade do Rio de Janeiro, em 2019. Os alunos de 57% dessas escolas presenciaram dez tiroteios; de 11% das escolas, 30 tiroteios; já as crianças de 0,3% dessas escolas ficaram expostas a 95 casos de troca de tiros em um único ano.

Os pesquisadores apontaram as perdas educacionais coletadas junto à secretaria de educação e estimaram as perdas econômicas decorrentes da exposição à violência. Indicam, no entanto, que há inúmeras outras sequelas que acompanharão esses alunos ao longo de suas vidas.

Chamo a atenção, aqui, para a dificuldade que essas crianças, que não tiveram seus direitos mais básicos respeitados, terão em se conformar ao Estado de Direito. A insinceridade dos adultos e do Estado brasileiro no cumprimento de suas obrigações morais e legais em nada favorecerá a que esses jovens reconheçam os códigos de respeito recíproco indispensáveis numa sociedade democrática. Sem que sejamos capazes de reconfigurar nosso projeto de desenvolvimento, estaremos conspirando contra o futuro de nossos próprios filhos e netos.

No Ano do Tigre, a China pode se tornar um país de alta renda, por The Economist.

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A pergunta que especialistas se fazem agora é: será que o país realmente escapou da armadilha da renda média?

The Economist, O Estado de S. Paulo – 06/02/2022.

A China é assombrada pelo fantasma da “armadilha da renda média”, o conceito de que as economias emergentes crescem rapidamente para sair da pobreza, mas acabam presas em um nível anterior ao da riqueza. “Durante os próximos cinco anos, devemos ter um cuidado especial para evitar cair na armadilha da renda média”, disse Li Keqiang, o primeiro-ministro da China em 2016. Lou Jiwei, então ministro das Finanças do país, certa vez disse que as chances de a China ficar presa eram de 50%.

A armadilha foi identificada por Homi Kharas e Indermit Gill, dois economistas, em 2006, quando ambos trabalhavam no Banco Mundial. Ela leva a uma pergunta óbvia: o que conta como renda média e o que caracterizaria superá-la? Kharas e Gill adotaram as classificações de renda do banco onde trabalhavam, que foram determinadas em 1989, quando ele estabeleceu a separação entre os países de alta renda dos demais. A divisão tinha de acomodar todos os países que eram então considerados “economias industrializadas”.

Foi elaborada com uma renda nacional per capita de US$ 6 mil para os preços em vigor em 1987, baixos o suficiente para incluir a Irlanda e a Espanha. O valor atualmente é de US$ 12.695. Ele sobe em sintonia com uma média ponderada de preços e taxas de câmbio em cinco grandes economias: Estados Unidos, Reino Unido, China, zona do euro e Japão. Oitenta países atingiram esse patamar em 2020, três a menos do que no ano anterior. A pandemia rebaixou as Ilhas Maurício, o Panamá e a Romênia para o nível intermediário.

Apesar dos temores de seus líderes, ou talvez por causa deles, a China agora está prestes a se tornar um país de alta renda, segundo este conceito. Com base nas previsões mais recentes disponibilizadas pelo Goldman Sachs, calculamos que o país poderá mudar de classificação no próximo ano, ajudado em parte por sua forte moeda. (A transição não seria anunciada oficialmente até meados de 2024, quando o Banco Mundial atualiza suas classificações com base nos dados do ano anterior.)

Se estivermos certos, então 2022, o Ano do Tigre, poderia ser o último da China como um país de renda média. Depois disso, ela será mais poderosa e rica.

A fronteira é, sem dúvida, arbitrária. Vários países (entre eles Argentina, Rússia e até mesmo Venezuela) a ultrapassaram, mas tropeçaram e acabaram caindo nos anos seguintes. Escapar de forma duradoura da armadilha da renda média exige uma transição mais fundamental. Os países neste estágio intermediário de desenvolvimento podem esbarrar em um grande número de obstáculos. Eles talvez enfrentem diminuição de retornos para o capital, costumam sofrer com a escassez de trabalhadores para sair da agricultura. E devem investir de forma pesada na educação, além da educação básica necessária para os trabalhadores de fábrica lerem instruções. O teste mais verdadeiro de um país de alta renda é o quanto ele lida bem com tais ameaças ao seu crescimento. Como a China está se saindo com esses três pontos?

Investimentos
A China ainda está acumulando capital em um ritmo acelerado. O país investiu 43% de seu PIB nos cinco anos anteriores à pandemia. Os países de alta renda, em média, apenas metade dessa porcentagem. Mas a alta taxa de investimentos da China talvez não seja tão infrutífera como muitas vezes se supõe. Assim como seu investimento continua alto para os padrões dos países ricos, o mesmo acontece com a taxa de crescimento do PIB. De fato, a relação entre sua participação de investimentos na produção e sua taxa de crescimento (às vezes chamada de relação capital/produto incremental) ainda parece favorável em comparação com os países de alta renda.

E quanto às outras fontes de crescimento? Em sua revisão anual da economia chinesa, divulgada em 28 de janeiro, o Fundo Monetário Internacional (FMI) observou com preocupação que a “produtividade total dos fatores” de crescimento da China, que mede as mudanças na produção que não podem ser associadas a mais capital ou trabalho, caiu na última década, em comparação com a década anterior. O FMI atribuiu esse abrandamento a uma “paralisação” das reformas estruturais, sobretudo nas empresas estatais. “O dinamismo do mercado vem perdendo fôlego recentemente”, argumentou a instituição. Mas esse tipo de produtividade é conhecido por ser difícil de medir. E, de acordo com um indicador da Conference Board, uma associação empresarial, ela está crescendo perceptivelmente mais rápido na China que nos países de alta renda.

Os padrões de emprego da China ainda diferem de forma acentuada dos de países mais prósperos. Surpreendentemente, talvez, a parcela de seus trabalhadores no setor da construção é inferior à dos países de alta renda. A porcentagem nas fábricas é maior (19%, em comparação com uma média de 13%), e o número de trabalhadores na agricultura é muito maior – cerca de 25%, em comparação com uma média de 3% nos países de alta renda.

Sob uma perspectiva, essa força de trabalho rural residual é motivo de otimismo. Se a China pode alcançar níveis de renda elevados com um quarto de seus trabalhadores na agricultura, imagine o que o país fará quando eles migrarem para empregos mais produtivos? O receio, no entanto, é que esses trabalhadores não tenham deixado as fazendas porque não podem. Talvez eles não queiram perder seus direitos sobre as terras comunais. Ou talvez sejam muito velhos ou pouco escolarizados para aproveitar as melhores oportunidades nas cidades.

O nível de escolaridade dos trabalhadores da China é, de fato, um motivo de preocupação. De acordo com o último censo do país, sua população adulta tinha uma média de 9,9 anos de escolaridade em 2020. Isso o colocaria perto da lanterna da lista dos países de alta renda, que têm 11,5 anos em média, de acordo com Robert Barro, de Harvard, e Jong-Wha Lee, da Universidade da Coreia.

Alta renda
Esse problema só pode ser resolvido com um grupo por vez. Os cidadãos mais velhos da China cresceram em um país muito mais pobre e foram educados segundo esse contexto. Uma criança que ingressa atualmente no sistema escolar chinês pode esperar receber 13,1 anos de educação, de acordo com o Banco Mundial. A qualidade ainda não corresponde à quantidade: com base na pontuação das crianças em testes padronizados, 13 anos de escola na China equivalem a menos de dez anos em um país como Cingapura, calcula o banco. Contudo, as coisas têm melhorado.

A escolaridade de seu capital humano reflete o passado pobre da China, nesse caso, mas o “fluxo” de investimento em novo capital humano é mais condizente com um futuro de alta renda. O problema é que esse investimento de alto custo em dinheiro e tempo está desencorajando os casais a ter filhos, um impasse demográfico que é tristemente característico de muitas regiões ricas do mundo. A população da China cresceu apenas 0,03% no ano passado. A julgar pela experiência do Japão, uma população envelhecida e não renovada pode contribuir para pressão nos gastos, baixo crescimento e baixas taxas de juros. Os formuladores de políticas da China agora devem se preocupar com um tipo diferente de armadilha.

TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA

Movimentos estratégicos

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A construção de uma estratégia de desenvolvimento econômica e produtiva é fundamental para se posicionar na sociedade contemporânea, num mundo centrado na concorrência, na competição e na busca crescente por lucro e por ganhos monetários, sem construirmos uma estratégia, são grandes os riscos de um retrocesso social, político e econômico.

As nações desenvolvidas estão se movimentando rapidamente para se adaptar às grandes transformações econômicas, estimulando a participação de todos os setores produtivos, sociais e políticos para compreenderem as novas dinâmicas da sociedade contemporânea e como será o mundo na pós-pandemia, buscando fortalecer as estruturas produtivas, gerando milhões de empregos, estimulando investimentos produtivos, desestimulando investimentos especulativos de alto risco e criando instrumentos de sobrevivência para todos os setores da sociedade.

Neste momento de instabilidades internacionais e incertezas nacionais, precisamos construir uma união entre todos os setores da sociedade, criando instrumentos de participação setorial, estimulando investimentos maciços em educação, aumentando os recursos nas áreas da pesquisa científica e tecnológica, evitando a fuga de pesquisadores renomados e cientistas que poderiam impulsionar a ciência nacional, contribuindo para a construção da autonomia tecnológica, ativo fundamental na sociedade contemporânea.

Os investimentos da pesquisa científica devem ser feitos por todos os setores, não apenas pelas agências governamentais, devendo ser acompanhados pelas empresas, assumindo riscos, aguardando os tempos de maturação e contribuindo para que os frutos sejam compartilhados para toda a coletividade, melhorando os salários da sociedade, aumentando os recursos dos setores produtivos e dinamizando os setores mais fragilizados, erradicando a miséria e abrindo novas perspectivas para a sociedade.

O planejamento econômico deve vislumbrar os ganhos no longo prazo, criando os instrumentos de crescimento para todos os setores econômicos, melhorando as cadeias produtivas, estimulando compras governamentais, cobrando melhoras de produtividade, desenvolvendo soberania científicas e tecnológicas, além de reduzir a dependência de outras nações. O mercado pós-pandemia exige planejamento e novas estratégias, países dependentes de importação de produtos agrícolas buscam novas alternativas, estimulando novos mercados produtivos e angariando investimentos em outras nações para, no médio e no logo prazo, reduzir a dependência de outras nações. O mundo pós-pandemia exige profissionalismo e novos arranjos produtivos, depender de outras nações pode ser algo preocupante e pode gerar constrangimentos, custos financeiros elevados e perdas de seres humanos impossíveis de mensurar.

A economia está passando por grandes transformações na contemporaneidade, novos conceitos estão surgindo, novos desafios e oportunidades, mas não podemos esquecer conceitos antigos e comprovados cientificamente, dentre eles, de que o produto interno bruto tem o lado da produção (oferta) e o lado do consumo (demanda), mas infelizmente estamos estimulando apenas a produção e contraindo o consumo.

Como os dois precisam ser iguais, a oferta se contrai por falta de demanda, ou seja, sem investimentos produtivos não teremos emprego, sem estes não teremos renda, sem renda não teremos consumo. Sem consumo os setores produtivos não geram investimentos e, em contrapartida, o desemprego cresce, a informalidade aumenta e o desalento acelera, gerando graves constrangimentos para a sociedade, levando muitos indivíduos ao desespero, aos distúrbios emocionais, à depressão e ao suicídio, males do mundo contemporâneo.

A “ciência” econômica contemporânea se transformou num grande instrumento de crenças e de valores centrados no dinheiro, no imediatismo e nos interesses do capital financeiro nacional e internacional, perdemos a credibilidade e estamos nos entregando aos prazeres do enriquecimento fácil, defendendo ideias ultrapassadas e ainda acreditamos nos valores da meritocracia e do empreendedorismo, diante disso, percebemos que estamos, cada vez mais distante daquilo que podemos definir como uma sociedade civilizada.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 09/02/2022.

Como Olavo de Carvalho se tornou o pai espiritual da direita brasileira, por Camila Rocha.

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Denunciando ‘hegemonia esquerdista’, escritor abriu espaço para conservadores e apostou em revolução cultural de Bolsonaro

Camila Rocha, Doutora em ciência política pela USP, é autora de “Menos Marx, Mais Mises: o Liberalismo e a Nova Direita no Brasil” e coautora de “The Bolsonaro Paradox: the Public Sphere and Right Wing Counterpublicity in Contemporary Brazil”

Folha de São Paulo, 05/02/2022

[RESUMO] Nome de inegável importância no debate público brasileiro recente, Olavo de Carvalho fez uso de uma estratégia retórica de choque nas redes sociais, com argumentação sem fundamento e palavrões, para atrair segmentos da direita órfãos de líderes no país, forjando uma militância que ganhou expressão com a vitória de Bolsonaro.

A importância de Olavo de Carvalho como intelectual público na história brasileira recente é inegável. Sua morte rapidamente desencadeou a produção de uma grande quantidade de colunas e artigos dedicados a remontar sua trajetória e discutir seu legado político na imprensa nacional e internacional —além, claro, de uma torrente de manifestações nas redes sociais de luto e admiração, por um lado, e celebração irônica, por outro.

A maior parte do que foi escrito nos meios tradicionais se concentrou em enfatizar o caráter folclórico do personagem, ressaltando sua defesa de teorias conspiratórias e afirmações esdrúxulas. Carvalho inspirou até mesmo a criação de um museu virtual que organiza por categoria suas intervenções, ricamente ilustradas com postagens em redes sociais e vídeos de sua autoria.

Uma delas, em que diz que a Pepsi usa células de embriões humanos em suas bebidas, chegou a ser alvo de verificação da Agência Lupa.

Isso prova que sua estratégia retórica para atrair a atenção da mídia mainstream e divulgar as causas que defendia continua rendendo frutos mesmo após sua morte. O caso da Pepsi é exemplar nesse sentido. Afinal, após o choque inicial, descobriu-se que a PepsiCo tinha um convênio com uma empresa de biotecnologia que havia sido alvo de questionamento de militantes antiaborto por, supostamente, utilizar culturas de células de fetos abortados. Ponto para os conservadores.

O uso dessa estratégia estava intimamente conectado com o principal objetivo de Olavo de Carvalho no debate público: combater uma “hegemonia cultural esquerdista” que teria passado a vigorar no país desde a redemocratização. Em outras palavras, combater o pacto democrático de 1988.

Esse pacto remete a um arranjo político inédito forjado após a promulgação da nova Constituição. Sustentado ao mesmo tempo pela Constituição de 1988 e pelo presidencialismo de coalizão —modelo de governo composto por grandes coalizões parlamentares—, o arranjo se baseia no entendimento implícito de que a implementação dos direitos sociais anunciados na Carta deveria ocorrer de forma lenta, gradual e segura.

Foi assim que, a despeito da morosidade do Estado em incorporar as demandas democráticas da sociedade, o debate público no Brasil, ainda que continuasse a ser dominado por elites, passou a conviver com a participação de grupos historicamente oprimidos.

Apesar de contarem com poucos recursos de ordem material e organizacional em comparação com as elites, esses grupos conseguiram incidir na criação de uma nova institucionalidade. Isso ocorreu tanto durante a Constituinte quanto posteriormente, por meio de um processo de institucionalização no âmbito da própria sociedade civil e no Estado com a criação de políticas públicas específicas e novos órgãos sob os governos eleitos democraticamente que se sucederam até o impeachment de Dilma Rousseff.

Contudo, apesar dos avanços inegáveis produzidos pela maior porosidade do Estado —e da própria sociedade civil—, o processo de incorporação de novas vozes e avanços sociais foi acidentado e permeado por ambiguidades, contradições e recuos.

Durante o auge do lulismo, vozes críticas ao governo se tornaram escassas no debate público. À esquerda, vários movimentos sociais pareciam ter se institucionalizado e se esvaziado. À direita, havia um sentimento de orfandade de determinados segmentos, tendo em vista a atuação da oposição ao governo —e Olavo logo se tornou seu principal porta-voz.

Ainda na metade da década de 1990, muito antes da chegada do PT ao poder, ele defendia a necessidade de combater a “hegemonia cultural esquerdista”. Afinal, segundo seu entendimento, a esquerda já dominava jornais, revistas, ONGs, editoras de livros e cursos de ciências humanas nas principais universidades brasileiras, notadamente na USP.

Essa ideia aparecia de diversas formas em alguns de seus livros publicados por editoras de menor expressão, como “A Nova Era e a Revolução Cultural: Fritjof Capra e Antonio Gramsci” (1994), “O Jardim das Aflições” (1995) e dois volumes do livro “O Imbecil Coletivo” (1996 e 1998, respectivamente).

De acordo o próprio autor, a publicação dessas obras —em especial de “O Imbecil Coletivo”, em que tecia críticas contundentes aos intelectuais e acadêmicos de esquerda brasileiros— abriu um espaço para liberais e conservadores que havia sido negado desde os anos 1980.

Sua intenção, na época, era se lançar crítico cultural. Seus livros, no entanto, ainda circulavam em meios restritos.

Em razão disso, buscou apoio junto a pessoas que frequentavam os circuitos formados por organizações que atuavam em defesa do livre mercado —ele alegou, inclusive, que foi apresentado à obra do economista Ludwig von Mises por Donald Stewart Jr., empresário fundador do Instituto Liberal do Rio de Janeiro.

Porém, após ter frequentado um primeiro curso sobre pensamento social e político que fora organizado pelo instituto para o público geral, Carvalho não causou boa impressão devido à agressividade que dispensava aos seus oponentes ideológicos e não conseguiu o patrocínio desejado.

Tentou ainda obter financiamento junto à fabricante de cigarros Souza Cruz, à organização católica tradicionalista Opus Dei e à articuladora norte-americana Atlas Network, no que tampouco obteve sucesso. Resolveu, então, se autopromover.

Para tanto, passou a contar inicialmente com recursos próprios, obtidos por meio da venda de livros, de seu trabalho na imprensa e da oferta de cursos privados de filosofia.

Foi assim que Olavo de Carvalho —que, em 1998, se declarou a favor do livre mercado na economia, tradicionalista e conservador no que tange à defesa da religião, anarquista em relação à moral e à educação, nacionalista e contra o “governo mundial” no que diz respeito à política internacional e realista no campo da filosofia— passou a concentrar esforços em divulgar suas ideias na internet e, progressivamente, deixou de lado a ideia de se firmar como crítico cultural no circuito mainstream.

Questões políticas conjunturais e discussões de ordem moral e filosófica assumiram o primeiro plano em suas intervenções, ventiladas por meio de um blog próprio, criado em 1998, e de um site coletivo fundado em 2002, em que eram veiculados textos de vários autores e autoras sobre política, economia e filosofia.

Ao mesmo tempo que Carvalho se tornava mais conhecido entre os frequentadores dos fóruns digitais da época, também influenciou decisivamente a tradução e a circulação de autores pouco conhecidos no Brasil. A editora É Realizações publicou vários livros de autores que Carvalho utilizava como referência em suas obras, como Roger Scruton, Eric Voegelin, Theodore Dalrymple e Christopher Dawson, que hoje figuram em sua lista de mais vendidos.

Já a Vide Editorial, além de publicar obras de Scruton e Voegelin, também começou a lançar títulos relacionados mais explicitamente à crítica do marxismo e do comunismo, como “A Mente Esquerdista – as Causas Psicológicas da Loucura Política”, “O Verdadeiro Che Guevara”, “O Livro Negro do Comunismo” e “Marxismo Desmascarado”, bem como promover livros de autores nacionais pouco conhecidos na época, fomentando, assim, um pequeno circuito editorial alternativo.

Em meio ao auge de popularidade do governo Lula, os espaços criticados por Olavo por sua falta de pluralidade ideológica se ampliaram, passando a abranger o Estado e até a Rede Globo.

Com o tempo, independentemente da qualidade e do rigor de sua prática filosófica, alvo de críticas contundentes mesmo à direita do espectro político, sua audiência também se ampliou. Psicanalistas, médicos, empresários, jornalistas, professores universitários, alunos de graduação e de pós-graduação de universidades públicas e privadas formavam parte significativa de seus alunos, leitores e ouvintes.

Sem dúvida, essas pessoas não padeciam de escassa formação acadêmica e recursos financeiros restritos. Em grande medida, se sentiam pouco representadas ou mesmo desprezadas na esfera pública tradicional e viam em Olavo alguém que dava vazão a seus anseios. Na visão de um de seus alunos, Olavo incentivou as pessoas a serem mais intelectualizadas, e, ao mesmo tempo, a zombar de um verniz de intelectualidade que existe no Brasil.

Contudo, se o “esquerdismo” atribuído às produções da maior emissora de televisão do país é algo passível de questionamento, havia uma arena que, sem sombra de dúvida, era hegemonizada pela esquerda à época: o movimento estudantil.

Na metade dos anos 2000, parte significativa dos frequentadores dos fóruns digitais da nova direita emergente, sobretudo no finado Orkut, era composta de estudantes universitários que não se identificavam com a esquerda. Em vista de suas experiências universitárias, que, na visão deles, eram permeadas por exclusão e silenciamento, passaram a compartilhar as ideias divulgadas por Carvalho.

Como bem lembrou Natália Leon Nunes, estudante de filosofia da USP à época, um grupo de alunos recém-ingressos se dirigiu ao centro acadêmico em 2006 para propor um debate entre Olavo de Carvalho e Marilena Chauí. O evento não ocorreu, porque, segundo ela, “nós da filosofia tratávamos com ironia e desprezo o doido ressentido com a USP que falava um monte de besteira”.

Com o tempo, a ideia de que existia uma “hegemonia esquerdista” ganhou cada vez mais adeptos, sobretudo entre universitários, e a própria forma de combatê-la, a política do choque, passou a se consolidar entre a nova direita emergente.

Isso se traduzia em promover reações de choque intencionalmente para chamar a atenção para pautas e demandas pouco ou nada tematizadas na esfera pública tradicional. Nesse sentido, o uso abundante de palavrões e xingamentos por Olavo era consciente.

Para além de chamar a atenção para temas ligados a discursos conservadores, a política do choque também ajudava a unificar vozes descontentes e forjar um novo espírito militante. Assim, muito antes de podcasts e lives se popularizarem, suas ideias passaram a atingir um espectro muito mais amplo de pessoas por meio de transmissões que realizava no Blog Talk Radio e no YouTube.

A despeito da crescente popularidade de Olavo de Carvalho nesses espaços e nos meios digitais, seus alunos não tiveram sucesso em se organizar formalmente, e a divulgação de suas ideias era intermitente.

Em 2008, foi anunciada na comunidade Olavo de Carvalho, no Orkut, a proposta de elaborar um fórum conservador digital e, em 2010, um Instituto Olavo de Carvalho chegou a ser criado. Durou pouco, contudo, e teve suas atividades encerradas dois anos e sete meses depois. No mesmo ano, a transmissão do podcast de Olavo no site Blog
Talk Radio também chegou ao fim.

Percebendo uma demanda reprimida por livros de direita, Carlos Andreazza, então editor da Record, resolveu lançar em 2013 “Esquerda Caviar: A Hipocrisia dos Artistas e Intelectuais Progressistas no Brasil e no Mundo”, de Rodrigo Constantino, e “O Mínimo que Você Precisa Saber para Não Ser um Idiota”, de Olavo de Carvalho, que logo entraram para a lista dos mais vendidos daquele ano.

Em 2015, em meio ao auge de mobilização popular durante as manifestações pelo impeachment de Dilma Rousseff, o livro de Olavo se tornou um best-seller com mais de 120 mil cópias vendidas.

Desde então, Olavo intensificou as conversas que já vinha mantendo com a família Bolsonaro e, ao sinalizar apoio à candidatura do capitão reformado à Presidência, logo se tornou um de seus principais conselheiros.

Sua intenção era que, uma vez no governo, Bolsonaro apoiasse uma revolução cultural —um novo pacto social e político que suplantasse o de 1988 e endireitasse a nação, na direção de um destino cristão-ocidental próprio. Isso alçou Olavo ao posto de pai espiritual dos direitistas brasileiros, como mostra o fato de os próprios integrantes do infame gabinete do ódio, assim como tantos outros jovens, terem se convertido ao catolicismo por sua influência.

Ao final, Olavo não só foi capaz de chamar a atenção que queria como, finalmente, conseguiu participar de debates que antes lhe eram vetados. Em abril de 2017, o escritor foi convidado a participar, ao lado do vereador petista Eduardo Suplicy, da Brazil Conference, evento organizado pela Universidade Harvard e pelo MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts).

Depois de elogiar a iniciativa das universidades em unir polos que nem sempre dialogam no país, ele disse: “A ideia é muito boa. É necessário, urgente. É apenas uma vergonha para o Brasil que tenha sido o MIT que propôs isso e não uma universidade brasileira. Isso mesmo é um sintoma do estado de coisas”.

Olavo de Carvalho afirmou ainda que aprovava a ideia de renda básica universal, proposta por Suplicy: “Claro, todo o mundo quando nasce tem que ter alguma coisa. Tem que ter, pelo menos, alguém para segurar você, para você não cair no balde. Se você não tiver nem isso, está ferrado”. Nisso, Olavo tinha razão.

Os indiferentes e os invisíveis, por Jânio de Freitas

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Estamos em um país brutalmente violento e estupidamente indiferente à sua realidade

Jânio de Freitas

Folha de São Paulo, 05/02/2022

Se o Brasil não ultrapassou as condições em que a violência ainda pode retroceder ao “normal”, está entrando nessa aberração sem volta.

Não se vislumbra preocupação coletiva com o problema, nem mesmo para conter o empenho criminoso do governo por mais e maior violência. Como se dá com a própria violência, é a continuidade lógica de um percurso imposto. Explicado pela invocação de suas causas gritantes, mas excluído o fator determinante: o passado indiferente e a indiferença do nosso tempo à liberação da violência. O que situa as responsabilidades silenciadas.

As causas socioeconômicas da violência, legado da escravidão, acumularam-se desde a oportunidade perdida de uma abolição com perspectiva social e inteligente. A indiferença dos possuidores pelo país abaixo dos seus interesses caminhou, pelo tempo afora, com a tranquilidade assegurada por polícias e forças militares em eventuais cobranças de alguma justiça.

As favelas deram, a um só tempo, tanto a estética da segregação urbana —a verdadeira arquitetura moderna brasileira— como um atestado sólido da indiferença. O trabalho depreciado, a escassa oferta de emprego e a concessão precária de escolaridade disponibilizaram população crescente para o desemprego adulto e a marginalidade jovem.

A pobreza e a miséria são violências passíveis de incutir a sobrevivência alheia a leis e princípios. Mas o desenvolvimento de tais práticas nunca levou a um esforço verdadeiro para corrigir, em alguma medida, as suas causas também crescentes.

Os possuidores e a política que a eles serve continuaram indiferentes. E sempre piorados: a cultura ocidental desenvolveu desde a Segunda Guerra, sobretudo com cinema e TV, um sistema de alta eficácia na indução de violência à vida cotidiana das próprias classes dominantes. Nesse nível, as barreiras oferecidas pela educação pessoal, pelo estudo, pelo convívio reduziram-se com rapidez drástica. Estão quase desaparecidas. Deram lugar a mais violência e a mais indiferença à realidade.

Não precisamos de estatísticas para saber: estamos em um país brutalmente violento e estupidamente indiferente à sua realidade. Nas classes que definem a estrutura social e influem nos rumos nacionais, claro. Os rumos da violência inspirada pela pobreza exasperante, e armada pela indiferença, não sabemos.

Casos de repercussão como o linchamento do congolês Moise Mugenyi Kabagambe não negam a indiferença, antes a confirmam. Consumados ou quase, assassinatos assim ocorrem no país todo, motivando mínimas notícias ou silêncio —não só por provável insuficiência jornalística, mas pela indiferença generalizada à indiferença mesma.

O clamor eclodiu dias depois do linchamento e da indiferença policial e dos noticiários. Causou-o o lamento comovente da mãe de Moise, Lotsove Lolo Lavy Ivone.

A política nunca se voltou de fato para as deformações que desenvolvem a violência. Nunca houve um esforço verdadeiro da sociedade e de seus instrumentos para suprir a omissão da política e dos recursos oficiais contra a violência e suas fontes reais. O que é uma violência monstruosa. Diferente na forma, e, apesar disso, comparável aos extermínios históricos. Centenas de milhões ou já bilhões vitimados por efeito da indiferença histórica no Brasil.

OUTROS MILHÕES

É um livro pequeno: “Invisíveis”. Uma palavra na capa, etnografia, pode afastar leitores. Seria pena. O livro da jornalista esplêndida, professora universitária e pesquisadora Fernanda da Escossia é “uma versão modificada” —digamos, simplificada ou traduzida— da tese de doutorado em que nos traz um universo inimaginado: o dos milhões de brasileiros que não têm direitos por não terem certidão de nascimento e, portanto, nenhum outro documento.

Quem não tem documento não existe legalmente: “Eu me sinto um nada”, “Sou um zero”, “Eu me sinto um cachorro”, ouviu Fernanda.

São histórias perturbadoras, lindas ou indignantes, que Fernanda colheu de velhos, mães, filhos ao persistirem na aventura dramática de provar ao Estado que nasceram. Logo, existem. E, com 30 ou com 75 anos, ou sem sequer saber o dia do nascimento, querem o direito de ser vistos no mundo dos vivos —até para o direito de ter uma certidão de óbito, e não a vala comum.

Às vezes comovente, aliviante em outras, é mais um Brasil que “Invisíveis” revela.

Investimentos produtivos

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Os indicadores econômicos brasileiros geram preocupações constantes, muitas instituições financeiras nacionais e internacionais projetam um reduzido crescimento da economia, a recuperação tende a ser demorada, a inflação se mostra resistente, os problemas das cadeias de produção ainda persistem e devem se recuperar apenas no próximo ano, gerando pressões nos preços e podem gerar constrangimentos monetários, elevando as taxas de juros e limitando a recuperação da economia. Diante disso, os desafios econômicos são imensos, a superação deste cenário pode abrir novas oportunidades de recuperação da economia e podem criar sólidos espaços para a construção de um novo modelo de desenvolvimento econômico.

Vivemos um momento de grandes transformações, as incertezas crescem em decorrência dos desequilíbrios gerados pela pandemia. Os impactos das novas tecnologias e da globalização econômica exigem dos agentes econômicos, sociais e políticos a renovação dos consensos anteriores, sob pena de ficarmos para trás neste ambiente altamente competitivo, marcados pelas novas tecnologias e centrados na concorrência entre empresas, trabalhadores e nações.

Neste momento, percebemos que os ventos da Guerra Fria se mostram mais presentes, onde as nações se engalfinham novamente, gerando hostilidades, confrontos econômicos, políticas protecionistas, buscando a hegemonia na estrutura econômica e na política internacional, criando rancores e ressentimentos que podem culminar em conflitos militares, com altos custos materiais, humanitários e financeiros.

Além dos medos gerados pelos possíveis conflitos militares, a economia se recupera de forma desigual, os investimentos produtivos prescindem de confiança, estabilidade política, regras claras e credibilidade. Os riscos inflacionários tendem a elevar as taxas de juros nos Estados Unidos, com impactos sobre a recuperação global e afetando fortemente os países em desenvolvimento, exigindo regras claras e instituições confiáveis e dotadas de credibilidade.

Internamente, o Brasil vive de espasmos de crescimento econômico que aumentam a concentração da renda, degradando as relações de trabalho, incrementando a pobreza e contribuindo para o crescimento da miséria, que se materializa nas condições de vida da comunidade, onde mais de 50% passa por dificuldade de alimentação. Neste momento, faz-se necessário repensar o modelo econômico adotado desde os anos 90, que priorizaram os setores financeiros em detrimento dos investimentos produtivos, gerando uma sociedade mais desigual e uma elite econômica desconectada da realidade da maioria da população.

A pandemia está levando as nações desenvolvidas a repensarem os modelos de desenvolvimento, nada de Estado mínimo que dominou o pensamento econômico até a crise econômica dos Estados Unidos de 2008. Atualmente, ressurge o Estado planejador, estimulando investimentos produtivos e estratégicos, fortalecendo políticas industriais e de inovação, estimulando novas tecnologias e aumentando os investimentos em qualificação do capital humano, se antecipando as exigências das necessidades dos próximos movimentos produtivos.

No caso brasileiro o investimento produtivo é o caminho para a construção de um novo modelo econômico, sem investimentos públicos a recuperação da economia tende a demorar muitos anos, cabe ao Estado monitorar e estimular ativamente a reindustrialização da estrutura produtiva, investindo fortemente em setores de infraestrutura, atraindo com regras claras os investimentos privados, estimulando os setores socialmente responsáveis, incorporando novos modelos sustentáveis, fortalecendo energia limpa e menos poluentes e contribuindo para preservação do meio ambiente.

Como foi dito pelo sociólogo Fernando Henrique Cardoso, o desenvolvimento é o mais político dos temas econômicos, exigindo um amplo consenso entre todos os setores da sociedade, evitando confrontos desnecessários e picuinhas institucionais, fortalecendo as reflexões constantes sobre os desafios da sociedade e fomentando discussões democráticas e desvencilhando pensamentos golpistas e inconsequentes. Os desafios brasileiros são enormes, canalizemos nossas energias para discussões serenas e construtivas.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 02/02/2022.

O risco das commodities, por Clésio Andrade.

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China cria condições para plantar, minerar, produzir e transportar o que quiser

Clésio Andrade, Empresário e ex-presidente da CNT (Confederação Nacional do Transporte), foi vice-governador de Minas Gerais (2003-06) e ex-senador pelo MDB (2011-14)

Folha de São Paulo, 01/02/2022

Cada movimento que a China faz gera uma onda que atinge a economia global. Para o Brasil, qualquer mudança nas importações chinesas pode se tornar um tsunami.

O gigante asiático compra quase todo o minério de ferro que produzimos e é o maior consumidor de commodities agrícolas brasileiras. Se a demanda chinesa cresce, o Brasil vende mais e a nossa economia agradece; mas, quando eles compram menos, logo sentimos os reflexos negativos.

Um exemplo é a queda de mais de 40% nos preços do minério de ferro em 2021. A justificativa imediata é a desaceleração da economia chinesa que, afetada por uma grave crise energética, reduziu a produção de aço. Mas o pano de fundo é complexo e mais perigoso para o Brasil. A China, que já usa sua força para controlar os preços do minério, agora está trabalhando para se tornar menos depende do mercado externo da matéria-prima do aço.

Hoje, os chineses já respondem por mais de 50% do minério de ferro produzido no mundo, mas o consumo deles é tão alto que compram quase 70% da produção mundial. Brasil e Austrália lideram as vendas, mas isso pode mudar. Um sinal é o investimento que a China vem fazendo em suas minas no exterior, especialmente na Guiné, no Peru e na própria Austrália.

Na agricultura, a onda chinesa também inspira atenção. Nos últimos 12 meses, os custos de produção de commodities, como milho, soja e café, entre outras, subiram 52,01%, segundo a FAO, organismo da ONU que monitora a oferta e distribuição de alimentos no mundo. Um dos grandes motivos deste aumento foi a decisão da China de reduzir a oferta de fertilizantes no mercado global, o que elevou os preços desses insumos em mais de 300% nos últimos quatro anos.

O Brasil não produz fertilizantes suficientes para atender a nossa produção, mas este não é o nosso único problema no mercado global de commodities agrícolas.

A meta do governo chinês é tornar o país autossuficiente em produtos agrícolas básicos até 2025 para garantir a segurança alimentar de sua população de 1,4 bilhão de pessoas. Soja, arroz, trigo, carne, frango e ovos são alguns dos produtos que os chineses querem produzir no mesmo volume da demanda interna.

Alguns setores já sentem os efeitos dessa decisão. Nos últimos meses, as exportações de carne suína brasileira para a China caíram cerca de 50%, e os preços baixaram em torno de 17%.

Outra estratégia chinesa é investir em infraestrutura na África e países mais próximos, onde pode produzir ou controlar a produção de alimentos. Não é à toa que eles construíram ou modernizaram 10 mil quilômetros de ferrovias e quase 100 mil quilômetros de rodovias em países africanos nos últimos anos.

A China está criando condições para plantar, minerar e produzir o que quiser e transportar tudo em ferrovias moderníssimas a uma velocidade média de 300 km/h.

Os planos da China desafiam as bases da globalização. De um lado, o país desglobaliza, ao investir em produção própria de commodities agrícolas e minerais; de outro, busca hegemonia ao realizar investimentos maciços em infraestrutura em outros países e continentes com o objetivo de conectar Ásia, Oriente Médio, África e Europa, tendo como principal objetivo fortalecer suas exportações para o mundo.

Esse cenário desafiador está afetando o agronegócio e a economia brasileira de forma inédita.

Precisamos de alternativas para contornar a escassez de fertilizantes e os aumentos de custos —não apenas desses produtos, mas de todos os insumos agrícolas. Por outro lado, precisamos de planejamento e estratégia para enfrentarmos um mercado em constante transformação.

Enfim, como seremos o celeiro do mundo se não investimos em nossa matéria-prima básica, que são os fertilizantes? O Brasil poderia ser autossuficiente, mas não se move nesse sentido. Também precisamos buscar novos mercados para nossas commodities agrícolas e minerais.

O governo brasileiro precisa pensar no futuro. Além de garantir a segurança alimentar de nossa população, não pode negligenciar os problemas que afetam o agronegócio, a grande força que sustenta a economia nacional, produz riquezas, gera empregos e garante o sustento de milhões de famílias.

Para qual escola os estudantes retornarão hoje?, por Alexandre Schneider.

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Milhões de estudantes de ensino básico voltam às aulas hoje no Brasil sob o signo da ansiedade e da esperança de um ano normal pós pandêmico

Alexandre Schneider, Pesquisador do Transformative Learning Technologies Lab da Universidade Columbia em Nova York, pesquisador do Centro de Economia e Política do Setor Público da FGV/SP e ex-secretário municipal de Educação de São Paulo

Folha de São Paulo – 30/01/2022

Desde que a pandemia eclodiu, a discussão pública no Brasil e no exterior gira em torno da comparação entre a aprendizagem dos estudantes privados de frequentar a escola em decorrência da pandemia e daqueles que frequentaram a escola em anos anteriores, medida por testes padronizados. Algo que —erroneamente, a meu ver— denominou-se “perda de aprendizagem”, uma vez que ninguém perde o que não “recebeu”.

Como tem sido usual nos últimos anos, além do diagnóstico comum para realidades educacionais distintas, a receita para enfrentar e vencer os desafios tem sido a mesma: a realização periódica de avaliações, a “desidratação” do currículo com a escolha do mínimo a ser ensinado, e a ampliação da carga horária escolar para que os estudantes sejam submetidos a um volume maior de conteúdos em uma espécie de regime intensivo de ensino e aprendizagem.

Estas são medidas alinhadas ao que o foi a escola antes da pandemia, mas talvez não sejam tão próximas do que será a escola pós-covid e certamente estão distantes do que deve ser: uma instituição que invista na formação de indivíduos capazes de guiar sua aprendizagem de forma mais autônoma, engaje os estudantes e garanta o direito de aprender a todos. Sugiro aqui três medidas simples, que podem eventualmente ser adotadas em conjunto com as anteriormente citadas.

Ouvir os estudantes. Cada um de nós viveu a “sua” pandemia. Que tal usar os primeiros dias para discutir com os estudantes como cada um deles viveu esse período tão desafiador? Uma conversa guiada, com perguntas previamente estruturadas em pequenos grupos, sobre a experiência de aprender em casa, qual o impacto da pandemia em suas vidas, que escola gostariam de encontrar neste ano, são algumas das possibilidades.

Talvez os educadores se surpreendam ao ouvir dos estudantes menos queixas em relação à “perda de aprendizagem” do que ao convívio com os colegas, dentro e fora da escola, ou de atividades que exigiam mais interação do que as aulas expositivas. Uma escuta ativa dos estudantes poderá proporcionar pistas relevantes para melhor organizar a escola para a aprendizagem.

Ouvir os educadores. Desde 2020, os educadores lançaram mão de uma série de estratégias que os aproximaram ainda mais da realidade vivida por seus estudantes e suas famílias, bem como de suas necessidades de formação para lidar com a realidade imposta pela pandemia. A escuta ativa dos educadores pode ser muito eficaz para apoiar a estruturação de redes de proteção social necessárias a combater os fatores extraescolares que impactam na aprendizagem, a organização da escola para que possa atender às necessidades de aprendizagem individuais e, sobretudo, desenhar programas alinhados às demandas de formação de professores decorrentes dos novos desafios impostos.

A terceira medida é a de investir intensivamente na formação dos professores para que sejam capazes de integrar os desafios da aprendizagem com os desafios da formação de indivíduos críticos e adaptáveis a um mundo em transformação.

Tornar a escola mais humana, fortalecer os laços entre educadores, estudantes e suas famílias, integrar a escola aos equipamentos públicos e privados no território não são medidas laterais à missão da escola pública, mas fortalecem as comunidades escolares e as preparam para garantir a melhoria contínua da aprendizagem de seus estudantes.

Crises escancaram desigualdade planejada de São Paulo, afirma Raquel Rolnik

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Para urbanista, sujeitos periféricos podem confrontar ordem excludente da cidade, que privilegia classe média

Eduardo Sombini, Geógrafo e mestre pela Unicamp, é repórter da Ilustríssima

Folha de São Paulo, 29/01/2022

[RESUMO] Em entrevista à Folha, professora da USP argumenta que São Paulo vem sendo planejada por poucos e para poucos, o que produziu um padrão desigual de urbanização. A cidade vive um momento especial em sua história, com a coexistência de crises e a emergência política de sujeitos periféricos que podem protagonizar um novo ciclo de lutas urbano, diz.

São Paulo completou 468 anos na última terça-feira (25) atravessando a provável mais grave crise de moradia da sua história, avalia Raquel Rolnik, 65.

Ocupações nas periferias da região metropolitana e nos bairros centrais da capital se avolumam, e a população em situação de rua aumenta expressivamente, mas o agravamento das condições habitacionais dos mais pobres é só uma fração do “combo de crises” —econômica, de mobilidade urbana, de saúde pública— que a cidade enfrenta, na interpretação da urbanista.

Apesar do cenário que beira a distopia, Rolnik não se mostra desanimada. “Quem vive as crises quer morrer, mas esses momentos são oportunidades de transformação”, diz em entrevista por videochamada à Folha.

Um dos mais importantes nomes do campo progressista dos estudos urbanos no Brasil, Rolnik apoiou a candidatura de Guilherme Boulos (PSOL) na última eleição municipal em São Paulo e aposta no potencial de “sujeitos periféricos” protagonizarem um novo ciclo de lutas urbano, impulsionando agendas ambientais, antirracistas e feministas, por exemplo, e disputando os rumos de um novo modelo de política urbana.

Em “São Paulo: o Planejamento da Desigualdade” —edição atualizada do livro “São Paulo”, da antiga coleção Folha Explica, editada agora pela Fósforo—, a professora da USP revisita a história do planejamento urbano da cidade, destacando as opções políticas tomadas em momentos de crise e responsáveis pela consolidação de um padrão “classemédiocêntrico”, que resguarda os privilégios dos grupos de renda mais elevada e marginaliza a maior parte da população.

Em sua avaliação, as medidas de isolamento social adotadas durante a pandemia são uma expressão nítida desse modelo excludente, já que ficar em casa não foi uma opção para a grande maioria dos paulistanos.
“São Paulo”, da coleção Folha Explica, foi publicado em 2001. Por que atualizar e relançar o livro agora? Esse livro teve algumas edições ao longo da sua história. Na penúltima (“Territórios em Conflito – São Paulo: Espaço, História e Política”, Três Estrelas), o texto saiu com um compilado de colunas publicadas na Folha e alguns artigos acadêmicos.

Quando a Fósforo assumiu parte do catálogo da Três Estrelas, propus retomar o formato do “Folha Explica São Paulo”, aquele livrinho acessível, para quem não é especialista, e achei que era o momento de atualizar o texto —não só trazê-lo para os dias de hoje, mas fazer uma atualização um pouco mais radical de como falar da São Paulo do passado.

Decidi fazer isso pela mesma razão pela qual convidamos o Emicida para escrever o prefácio: este momento pelo qual a cidade está passando é muito especial na história, não apenas porque estamos vivendo um verdadeiro combo de crises, mas também em razão da emergência de novas vozes, que são justamente os sujeitos periféricos, conceito formulado por Tiaraju D’Andrea.

Essa narrativa sobre a cidade vem do movimento cultural das periferias, da luta antirracista, e está colocando sobre a mesa pautas que nunca tiveram muito destaque, mesmo entre os que denunciam a desigualdade.

Conto no livro a história das crises e das opções que foram tomadas naqueles momentos, com a tese de que estamos vivendo mais uma dessas. Que tal, então, começar a pensar em um outro modelo de cidade agora, apostando que, diante da crise, outro modelo de cidade é possível? Quem vive as crises quer morrer, acha que tudo está horrível —e está mesmo—, mas esses momentos são oportunidades de transformação.

No livro, a sra. indica que há uma linha de continuidade entre as várias crises do passado: a desigualdade continuou a ser planejada e a se reproduzir. O novo título do livro, aliás, faz menção a isso. Como a desigualdade vem sendo planejada em São Paulo? Falo de quando se sai da ordem escravocrata para o trabalho livre e se institui uma geografia da cidade em que, sobre as colinas, morava a classe dominante, e, nas várzeas, se instala a classe operária.

A classe operária das várzeas se instala em pensões, cortiços, casas minúsculas de alta densidade entremeadas com a paisagem das fábricas, enquanto há o paradigma dos casarões ajardinados, cujo modelo primeiro são os Campos Elíseos, depois há a migração para Higienópolis, avenida Paulista, Jardins e, em seguida, na direção da marginal Pinheiros e da zona sul.

Essa migração constitui um território burguês, que concentra renda e poder e vai incorporando outros modos de viver da classe dominante —casarões, depois edifícios e, nos anos 1990, as torres corporativas.

Há uma mudança de morfologia e, ao mesmo tempo, uma grande continuidade de um padrão segregacionista, porque o modelo periférico do território popular também se constituiu, com a autoconstrução da casa própria em loteamentos, muitas vezes irregulares e clandestinos, em periferias distantes, conectadas pelo ônibus.

O título, “Planejamento da Desigualdade”, é uma brincadeira para quem diz: “São Paulo é uma porcaria porque não tem planejamento, por isso é esse caos, é essa bagunça”. Não tem nada de caos e de bagunça. Tem planos aprovados e uma legislação urbanística, mas excludente “classemédiocêntrica”, que pensa a cidade a partir das formas de morar e de existir de um pedaço dela e simplesmente ignora o resto —e destina para o resto da cidade, que, aliás, é a maioria dela, as piores localizações.

A legislação urbanística construiu esse padrão absolutamente segregado, cujo objetivo básico é manter a concentração de oportunidades econômicas, sociais e políticas na mão de quem já tem e blindar a entrada de “newcomers”, mas, ao mesmo tempo, garantir que o mundo do trabalho vai continuar lá arrumando, cozinhando, limpando, polindo.

Como a sra. avalia a reprodução desse padrão durante a pandemia? O que aconteceu na pandemia é a expressão mais nítida desse modelo “classemédiocêntrico”, porque, diante do perigo de contágio e de morte, a política pública foi o isolamento social. “Fique em casa, vá para o home office, fique na internet fazendo tudo online e não se desloque” —ou seja, se referindo a uma realidade que deve corresponder a menos de 30% dos moradores da cidade.

Para que esses moradores pudessem ficar isolados em casa, existia um exército de gente trabalhando, levando comida, transportando. Para essas pessoas, não teve política.

A ideia do planejamento da desigualdade vem do fato de a cidade ser pensada e planejada por poucos e para poucos. O mal-estar que a maioria das pessoas da cidade tem é decorrente dessa opção.

Na pandemia, se a gente pensasse nas maiorias, nos trabalhadores de serviços essenciais que precisavam continuar se deslocando, a política deveria ser, por exemplo, tratar o transporte coletivo de uma forma totalmente diferente. No mínimo, distribuir “PFF5” para todo o mundo e, em vezes de cortar, colocar mais ônibus em circulação para ir muito menos gente dentro de cada ônibus e ter distanciamento entre as pessoas.

No começo da pandemia, houve um entusiasmo, principalmente nos setores progressistas, sobre a possibilidade de medidas redistributivas ganharem impulso. Depois de dois anos de Covid-19, porém, parece que predomina a percepção de aumento generalizado da pobreza. A São Paulo do pós-pandemia deve ser mais partida e fragmentada? O pós-pandemia está em disputa. No campo da moradia, que eu acompanho há muitos anos, acho que esta é a maior crise da história da cidade. Estou quase afirmando isso com certeza, embora a crise da moradia do final dos anos 1920 tenha sido bem difícil e acabou gerando o padrão de autoconstrução periférica, com todas as suas mazelas.

Estamos vivendo uma situação absolutamente paradoxal no campo da moradia. A renda caiu, o desemprego e a miséria aumentaram, ao mesmo tempo que a cidade está vivendo um dos maiores booms imobiliários da sua história.

Exatamente no momento em que há menos gente com capacidade de comprar um espaço, o espaço está ficando mais caro que nunca? Isso porque a dinâmica de produção e comercialização do espaço físico da cidade ficou totalmente financeirizada nas últimas décadas. Ou seja, esse crescimento imobiliário não tem nada ver com a renda da população, mas com a quantidade de capital excedente circulando no mercado financeiro que busca o tijolo, o imobiliário, como estratégia de valorização futura.

Esse capital não é só local e nacional, mas global e não tem nenhum tipo de barreira: entra, passeia pelo planeta à vontade e se instala no imobiliário com uma perspectiva de remuneração de longo prazo, porque existe uma enorme concentração de renda a nível global, como mostram os trabalhos de Thomas Piketty e Nouriel Roubini.

O imobiliário é um ativo financeiro. Por isso, estamos vivendo uma crise enorme, porque os pobres dos humanos têm que competir por uma localização com um capital financeiro gigantesco que não tem nenhum compromisso, nem territorial, nem afetivo, nem político, com a cidade.

O Emicida conta no prefácio, a partir da história pessoal dele, o que as pessoas fazem diante da crise: se viram. Tornam-se especialistas em “sevirologia”, expressão do José Soró, liderança de um movimento cultural de Perus.

Estamos vivendo um boom de novas ocupações nas extremas periferias, um boom de novas ocupações em prédios em áreas centrais e, ao mesmo tempo, um boom de pessoas na rua, com uma característica completamente diferente.

Historicamente, o morador de rua era um homem de meia-idade, com algum tipo de dependência química, problema mental etc. Imagina, a gente está vendo na rua famílias inteiras, como há muito tempo não se via.

O cenário de novas ocupações parece o dos anos 1990, o de população de rua eu nunca tinha visto algo como o de hoje. Diante disso, qual é a política habitacional que temos? Nenhuma, nem municipal, nem estadual, nem federal.

Algumas PPPs (parcerias públicas-privadas) aqui e ali. PPP não é política habitacional, é política de mercado financeiro. Ela não está voltada para atender uma demanda de quem mais necessita de moradia, mas para viabilizar um negócio com uma conta que fecha —e, para isso, tem que ter gente para pagar.

As PPPs não atendem quem está hoje na rua, indo abrir novas frentes de ocupação muito precária nas extremas periferias. É outro grupo, com renda estável e um pouco mais alta, com capacidade de pagamento. Isso é superlegal, mas olha em volta, olha quem está precisando de política pública de moradia. Usar a energia e os recursos do Estado para viabilizar moradia para quem não está na rua da amargura neste contexto é um escândalo. Um escândalo!

Vamos olhar o outro lado dessa história. Durante a pandemia, a auto-organização nos bairros populares foi muito intensa e segurou a onda de muita gente em termos de fome, de condições de morar, de redes de solidariedade. Nas favelas e nas ocupações mais estruturadas, morreu muito menos gente porque existia uma rede mínima de proteção, dentro da precariedade. Isso demonstra que é possível dar respostas por meio de uma política de mobilização completamente descentralizada.

Diria que um movimento não tão intenso, mas semelhante a esse foi a crise dos anos 1980, que gerou no começo dos anos 1990 um movimento muito interessante de renovação no campo político. Depois, isso foi totalmente fagocitado pelo sistema, mas sinto que, neste momento, a gente tem essa possibilidade de novo. Vamos ver quais vão ser os novos movimentos políticos que teremos, não só com a eleição deste ano, mas sobretudo a nível local.

Os últimos anos foram brutais para as agendas progressistas, e o campo da política urbana ficou marcado pela desconstituição. A sra. está esperançosa com a possibilidade de renovação política, mesmo com esse histórico recente? No ano passado, nós no Labcidade [Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade da FAU-USP] tivemos uma experiência muito interessante de trabalho conjunto com três mandatas lideradas por mulheres negras, vereadoras na Câmara de São Paulo, que mostram uma mudança muito significativa.

Já vivi alguns ciclos de crise e de luta. Comecei a me envolver com política urbana nos anos 1970, então pude observar quando, pela primeira vez, operários e lideranças sindicais foram eleitos e que tipo de política pública foi sendo construída.

Agora, estamos vivendo mais um momento —no comecinho, pequenininho, não hegemônico. Vai pipocando, em vários lugares do Brasil, uma nova geração de sujeitas periféricas, mulheres, negras, trans, que estão se colocando no espaço público e trazendo novas pautas. Espero que isso cresça e vire um grande movimento de transformação.

Se a gente olhar para os ciclos de lutas urbanos, teve um muito forte nos anos 1980, que deu na Constituinte, na emenda popular da reforma urbana, nas gestões democrático-populares, nas experiências com movimentos de moradia.

Esse ciclo teve, claramente, um descenso.

Em 2005, 2006, novos movimentos começaram a surgir e, em 2013, de alguma forma eles se expressaram. Dois mil e treze foi capturado por outra narrativa, mas a narrativa do direito à cidade estava na rua e esse foi o primeiro encontro desses novos movimentos.

Eles não desapareceram e geraram uma liderança política como Guilherme Boulos, que foi para o segundo turno da eleição municipal de São Paulo contra todas as expectativas. Boulos é exatamente essa nova geração de movimentos que nasceram na era Lula e já começaram questionando as políticas desse período.

Há agendas novas: movimentos ambientalistas, feministas, antirracistas, pela mobilidade. O parque Augusta foi uma vitória de um socioambientalismo urbano autogerido.

Se eles serão capazes de conquistar uma hegemonia e produzir políticas, é cedo para dizer, mas já vivi no outro momento. Quando a gente estava em 1974, 1975, não podia imaginar que ia fazer a Constituinte em 1988. Hoje está parecendo tudo horrível e distópico, mas acho que têm mudanças importantes na cidade.

A sra. citou o parque Augusta. Existem críticas a respeito da reprodução das desigualdades por esse ativismo, ou seja, sobre os jovens de classe média das áreas centrais conseguirem se articular melhor e levar adiante suas pautas enquanto os sujeitos periféricos enfrentam muito mais dificuldades. Como enxerga essa questão? Tenho uma posição diferente. Apoiei e participei da luta do parque Augusta, assim como apoio e participo da luta do parque do Bixiga [proposto no entorno do teatro Oficina, em terrenos do Grupo Silvio Santos]. Acho que tem algumas simplificações na conversa.

A primeira grande simplificação: São Paulo não pode ser entendida por meio do binômio centro/periferia, que não corresponde à territorialidade política da cidade. Esse binômio esconde o território popular que existe no centro.

Aliás, esconder o território popular do centro é ótimo para uma frente de expansão imobiliária que quer eliminá-lo.

O centro é um dos territórios negros e populares de São Paulo, e existe uma luta histórica pela permanência em bairros como Bixiga, Sé, República, Glicério.

Então, é preciso visibilizar e proteger o território popular do centro, porque a política atual é de eliminação —por exemplo, o que está se fazendo na chamada cracolândia é solução final, eliminação física de todos os imóveis e das pessoas.

Dizer que pobre está na periferia e que branco rico está no centro simplifica a história e não permite revelar que esses espaços centrais também são objeto de conflito. Não preciso dizer nada, só convido as pessoas a ir ao parque Augusta passear. Você não encontra só branco de classe média, mas uma mistura social. É um espaço muito apropriado pelas pessoas e muito popular.

Dito isso, você tem razão, no sentido de que a classe média tem uma capacidade de vocalização na política muito maior. Esta é a história da cidade: a história da classe média fazendo política urbana para si mesma.

RAQUEL ROLNIK, 65
Arquiteta e urbanista, doutora pela Universidade de Nova York e professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, onde coordena o Labcidade (Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade). Foi diretora de Planejamento da Prefeitura de São Paulo (1989-1992, gestão Luiza Erundina, PT), secretária nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades (2003-2007, governo Luiz Inácio Lula da Silva, PT) e relatora especial da ONU para o direito à moradia adequada (2008-2014). Autora, entre outros livros, de “Guerra dos Lugares: a Colonização da Terra e da Moradia na Era das Finanças” e “A Cidade e a Lei: Legislação, Politica Urbana e Territórios na Cidade de São Paulo”.

SÃO PAULO: O PLANEJAMENTO DA DESIGUALDADE; Preço R$ 59,90 (120 págs.); R$ 44,90 (ebook); Autor Raquel Rolnik; Editora Fósforo

Livro revê saída caótica dos EUA e prova que Afeganistão é problema complexo

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Casa Branca cometeu equívocos ao identificar inimigos e aliados, diz professor

João Batista Natali – Folha de São Paulo, 28/01/2022

As cenas foram muito fortes e patéticas para fugirem da memória recente. No último dia de agosto do ano passado, em meio à balbúrdia do salve-se quem puder, forças americanas deixaram o aeroporto de Cabul e entregaram o Afeganistão, quase de presente, aos extremistas islâmicos do Talibã.

Se houve fuga, é porque algo no roteiro deu errado. O plano do presidente Joe Biden era o de uma retirada ordeira que terminaria em 11 de setembro. Mas antes disso o governo local e suas forças armadas já haviam entrado em colapso. A corrida aos aviões para não cair em mão dos extremistas lembrou abril de 1975, com a debandada americana no aeroporto de Saigon, um capítulo pouco glorioso da Guerra do Vietnã.

Os fundamentalistas islâmicos encaçapavam mais uma bola no tablado da história, partindo para um previsto cenário de horrores: da fome entre 38 milhões de afegãos aos direitos humanos pisoteados, sobretudo os das mulheres.

O Afeganistão é um problema complexo, e o grande mérito de Reginaldo Nasser, livre-docente de relações internacionais da PUC-SP, está em fornecer um retrato exaustivo, didático e apaixonante ao publicar, no ano passado, “A Luta contra o Terrorismo: os Estados Unidos e os Amigos Talibãs”.

Em fins de 2001 o então presidente George W. Bush comemorava, após apenas dois meses de guerra, a vitória contra “as forças do mal”. Em verdade, no entanto, a aventura duraria mais de duas décadas, com um saldo de 2.488 militares americanos mortos e 20.722 feridos —entre os talibãs seriam de 100 mil e 150 mil, respectivamente.

Caberia perguntar qual o grande engano nessa que foi a mais longa aventura militar americana. De algum modo, os soldados de Bush e Obama e (bem menos) os de Trump e Biden julgavam-se credenciados para se vingar dos 3000 mortos do 11 de Setembro de 2001. Os 17 terroristas que sequestraram três aviões e lançaram dois deles contra o World Trade Center, em Nova York, agiam sob o comando de Osama bin Laden e de seu grupo, a Al Qaeda, hospedados pelo grupo afegão Talibã.

Antes dele, outro grupo de radicais muçulmanos, os mujahedins, transformou num inferno a vida dos 100 mil soldados enviados ao Afeganistão pela União Soviética, no final dos anos 1970.

De certo modo, o comunismo se arraigou muito pouco no solo afegão, da mesma forma com que o modelo de democracia liberal passou a ser mal implantada pelos americanos. O Afeganistão, relata Nasser, é um emaranhado de interesses étnicos e tribais, com grupos que se formam para ser mais ágeis na corrupção ou ainda cultivar e transportar papoula, matéria-prima para o ópio (o país chegou a ter 90% da produção mundial).

Essa burocracia próxima do crime organizado criou um Parlamento eleito para satisfazer a imagem de democracia tão prezada pelos americanos. Mas em verdade ela reunia os “senhores da guerra”, milicianos de pequenos exércitos, com poderes para traficar armas e dar vantagens a seus cúmplices. Na ausência de um Estado de Direito, são esses cidadãos que definem o que é obrigatório e o que é proibido. O Afeganistão é peculiar.

Foi também preciso atribuir uma imagem de competência ao Executivo do presidente Hamid Karzai. Construiu-se com dinheiro americano uma autoestrada entre Cabul e Kandahar, mas a custo inflacionado, porque as usinas de asfalto eram transportadas por avião. Quanto a Karzai, seus dois irmãos não têm do que se queixar. Um deles foi um poderoso traficante de ópio, enquanto o outro devia US$ 11 milhões ao Banco de Cabul quando este entrou em falência.

Reginaldo Nasser insiste nos equívocos cometidos pela Casa Branca na identificação de inimigos e aliados. O Iraque foi invadido porque Bush acreditava — era também a crença do premiê britânico Tony Blair— que o ditador Saddam Hussein estava envolvido com a distribuição de armas de destruição em massa à Al Qaeda. Outro parceiro fora do foco foi o Paquistão, cujos serviços secretos orientavam terroristas afegãos, em meio a uma retórica de Washington sobre a confiabilidade do establishment local.

O fato é que a guerra se intensificava de modo bissexto, e o Congresso americano criticava seus resultados militares pífios, em troca de até US$ 110 bilhões que em certo ano o governo americano chegou a gastar.

Vieram então as negociações do Talibã com Obama e em seguida com Trump. Aproximava-se o desfecho tranquilo, segundo o roteiro rompido apenas pelo espetáculo do desespero entre 29 e 31 de agosto de 2021, no aeroporto de Cabul.

A LUTA CONTRA O TERRORISMO – OS ESTADOS UNIDOS E OS AMIGOS TALIBÃS – Preço R$ 50. Autor Reginaldo Nasser. Editora Contracorrente. Págs. 264

Eleições no Brasil são a segunda chance para as Big Tech, por Patrícia C. Mello

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Espera-se que tenham aqui a mesma preocupação que tiveram na eleição nos EUA

Patrícia Campos Mello, Repórter especial da Folha, foi correspondente nos EUA. É vencedora do prêmio internacional de jornalismo Rei da Espanha.

Folha de São Paulo, 29/01/2022

Até 14 de fevereiro, as plataformas de internet precisam apresentar ao TSE termos de cooperação com detalhes sobre como estão se preparando para a eleição. Considerando que Jair Bolsonaro e seu entorno mantêm a ofensiva para desacreditar o sistema eleitoral, e levando em conta o show de desinformação no pleito de 2018, as empresas deveriam montar operações de guerra para evitar que sejam usadas para manipular a opinião pública.

Espera-se que Twitter, Facebook, YouTube, Google, Instagram, TikTok e WhatsApp tenham com a eleição brasileira o mesmo grau de preocupação que tiveram com a americana.

O Facebook informou que começou a se preparar para a eleição americana de 2020 dois anos antes —e criou regras específicas para aquele pleito e para o alemão. O aplicativo deixou de recomendar a usuários que entrassem em grupos “cívicos”, com alguma conotação política, e restringiu o número de convites que podiam ser enviados por dia.

Facebook e Instagram proibiram anúncios políticos duas semanas antes da eleição —só retomaram em março de 2021.

O Twitter, que já proibira anúncios políticos globalmente em 2019, passou, na campanha americana, a remover tuítes que incitavam a interferir ou contestar o resultado eleitoral. Começou com alertas em tuítes desinformativos de figuras políticas e perfis com mais de 100 mil seguidores e com bloqueios a retuítes e curtidas.

O YouTube –criticado pela lentidão na remoção de vídeos conspiratórios— criou um painel de checagem de informações em resultados de buscas e baniu anúncios políticos (também no Google) por um mês. Mesmo assim, o movimento “Stop the Steal” saiu do controle, culminou na invasão do Capitólio e persiste até hoje.

No Brasil, sabemos muito pouco sobre os planos das plataformas. As empresas têm equipes dedicadas à eleição de 2022? Vão apresentar normas de uso específicas para o pleito? O que vão fazer se um dos candidatos não aceitar o resultado e insuflar apoiadores? Aqui, duas das empresas promovidas por Bolsonaro, Telegram e Gettr, nem sequer cooperam com o TSE.

Não se sabe se Apple e Google terão políticas para aplicativos de candidatos. O aplicativo Bolsonaro TV foi baixado mais de 100 mil vezes na loja do Google, e o do PT, mais de 50 mil.

Segundo Sophie Zhang, ex-funcionária do Facebook que fez denúncias sobre a empresa, a plataforma ignorou tentativas de sabotar eleições em vários países. Ela disse que havia pouca disposição de proteger a democracia em países que não fossem os EUA ou europeus.

A eleição de 2022 é a chance para as Big Tech provarem que aprenderam com eleições passadas e se importam com a democracia no mundo.

Estado: o retorno daquele que nunca saiu de cena, por Gilberto Maringoni.

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Novo livro mostra: após décadas de ataques, se entrevê um despertar do pesadelo neoliberal. Planejamento estatal será crucial no pós-pandemia. Como retomá-lo frente às sabotagens. Por que ele pode ser caminho para a justiça social

Gilberto Maringoni – OUTRAS PALAVRAS – 28/01/2022

O personagem central deste livro foi cuidadosamente caluniado durante as últimas cinco décadas, aos olhos da opinião pública, em variadas campanhas de desinformação ao redor do mundo. Tido como ineficiente, lerdo, atrasado, obsoleto, perdulário, burocratizado, patrimonialista, foco de empreguismo, preguiça, desperdício e corrupção, entre tantos outros atributos negativos, o Estado foi responsabilizado por quase todos os pecados passados, presentes e futuros da sociedade.

Foi chamado de dinossauro por presidentes, governadores/as, deputados/as, prefeitos/as, empresários/as, acadêmicos/as, intelectuais, dirigentes sindicais, jornalistas, artistas e incontáveis mais, numa corrente ecumênica de detratores. No Brasil, comerciais de TV e rádio nos anos 1990, associavam suas empresas a paquidermes postados na sala de jantar a atrapalhar a faina diária de pacatas famílias de bem.

Seria necessário realizar o desmonte, a desestatização, a privatização, a capitalização, a parceria público-privada, a concessão em busca de melhores preços e qualidade de serviços e produtos para se abolir tais males.

Urgia abrir a economia, derrubar barreiras, desmontar cartórios, varrer privilégios e acabar com a boa-vida de funcionários folgados e indústrias superadas, em um bota-abaixo furioso. As palavras de ordem imediatas passaram a ser reformas, enxugamentos e ajustes. O conceito schumpeteriano de destruição criativa foi açodadamente aplicado de maneira inusitada, com destruição violenta e criatividade exacerbada para as contas de novos controladores de ativos públicos então leiloados.

Nada se inventava ao Sul do mundo. Bastaria repetir o mantra não há alternativa da sra. Margareth Thatcher, com pitadas de Consenso de Washington, tudo regado à infindável e sempre inconclusa busca de credibilidade internacional, para que novos horizontes se descortinassem.

Em nosso país, a cruzada daqueles tempos foi propagada como um embate moral e mortal entre o moderno e o arcaico. A imagem aludida era de um arcabouço gosmento e pegajoso, do qual só nos livraríamos se rompêssemos com a Era Vargas, raiz de nossos percalços e de um capitalismo de compadres, autoritário e paternalista. Um atentado à livre iniciativa, ao direito de propriedade e outras pragas mais.

A vinculação da ação do Estado com o autoritarismo veio a se somar à torrente de meias-verdades (ou meias-mentiras, como disse Millôr Fernandes) lançadas como areia aos olhos do distinto público. Associar planejamento – ou intervenção – estatal na economia com regimes de força é uma velha muleta do liberalismo econômico, que não tem o mesmo sentido de liberalismo político. Em tais argumentos, o país necessitaria urgentemente de choques de capitalismo para se livrar do entulho estatizante. O discurso reverberado em todas as mídias foi alardeado como unanimidade planetária. Conversa fiada, ou fake news, como se diz em português pós-moderno.

Basta lembrar que uma das mais sangrentas ditaduras do século XX, a do Chile de Pinochet (1973-90), foi o laboratório pioneiro das políticas neoliberais, com sua agressiva dinâmica de desregulamentações e alienações de bens e serviços.

Após um longo período de liberalização acelerada, a economia global sofreu pelo menos duas grandes crises, a do subprime, em 2008-09, e a da pandemia do novo coronavírus, em 2020-21. Embora tenham matrizes distintas, ambas tiveram como consequências gerais queima de capital, destruição de meios de produção e fortes intervenções do

Estado em ações anticíclicas. Se no primeiro caso, a ação do poder público restringiu-se a localizadas injeções de capital em corporações privadas, no segundo, tais iniciativas se dão de formas muito mais abrangentes e profundas, e têm suscitado um amplo debate internacional.

É possível dizer que um tabu histórico está sendo rompido. Rapidamente, cortinas de fumaça se desfazem e se torna perceptível que nenhuma economia funciona sem Estado. E que suas diretrizes devem ser objeto de escrutínio público democrático, e não apenas a partir das vontades de especialistas vinculados ao topo da sociedade.

Este livro é fruto de um esforço plural, produzido por autores oriundos de distintas correntes de pensamento, que têm a saudável pretensão de interferir nessas controvérsias. A obra cobre alguns aspectos dos dilemas do desenvolvimento em meio a pesadas turbulências, em especial aqueles voltados para áreas políticas, econômicas e sociais. Está longe de ser totalizante e muitos temas ficaram de fora, até mesmo pela impossibilidade de se examinar de uma única vez a caleidoscópica gama de carências sociais que nos rodeia.

O anti-intelectual, por Angela Alonso.

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Olavo de Carvalho não produziu conhecimento e fugiu do escrutínio acadêmico ao se auto intitular filósofo

Angela Alonso, Professora de sociologia da USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento

Folha de São Paulo, 28/01/2022

Mario Amato ameaçou: 800 mil empresários deixariam o país se Lula ganhasse a eleição. Lula ganhou, Amato (o ex-presidente da FIESP que achou a ministra Dorothea Werneck “inteligente, apesar de ser mulher”) ficou. Quem partiu, em 2005, foi outro antipetista, Olavo de Carvalho, que há tempos esmurrava “esquerdismos” intelectual, político, moral, aglutinados como “marxismo cultural”.

Fixou-se na pátria do liberalismo e lá viveu confortável, entre rifles e uísques. Não por agasalho do livre mercado. Lastreou-se em prata brasileira, oriunda dos pagadores das “aulas” do “professor”.

Foi, assim, como “professor” e “intelectual” que o presidente, filhos e partidários se referiram ao morto nesta semana, em posts reverentes. E até com luto oficial, negado aos outros milhares de mortos pela epidemia que Carvalho minimizou.

Que o bolsonarismo o defina como “filósofo”, “professor”, “intelectual” é uma coisa, que a imprensa reproduza os termos sem aspas, é bem outra. Rigorosamente, Carvalho nunca foi nada disso.

Na acepção contemporânea, filósofo ou professor remetem ao ensino formal. É quem tem diploma na área, conferido por instituição reconhecida. Carvalho nunca concluiu curso em universidade. Trata-se de um formalismo, pois há tanto gente diplomada ignorante, como gênios sem canudo. Contudo, é, ao menos em parte, prevenção contra charlatanismo.

Garante que seu portador sofreu o escrutínio de pares, do qual Carvalho escapou.

Pode-se dizer que era filósofo autodidata. Mas, segundo quem? Autoproclamar-se é insuficiente. É preciso o reconhecimento por uma comunidade produtora de conhecimento. Carvalho nunca compôs corpus de universidade, onde se garante o princípio basilar do conhecimento: a intersubjetividade. Na rotina universitária não há trabalho, em nenhum estágio da carreira, que não passe pela avaliação interpares.

Não basta enunciar uma tese, é preciso discuti-la com quem estuda mesmo assunto, submeter-se às ponderações acerca da estrutura da argumentação, dos procedimentos, da demonstração. Passar de palpite a conhecimento exige aguentar estes açoites. Carvalho nunca se submeteu a eles.

Tampouco foi intelectual para além do sentido rebaixado do termo, de difusor de ideias. Nunca produziu obra aglutinando conhecimento original. Escreveu basicamente na imprensa —inclusive no Globo e nesta Folha— pílulas de polêmica e idiossincrasia, destilando o ressentimento com a esquerda que nutrem ex-esquerdistas desiludidos. Nisso padeceu de falta de originalidade.

A comunidade acadêmica jamais o reconheceu porque nunca produziu conhecimento, produziu opinião. Nisso foi mestre, reconhecido por outra comunidade, a que professa seus valores.

Seus escritos compõem um lamento azedo e malcriado contra o que via como decadência civilizacional e corrupção moral, resultantes da democratização social, cultural, étnica, política acelerada por governos de esquerda. Textos cujo cerne é o antimodernismo e a defesa das hierarquias tradicionais. Por aí se entende seu fascínio sobre os bolsonaristas.

Carvalho achou neles um séquito. Aliás, seu treino no esoterismo tradicionalista explica a capacidade de ascender a guru de um culto. O portador execrava o epíteto, mas lhe assenta bem. A vida intelectual exige o antidogmatismo, a dúvida acerca das próprias crenças. Já a religião pede a fé. Por isso, seus cultuadores não desaparecerão com ele. Seguirão tão anti-intelectuais quanto seu guia.

Cortes na educação, por Claudia Costin.

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Na educação básica, investimos menos da metade por aluno do que a média da OCDE

Claudia Costin, Diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais, da FGV, e ex-diretora de
educação do Banco Mundial.

Folha de São Paulo, 28/01/2022.

Tivemos, nesta semana, o Dia Mundial da Educação, data estabelecida pela ONU para mobilizar as sociedades pelo direito dos povos a uma educação de qualidade para todos. Por conta da efeméride, o Unicef disponibilizou dados aterradores sobre o efeito da pandemia na frequência escolar e na aprendizagem das crianças em alguns países, incluindo o Brasil.

Já sabíamos que, com o longo fechamento das escolas (maior que em boa parte dos países), a baixa conectividade e a falta de equipamentos ou livros para aprender, teríamos insuficiências, especialmente na alfabetização, e um abandono escolar relevante. Mas, ao destacar o caso brasileiro, Robert Jenkins, chefe global do Fundo das Nações Unidas para a Infância, destacou que, em vários estados brasileiros, três em cada quatro crianças do segundo ano do ensino fundamental estão com leitura bem abaixo do esperado e que um em cada dez alunos de 10 a 15 anos não pretende voltar às aulas quando as escolas reabrirem.

Alertou também para um desafio adicional que acometeu vários países: o agravamento da insegurança alimentar com a perda do que seria, para muitas crianças, a única fonte confiável de nutrição diária, a merenda. Fez menção também ao grave problema de saúde mental dos alunos, com um aumento de casos de ansiedade e depressão. Poderíamos reforçar o diagnóstico do Unicef com uma referência ao triste retrocesso ocorrido no combate ao trabalho infantil.

Nestas circunstâncias, seria urgente pensar numa operação forte para recuperar as aprendizagens perdidas, prolongar a jornada escolar (hoje reduzida no Brasil a inaceitáveis quatro horas, em média), contratar professores para o reforço e aperfeiçoar a infraestrutura das escolas. Deveríamos, além disso, avançar em direção a uma educação transformada e não apenas retomar a que tínhamos em 2019, com aprendizagem já insuficiente, desigualdades educacionais e uma baixa atratividade da carreira de professor.

O que estamos fazendo? Diferentemente de outros países que passaram a investir mais em educação para recuperar o que se perdeu, cortamos o orçamento de educação básica do MEC. Chegamos mesmo a pôr em risco o reajuste exigido por lei no piso salarial dos professores.

Há uma lenda de que o Brasil gasta muito em educação e que só faltaria gestão. Na realidade, investimos menos da metade por aluno, na educação básica, do que a média da OCDE. Pagamos também a nossos professores menos da metade do que eles. Faltam, assim, tanto recursos quanto gestão.

Precisamos, com urgência, sair do discurso fácil de que educação é prioridade e colocar o futuro das crianças, de verdade, no Orçamento.

Milionários e Bilionários

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O mundo do século XXI é marcado por grandes incertezas e instabilidades, a pandemia elevou os desafios, aumentaram os medos e os desequilíbrios emocionais, acelerou as transformações nos modelos de negócio, gerando e alimentando preocupações crescentes, dificuldades de sobrevivência, preocupações de infecção do vírus, a percepção da degradação do meio ambiente, o aumento da miséria e da exclusão social, além das crises econômicas e as novas, cada vez mais elevadas, exigências no mercado de trabalho.

Neste ambiente, as pesquisas nos mostram o incremento dos números de bilionários na sociedade mundial, números que crescem de forma acelerada e convivem com o aumento vertiginoso de pobres e miseráveis, gerando graves constrangimentos em todas as regiões, criando novos desafios para os gestores da sociedade, evitando que os constrangimentos se tornem violências crescentes e abertas dentro das comunidades locais, levando a destruições e custos sociais elevados.

Os novos ares do mundo contemporâneo nos mostram claramente que a sociedade mundial conseguiu aumentar, nos últimos trinta anos, as riquezas da coletividade global, gerando mais riquezas e novos recursos monetários e financeiros. A nova sociedade global gerada pela pandemia desnudou uma situação de degradação crescente entre todos os grupos sociais, pela primeira vez, as riquezas e as pobrezas estão próximas umas das outras.

Anteriormente, o mundo era dividido entre países ricos, dotados de forte crescimento industrial e países pobres, meros produtores de produtos primário de baixo valor agregado com população miserável. Atualmente, encontramos dentro das nações, convivendo ricos e pobres, além do crescimento dos conflitos sociais, desequilíbrios políticos e impactos generalizados.

Neste ambiente, os dados da Oxfam nos mostram números assustadores, nele percebemos que as fortunas das dez pessoas mais ricas do mundo passaram de US$ 700 bilhões para US$ 1,5 trilhão – a uma taxa de US$ 15 mil por segundo, ou US$ 1,3 bilhão por dia – durante os dois primeiros anos da pandemia, com isso, os dados descritos mostram que um novo bilionário surgiu no mundo a cada 26 horas. Num momento de grandes transformações e incertezas geradas pela pandemia, a renda de 99% da humanidade caiu na comparação de março de 2020 e novembro de 2021, contribuindo para a degradação que estamos vivenciando na sociedade internacional.

No Brasil, os dados divulgados pela Oxfam nos mostram preocupações, são 55 bilionários com riqueza total de US$ 175 bilhões, onde desde 2020, quando a pandemia foi declarada, o país ganhou dez novos bilionários. Ao analisar os pormenores, percebemos que enquanto 90% da população teve uma redução de 0,2% entre 2019 e 2021, os bilionários tiveram um incremento da riqueza durante a pandemia em 30%, denotando a degradação da renda da sociedade com impactos sociais na coletividade, levando uma parte mais fragilizada da sociedade a revirar lixos em busca de alimentos e para sobrevivência neste momento de caos, mesmo sabendo que somos um dos maiores produtores de grãos da economia mundial.

Numa sociedade civilizada, o crescimento da riqueza deve ser estimulado e fortalecido, investindo em educação e melhorando o capital humano da coletividade, o grande problema é a dissonância crescente entre o aumento da riqueza, da ostentação e o incremento da pobreza e da miserabilidade da população, denotando uma sociedade que se degrada todos os momentos. A pandemia deixou marcas visíveis da sociedade brasileira, a riqueza deve ser estimulada para todos os grupos sociais, mas cabe a mesma sociedade analisar as raízes destas riquezas, muitas delas foram construídas em cima da corrupção, da evasão, da exploração e da sonegação.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Administrador, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 26/01/2022.