Globalistas, por Tatiana Roque

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A Terra é Redonda – 28/02/2022

Prefácio do livro recém-editado de Quinn Slobodian

O que é neoliberalismo? Faz sentido usar esse termo para denominar as transformações sofridas pelo capitalismo?

Desde quando? Em que consistem? Este livro é a mais valiosa contribuição para responder a essas e outras questões do mesmo tipo. Com rigor histórico inédito para uma obra de síntese, o neoliberalismo é apresentado como um movimento de renovação do liberalismo, protagonizado por atores com nome e sobrenome, os chamados “globalistas”. As ideias que motivaram tal projeto serão conhecidas a fundo neste livro.

Desde os anos 1990, quando se tornou evidente o impacto negativo das políticas de diminuição de gastos e de desmantelamento dos serviços públicos, a noção de neoliberalismo tem sido empregada, sobretudo, por seus críticos.

A frequência e o ímpeto das denúncias são tais que se presume ter sido o termo uma invenção dos movimentos contrários. Quinn Slobodian produz uma reviravolta neste senso comum, ao mostrar que neoliberalismo foi um projeto coerente e assim batizado por seus defensores.

Privatizações, redução dos direitos trabalhistas e destruição do Estado de bem-estar social, em sentido amplo, foram medidas implementadas por diferentes governos a partir dos anos 1970 – com início no Chile comandado pelo general Augusto Pinochet e reforço de Ronald Reagan e Margareth Thatcher. Porém, muito antes disso, teóricos europeus já se reuniam para conceber um edifício institucional capaz de proteger o mercado global das políticas nacionais. A tarefa havia se tornado urgente desde o fim dos impérios (como o russo e o austro-húngaro) e com a percepção dos impactos da crise de 1929.

Após o fim da Segunda Guerra Mundial, a independência de antigas colônias (como Índia e China) só aumentou a preocupação do grupo com uma ordem mundial ditada por Estados nacionais fortes. Pressões por autodeterminação em países da América Latina jogavam mais lenha na fogueira. Os anos 1960 e 1970 reforçaram ares de mudança na correlação de forças internacional. Os globalistas agiram neste contexto, movidos pela intenção de provocar uma grande renovação do liberalismo, a fim de conter uma tendência que viam como ameaça aos mercados globais.

O título deste livro se refere a este grupo, que reuniu pensadores de diversas formações, alguns hoje populares entre a nova direita liberal, como Ludwig von Mises e Friedrich Hayek. Hoje, chega a ser anedótico que conservadores xinguem de “globalistas” os que estariam por trás de um suposto complô mundial – encampado pelas organizações multilaterais – cujo objetivo seria enfraquecer o cristianismo e o nacionalismo. Não são esses os globalistas estudados neste livro, pois, com tal definição conspiratória, eles sequer existem. Mas não deixa de ser irônico que esses mesmos conservadores, como é o caso de bolsonaristas no Brasil, tenham se aliado aos herdeiros dos verdadeiros globalistas – aqueles que se reivindicam como seguidores da tradição de Mises e, principalmente, de Hayek.

Voltando ao livro que vocês têm em mãos, uma tensão disciplinar é sentida desde as primeiras páginas. A história e as ciências sociais enxergaram a transição neoliberal de maneiras distintas. Do ponto de vista histórico, foram vários trabalhos a analisar o movimento intelectual que se formou durante o colóquio Walter Lippmann, realizado em Paris em 1938, ou na Sociedade Mont Pèlerin, fundada em 1947.

Esses são os contextos em que o movimento neoliberal apareceu. Nomes como os de Philip Mirowski, Serge Audier e outros são lembrados, com a ressalva de que esses trabalhos focaram, sobretudo, as políticas monetárias e a teoria econômica defendidas pelos intelectuais estudados. A questão da governança global foi deixada em segundo plano. A ciência social, por sua vez, enxergou no projeto neoliberal o ensejo de instaurar uma nova ordem global. O papel de instituições como o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial ou a Organização Mundial do Comércio foi corretamente percebido, bem como seu objetivo de “insular os mercados”, ou seja, de protegê-los das decisões políticas nacionais. Stephen Gill e Sarah Babb são dois nomes mencionados como exemplo dessa linha de análise, entre outros.

Contudo, segundo Slobodian, faltou rigor histórico aos cientistas sociais para descrever como a influência de certos ícones, como Hayek ou Milton Friedman, teria se propagado. Ideias não convencem por si mesmas e um fator essencial para explicar a força do movimento neoliberal foi sua capacidade de ação política, cujo sucesso decorreu do esforço de criação conceitual, da capacidade de articulação entre atores diversos e da disposição de empresários endinheirados para apoiá-los. O grande mérito do livro de Slobodian é apresentar uma análise histórica precisa desse movimento, levando em conta as estratégias usadas para aumentar seu raio de influência, ao mesmo tempo em que mantém o enfoque na globalização.

Ainda que declare a intenção de equilibrar as duas tendências de análise do neoliberalismo, Slobodian é historiador. Segundo ele, um dos maiores obstáculos para que os críticos do projeto neoliberal tenham entendido o movimento em seus próprios termos foi a influência do livro de Karl Polanyi, A grande transformação. Citado por nove em cada dez cientistas sociais, o capitalismo é caracterizado a partir da desincrustação do mercado em relação à sociedade.

Uma visão análoga teria sido aplicada, retrospectivamente, para caracterizar o neoliberalismo como “fundamentalismo de mercado”, o que acabou dando uma importância excessiva – e equivocada – à ideia de autorregulação. Não esqueçamos que o livro de Polanyi foi publicado em 1944 e trata do século 19. Logo, sua pertinência para caracterizar o neoliberalismo é de fato pequena. Trata-se precisamente do oposto, polemiza Slobodian.

Ao contrário da intenção de desincrustar o mercado, a fim de torná-lo “livre”, a preocupação dos globalistas foi criar leis e instituições para proteger os mercados globais. E por que eles precisavam de proteção? Desde o pós-guerra, a democracia de massas ameaçava cada vez mais o funcionamento do mercado mundial (na perspectiva dos neoliberais). Uma consequência – talvez a mais importante – da análise histórica deste livro é mostrar que neoliberalismo está longe de se identificar à defesa de um Estado mínimo, pois o objetivo do movimento que o criou sempre foi mais político do que econômico.

Enxergar o papel do Estado privilegiando seu tamanho (ou seja, um aspecto quantitativo), ao invés de olhar para sua natureza, costuma acompanhar as críticas economicistas ao neoliberalismo. Slobodian vai muito além de uma tal caracterização. O projeto neoliberal foi – e segue sendo – um empreendimento inteiramente político, cujas armas chave são a arquitetura legal do direito e a criação institucional. Esse deslocamento é vital para explicar a sobrevida do neoliberalismo, mesmo diante do fracasso dos resultados outrora prometidos.

Uma das frases mais eloquentes de Slobodian aparece na primeira página do livro: “a política mudou para a voz passiva”. Essa foi uma conquista da ação coordenada dos neoliberais. A globalização buscou restringir o raio de influência da política, criando instituições globais para que “as forças do mercado” ficassem protegidas de governos nacionais e processos democráticos. Essa arquitetura foi sendo construída por uma restrição meticulosa da interferência dos Estados nacionais no governo dos mercados globais.

Ou seja, não se trata de diminuir o tamanho dos Estados, e sim de proteger – pela via legal e institucional – os mercados mundiais, diminuindo o raio de influência das políticas nacionais, sujeitas a pressões populares por mais democracia – algo visto como indesejável e arriscado pela vanguarda neoliberal. Um termo chave do livro é de difícil tradução: “to encase”, usado para designar o encapsulamento dos mercados, mas que também remete à ideia de revestir um fio elétrico, a fim de evitar choques. A missão dos globalistas foi encapsular os mercados globais contra a energia política manifestada em alguns momentos históricos.

Desde o fim dos impérios, no período entre guerras, passando pelo fortalecimento da democracia de massas, no pós-guerra, grandes ameaças se anunciavam. Os mercados precisavam ser protegidos – revestidos ou encapsulados – contra isso, pensavam os neoliberais. Uma saída, portanto, foi criar instituições globais. Sem uma tal intervenção, de ordem política e legal, não haveria fundamentalismo de mercado que sobrevivesse à soberania das nações e às revoltas de seus povos. A Escola de Genebra merece atenção especial, no livro, justamente porque está na origem das teorias que embasaram instituições chave dos globalistas, como a Organização Mundial do Comércio (OMC). Mesmo tendo sido criada apelas nos 1990, segue uma rede de influências e de outras instituições internacionais que caracterizam a escola de pensamento. Os detalhes são descritos no livro e esta é sua grande contribuição historiográfica.

Antes de finalizar este prefácio, gostaria de fazer uma reflexão sobre o momento atual. Como é possível, diante de tanto estrago, que os neoliberais sigam tendo força política? Eles devem sua sobrevida à extrema-direita, como é evidente no Brasil de Jair Bolsonaro. Depois da crise econômica de 2008, a tendência conservadora se fortaleceu, mas vem perdendo força em alguns países, como nos Estados Unidos de Joe Biden. É cedo para dizer que o neoliberalismo está fraco e a leitura deste livro ajuda a escolher critérios para avaliar as chances da globalização pós-pandemia. Nunca subestimar o poder dos inimigos é um adágio da batalha.

Nas páginas seguintes, fica nítido que um ponto forte dos globalistas foi a militância intelectual implicada na realidade. É preciso que tenhamos a mesma disposição para enfrentar a batalha das ideias – nem só produção acadêmica, nem só fazer político. Há uma camada entre esses dois âmbitos que tem sido deixada em segundo plano pela esquerda. Além disso, perceber que o maior objetivo dos neoliberais foi enfraquecer a democracia de massas – pois viam o socialismo, mas também a socialdemocracia como ameaça – pode nos alertar para o valor histórico dessas experiências.

Mesmo que sonhemos com formas mais radicais de democracia, conquistas do pós-guerra e dos anos 1960-70 aterrorizavam os neoliberais, como fica óbvio em vários trechos citados a seguir. Alguma coisa de bom deveriam ter, portanto.

*Tatiana Roque é professora titular de matemática na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

E a guerra Brasil? por Preto Zezé

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As favelas brasileiras são a nossa Ucrânia, bombardeada de exclusão, ausência social do poder público e regulada pela força das armas

Preto Zezé, Presidente nacional da Cufa, fundador do Laboratório de Inovação Social e membro da Frente Nacional Antirracista

Folha de São Paulo, 01/03/2022

Os olhos do mundo estão voltados para o conflito Rússia e Ucrânia, as avaliações são as mais diversas sobre os impactos dessa crise, as opiniões se dividem e sobra responsa para tudo que é lado. E, como toda guerra, o povo é que sofre. Os senhores da guerra, não!

O que me chamou a atenção, foi que, por um momento, parece que os problemas da guerra brasileira desapareceram diante de tanta informação e desinformação sobre o tema, gente que nem sabe para que lado fica a Rússia dando todo tipo de palpite.

E a “guerra” chamada Brasil?

20 milhões de pessoas ainda passam fome e uma grande parte come mal, bem mal. O desemprego ainda está altíssimo, na base da pirâmide o trabalho informal tem sido a única saída, e, mesmo assim, com todas as dificuldades que a situação impõe, sem crédito, muitos com nome negativados têm dificuldades de reativar seus negócios ou retomar suas atividades.

Em muitos territórios a presença das políticas públicas é cada vez menor, no entanto, está cada maior a regulação da vida social por grupos armados de toda a origem e interesses de dentro e de fora das favelas e periferias do Brasil.

A violência em todas as esferas explodindo, e produzindo medo, e o medo produz mais sentimento de justiça com as próprias mãos e, nesse sentido, habitam os falsos heróis de plantão e os mágicos de saídas fáceis que falam o que o desespero popular quer ouvir.

Pelas ruas do país são milhares de pessoas em situação de rua, e não somente nas datas de Natal e Dia da Criança, mas todos os dias, são exiladas de direitos básicos dentro da sua própria pátria. São migrantes de vários lugares que vagam sem rumo em busca de vida digna.

As cidades que foram e ainda estão sendo atingidas pelas fortes chuvas, resultado das mudanças climáticas, saíram da mídia, mas continuam milhares de homens e mulheres sem casa, sem sonho, sem perspectiva, pois a luta de uma vida inteira foi literalmente por água abaixo.

As pessoas que estão com sequelas da Covid estão sem amparo específico, não conseguem emprego nem atendimento especializado, provando que a vida sempre tem que ser a prioridade, pois pessoas doentes e frágeis não geram economia.

Toda a solidariedade ao povo que vive o terror das guerras, resultado de interesses das grandes potências mundiais, que estão preocupadas em poder e números na nova geopolítica mundial.

Vidas são apenas detalhes. E a nossa “guerra” diária desse front chamado Brasil precisa ser enfrentada.
As favelas brasileiras são a nossa Ucrânia, bombardeada de exclusão, ausência social do poder público e regulada pela força das armas.

Quem provocou o conflito? por Breno Altman.

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Casa Branca e Europa foram decisivas no fechamento das portas diplomáticas

Breno Altman, Jornalista e fundador do site Opera Mundi

Folha de São Paulo, 01/03/2022

Apesar da narrativa dominante na imprensa ocidental vender que Moscou seria responsável pelo conflito ucraniano, os fatos demonstram um outro fluxo geopolítico. A Casa Branca, apoiada por vassalos europeus, se moveu incisivamente para empurrar Vladimir Putin ao caminho das armas, fechando as portas diplomáticas.

A atual crise militar, certamente a mais relevante desde a 2ª Guerra Mundial, teve início em 2014, quando um golpe de Estado derrubou o presidente Viktor Yanukovich, aliado russo. Essa insurgência, apoiada pelos EUA e pela União Europeia, teve como principal bandeira a incorporação de Kiev ao bloco atlântico. Sob essa plataforma, unificaram-se de sociais-democratas a neonazistas.

A reação de Moscou foi a ocupação da Criméia, área estratégica por seu acesso ao Mar Negro, que havia sido cedida à Ucrânia em 1954. Um referendo popular consagrou a reintegração desse distrito à Rússia, embora o resultado tenha sofrido questionamentos externos. No leste do país, na região do Donbass (de maioria russa), a resistência ao golpe levou ao surgimento das repúblicas separatistas de Lugansk e Donetsk, imediatamente atacadas pelas Forças Armadas de Kiev.

O cenário se desdobrou em uma guerra civil de cinco meses, suspensa pelos chamados Acordos de Minsk, que previam a realização de plebiscitos sobre o futuro das áreas sublevadas. Esses pactos, até o início de 2021, garantiram uma paz relativa, sob fortes tensões e ameaças. A partir de então, ao mesmo tempo em que a Ucrânia reiniciava sua ofensiva contra os rebeldes, o presidente Volodimir Zelenski, eleito em 2019, reabriu portas para o expansionismo ocidental e defendeu a incorporação de seu país à Otan.

Moscou apresentou, em contraposição à política ucraniana, reivindicações simples e defensivas: além do respeito aos Acordos de Minsk, o compromisso de que a Ucrânia não ingressaria na coalizão militar liderada pelos EUA e tampouco seria destinatária de armas estratégicas. Do outro lado da mesa, o Kremlin somente encontrou inflexibilidade.

A Casa Branca parece voltada para o calendário eleitoral norte-americano, buscando no embate com Putin um ativo na disputa parlamentar contra os republicanos, marcada para novembro. Acima de tudo, sinaliza uma estratégia de asfixia do principal aliado da China provocar a guerra para justificar sanções econômicas draconianas que quebrem a Rússia e, de preferência, afetem as finanças de Pequim.

Com o descumprimento da promessa feita pelos EUA, em 1989, de conter a Otan nas suas fronteiras originais, o que provocou o desmantelamento do sistema de segurança coletiva montado após a derrota do nazismo, o presidente russo ficou entre se render à escalada ocidental, que tem na Ucrânia fronteira decisiva, ou adotar resposta militar que aumentasse a pressão sobre Kiev.

Putin optou por ataques que destruíssem o aparato armado do vizinho e estrangulassem Kiev, o elo mais fraco da corrente, derrubando Zelenski ou obrigando-o a desistir de seus planos de filiação à Otan.

De toda maneira, a crise ucraniana conclui um período histórico no qual a hegemonia norte-americana era tida como incontestável. Depois de 30 anos, a ordem unipolar agoniza sob os pés de uma Rússia reerguida.

Invasão russa faz preço de grãos disparar e terá consequências sobre a inflação, por Mauro Zafalon.

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Alta das commodities supera 5% na abertura de mercado da Bolsa de Chicago desta quinta-feira (24)

Mauro Zafalon, Responsável pela coluna Vaivém das Commodities, é formado em jornalismo e em ciências sociais.

Folha de São Paulo.24/02/2022

A concretização da guerra entre Rússia e Ucrânia desestabilizou os mercados agrícolas, o que terá grandes consequências para a inflação no mundo e no Brasil.

O trigo, um dos produtos mais sensíveis nesse conflito, devido à importância desses dois países do Leste Europeu no mercado internacional, atingiu US$ 9,26 por bushel (27,2 kg) na abertura desta quinta-feira (24) na Bolsa de Chicago, 5,7% acima do fechamento do dia anterior.

Desde quinta-feira (17), quando as tensões aumentaram, o cereal já acumula alta de 17,4%. Isso vai custar caro para o Brasil, que importará 6,5 milhões de toneladas do cereal neste ano. O país é um dos maiores importadores de trigo do mundo.

O milho subiu para US$ 7,19 por bushel (25,4 kg), com alta de 5,1%, em relação a quarta-feira (23). As consequências dessa alta também afetam muito o Brasil, tanto na área de alimentação como na de combustível.

O pais ganha nas exportações, mas a quebra da primeira safra, devido à seca, mantém os preços do milho elevados internamente. Esse novo patamar de preços aumenta o custo da produção de proteínas, pressão que chegará ao bolso do consumidor.

O milho está ganhando importância também na produção de combustíveis. Com o petróleo atingindo US$ 105 por barril, o cereal pode ganhar preferência na composição da matriz energética. No Brasil, o cereal já é responsável por 10% da produção de etanol.

Esse imbróglio não é apenas do Brasil. Os Estados Unidos destinam um terço da produção de milho para a produção de etanol, enquanto Índia e China estão elevando a participação dos combustíveis renováveis na matriz energética.

A pressão virá também da soja, que abriu o mercado nesta quinta-feira (24) em US$ 17,65 por bushel (27,2 kg), com alta de 5,4%. O peso dessa alta virá não apenas sobre os alimentos, mas também sobre os combustíveis. O óleo de cozinha, uma das principais altas dos índices de inflação nos dois últimos anos, voltará a subir. O biodiesel, uma alternativa ao petróleo elevado, tem em sua composição 70% de óleo de soja.

O setor agrícola, que já estava afetado por crises climáticas na América do Sul e em países do Mediterrâneo, regiões produtoras de grãos, vai sentir agora os efeitos das dificuldades de transações comerciais, devido às sanções e barreiras entre os países.

Para o produtor brasileiro, essa guerra ocorre em um momento delicado. Após vários anos de boas margens de liquidez, os custos de produção aceleraram e estão entre os maiores em dez anos.

A pandemia desestruturou parte do parque industrial de químicos da China, grande fornecedora de agroquímicos utilizados nas lavouras brasileiras. Os preços subiram e há falta de alguns insumos no mercado.

Os fertilizantes também foram afetados pela pandemia e, mais recentemente, por sanções geopolíticas, colocadas por grandes potências a produtores importantes, como Belarus.

O conflito atual ocorre na principal região fornecedora de fertilizantes para o Brasil. Em 2021, os russos foram responsáveis por 22% dos 41,7 milhões de toneladas importados pelos brasileiros.

O Brasil buscou 9,3 milhões de toneladas desse insumo na Rússia, que se tornou a principal fornecedora. Além da dificuldade de abastecimento, devido às sanções a operações marítimas, o preço agora estará mais elevado.

O produtor brasileiro, que viveu o boom da alta do dólar —a moeda norte-americana eleva as receitas das exportações em reais—, agora vai pagar ainda mais caro pelo diesel, um dos grandes componentes de custos nas lavouras. O dólar que elevou as receitas agora eleva custos.

A alta da moeda norte-americana, que já atingia 2,7% na parte da manhã e estava cotada a R$ 5,14, colocará novas pressões nos preços dos alimentos, elevando a inflação.

Rússia e Ucrânia têm grande importância na produção de grãos. Os russos produzem 76 milhões de toneladas de trigo e exportam 33 milhões. Juntos, os dois países são responsáveis por 29% do comércio mundial de trigo.

A Ucrânia produz 42 milhões de toneladas de milho e exporta 36,5 milhões. Ucranianos e russos detêm 19,5% do milho comercializado no mundo.

A grande farsa, por Oscar Vilhena Vieira

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Apropriação da linguagem de direitos humanos e de liberalismo democrático se torna cada dia mais comum

Oscar Vilhena Vieira, Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.

Folha de São Paulo, 26/02/2022

A apropriação da linguagem dos direitos humanos e do liberalismo democrático por setores reacionários e autoritários, com o objetivo de defender posturas antiliberais e justificar comportamentos contrários aos direitos humanos, tem se tornado cada dia mais comum, não apenas no Brasil.

A imagem de Bolsonaro, com sua gravata adornada de fuzis, bradando a defesa da liberdade contra ministros do TSE –que têm se desdobrado na defesa da integridade do pleito eleitoral–, embora farsesca, é emblemática dessa estratégia de invocar os direitos e valores liberais com a finalidade de subvertê-los.

A defesa das armas, das milícias, da devastação ambiental, da primazia da religião, do discurso de ódio, assim como a insurgência contra a vacina, o distanciamento social ou a máscara, vêm sendo sistematicamente conjugadas a partir de uma distorcida gramática de direitos.

São tempos estranhos, depois de uma vida abjurando e hostilizando os direitos humanos, grupos radicais passaram a invocá-los na defesa de suas pautas autoritárias, discriminatórias e excludentes, colocando em risco não apenas um amplo rol de direitos dos demais membros da comunidade, como as próprias instituições de defesa desses direitos.

A lógica política por trás desse movimento de apropriação é conhecida. Valores como liberdade, justiça, democracia e direitos têm forte conotação moral. Daí serem disputados e reivindicados mesmo por aqueles que negam a sua essência, como uma espécie de manto legitimador. Quem se esquecerá da tortura e das mortes levadas a cabo no Estádio Nacional do Chile, de Pinochet, em nome no “liberalismo”; ou do fuzilamento daqueles que ousavam cruzar o Muro de Berlim, pelo Exército da autodenominada República Democrática da Alemanha?

Da perspectiva jurídica esses movimentos iliberais e reacionários têm assumido duas estratégias na maliciosa distorção da gramática dos direitos. A primeira é a seletividade. Tentam destacar, da ampla carta de direitos humanos concebida por meio de um longo processo de consenso internacional, apenas um pequeno grupo de direitos, que denominam “essenciais” ou “naturais”, voltados a assegurar suas aspirações egocêntricas, supremacistas e liberticidas, que não reconhecem no outro um sujeito pleno de direitos.

A segunda estratégia desses liberticidas é adotar uma noção tosca do que seja um direito subjetivo. Tomam esses direitos como reivindicações absolutas. Assim, reivindicam que o direito à vida significa que ninguém poder se opor ao direito de comprar armas, organizar milícias e se beneficiar de amplas excludentes de ilicitude; o direito à liberdade pessoal facultaria a cada um se insurgir contra a vacinação ou uso de máscaras; o direito à propriedade impediria que o Estado estabelecesse limitações de natureza ambiental ou mesmo pretensões tributárias, redistributivas.

Creio que essa onda de apropriação distorcida da gramática dos direitos ganhou densidade no Brasil por ocasião do referendo das armas de 2006, quando a direita brasileira, influenciada pelos extremistas norte-americanos, percebeu as vantagens de empregar uma matriz deturpada de direitos para concretizar seus objetivos. Minha colega Marta Machado alerta para o mesmo tipo de apropriação ocorrida no campo dos direitos reprodutivos.

É compreensível que muitos setores ressentidos com as mudanças trazidas pelo processo de universalização dos direitos humanos tenham embarcado nessa farsa promovida por populistas, reacionários e autoritários. Não se pode admitir, no entanto, que grupos mais bem informados, sinceramente compromissados com os valores da democracia, tenham se deixado enganar por essa trama perversa.

Não há enigma para o baixo crescimento econômico do país, por Silvia Mattos.

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E o mundo pós-pandemia demandará ainda mais políticas sociais

Silvia Matos, Economista e pesquisadora do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV-Ibre).

Folha de São Paulo, 23/02/2022

A pandemia do coronavírus deixou cicatrizes profundas. Além dos milhões de vidas perdidas, o choque sobre a economia foi muito desigual, afetando muito mais os setores intensivos em trabalho e de baixa produtividade, atingindo mais os trabalhadores informais e pouco escolarizados, como destacado nos estudos divulgados pelo Observatório da Produtividade Regis Bonelli.

Nesse contexto, o mundo que emerge após a fase aguda da pandemia é um mundo que demanda ainda mais políticas sociais e uma atuação mais efetiva do Estado para minimizar essas cicatrizes.

No entanto, no Brasil, esse processo tem sido ineficaz. De fato, este é um dos nossos problemas estruturais: a fragilidade institucional em defesa do interesse de toda sociedade, também conhecido na literatura como interesse difuso. O Estado é muito suscetível aos diversos grupos de interesse, que capturam uma parcela significativa do orçamento público. Há diversos exemplos, como os 4% do PIB em gastos tributários, as emendas parlamentares etc.

E há inúmeras consequências negativas. Em primeiro lugar, há crises fiscais recorrentes. Quando precisamos adotar políticas públicas necessárias e justas do ponto de vista social, como não há espaço no Orçamento, a saída é alterar as regras fiscais. E quando reduzimos as restrições fiscais, sempre ampliamos o espaço das políticas públicas ruins, tornando o cenário fiscal insustentável.

E sempre é bom lembrar que crises fiscais geram uma piora do quadro macroeconômico, com efeitos deletérios sobre o crescimento econômico e o mercado de trabalho. É um círculo vicioso e muito negativo do ponto de vista social.

Em segundo lugar, há um outro efeito colateral muito negativo para a nossa economia. Os estudos mostram que essas políticas de incentivo, na grande maioria das vezes, não geram o resultado esperado e contribuem para a má alocação de recursos e a baixa produtividade da economia. As políticas de incentivo, além de custar muito do ponto de vista fiscal, contribuem para a estagnação do crescimento econômico.

Esse tema e outros relacionados à agenda de crescimento econômico foram amplamente documentados nos livros publicados pelo FGV-Ibre, com destaque para “Anatomia da Produtividade no Brasil”. O livro serviu de base para a elaboração do relatório final da Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado com propostas de uma agenda microeconômica para o Brasil, durante o governo Temer.

Não há enigma para o baixo crescimento econômico. O diagnóstico já é mais do que conhecido, o receituário também.

As raízes econômicas da destruição da Amazônia, por Ilona Szabó de Carvalho.

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Desmatamento contribui tanto para a tragédia em Petrópolis (RJ) quanto para a seca que afeta o agronegócio

Ilona Szabó de Carvalho, Empreendedora cívica, mestre em estudos internacionais pela Universidade de Uppsala (Suécia). É autora de “Segurança Pública para Virar o Jogo”.

Folha de São Paulo, 23/02/2022

O ritmo alarmante do desmatamento da Amazônia vem sendo alimentado por um verdadeiro ecossistema de economias ilícitas, no qual diversas atividades financiam a destruição da floresta e vice-versa. O desmatamento e a degradação da floresta amazônica comprometem o futuro e o bem-estar das próximas gerações e prejudicam o meio ambiente e a regulação do clima em escala planetária.

Entre outros aspectos, a Amazônia influencia decisivamente o regime de chuvas no país e sua cobertura verde tem relação com a intensidade e frequência delas. Em última instância, o desmatamento da floresta contribui tanto para a tragédia em Petrópolis (RJ) quanto para a seca que afeta o agronegócio, além das tempestades de areia no interior de São Paulo, que vimos no ano passado. As áreas mais vulneráveis às consequências de eventos extremos do clima são as mais pobres, no Brasil e no mundo.

Buscando compreender os motores da destruição da floresta, um novo estudo do Instituto Igarapé mostra um panorama inédito do ecossistema da criminalidade ambiental na Amazônia, onde os crimes que impulsionam a destruição da floresta estão se tornando mais complexos, interconectados e violentos, à medida que o Estado se ausenta da região e estimula atividades predatórias. Dados analisados de 369 operações da Polícia Federal (PF), entre 2016 e 2021, confirmam que o desmatamento é apenas a ponta visível por satélite de algo maior que vem ocorrendo na Amazônia.

Isso porque a destruição da floresta vem a reboque de atividades econômicas ilícitas ou contaminadas com ilicitudes. Mineração ilegal de ouro, extração ilegal de madeira, grilagem de terras públicas e a parcela da agropecuária com passivos ambientais se entrelaçam nos diferentes territórios amazônicos e contribuem para a escalada do desmatamento ilegal e da degradação da floresta.

Além disso, o crime ambiental não acontece sozinho. As investigações da PF apontam a existência de fraudes, crimes financeiros e tributários, tráfico de drogas, poluição e outras ilicitudes diretamente atrelados à devastação do bioma amazônico. Os crimes violentos contra a pessoa, trabalho escravo, posse de armas, munições e explosivos estão cada vez mais comuns e hoje aparecem em quase um terço das operações da PF na região. Investigações por corrupção e lavagem de dinheiro ocorreram em um quinto das ações analisadas, revelando uma criminalidade ambiental organizada.

Fica cada vez mais claro que o descaso do governo com a Amazônia não só ajuda a acelerar as mudanças climáticas como também aumenta a insegurança no país. O descontrole estatal incentiva a ampliação do crime e a entrada de novos grupos criminosos em uma das regiões mais importantes para o clima do planeta.

Portanto, o enfrentamento ao crime ambiental e crimes conexos precisa ser prioridade do governo federal e dos governos estaduais da Amazônia Legal para que o Brasil possa se tornar uma potência econômica florestal. Somente com a garantia da segurança pública e jurídica, do cumprimento das leis e dos acordos internacionais, nosso país se beneficiará do enorme potencial de serviços ambientais e das soluções baseadas na natureza que pode oferecer ao mundo.

O nexo entre segurança e clima é cada vez mais complexo. Além de superar desafios de governança, coordenação estratégica e de inteligência para inibir a prática de crimes, responsabilizando os atores envolvidos com os ilícitos, é vital priorizar o desenvolvimento e a inclusão socioeconômica da população da região, evitando a criminalização do “peixe-pequeno” e garantindo a manutenção da floresta de pé. Só assim conseguiremos arrancar esse mal pela raiz.

Riscos Externos

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O processo de globalização intensificou a integração e a interdependência entre as nações, aumentou a competição entre os atores econômicos e aumentou as incertezas e as instabilidades na sociedade global, surgiram novas oportunidades e desafios, exigindo novos comportamentos, inaugurando modelos de negócios, exigindo novas qualificações para o capital humano e aumentaram os riscos econômicos e produtivos.

A pandemia nos trouxe novos desafios e, ao mesmo tempo, abriu novas oportunidades, novas empresas surgiram, setores esquecidos ganharam relevância e a mão de obra precisou se reinventar e se tornar mais flexível, sob pena de serem alijados de um mercado altamente competitivo e centrados em novas tecnologias que, infelizmente, não dominamos, mas sabemos que é fundamental para sobrevivermos na nova sociedade global.

Neste momento, a sociedade mundial percebe conflitos militares, crises financeiras e instabilidades generalizadas, cujos impactos para a sociedade brasileira são imprecisos, mas sabemos que os desequilíbrios globais impactam sobre a economia nacional, principalmente num momento de incertezas, proximidade eleitoral, constrangimentos internos, desorganização econômica e produtiva, além de indicadores sociais sofríveis.

Um possível conflito militar pode gerar graves constrangimentos para a comunidade internacional, acirrando ressentimentos, gerando instabilidades nas cadeias produtivas, com impactos sobre custos e incrementos de preços fundamentais para a economia global, além de criar instabilidades financeiras, elevação das taxas de juros, aumento de preços internacionais e redução dos investimentos produtivos, com isso, o cenário de recuperação econômica tende a demorar, gerando graves desequilíbrios sociais.

Os movimentos econômicos, financeiros, militares e políticos internacionais, além da pandemia que ainda mostra forte resiliência, estão gerando grandes instabilidades para empresas, nações e trabalhadores. Para superarmos o ambiente adverso, percebemos a importância de construirmos consensos internos para atravessarmos as incertezas do cenário internacional, evitando conflitos desnecessários, criando falsos dilemas e mostrando os rumos que queremos trilhar para que o país alcance números mais consistentes de sucesso econômico, garantindo oportunidade para todos os cidadãos e aspirando a um espaço entre as grandes nações da comunidade internacional.

Os desequilíbrios produtivos globais levaram os preços das mercadorias as alturas, a escassez de chips retardou a recuperação das economias e os governos entraram em campo para auxiliar na oferta de chips, despejando trilhões de dólares para estimular os setores privados para aumentar a produção deste produto de grande relevância para a quarta revolução industrial. Neste momento, as nações desenvolvidas mostram suas forças, usam recursos públicos para superar esta dificuldade produtiva, estimulando a indústria de semicondutores, os chamados chips, deixando de lado os pudores da intervenção governamental em prol de políticas de planejamento estatal, auxiliando na redução dos riscos produtivos e garantindo o fornecimento de um produto central na economia da informação.

De outro lado, percebemos que o ambiente financeiro tende a passar por grandes incertezas com o incremento nos juros norte-americanos, com isso, os países dependentes destes ativos devem passar por momentos de instabilidades financeiras, com fortes impactos sobre todo o sistema econômico, com juros maiores para atrair ativos e fechar suas contas externas, garantindo uma estabilidade ilusória.

Os efeitos imediatos desta política é a contração dos investimentos produtivos, o aumento dos recursos canalizados para a especulação financeira, a redução nos níveis de emprego e a degradação social, mostrando claramente a dificuldade de construirmos um ambiente mais propício para a retomada do crescimento econômico, fundamental para superarmos o subdesenvolvimento que nos aflige.

Os desafios da sociedade brasileira contemporânea são enormes e exigem maturidade, planejamento e estratégias bem definidas, sem elas dificilmente conseguiremos sobreviver numa sociedade centrada nas instabilidades e nas incertezas generalizadas.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 23/02/2022.

Lawfare e a destruição da política, por Silvio Almeida.

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O sistema de justiça brasileiro é um parque de diversões para o uso do direito como arma de guerra

Sílvio Almeida, Advogado, professor visitante da Universidade de Columbia, em Nova York, e presidente do Instituto Luiz Gama.

Folha de São Paulo, 18/02/2022

Em meu último artigo para essa Folha, teci alguns breves comentários sobre o que considero contradições e fragilidades do pré-candidato Sergio Moro. Na esteira do que declarou esta semana o prefeito do Rio de Janeiro Eduardo Paes, não é compreensível que um homem que nitidamente nada sabe sobre o que o Brasil possa pleitear o posto de comando mais elevado do país.

Entretanto, no dia de hoje, mantendo as observações que fiz anteriormente, gostaria de fazer ao pré-candidato Moro algo que ele nem sempre observou em sua atuação como magistrado: justiça. No meu caso, “fazer justiça” é reconhecer que o candidato teve sim, um papel muitíssimo importante na política brasileira, mais precisamente, no processo de destruição da política institucional do país.

Foi Sergio Moro que, juntamente com os vingadores da Lava Jato, introduziu uma das grandes inovações tecnológicas da política do nosso tempo, o chamado Lawfare. Mas o que é lawfare?

Uma boa resposta pode ser encontrada no livro “Lawfare: uma introdução”, de autoria dos advogados e professores Cristiano Zanin Martins, Valeska Teixeira Zanin Matos e Rafael Valim. É importante ressaltar que Cristiano e Valeska atuaram na defesa jurídica do ex-presidente Lula, o que faz com que os aspectos teóricos revelados pelo livro sejam baseados em uma experiência direta com o fenômeno que descrevem.

No texto aprende-se que o termo lawfare é um neologismo que resulta da junção dos termos law (direito) e warfare (guerra ou estado de guerra). Isso indica que a palavra se refere à utilização do direito ou, melhor, das instituições e das técnicas jurídicas, como armas de guerra.

Como definem os autores lawfare é “o uso estratégico do direito para fins de deslegitimar, prejudicar ou aniquilar um inimigo” (p. 26).

Destaco aqui o uso de “inimigo” e não “adversário” ou “oponente”. Inimigo porque o lawfare pressupõe um ambiente de guerra, em que o diálogo, a conciliação e a diplomacia são impossíveis. A oposição, portanto, não pode ser institucionalizada; há que ser extirpada, retirada completamente do jogo. O inimigo deve ser apresentado como uma ameaça vital contra a qual todos os meios podem ser empregados, sejam legais ou ilegais.

Como explicam os autores o lawfare é resultado de reflexões sobre diferentes estratégias e táticas possíveis em uma guerra. Do ponto de vista estratégico o lawfare requer a observação das dimensões da geografia (levar o conflito judicial para a jurisdição onde se tenha maior chance de vitória), do armamento (utilização e criação de normas que facilitem a perseguição do inimigo e o uso de medidas excepcionais contra ele) e da externalidade (o uso dos meios de comunicação para coletar, transportar ou deturpar informações produzidas fora do sistema processual).

Já dentre as inúmeras táticas de lawfare que se ligam às dimensões estratégicas, podemos destacar a violação de competência, a proposição de ações em diferentes localidades para confundir ou estressar o litigante, o uso abusivo de prisões preventivas, o vazamento seletivo de informações para contaminar o ambiente social, o excesso de acusações (e.g. o famoso “power point”) e a intimidação de críticos —especialmente jornalistas— por meio de ações judiciais.

Se a Sergio Moro e à força-tarefa da Lava Jato cabem o mérito de terem servido como suporte material para o fantasma do lawfare que encarnou no Brasil, é preciso considerar que a introdução dessa tecnologia de guerra só foi possível por que havia um ambiente propício.

Antes de colonizar as grandes estruturas econômicas e políticas nacionais, o uso do direito para extermínio e produção da exceção já estava disseminado no sistema de justiça brasileiro, como muito bem sabem os pobres e, especialmente, os negros e os indígenas.

A desigualdade social, o autoritarismo e o racismo que nos caracterizam historicamente foram centrais para que a prática do lawfare encontrasse tanta acolhida no Brasil.

Nos próximos anos o Brasil terá que repensar seu sistema a fim de impedir e responsabilizar os assediadores judiciais e aqueles que, diante da função que ocupam nas instituições jurídicas, participam ou são coniventes com a devastação do país. Lawfare não é apenas a destruição do direito. É a destruição da política.

Reformas na Espanha podem servir de inspiração para enfrentar desigualdades no Brasil, por Cida Bento

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País europeu adotou diversas medidas para mitigar desigualdades na última década

Cida Bento, Conselheira do CEERT (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades), é doutora em psicologia pela USP

Folha de São Paulo, 17/02/2022

Neste início de 2022, ainda sob os pesados efeitos da pandemia, diversas instituições importantes vêm debatendo formas de enfrentar o agravamento das desigualdades no mundo do trabalho, que se expressa, dentre outros indicadores, nas taxas de desemprego ou subemprego e na ampliação da informalidade para segmentos sociais mais vulneráveis a violações de direitos, como a população feminina, jovem e negra do país.

Iniciativas pontuais mas crescentes de organizações públicas, privadas e da sociedade civil vêm acontecendo em programas de equidade e diversidade, que, no entanto, não dão conta de tamanho desafio.

De fato, como a economista e professora da Unicamp Marilane Teixeira e o pesquisador Rogério Barbosa, da USP, chamaram a atenção, já em 2020, os principais impactos da pandemia incidem sobre o trabalho de mulheres e negros.

Segundo eles, o impacto mais intenso ocorre para as mulheres por serem maioria no trabalho doméstico (o Brasil sofreu a maior perda de trabalhadores domésticos em nove anos) e por serem minoria em boa parte dos serviços essenciais. Não podemos esquecer que mulheres negras representam o maior contingente de trabalhadoras domésticas do país.

No caso da população negra, o impacto mais intenso se dá por ter maior participação na informalidade, que abriga as primeiras posições de trabalho a serem atingidas na crise. Em ambos os casos, aos efeitos da crise sanitária acrescentam-se os efeitos crônicos de uma situação histórica de discriminação no trabalho.

Nesse sentido, é alvissareiro o acordo tripartite celebrado no ano passado na Espanha entre governo, entidades sindicais e empresariais, pois a equidade para jovens e mulheres foi colocada no centro desse acordo, e a iniciativa pode servir de inspiração para o enfrentamento das desigualdades raciais e de gênero no Brasil.

Como sinaliza o sociólogo Clemente Ganz em artigo recentemente publicado no site Poder 360, a Espanha adotou nas últimas décadas diversas reformas trabalhistas que impactaram de forma dramática as desigualdades, atingindo mais duramente jovens e mulheres.

No caso brasileiro, acrescentaria que o diálogo deveria ser quadripartite para incluir os movimentos sociais que são força motriz fundamental no campo da luta pela equidade.

A pauta da concertação espanhola é extensa, tratando de trabalho remoto e teletrabalho, da igualdade salarial entre mulheres e homens, de medidas para assegurar os direitos trabalhistas no campo das plataformas digitais de aumento do salário mínimo e de políticas para a criação de emprego, entre outras tantas iniciativas fundamentais.

Clemente chama a nossa atenção para o quão relevante é essa concertação, pois focaliza um ambicioso projeto de desenvolvimento socioambiental, econômico, político e cultural que objetiva recuperar o significado do trabalho decente e a partilha de seus resultados pela sociedade. Revitaliza e confere sentido à democracia, já que o diálogo entre as diferentes partes envolvidas é a base para os compromissos que vão sendo assumidos.

Esses debates entre diferentes segmentos sociais são fundamentais para trazer uma outra maneira de negociar e estruturar as reformas necessárias e urgentes que a sociedade brasileira precisa realizar.

No reconhecimento da pluralidade de grupos que compõem a sociedade com suas necessidades, interesses e posicionamentos diversos é que se pode criar bases sólidas e seguras para que os acordos que precisamos realizar, em particular no mundo do trabalho, sejam marcados pela justiça e pela equidade.

E quem sabe em 2022 nós possamos avançar na construção de políticas públicas e privadas que incorporem as ações afirmativas com centralidade em todos os planos de trabalho, para acelerar a verdadeira democratização da sociedade brasileira, com vistas à universalização do direito ao trabalho digno, sem deixar mais de metade da população brasileira de fora de novos modelos de desenvolvimento.

Esta coluna foi escrita em coautoria com Flavio Carrança, jornalista da Cojira (Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial)

Lenta recuperação

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A economia brasileira vem apresentando grandes dificuldades de estimular o crescimento econômico, os indicadores são sofríveis, os investimentos produtivos caem constantemente, os dados sobre desemprego ou subemprego são assustadores, a fome e a miséria crescem e as perspectivas econômicas são preocupantes.

A economia brasileira não cresce de forma consistente desde a estagnação de 2014, com degradação dos indicadores fiscais, aumento do desemprego, redução dos investimentos produtivos e a falta de consensos políticos internos, levando a economia a crescimentos pífios que aprofundam a degradação social e afugentam os investimentos produtivos, tanto interno quanto externamente. Numa sociedade marcada por instabilidades jurídicas e institucionais, conflitos entre os poderes constituídos, desconfiança e instabilidades crescentes, medos e riscos generalizados, quedas de renda são comuns, além da violência em ascensão e aumento assustador nos preços, deprimindo cada vez mais a renda dos setores mais fragilizados. Com isso, percebemos uma recuperação econômica cada vez mais distante, gerando mais instabilidades sociais, aumento da desesperança e piora das perspectivas econômicas

Vivemos num momento marcado por graves constrangimentos fiscais que exigem uma política mais efetiva, uma verdadeira reconfiguração das prioridades do Estado Nacional, reduzindo privilégios de alguns grupos, que se apropriam dos recursos públicos e aumentam seus lucros privados, contribuindo para a crescente desigualdade que caracteriza a sociedade brasileira, situação que, neste momento de pandemia, se mostra mais claras e evidentes.

Para estimular a discussão sobre as engrenagens que contribuem para a degradação da sociedade brasileira, o economista Fernando de Holanda Barbosa está publicando a obra “O Flagelo da Economia de Privilégios: Brasil, 1947-2020: Crescimento, Crise Fiscal e Estagnação”. Na obra, o autor reflete sobre as grandes dificuldades da economia brasileira e as fragilidades do crescimento econômico, salientando, que para sairmos da condição de baixo crescimento econômico, precisamos encarar os grandes privilégios existentes na sociedade. O autor destaca as renúncias fiscais e tributárias, trabalhadores registrados como pessoa jurídica para pagar menos Imposto de Renda, funcionários públicos com salários acima do setor privado e até anistiados com aposentadorias e pensões especiais.

Segundo o autor, as renúncias fiscais e tributárias exageradas e injustificáveis criam constrangimentos fiscais para os órgãos governamentais, obrigando-os a reduzirem os investimentos produtivos e impactando diretamente sobre os serviços públicos, degradando-os e gerando prejuízos para a comunidade, aumentando a desigualdade social, sucateando o sistema produtivo e aumentando a dependência tecnológica de outras nações.

O Estado Nacional (federal, estados e municípios) precisa rever suas políticas fiscais, reduzindo os privilégios, estimulando os investimentos produtivos estratégicos, alavancando gastos em infraestrutura, investindo em ciência, pesquisa e inovação, fortalecendo as agências de regulação, reduzindo a ingerência dos governos de plantão e reestruturando setores responsáveis pela compliance na gestão pública, além de aumentar a transparência, reduzir a burocracia e melhorar a qualificação do capital humano.

Neste momento, precisamos de um Estado planejador, reduzindo os privilégios, combatendo os desequilíbrios fiscais e financeiros, reduzindo os setores ineficientes, cobrando rentabilidade, estimulando setores estratégicos e direcionando as políticas públicas para a redução da pobreza e da indignidade, retirando recursos de setores mais aquinhoados que vivem de especulação financeira e que canalizam seus recursos para a financeirização da economia, contribuindo apenas para a melhora de seus indicadores econômicos e financeiros em detrimento da grande maioria da população.

Acreditar que o mercado será o agente do desenvolvimento econômico não encontra eco na literatura econômica, todas as nações que se desenvolveram contaram com a atuação do Estado, do Mercado e da sociedade civil, sem essa parceria não existe desenvolvimento econômico, e sem desenvolvimento não melhoramos as condições de vida da população.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 16/02/2022.

Compromisso com o atraso, por Marcos Lisboa

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Superar a nossa estagnação requer aceitar os fracassos

Marcos Lisboa, Presidente do Insper, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005) e doutor em economia.

Folha de São Paulo, 13/02/2022

Nos últimos 30 anos, as pesquisas sobre os determinantes do crescimento econômico tiveram avanços importantes, beneficiadas pelo acesso a grandes bases de microdados. Esses resultados ajudam a entender algumas das razões da longa estagnação do Brasil.

Parte importante do aumento de produtividade nos países ricos decorre da concorrência entre empresas que resultam em inovações, empreendedores experimentando novos negócios e a falência de empresas ineficientes.

Nos Estados Unidos, que têm historicamente uma baixa taxa de desemprego em comparação com os demais países, há um fluxo relevante de destruição e criação de empresas e de empregos anualmente, com elevada mobilidade dos ativos produtivos, capital e trabalho, que são transferidos de firmas ineficientes para as suas concorrentes, mais produtivas.

Alguns estudos na década de 2000 identificaram que, em países ricos, entre 5% e 10% das empresas nasciam ou fechavam suas portas por ano, e esse processo contribuiu significativamente para o aumento da produtividade e da renda dos trabalhadores. O livro “Producer Dynamics”, organizado por Timothy Dunne, J. Bradford Jensen e Mark J. Roberts, sumariza esses, e muitos outros, resultados.

Essa agenda de pesquisa ganhou impulso com os trabalhos de Cheng-Tai Hseih e Peter Klenow. Eles observaram que havia bem mais desigualdade na produtividade das empresas nos países emergentes do que em países ricos. Políticas públicas que protegem firmas ineficientes parece ser parte do problema.

Hseih e Klenow estimaram que se capital e trabalho fluíssem de empresas ineficientes para as demais, como ocorre nos Estados Unidos, a produtividade da manufatura na China aumentaria entre 30% e 50%, e na Índia, entre 40% e 60%.
Diego Restuccia e Richard Rogerson sumarizaram os principais resultados, controvérsias e desafios dessa agenda de pesquisa no artigo “The Causes and Costs of Misallocation”, publicado no Journal of Economic Perspectives em 2017.
Crescimento econômico, aumentar a renda média de um país ao longo de muitos anos, requer ganhos de produtividade, conseguir produzir mais com os recursos disponíveis. Esse processo nada tem de trivial.

Ele requer melhoras contínuas no processo produtivo, nas técnicas de gestão ou na escolha das atividades a serem realizadas.

Karl Marx percebeu a relevância da concorrência em uma economia de mercado para esse processo. (Marx pode ter errado em muitos argumentos lógicos, mas era um notável observador da economia).

Empresas disputam mercados, e quem consegue produzir com melhor tecnologia, eficiência na gestão ou desenho de produtos tem vantagem sobre as demais. Avanço contínuo, seguidas inovações bem-sucedidas, é o nome do jogo, mas é um jogo tumultuado.

Empreendedores tentam construir soluções novas para fazer frente às firmas estabelecidas. A maioria fracassa. Empresas antigas tentam antecipar as novidades para não serem soterradas por elas. Nem sempre conseguem.

A IBM era um exemplo de modernidade nos anos 1970, mas tomou decisões que se revelaram equivocadas, como apostar nos grandes computadores e delegar a uma empresa novata a responsabilidade pelo sistema operacional dos seus microcomputadores. A novata tornou-se a Microsoft.

Josepeh Schumpeter, que havia lido Marx, cunhou o termo “destruição criativa” para esse processo descentralizado de busca por melhora contínua, que promete o lucro extraordinário em caso de sucesso, e a obsolescência em caso de fracasso.

Philippe Aghion e seus coautores sistematizam a evidência da pesquisa sobre esse tema em seu livro recente, “The Power of Creative Destruction”.

Nos EUA, a IBM encolheu frente à Microsoft. No Brasil, na mesma época, a lei de informática protegeu empresas que produziam computadores obsoletos.

O restante da economia foi condenado a utilizar tecnologias defasadas em razão de uma política pública que prometia o desenvolvimento. Ela, contudo, apenas preservou o atraso.

A agenda do nosso Legislativo revela o quanto ainda insistimos em conceder benefícios fiscais e proteger empresas pouco eficientes.

Um exemplo recente foi a prorrogação do Padis, com a lei 14.302 de 7/1/2022, que garante incentivos “à fabricação de componentes ou dispositivos eletrônicos semicondutores”, beneficiando uma quantidade impressionante de produtos, como cimento de resina; silicone, na forma elastômero —encapsulante; chapas, folhas, tiras, autoadesivas de plástico, mesmo em rolos, à base de polímeros; chapas e tiras de cobre de determinado tamanho; condutores elétricos para certa tensão; e muito, muito mais.

Líderes do Legislativo defenderam a medida em razão da “perda de competitividade” nos últimos anos das empresas que fabricam esses produtos, como sintetizado em nota do Senado Federal.

O Judiciário, na mesma toada, continua a postergar falências por meio de longos processos, usualmente beneficiando os acionistas de empresas encalacradas.

O nosso capitalismo de Estado defende subsídios para o investimento privado e a preservação do patrimônio de empresários que fracassaram. Isso ocorreu no governo autoritário do general Geisel, e na gestão Dilma que se dizia de esquerda. O oportunismo se ajusta à ideologia.

Associações empresariais, financiadas com recursos extraídos dos trabalhadores por meio de tributos, como o Sistema S, se insurgem contra as propostas de abertura ao comércio exterior em bens de capital ou de informática que são adotadas em muitos países desenvolvidos ou emergentes.

Optamos por coibir a chegada de novas tecnologias vindas do exterior enquanto continuamos a preservar o patrimonialismo que se remunera graças aos favores oficiais. O que teria sido do combate à pandemia se tivéssemos tentado desenvolver uma vacina inteiramente nacional?

Conspirando contra o futuro, por Oscar Vilhena Vieira.

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A desonestidade do Estado e de parte da sociedade brasileira com seus jovens é constrangedora

Oscar Vilhena Vieira, Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.

Folha de São Paulo, 12/02/2022

A perversa e persistente estratégia de desenvolvimento nacional, fundada em altos níveis de concentração de renda, baixos padrões educacionais, desigualdade social, racismo estrutural e na violência e arbítrio como formas de ordenação social, nunca foram tão evidentes como no presente momento.

Dois relatórios publicados recentemente escancaram o quanto a sociedade brasileira, leia-se os adultos, temos descumprido nossas obrigações, plasmadas no artigo 227 da Constituição Federal, de assegurar às crianças e adolescentes “com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação… à dignidade…, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

A desonestidade do Estado e de parte da sociedade brasileira com seus jovens é constrangedora, comprometendo não apenas o processo de desenvolvimento econômico e social do Brasil, mas, também, a própria aspiração de vivermos em paz, sob o estado democrático de direito.

O movimento Todos pela Educação, que vem mapeando o desempenho da educação brasileira nas últimas décadas, sinaliza em seu último relatório um preocupante crescimento de 66,3% no número de crianças, entre 6 e 7 anos, que não foram alfabetizadas.

Se é fato que uma parcela substantiva desse crescimento se deve à Covid-19 e ao fechamento das escolas públicas, onde estudam mais de 80% de nossos alunos, predominantemente pobres, o que mais preocupa, como argutamente aponta Claudia Costin, nesta Folha, é que esse crescimento se dá sobre um número já extremamente alto de crianças —cerca de 55%— que não se encontra alfabetizada no 3º. ano do ensino fundamental. Mantidos esses padrões educacionais, o Brasil jamais conseguirá ingressar numa economia cada vez mais pautada no conhecimento, ficando fadado à produção de commodities.

Nossas crianças não têm apenas uma educação deficiente, em face de políticas educacionais insuficientes. Como aponta o relatório “Tiro no Futuro”, recentemente publicado pelo Centro de Estudos de Segurança Pública e Cidadania (CESeC), a violência, em grande medida decorrente de uma política equivocada de “guerra às drogas”, tem tido um forte impacto sobre a trajetória educacional, psíquica e social de jovens que vivem em comunidades, encontrando-se expostas ao tráfico, a operações policiais bélicas, tiroteios e balas perdidas.

Nada menos do que 1.115 escolas públicas ficaram expostas aos 4.346 episódios de trocas de tiros registrados na cidade do Rio de Janeiro, em 2019. Os alunos de 57% dessas escolas presenciaram dez tiroteios; de 11% das escolas, 30 tiroteios; já as crianças de 0,3% dessas escolas ficaram expostas a 95 casos de troca de tiros em um único ano.

Os pesquisadores apontaram as perdas educacionais coletadas junto à secretaria de educação e estimaram as perdas econômicas decorrentes da exposição à violência. Indicam, no entanto, que há inúmeras outras sequelas que acompanharão esses alunos ao longo de suas vidas.

Chamo a atenção, aqui, para a dificuldade que essas crianças, que não tiveram seus direitos mais básicos respeitados, terão em se conformar ao Estado de Direito. A insinceridade dos adultos e do Estado brasileiro no cumprimento de suas obrigações morais e legais em nada favorecerá a que esses jovens reconheçam os códigos de respeito recíproco indispensáveis numa sociedade democrática. Sem que sejamos capazes de reconfigurar nosso projeto de desenvolvimento, estaremos conspirando contra o futuro de nossos próprios filhos e netos.

No Ano do Tigre, a China pode se tornar um país de alta renda, por The Economist.

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A pergunta que especialistas se fazem agora é: será que o país realmente escapou da armadilha da renda média?

The Economist, O Estado de S. Paulo – 06/02/2022.

A China é assombrada pelo fantasma da “armadilha da renda média”, o conceito de que as economias emergentes crescem rapidamente para sair da pobreza, mas acabam presas em um nível anterior ao da riqueza. “Durante os próximos cinco anos, devemos ter um cuidado especial para evitar cair na armadilha da renda média”, disse Li Keqiang, o primeiro-ministro da China em 2016. Lou Jiwei, então ministro das Finanças do país, certa vez disse que as chances de a China ficar presa eram de 50%.

A armadilha foi identificada por Homi Kharas e Indermit Gill, dois economistas, em 2006, quando ambos trabalhavam no Banco Mundial. Ela leva a uma pergunta óbvia: o que conta como renda média e o que caracterizaria superá-la? Kharas e Gill adotaram as classificações de renda do banco onde trabalhavam, que foram determinadas em 1989, quando ele estabeleceu a separação entre os países de alta renda dos demais. A divisão tinha de acomodar todos os países que eram então considerados “economias industrializadas”.

Foi elaborada com uma renda nacional per capita de US$ 6 mil para os preços em vigor em 1987, baixos o suficiente para incluir a Irlanda e a Espanha. O valor atualmente é de US$ 12.695. Ele sobe em sintonia com uma média ponderada de preços e taxas de câmbio em cinco grandes economias: Estados Unidos, Reino Unido, China, zona do euro e Japão. Oitenta países atingiram esse patamar em 2020, três a menos do que no ano anterior. A pandemia rebaixou as Ilhas Maurício, o Panamá e a Romênia para o nível intermediário.

Apesar dos temores de seus líderes, ou talvez por causa deles, a China agora está prestes a se tornar um país de alta renda, segundo este conceito. Com base nas previsões mais recentes disponibilizadas pelo Goldman Sachs, calculamos que o país poderá mudar de classificação no próximo ano, ajudado em parte por sua forte moeda. (A transição não seria anunciada oficialmente até meados de 2024, quando o Banco Mundial atualiza suas classificações com base nos dados do ano anterior.)

Se estivermos certos, então 2022, o Ano do Tigre, poderia ser o último da China como um país de renda média. Depois disso, ela será mais poderosa e rica.

A fronteira é, sem dúvida, arbitrária. Vários países (entre eles Argentina, Rússia e até mesmo Venezuela) a ultrapassaram, mas tropeçaram e acabaram caindo nos anos seguintes. Escapar de forma duradoura da armadilha da renda média exige uma transição mais fundamental. Os países neste estágio intermediário de desenvolvimento podem esbarrar em um grande número de obstáculos. Eles talvez enfrentem diminuição de retornos para o capital, costumam sofrer com a escassez de trabalhadores para sair da agricultura. E devem investir de forma pesada na educação, além da educação básica necessária para os trabalhadores de fábrica lerem instruções. O teste mais verdadeiro de um país de alta renda é o quanto ele lida bem com tais ameaças ao seu crescimento. Como a China está se saindo com esses três pontos?

Investimentos
A China ainda está acumulando capital em um ritmo acelerado. O país investiu 43% de seu PIB nos cinco anos anteriores à pandemia. Os países de alta renda, em média, apenas metade dessa porcentagem. Mas a alta taxa de investimentos da China talvez não seja tão infrutífera como muitas vezes se supõe. Assim como seu investimento continua alto para os padrões dos países ricos, o mesmo acontece com a taxa de crescimento do PIB. De fato, a relação entre sua participação de investimentos na produção e sua taxa de crescimento (às vezes chamada de relação capital/produto incremental) ainda parece favorável em comparação com os países de alta renda.

E quanto às outras fontes de crescimento? Em sua revisão anual da economia chinesa, divulgada em 28 de janeiro, o Fundo Monetário Internacional (FMI) observou com preocupação que a “produtividade total dos fatores” de crescimento da China, que mede as mudanças na produção que não podem ser associadas a mais capital ou trabalho, caiu na última década, em comparação com a década anterior. O FMI atribuiu esse abrandamento a uma “paralisação” das reformas estruturais, sobretudo nas empresas estatais. “O dinamismo do mercado vem perdendo fôlego recentemente”, argumentou a instituição. Mas esse tipo de produtividade é conhecido por ser difícil de medir. E, de acordo com um indicador da Conference Board, uma associação empresarial, ela está crescendo perceptivelmente mais rápido na China que nos países de alta renda.

Os padrões de emprego da China ainda diferem de forma acentuada dos de países mais prósperos. Surpreendentemente, talvez, a parcela de seus trabalhadores no setor da construção é inferior à dos países de alta renda. A porcentagem nas fábricas é maior (19%, em comparação com uma média de 13%), e o número de trabalhadores na agricultura é muito maior – cerca de 25%, em comparação com uma média de 3% nos países de alta renda.

Sob uma perspectiva, essa força de trabalho rural residual é motivo de otimismo. Se a China pode alcançar níveis de renda elevados com um quarto de seus trabalhadores na agricultura, imagine o que o país fará quando eles migrarem para empregos mais produtivos? O receio, no entanto, é que esses trabalhadores não tenham deixado as fazendas porque não podem. Talvez eles não queiram perder seus direitos sobre as terras comunais. Ou talvez sejam muito velhos ou pouco escolarizados para aproveitar as melhores oportunidades nas cidades.

O nível de escolaridade dos trabalhadores da China é, de fato, um motivo de preocupação. De acordo com o último censo do país, sua população adulta tinha uma média de 9,9 anos de escolaridade em 2020. Isso o colocaria perto da lanterna da lista dos países de alta renda, que têm 11,5 anos em média, de acordo com Robert Barro, de Harvard, e Jong-Wha Lee, da Universidade da Coreia.

Alta renda
Esse problema só pode ser resolvido com um grupo por vez. Os cidadãos mais velhos da China cresceram em um país muito mais pobre e foram educados segundo esse contexto. Uma criança que ingressa atualmente no sistema escolar chinês pode esperar receber 13,1 anos de educação, de acordo com o Banco Mundial. A qualidade ainda não corresponde à quantidade: com base na pontuação das crianças em testes padronizados, 13 anos de escola na China equivalem a menos de dez anos em um país como Cingapura, calcula o banco. Contudo, as coisas têm melhorado.

A escolaridade de seu capital humano reflete o passado pobre da China, nesse caso, mas o “fluxo” de investimento em novo capital humano é mais condizente com um futuro de alta renda. O problema é que esse investimento de alto custo em dinheiro e tempo está desencorajando os casais a ter filhos, um impasse demográfico que é tristemente característico de muitas regiões ricas do mundo. A população da China cresceu apenas 0,03% no ano passado. A julgar pela experiência do Japão, uma população envelhecida e não renovada pode contribuir para pressão nos gastos, baixo crescimento e baixas taxas de juros. Os formuladores de políticas da China agora devem se preocupar com um tipo diferente de armadilha.

TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA

Movimentos estratégicos

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A construção de uma estratégia de desenvolvimento econômica e produtiva é fundamental para se posicionar na sociedade contemporânea, num mundo centrado na concorrência, na competição e na busca crescente por lucro e por ganhos monetários, sem construirmos uma estratégia, são grandes os riscos de um retrocesso social, político e econômico.

As nações desenvolvidas estão se movimentando rapidamente para se adaptar às grandes transformações econômicas, estimulando a participação de todos os setores produtivos, sociais e políticos para compreenderem as novas dinâmicas da sociedade contemporânea e como será o mundo na pós-pandemia, buscando fortalecer as estruturas produtivas, gerando milhões de empregos, estimulando investimentos produtivos, desestimulando investimentos especulativos de alto risco e criando instrumentos de sobrevivência para todos os setores da sociedade.

Neste momento de instabilidades internacionais e incertezas nacionais, precisamos construir uma união entre todos os setores da sociedade, criando instrumentos de participação setorial, estimulando investimentos maciços em educação, aumentando os recursos nas áreas da pesquisa científica e tecnológica, evitando a fuga de pesquisadores renomados e cientistas que poderiam impulsionar a ciência nacional, contribuindo para a construção da autonomia tecnológica, ativo fundamental na sociedade contemporânea.

Os investimentos da pesquisa científica devem ser feitos por todos os setores, não apenas pelas agências governamentais, devendo ser acompanhados pelas empresas, assumindo riscos, aguardando os tempos de maturação e contribuindo para que os frutos sejam compartilhados para toda a coletividade, melhorando os salários da sociedade, aumentando os recursos dos setores produtivos e dinamizando os setores mais fragilizados, erradicando a miséria e abrindo novas perspectivas para a sociedade.

O planejamento econômico deve vislumbrar os ganhos no longo prazo, criando os instrumentos de crescimento para todos os setores econômicos, melhorando as cadeias produtivas, estimulando compras governamentais, cobrando melhoras de produtividade, desenvolvendo soberania científicas e tecnológicas, além de reduzir a dependência de outras nações. O mercado pós-pandemia exige planejamento e novas estratégias, países dependentes de importação de produtos agrícolas buscam novas alternativas, estimulando novos mercados produtivos e angariando investimentos em outras nações para, no médio e no logo prazo, reduzir a dependência de outras nações. O mundo pós-pandemia exige profissionalismo e novos arranjos produtivos, depender de outras nações pode ser algo preocupante e pode gerar constrangimentos, custos financeiros elevados e perdas de seres humanos impossíveis de mensurar.

A economia está passando por grandes transformações na contemporaneidade, novos conceitos estão surgindo, novos desafios e oportunidades, mas não podemos esquecer conceitos antigos e comprovados cientificamente, dentre eles, de que o produto interno bruto tem o lado da produção (oferta) e o lado do consumo (demanda), mas infelizmente estamos estimulando apenas a produção e contraindo o consumo.

Como os dois precisam ser iguais, a oferta se contrai por falta de demanda, ou seja, sem investimentos produtivos não teremos emprego, sem estes não teremos renda, sem renda não teremos consumo. Sem consumo os setores produtivos não geram investimentos e, em contrapartida, o desemprego cresce, a informalidade aumenta e o desalento acelera, gerando graves constrangimentos para a sociedade, levando muitos indivíduos ao desespero, aos distúrbios emocionais, à depressão e ao suicídio, males do mundo contemporâneo.

A “ciência” econômica contemporânea se transformou num grande instrumento de crenças e de valores centrados no dinheiro, no imediatismo e nos interesses do capital financeiro nacional e internacional, perdemos a credibilidade e estamos nos entregando aos prazeres do enriquecimento fácil, defendendo ideias ultrapassadas e ainda acreditamos nos valores da meritocracia e do empreendedorismo, diante disso, percebemos que estamos, cada vez mais distante daquilo que podemos definir como uma sociedade civilizada.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 09/02/2022.

Como Olavo de Carvalho se tornou o pai espiritual da direita brasileira, por Camila Rocha.

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Denunciando ‘hegemonia esquerdista’, escritor abriu espaço para conservadores e apostou em revolução cultural de Bolsonaro

Camila Rocha, Doutora em ciência política pela USP, é autora de “Menos Marx, Mais Mises: o Liberalismo e a Nova Direita no Brasil” e coautora de “The Bolsonaro Paradox: the Public Sphere and Right Wing Counterpublicity in Contemporary Brazil”

Folha de São Paulo, 05/02/2022

[RESUMO] Nome de inegável importância no debate público brasileiro recente, Olavo de Carvalho fez uso de uma estratégia retórica de choque nas redes sociais, com argumentação sem fundamento e palavrões, para atrair segmentos da direita órfãos de líderes no país, forjando uma militância que ganhou expressão com a vitória de Bolsonaro.

A importância de Olavo de Carvalho como intelectual público na história brasileira recente é inegável. Sua morte rapidamente desencadeou a produção de uma grande quantidade de colunas e artigos dedicados a remontar sua trajetória e discutir seu legado político na imprensa nacional e internacional —além, claro, de uma torrente de manifestações nas redes sociais de luto e admiração, por um lado, e celebração irônica, por outro.

A maior parte do que foi escrito nos meios tradicionais se concentrou em enfatizar o caráter folclórico do personagem, ressaltando sua defesa de teorias conspiratórias e afirmações esdrúxulas. Carvalho inspirou até mesmo a criação de um museu virtual que organiza por categoria suas intervenções, ricamente ilustradas com postagens em redes sociais e vídeos de sua autoria.

Uma delas, em que diz que a Pepsi usa células de embriões humanos em suas bebidas, chegou a ser alvo de verificação da Agência Lupa.

Isso prova que sua estratégia retórica para atrair a atenção da mídia mainstream e divulgar as causas que defendia continua rendendo frutos mesmo após sua morte. O caso da Pepsi é exemplar nesse sentido. Afinal, após o choque inicial, descobriu-se que a PepsiCo tinha um convênio com uma empresa de biotecnologia que havia sido alvo de questionamento de militantes antiaborto por, supostamente, utilizar culturas de células de fetos abortados. Ponto para os conservadores.

O uso dessa estratégia estava intimamente conectado com o principal objetivo de Olavo de Carvalho no debate público: combater uma “hegemonia cultural esquerdista” que teria passado a vigorar no país desde a redemocratização. Em outras palavras, combater o pacto democrático de 1988.

Esse pacto remete a um arranjo político inédito forjado após a promulgação da nova Constituição. Sustentado ao mesmo tempo pela Constituição de 1988 e pelo presidencialismo de coalizão —modelo de governo composto por grandes coalizões parlamentares—, o arranjo se baseia no entendimento implícito de que a implementação dos direitos sociais anunciados na Carta deveria ocorrer de forma lenta, gradual e segura.

Foi assim que, a despeito da morosidade do Estado em incorporar as demandas democráticas da sociedade, o debate público no Brasil, ainda que continuasse a ser dominado por elites, passou a conviver com a participação de grupos historicamente oprimidos.

Apesar de contarem com poucos recursos de ordem material e organizacional em comparação com as elites, esses grupos conseguiram incidir na criação de uma nova institucionalidade. Isso ocorreu tanto durante a Constituinte quanto posteriormente, por meio de um processo de institucionalização no âmbito da própria sociedade civil e no Estado com a criação de políticas públicas específicas e novos órgãos sob os governos eleitos democraticamente que se sucederam até o impeachment de Dilma Rousseff.

Contudo, apesar dos avanços inegáveis produzidos pela maior porosidade do Estado —e da própria sociedade civil—, o processo de incorporação de novas vozes e avanços sociais foi acidentado e permeado por ambiguidades, contradições e recuos.

Durante o auge do lulismo, vozes críticas ao governo se tornaram escassas no debate público. À esquerda, vários movimentos sociais pareciam ter se institucionalizado e se esvaziado. À direita, havia um sentimento de orfandade de determinados segmentos, tendo em vista a atuação da oposição ao governo —e Olavo logo se tornou seu principal porta-voz.

Ainda na metade da década de 1990, muito antes da chegada do PT ao poder, ele defendia a necessidade de combater a “hegemonia cultural esquerdista”. Afinal, segundo seu entendimento, a esquerda já dominava jornais, revistas, ONGs, editoras de livros e cursos de ciências humanas nas principais universidades brasileiras, notadamente na USP.

Essa ideia aparecia de diversas formas em alguns de seus livros publicados por editoras de menor expressão, como “A Nova Era e a Revolução Cultural: Fritjof Capra e Antonio Gramsci” (1994), “O Jardim das Aflições” (1995) e dois volumes do livro “O Imbecil Coletivo” (1996 e 1998, respectivamente).

De acordo o próprio autor, a publicação dessas obras —em especial de “O Imbecil Coletivo”, em que tecia críticas contundentes aos intelectuais e acadêmicos de esquerda brasileiros— abriu um espaço para liberais e conservadores que havia sido negado desde os anos 1980.

Sua intenção, na época, era se lançar crítico cultural. Seus livros, no entanto, ainda circulavam em meios restritos.

Em razão disso, buscou apoio junto a pessoas que frequentavam os circuitos formados por organizações que atuavam em defesa do livre mercado —ele alegou, inclusive, que foi apresentado à obra do economista Ludwig von Mises por Donald Stewart Jr., empresário fundador do Instituto Liberal do Rio de Janeiro.

Porém, após ter frequentado um primeiro curso sobre pensamento social e político que fora organizado pelo instituto para o público geral, Carvalho não causou boa impressão devido à agressividade que dispensava aos seus oponentes ideológicos e não conseguiu o patrocínio desejado.

Tentou ainda obter financiamento junto à fabricante de cigarros Souza Cruz, à organização católica tradicionalista Opus Dei e à articuladora norte-americana Atlas Network, no que tampouco obteve sucesso. Resolveu, então, se autopromover.

Para tanto, passou a contar inicialmente com recursos próprios, obtidos por meio da venda de livros, de seu trabalho na imprensa e da oferta de cursos privados de filosofia.

Foi assim que Olavo de Carvalho —que, em 1998, se declarou a favor do livre mercado na economia, tradicionalista e conservador no que tange à defesa da religião, anarquista em relação à moral e à educação, nacionalista e contra o “governo mundial” no que diz respeito à política internacional e realista no campo da filosofia— passou a concentrar esforços em divulgar suas ideias na internet e, progressivamente, deixou de lado a ideia de se firmar como crítico cultural no circuito mainstream.

Questões políticas conjunturais e discussões de ordem moral e filosófica assumiram o primeiro plano em suas intervenções, ventiladas por meio de um blog próprio, criado em 1998, e de um site coletivo fundado em 2002, em que eram veiculados textos de vários autores e autoras sobre política, economia e filosofia.

Ao mesmo tempo que Carvalho se tornava mais conhecido entre os frequentadores dos fóruns digitais da época, também influenciou decisivamente a tradução e a circulação de autores pouco conhecidos no Brasil. A editora É Realizações publicou vários livros de autores que Carvalho utilizava como referência em suas obras, como Roger Scruton, Eric Voegelin, Theodore Dalrymple e Christopher Dawson, que hoje figuram em sua lista de mais vendidos.

Já a Vide Editorial, além de publicar obras de Scruton e Voegelin, também começou a lançar títulos relacionados mais explicitamente à crítica do marxismo e do comunismo, como “A Mente Esquerdista – as Causas Psicológicas da Loucura Política”, “O Verdadeiro Che Guevara”, “O Livro Negro do Comunismo” e “Marxismo Desmascarado”, bem como promover livros de autores nacionais pouco conhecidos na época, fomentando, assim, um pequeno circuito editorial alternativo.

Em meio ao auge de popularidade do governo Lula, os espaços criticados por Olavo por sua falta de pluralidade ideológica se ampliaram, passando a abranger o Estado e até a Rede Globo.

Com o tempo, independentemente da qualidade e do rigor de sua prática filosófica, alvo de críticas contundentes mesmo à direita do espectro político, sua audiência também se ampliou. Psicanalistas, médicos, empresários, jornalistas, professores universitários, alunos de graduação e de pós-graduação de universidades públicas e privadas formavam parte significativa de seus alunos, leitores e ouvintes.

Sem dúvida, essas pessoas não padeciam de escassa formação acadêmica e recursos financeiros restritos. Em grande medida, se sentiam pouco representadas ou mesmo desprezadas na esfera pública tradicional e viam em Olavo alguém que dava vazão a seus anseios. Na visão de um de seus alunos, Olavo incentivou as pessoas a serem mais intelectualizadas, e, ao mesmo tempo, a zombar de um verniz de intelectualidade que existe no Brasil.

Contudo, se o “esquerdismo” atribuído às produções da maior emissora de televisão do país é algo passível de questionamento, havia uma arena que, sem sombra de dúvida, era hegemonizada pela esquerda à época: o movimento estudantil.

Na metade dos anos 2000, parte significativa dos frequentadores dos fóruns digitais da nova direita emergente, sobretudo no finado Orkut, era composta de estudantes universitários que não se identificavam com a esquerda. Em vista de suas experiências universitárias, que, na visão deles, eram permeadas por exclusão e silenciamento, passaram a compartilhar as ideias divulgadas por Carvalho.

Como bem lembrou Natália Leon Nunes, estudante de filosofia da USP à época, um grupo de alunos recém-ingressos se dirigiu ao centro acadêmico em 2006 para propor um debate entre Olavo de Carvalho e Marilena Chauí. O evento não ocorreu, porque, segundo ela, “nós da filosofia tratávamos com ironia e desprezo o doido ressentido com a USP que falava um monte de besteira”.

Com o tempo, a ideia de que existia uma “hegemonia esquerdista” ganhou cada vez mais adeptos, sobretudo entre universitários, e a própria forma de combatê-la, a política do choque, passou a se consolidar entre a nova direita emergente.

Isso se traduzia em promover reações de choque intencionalmente para chamar a atenção para pautas e demandas pouco ou nada tematizadas na esfera pública tradicional. Nesse sentido, o uso abundante de palavrões e xingamentos por Olavo era consciente.

Para além de chamar a atenção para temas ligados a discursos conservadores, a política do choque também ajudava a unificar vozes descontentes e forjar um novo espírito militante. Assim, muito antes de podcasts e lives se popularizarem, suas ideias passaram a atingir um espectro muito mais amplo de pessoas por meio de transmissões que realizava no Blog Talk Radio e no YouTube.

A despeito da crescente popularidade de Olavo de Carvalho nesses espaços e nos meios digitais, seus alunos não tiveram sucesso em se organizar formalmente, e a divulgação de suas ideias era intermitente.

Em 2008, foi anunciada na comunidade Olavo de Carvalho, no Orkut, a proposta de elaborar um fórum conservador digital e, em 2010, um Instituto Olavo de Carvalho chegou a ser criado. Durou pouco, contudo, e teve suas atividades encerradas dois anos e sete meses depois. No mesmo ano, a transmissão do podcast de Olavo no site Blog
Talk Radio também chegou ao fim.

Percebendo uma demanda reprimida por livros de direita, Carlos Andreazza, então editor da Record, resolveu lançar em 2013 “Esquerda Caviar: A Hipocrisia dos Artistas e Intelectuais Progressistas no Brasil e no Mundo”, de Rodrigo Constantino, e “O Mínimo que Você Precisa Saber para Não Ser um Idiota”, de Olavo de Carvalho, que logo entraram para a lista dos mais vendidos daquele ano.

Em 2015, em meio ao auge de mobilização popular durante as manifestações pelo impeachment de Dilma Rousseff, o livro de Olavo se tornou um best-seller com mais de 120 mil cópias vendidas.

Desde então, Olavo intensificou as conversas que já vinha mantendo com a família Bolsonaro e, ao sinalizar apoio à candidatura do capitão reformado à Presidência, logo se tornou um de seus principais conselheiros.

Sua intenção era que, uma vez no governo, Bolsonaro apoiasse uma revolução cultural —um novo pacto social e político que suplantasse o de 1988 e endireitasse a nação, na direção de um destino cristão-ocidental próprio. Isso alçou Olavo ao posto de pai espiritual dos direitistas brasileiros, como mostra o fato de os próprios integrantes do infame gabinete do ódio, assim como tantos outros jovens, terem se convertido ao catolicismo por sua influência.

Ao final, Olavo não só foi capaz de chamar a atenção que queria como, finalmente, conseguiu participar de debates que antes lhe eram vetados. Em abril de 2017, o escritor foi convidado a participar, ao lado do vereador petista Eduardo Suplicy, da Brazil Conference, evento organizado pela Universidade Harvard e pelo MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts).

Depois de elogiar a iniciativa das universidades em unir polos que nem sempre dialogam no país, ele disse: “A ideia é muito boa. É necessário, urgente. É apenas uma vergonha para o Brasil que tenha sido o MIT que propôs isso e não uma universidade brasileira. Isso mesmo é um sintoma do estado de coisas”.

Olavo de Carvalho afirmou ainda que aprovava a ideia de renda básica universal, proposta por Suplicy: “Claro, todo o mundo quando nasce tem que ter alguma coisa. Tem que ter, pelo menos, alguém para segurar você, para você não cair no balde. Se você não tiver nem isso, está ferrado”. Nisso, Olavo tinha razão.

Os indiferentes e os invisíveis, por Jânio de Freitas

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Estamos em um país brutalmente violento e estupidamente indiferente à sua realidade

Jânio de Freitas

Folha de São Paulo, 05/02/2022

Se o Brasil não ultrapassou as condições em que a violência ainda pode retroceder ao “normal”, está entrando nessa aberração sem volta.

Não se vislumbra preocupação coletiva com o problema, nem mesmo para conter o empenho criminoso do governo por mais e maior violência. Como se dá com a própria violência, é a continuidade lógica de um percurso imposto. Explicado pela invocação de suas causas gritantes, mas excluído o fator determinante: o passado indiferente e a indiferença do nosso tempo à liberação da violência. O que situa as responsabilidades silenciadas.

As causas socioeconômicas da violência, legado da escravidão, acumularam-se desde a oportunidade perdida de uma abolição com perspectiva social e inteligente. A indiferença dos possuidores pelo país abaixo dos seus interesses caminhou, pelo tempo afora, com a tranquilidade assegurada por polícias e forças militares em eventuais cobranças de alguma justiça.

As favelas deram, a um só tempo, tanto a estética da segregação urbana —a verdadeira arquitetura moderna brasileira— como um atestado sólido da indiferença. O trabalho depreciado, a escassa oferta de emprego e a concessão precária de escolaridade disponibilizaram população crescente para o desemprego adulto e a marginalidade jovem.

A pobreza e a miséria são violências passíveis de incutir a sobrevivência alheia a leis e princípios. Mas o desenvolvimento de tais práticas nunca levou a um esforço verdadeiro para corrigir, em alguma medida, as suas causas também crescentes.

Os possuidores e a política que a eles serve continuaram indiferentes. E sempre piorados: a cultura ocidental desenvolveu desde a Segunda Guerra, sobretudo com cinema e TV, um sistema de alta eficácia na indução de violência à vida cotidiana das próprias classes dominantes. Nesse nível, as barreiras oferecidas pela educação pessoal, pelo estudo, pelo convívio reduziram-se com rapidez drástica. Estão quase desaparecidas. Deram lugar a mais violência e a mais indiferença à realidade.

Não precisamos de estatísticas para saber: estamos em um país brutalmente violento e estupidamente indiferente à sua realidade. Nas classes que definem a estrutura social e influem nos rumos nacionais, claro. Os rumos da violência inspirada pela pobreza exasperante, e armada pela indiferença, não sabemos.

Casos de repercussão como o linchamento do congolês Moise Mugenyi Kabagambe não negam a indiferença, antes a confirmam. Consumados ou quase, assassinatos assim ocorrem no país todo, motivando mínimas notícias ou silêncio —não só por provável insuficiência jornalística, mas pela indiferença generalizada à indiferença mesma.

O clamor eclodiu dias depois do linchamento e da indiferença policial e dos noticiários. Causou-o o lamento comovente da mãe de Moise, Lotsove Lolo Lavy Ivone.

A política nunca se voltou de fato para as deformações que desenvolvem a violência. Nunca houve um esforço verdadeiro da sociedade e de seus instrumentos para suprir a omissão da política e dos recursos oficiais contra a violência e suas fontes reais. O que é uma violência monstruosa. Diferente na forma, e, apesar disso, comparável aos extermínios históricos. Centenas de milhões ou já bilhões vitimados por efeito da indiferença histórica no Brasil.

OUTROS MILHÕES

É um livro pequeno: “Invisíveis”. Uma palavra na capa, etnografia, pode afastar leitores. Seria pena. O livro da jornalista esplêndida, professora universitária e pesquisadora Fernanda da Escossia é “uma versão modificada” —digamos, simplificada ou traduzida— da tese de doutorado em que nos traz um universo inimaginado: o dos milhões de brasileiros que não têm direitos por não terem certidão de nascimento e, portanto, nenhum outro documento.

Quem não tem documento não existe legalmente: “Eu me sinto um nada”, “Sou um zero”, “Eu me sinto um cachorro”, ouviu Fernanda.

São histórias perturbadoras, lindas ou indignantes, que Fernanda colheu de velhos, mães, filhos ao persistirem na aventura dramática de provar ao Estado que nasceram. Logo, existem. E, com 30 ou com 75 anos, ou sem sequer saber o dia do nascimento, querem o direito de ser vistos no mundo dos vivos —até para o direito de ter uma certidão de óbito, e não a vala comum.

Às vezes comovente, aliviante em outras, é mais um Brasil que “Invisíveis” revela.

Investimentos produtivos

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Os indicadores econômicos brasileiros geram preocupações constantes, muitas instituições financeiras nacionais e internacionais projetam um reduzido crescimento da economia, a recuperação tende a ser demorada, a inflação se mostra resistente, os problemas das cadeias de produção ainda persistem e devem se recuperar apenas no próximo ano, gerando pressões nos preços e podem gerar constrangimentos monetários, elevando as taxas de juros e limitando a recuperação da economia. Diante disso, os desafios econômicos são imensos, a superação deste cenário pode abrir novas oportunidades de recuperação da economia e podem criar sólidos espaços para a construção de um novo modelo de desenvolvimento econômico.

Vivemos um momento de grandes transformações, as incertezas crescem em decorrência dos desequilíbrios gerados pela pandemia. Os impactos das novas tecnologias e da globalização econômica exigem dos agentes econômicos, sociais e políticos a renovação dos consensos anteriores, sob pena de ficarmos para trás neste ambiente altamente competitivo, marcados pelas novas tecnologias e centrados na concorrência entre empresas, trabalhadores e nações.

Neste momento, percebemos que os ventos da Guerra Fria se mostram mais presentes, onde as nações se engalfinham novamente, gerando hostilidades, confrontos econômicos, políticas protecionistas, buscando a hegemonia na estrutura econômica e na política internacional, criando rancores e ressentimentos que podem culminar em conflitos militares, com altos custos materiais, humanitários e financeiros.

Além dos medos gerados pelos possíveis conflitos militares, a economia se recupera de forma desigual, os investimentos produtivos prescindem de confiança, estabilidade política, regras claras e credibilidade. Os riscos inflacionários tendem a elevar as taxas de juros nos Estados Unidos, com impactos sobre a recuperação global e afetando fortemente os países em desenvolvimento, exigindo regras claras e instituições confiáveis e dotadas de credibilidade.

Internamente, o Brasil vive de espasmos de crescimento econômico que aumentam a concentração da renda, degradando as relações de trabalho, incrementando a pobreza e contribuindo para o crescimento da miséria, que se materializa nas condições de vida da comunidade, onde mais de 50% passa por dificuldade de alimentação. Neste momento, faz-se necessário repensar o modelo econômico adotado desde os anos 90, que priorizaram os setores financeiros em detrimento dos investimentos produtivos, gerando uma sociedade mais desigual e uma elite econômica desconectada da realidade da maioria da população.

A pandemia está levando as nações desenvolvidas a repensarem os modelos de desenvolvimento, nada de Estado mínimo que dominou o pensamento econômico até a crise econômica dos Estados Unidos de 2008. Atualmente, ressurge o Estado planejador, estimulando investimentos produtivos e estratégicos, fortalecendo políticas industriais e de inovação, estimulando novas tecnologias e aumentando os investimentos em qualificação do capital humano, se antecipando as exigências das necessidades dos próximos movimentos produtivos.

No caso brasileiro o investimento produtivo é o caminho para a construção de um novo modelo econômico, sem investimentos públicos a recuperação da economia tende a demorar muitos anos, cabe ao Estado monitorar e estimular ativamente a reindustrialização da estrutura produtiva, investindo fortemente em setores de infraestrutura, atraindo com regras claras os investimentos privados, estimulando os setores socialmente responsáveis, incorporando novos modelos sustentáveis, fortalecendo energia limpa e menos poluentes e contribuindo para preservação do meio ambiente.

Como foi dito pelo sociólogo Fernando Henrique Cardoso, o desenvolvimento é o mais político dos temas econômicos, exigindo um amplo consenso entre todos os setores da sociedade, evitando confrontos desnecessários e picuinhas institucionais, fortalecendo as reflexões constantes sobre os desafios da sociedade e fomentando discussões democráticas e desvencilhando pensamentos golpistas e inconsequentes. Os desafios brasileiros são enormes, canalizemos nossas energias para discussões serenas e construtivas.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 02/02/2022.

O risco das commodities, por Clésio Andrade.

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China cria condições para plantar, minerar, produzir e transportar o que quiser

Clésio Andrade, Empresário e ex-presidente da CNT (Confederação Nacional do Transporte), foi vice-governador de Minas Gerais (2003-06) e ex-senador pelo MDB (2011-14)

Folha de São Paulo, 01/02/2022

Cada movimento que a China faz gera uma onda que atinge a economia global. Para o Brasil, qualquer mudança nas importações chinesas pode se tornar um tsunami.

O gigante asiático compra quase todo o minério de ferro que produzimos e é o maior consumidor de commodities agrícolas brasileiras. Se a demanda chinesa cresce, o Brasil vende mais e a nossa economia agradece; mas, quando eles compram menos, logo sentimos os reflexos negativos.

Um exemplo é a queda de mais de 40% nos preços do minério de ferro em 2021. A justificativa imediata é a desaceleração da economia chinesa que, afetada por uma grave crise energética, reduziu a produção de aço. Mas o pano de fundo é complexo e mais perigoso para o Brasil. A China, que já usa sua força para controlar os preços do minério, agora está trabalhando para se tornar menos depende do mercado externo da matéria-prima do aço.

Hoje, os chineses já respondem por mais de 50% do minério de ferro produzido no mundo, mas o consumo deles é tão alto que compram quase 70% da produção mundial. Brasil e Austrália lideram as vendas, mas isso pode mudar. Um sinal é o investimento que a China vem fazendo em suas minas no exterior, especialmente na Guiné, no Peru e na própria Austrália.

Na agricultura, a onda chinesa também inspira atenção. Nos últimos 12 meses, os custos de produção de commodities, como milho, soja e café, entre outras, subiram 52,01%, segundo a FAO, organismo da ONU que monitora a oferta e distribuição de alimentos no mundo. Um dos grandes motivos deste aumento foi a decisão da China de reduzir a oferta de fertilizantes no mercado global, o que elevou os preços desses insumos em mais de 300% nos últimos quatro anos.

O Brasil não produz fertilizantes suficientes para atender a nossa produção, mas este não é o nosso único problema no mercado global de commodities agrícolas.

A meta do governo chinês é tornar o país autossuficiente em produtos agrícolas básicos até 2025 para garantir a segurança alimentar de sua população de 1,4 bilhão de pessoas. Soja, arroz, trigo, carne, frango e ovos são alguns dos produtos que os chineses querem produzir no mesmo volume da demanda interna.

Alguns setores já sentem os efeitos dessa decisão. Nos últimos meses, as exportações de carne suína brasileira para a China caíram cerca de 50%, e os preços baixaram em torno de 17%.

Outra estratégia chinesa é investir em infraestrutura na África e países mais próximos, onde pode produzir ou controlar a produção de alimentos. Não é à toa que eles construíram ou modernizaram 10 mil quilômetros de ferrovias e quase 100 mil quilômetros de rodovias em países africanos nos últimos anos.

A China está criando condições para plantar, minerar e produzir o que quiser e transportar tudo em ferrovias moderníssimas a uma velocidade média de 300 km/h.

Os planos da China desafiam as bases da globalização. De um lado, o país desglobaliza, ao investir em produção própria de commodities agrícolas e minerais; de outro, busca hegemonia ao realizar investimentos maciços em infraestrutura em outros países e continentes com o objetivo de conectar Ásia, Oriente Médio, África e Europa, tendo como principal objetivo fortalecer suas exportações para o mundo.

Esse cenário desafiador está afetando o agronegócio e a economia brasileira de forma inédita.

Precisamos de alternativas para contornar a escassez de fertilizantes e os aumentos de custos —não apenas desses produtos, mas de todos os insumos agrícolas. Por outro lado, precisamos de planejamento e estratégia para enfrentarmos um mercado em constante transformação.

Enfim, como seremos o celeiro do mundo se não investimos em nossa matéria-prima básica, que são os fertilizantes? O Brasil poderia ser autossuficiente, mas não se move nesse sentido. Também precisamos buscar novos mercados para nossas commodities agrícolas e minerais.

O governo brasileiro precisa pensar no futuro. Além de garantir a segurança alimentar de nossa população, não pode negligenciar os problemas que afetam o agronegócio, a grande força que sustenta a economia nacional, produz riquezas, gera empregos e garante o sustento de milhões de famílias.

Para qual escola os estudantes retornarão hoje?, por Alexandre Schneider.

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Milhões de estudantes de ensino básico voltam às aulas hoje no Brasil sob o signo da ansiedade e da esperança de um ano normal pós pandêmico

Alexandre Schneider, Pesquisador do Transformative Learning Technologies Lab da Universidade Columbia em Nova York, pesquisador do Centro de Economia e Política do Setor Público da FGV/SP e ex-secretário municipal de Educação de São Paulo

Folha de São Paulo – 30/01/2022

Desde que a pandemia eclodiu, a discussão pública no Brasil e no exterior gira em torno da comparação entre a aprendizagem dos estudantes privados de frequentar a escola em decorrência da pandemia e daqueles que frequentaram a escola em anos anteriores, medida por testes padronizados. Algo que —erroneamente, a meu ver— denominou-se “perda de aprendizagem”, uma vez que ninguém perde o que não “recebeu”.

Como tem sido usual nos últimos anos, além do diagnóstico comum para realidades educacionais distintas, a receita para enfrentar e vencer os desafios tem sido a mesma: a realização periódica de avaliações, a “desidratação” do currículo com a escolha do mínimo a ser ensinado, e a ampliação da carga horária escolar para que os estudantes sejam submetidos a um volume maior de conteúdos em uma espécie de regime intensivo de ensino e aprendizagem.

Estas são medidas alinhadas ao que o foi a escola antes da pandemia, mas talvez não sejam tão próximas do que será a escola pós-covid e certamente estão distantes do que deve ser: uma instituição que invista na formação de indivíduos capazes de guiar sua aprendizagem de forma mais autônoma, engaje os estudantes e garanta o direito de aprender a todos. Sugiro aqui três medidas simples, que podem eventualmente ser adotadas em conjunto com as anteriormente citadas.

Ouvir os estudantes. Cada um de nós viveu a “sua” pandemia. Que tal usar os primeiros dias para discutir com os estudantes como cada um deles viveu esse período tão desafiador? Uma conversa guiada, com perguntas previamente estruturadas em pequenos grupos, sobre a experiência de aprender em casa, qual o impacto da pandemia em suas vidas, que escola gostariam de encontrar neste ano, são algumas das possibilidades.

Talvez os educadores se surpreendam ao ouvir dos estudantes menos queixas em relação à “perda de aprendizagem” do que ao convívio com os colegas, dentro e fora da escola, ou de atividades que exigiam mais interação do que as aulas expositivas. Uma escuta ativa dos estudantes poderá proporcionar pistas relevantes para melhor organizar a escola para a aprendizagem.

Ouvir os educadores. Desde 2020, os educadores lançaram mão de uma série de estratégias que os aproximaram ainda mais da realidade vivida por seus estudantes e suas famílias, bem como de suas necessidades de formação para lidar com a realidade imposta pela pandemia. A escuta ativa dos educadores pode ser muito eficaz para apoiar a estruturação de redes de proteção social necessárias a combater os fatores extraescolares que impactam na aprendizagem, a organização da escola para que possa atender às necessidades de aprendizagem individuais e, sobretudo, desenhar programas alinhados às demandas de formação de professores decorrentes dos novos desafios impostos.

A terceira medida é a de investir intensivamente na formação dos professores para que sejam capazes de integrar os desafios da aprendizagem com os desafios da formação de indivíduos críticos e adaptáveis a um mundo em transformação.

Tornar a escola mais humana, fortalecer os laços entre educadores, estudantes e suas famílias, integrar a escola aos equipamentos públicos e privados no território não são medidas laterais à missão da escola pública, mas fortalecem as comunidades escolares e as preparam para garantir a melhoria contínua da aprendizagem de seus estudantes.