Projeto Nacional

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A pandemia desnudou as desigualdades crescentes da sociedade global, mostrando que os seres humanos se comprazem com o imediatismo, buscam as riquezas degradando o meio ambiente e acreditam que a tecnologia é a solução dos mais variados problemas da coletividade, estimulando os investimentos em tecnologia sem humanismo, sem solidariedade e sem empatia, o mundo caminha a passos largos para a degradação, a incivilidade e a mediocridade.

Neste ambiente, percebemos que a sociedade brasileira passa por um momento de grandes desagregações, as taxas de miséria e de exclusão social crescem de forma acelerada, a inflação propaga para todos os grupos sociais e impacta fortemente para os setores mais fragilizados, os preços dos combustíveis aumentam sem dar trégua, fragilizando os setores que acreditaram que a solução do momento é a difusão dos aplicativos. Neste momento, os preços de todas as cadeias produtivas crescem de forma acelerada, com isso, os trabalhadores perdem renda e são levados a aceitarem cargas excessivas de trabalho, criando transtornos e dores crescentes, síndromes de burnout, depressão e problemas psiquiátricos.

O ambiente exige a reconstrução nacional, estamos nos aproximando de duzentos anos de independência e os resultados são preocupantes, necessitamos de liderança e precisamos, urgentemente, de um projeto nacional e construir um ambiente saudável para imaginar o futuro desta nação, deixando de lado os interesses mesquinhos e imediatos, buscando as bases do progresso material e emocional, se afastando do caos e da ingovernabilidade.

O século XX trouxe grande crescimento econômico para o Brasil, tivemos problemas e muitos equívocos como todas as nações. Erramos em alguns setores fundamentais e acertamos em outros, os resultados gerais foram positivos, saindo de uma situação intermediária no cenário internacional e nos tornamos uma das dez maiores economias do mundo. Naquele momento, o Brasil recebia delegações de vários países do mundo que queriam entender o rápido crescimento do país, éramos vistos como exemplo no mercado internacional, sociedade pujante e dotada de forte potencial de crescimento e de desenvolvimento econômico.

Infelizmente, atualmente perdemos este potencial de crescimento, desde os anos 80 entramos num ambiente de mediocridade, estabilizamos nossa moeda e controlamos a inflação, desenhamos políticas públicas exitosas e crescemos internamente e recebemos elogios internacionais. Desde 2015, perdemos o dinamismo na economia global, passamos a sermos vistos como uma preocupação e nossas perspectivas futuras são sombrias.

O momento pressupõe liderança, organização política e competência de todos os atores econômicos e políticos, construindo um espaço de conversação onde todos os grupos sociais devem participar, intensificando as discussões democráticas, construindo projetos nacionais, repensando o papel do Estado Nacional, estimulando a atuação dos setores privados como atores dos investimentos produtivos e da geração de emprego e de renda. Neste momento de grande instabilidade econômica, pandemia e polarização crescente, precisamos aprofundar a democracia, os valores republicanos e os sentidos da civilização.

Não criaremos um país sem reconstruirmos os laços de solidariedade, sem nos revoltarmos com as condições indignas de trabalho e de sobrevivência que é a realidade de uma parte crescente da sociedade nacional. Precisamos compreender que o século XXI prescinde de capital humano qualificado, escolas e universidades bem estruturados, salários dignos e condições de trabalho decentes, tudo isso, pressupõem recursos elevados que se reverterá em uma política fiscal centrada em tributos equilibrados, onde os grupos que auferem mais rendas devem pagar mais em detrimento dos mais pobres, uma estrutura tributária deve ser progressiva para toda a coletividade, sem vencermos estes entraves, a sociedade brasileira tende a repetir os dados preocupantes e perspectivas sombrias.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 22/09/2021.

Chinesa Evergrande não deve causar crise financeira global; entenda o porquê, por R. Zeidan

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Desde o início do ano, ações da empresa com mais de U$ 300 bilhões em dívidas caíram mais de 80%

Rodrigo Zeidan
Professor da New York University Shanghai (China) e da Fundação Dom Cabral. É doutor em economia pela UFRJ.

Folha de São Paulo, 21/09/2021

Não é todo dia que uma incorporadora imobiliária causa risco no sistema financeiro de um país, mas esse é o caso da
Evergrande, empresa chinesa com mais de U$ 300 bilhões (R$ 1,6 trilhão) em dívidas. Desde o início do ano, suas ações caíram mais de 80%, e a empresa está tentando queimar estoques para pagar os juros dos títulos que estão vencendo.

O tamanho da sua dívida e o estrago que pode causar no balanço dos mais de 100 bancos que emprestaram dinheiro para a empresa preocupam, mas não devem causar uma crise financeira. São duas as razões para isso: o sistema financeiro chinês não é integrado ao resto do mundo e as autoridades chinesas têm bala na agulha para garantir a liquidez do sistema, não importa o tamanho do buraco.

Ainda assim, há riscos. Crises financeiras não acontecem pelo tamanho do endividamento, mas sim pela qualidade das dívidas, públicas e privadas, e alavancagem das instituições financeiras.

Um exemplo é a crise de 2008, causada em grande parte pelos bancos americanos que criaram produtos financeiros (como credit default swaps), no qual empacotaram dívidas imobiliárias boas com ruins, mas conseguindo que o conjunto fosse classificado como de baixíssimo risco.

Como há muita incerteza sobre a qualidade das dívidas das incorporadoras imobiliárias chinesas, isso poderia ser o estopim para uma crise financeira local. Em parte, o colapso da Evergrande é resultado das mudanças regulatórias na China e do agressivo modelo de negócio da empresa.

As novas regras, introduzidas há mais de um ano, incluem limites no endividamento e alavancagem de empresas imobiliárias. A empresa, como muitas do setor, usava seu tamanho para se endividar, comprar terrenos e continuar crescendo.

Hoje, a Evergrande é tão grande que sua falência poderia levar a um pânico generalizado, desde que o PBOC, banco central chinês, deixe isso acontecer, o que é pouco provável. As autoridades chinesas têm instrumentos para resgatar o sistema financeiro; afinal, é função dos bancos centrais serem emprestadores de última instância.

Contudo, há exemplos mundiais de má gestão de crises sistêmicas. O banco central japonês agiu a conta-gotas no início da década de 1990, e até hoje a economia japonesa paga por isso. No dia 15 de setembro de 2008, o Federal Reserve, banco central americano, anunciou que deixaria o Lehman Brothers ir à falência, erro monumental pelo qual pagamos até hoje.

Se uma crise na China acontecer, o que esperar no Brasil?

Crises financeiras se espalham por meio de sistemas financeiros e comércio exterior. A moeda chinesa, o yuan, não é conversível e há controle de capitais no país. Por mais que a Evergrande também tenha dívida em moeda estrangeira, a maior parte é em moeda local. Mais ainda, desde que o yuan sofreu um ataque especulativo por empresas estatais chinesas, em 2015 e 2016, o processo de integração financeira com o resto do mundo parou.

Uma crise financeira ficaria contida na China. Mas só do lado financeiro. Uma recessão lá levaria o mundo junto, pela queda na demanda mundial. O caso da Evergrande não deve causar uma crise financeira. Mas mesmo que o risco de uma recessão global seja baixo, convenhamos, o mundo não precisa de mais notícias ruins.

Paulo Freire é decente e democrático, nunca silenciaria quem dele discordasse, por Cortella.

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Há pessoas que, de propósito, distorcem o repertório freiriano com o objetivo de desqualificar sua relevância na educação contemporânea

Mario Sergio Cortella Filósofo, com doutorado em educação pela PUC-SP, sob a orientação de Paulo Freire, de quem foi chefe de Gabinete e a quem substituiu no cargo de secretário municipal de Educação de São Paulo (1991-1992)

Folha de São Paulo, 19/09/2021

Paulo Freire é uma pessoa decente!

A prática vivencial e o patrimônio cultural que nos legou justifica o tempo verbal no presente, e assim precisa ser, pois não há como aquilatar o legado de uma pessoa como ele e supor que este fique somente na memória do pretérito, em vez de também impregnar, como de fato ocorre, a história do presente e os desdobramentos vindouros.

De novo: Paulo Freire é uma pessoa decente! E o é exatamente por não ter procurado edificar suas práticas e concepções a partir do logro da boa-fé de outras pessoas, ou acolhido o embuste no qual assumisse como da própria autoria o que estivesse na lavra de outrem, ou da intenção do ludibrio que conduzisse ao engodo gerador de vantagens exclusivistas, ou, ainda, da promoção do engano intencional que levasse alguém a compreender de modo equivocado o que deveria ser assimilável de forma transparente, para manter este alguém sob seu domínio.

Paulo Freire é um intelectual honesto! E, assim, se agora presencialmente conosco estivesse, não repudiaria —como jamais o fez— objeções e discordâncias ao seu trabalho, desde que fundamentadas em argumentações sinceras e contraposições idôneas, que expusessem com suportes e embasamentos verídicos os eventuais deslizes, desacertos e lapsos nos quais pudesse ter incorrido.

Um intelectual honesto de fato não entende como ofensa o que pode ser uma contribuição para refinamento e correção do que elabora, mas de maneira alguma se submete à dissolução do que propugna apenas por encontrar desaprovação, especialmente porque essa desaprovação pode ser oriunda justamente da correta compreensão e, daí, o repúdio.

Paulo Freire encontra mais denegação por parte de quem o entende muito bem, com as decorrências políticas que seu ideário implica, do que por parte de quem pouco o conhece e que em certos momentos é maldosamente induzido à burla.

Uma parte dos que dele discordam o faz virtuosamente, assumindo com sinceridade as divergências de caminhos e suas resultantes, em um jeito escrupuloso. Contudo, há outra parte que, de propósito, distorce o repertório freiriano, com o objetivo de desqualificar a relevância expressiva deste —mundo afora— na educação contemporânea, e, além disso, pretende ardilosamente imputar a ele a composição das mazelas e penúrias da educação nacional.

Este ponto, o da distorção, é tão relevante para demonstrar o papel da trapaça na intenção de desabilitar a proeminência de Paulo Freire, que vale trazer dois exemplos concretos.

Uma das contribuições mais eminentes que ele fez à filosofia da educação contemporânea é ter adensado a compreensão de que nenhuma pessoa é capaz de somente ensinar, assim como não há nenhuma que seja capaz de somente aprender; em outras palavras, todas e todos, de algum modo e em circunstâncias variadas, somos educadores e educandos uns dos outros, em meios às nossas vivências, convivências e relacionamentos, o que exclui a possibilidade de haver, de um lado, somente néscios discentes e, do outro, somente sábios docentes. Essa condição não suprime nem a tarefa e nem o lugar de quem tem responsabilidade de formar, mas requer que quem o faça leve em conta, inclusive como alavanca de aperfeiçoamento recíproco, que quem está em formação não chega sem algo saber, e quem exerce o ensino não sabe tudo.

Ora, um dos subtítulos internos de sua obra mais merecidamente afamada, “Pedagogia do Oprimido”, é: “Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo”. Porém, se excluirmos (como na burla feita por minoria furiosa) o que vem após a sentença inicial, recortando do conjunto da ideia só o ponto de partida, ficaria “ninguém educa ninguém”, o que não somente distorce o sentido real (ninguém apenas educa, ninguém é apenas educado) como, além de tudo, sugere ter Paulo Freire depreciado o ato educativo e o ofício de quem o faz!

Outro exemplo, mais usual, é sobre a afirmação por ele feita, em muitas de suas obras, de a Educação ser um igualmente um ato político. Isto é, todo ato pedagógico —porque não é neutro e influencia, interfere, colabora ou prejudica uma comunidade — é similarmente um ato político. É claro que Paulo Freire está fazendo referência à política na acepção clássica grega, como sendo a maneira como coletivamente organizamos nossa vida comum, coabitada na pólis, na interrelação entre o privado e o público, assemelhado aos que os latinos chamaram de civitas, como cidade, chegando entre nós ao termo cidadania.

Em momento algum Paulo Freire indicou que o ato pedagógico, a educação, deva ser partidária, ou doutrinária, ou proselitista, ou catequética. Ao contrário! Se assim o fosse, e defendesse a manipulação, teria demolido o cerne da sua filosofia que é o ato pedagógico ser fomentador, para cada pessoa e para todas as pessoas, de uma consciência livre, com a educação como prática da liberdade e uma pedagogia da esperança e da autonomia.

Por isso, Paulo Freire é uma pessoa democrática! Nunca procuraria silenciar quem dele discordasse, calando a dissensão, impondo o pensamento único, excluindo a condição de fazer do diálogo a presença da mutualidade do proveito, no lugar de construir uma argumentação que pudesse ser suficiente para convencer (e não vencer!).

Como pessoa decente, intelectualmente honesta e democrática, ele permanece entusiasmando a lapidação do que chamou também de “inédito viável”, aquilo que ainda não é (por isso, inédito) mas pode ser (por isso, viável).

E qual é esse inédito viável entranhado no percurso de Paulo Freire? Vida boa, para todas e todos, em qualquer lugar e época, e, como, diria ele, cheia de boniteza!

Paulo Freire é um brasileiro que ainda tem muito a nos ensinar, por Silvio Almeida.

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Filósofo e educador, que completaria 100 anos nesta semana, ensinava que educação é a transformação do mundo

Silvio Almeida Professor da Fundação Getúlio Vargas e do Mackenzie e presidente do Instituto Luiz Gama.

Folha de São Paulo, 19/09/2021

Costuma dizer o historiador Luiz Antonio Simas que o Brasil é um empreendimento de ódio, pois é um país que se funda em um projeto de Estado-nação excludente. As instituições políticas e jurídicas brasileiras, que em grande medida atuam contra o povo —especialmente negros e indígenas—, sempre viram a cultura e a sabedoria popular como formas de vulgaridade, primitivismo ou “coisas de vagabundo”.

Por isso, é comum na história do Brasil que tudo que coloque em questão o pacto antipovo que caracteriza o país seja tratado como ameaça; que tudo que se atreva a estimular a formação de uma consciência nacional-popular e crítica seja repelido.

Este ódio do Brasil contra a brasilidade que emerge da resistência do povo brasileiro talvez seja uma explicação para a intensa campanha difamatória promovida contra o filósofo e educador Paulo Freire, morto em 1997, e que complementaria 100 anos de idade no dia 19 de setembro deste ano.

Nos últimos anos, a obra de Paulo Freire —um dos maiores pensadores da educação de todos os tempos, reconhecido nacional e internacionalmente— tem sido apontada por reacionários como sendo o principal motivo da decadência da educação no Brasil.

Não é a desigualdade social, o baixo salário de professores, a falta de estrutura das escolas e nem a ausência de um projeto nacional o problema da educação. O problema, na misteriosa cabeça dessas pessoas, é Paulo Freire, que seria quase que um “educador do fim do mundo”.

Talvez, neste ponto —e só neste e pelos motivos errados— os detratores de Paulo Freire tenham alguma razão, pois sua lição mais poderosa é: podemos pôr fim a um mundo que já não nos serve e podemos projetar outro completamente novo, em que caibamos todos nós.

Freire não enxergava a educação como um ato de “transferir” conhecimento, depositar saberes no aluno como se este fosse uma caixa ou um cofre. Este tipo de educação alienante —que não à toa denominava de “bancária” — concorre para que a exploração e a opressão sejam apresentadas à consciência dos indivíduos como dados “naturais” e não como circunstâncias históricas.

A educação para Freire é um processo de transformação que vai além do indivíduo. Na mesma linha traçada por Jean-Paul Sartre, Freire entendia o indivíduo sempre em situação, ou seja, sempre envolto pela facticidade e pela presença de outros indivíduos. Dessa forma, a educação, ao moldar a subjetividade, inevitavelmente interfere nos sentidos que o indivíduo atribui ao mundo em está lançado e na relação com outros indivíduos.

Com efeito, a educação para Paulo Freire não é apenas a mudança da consciência, mas a transformação do mundo, sem o que o indivíduo não se transforma. Entre mundo e ser humano há uma inextrincável relação dialética que, se pudesse ser desfeita, o ser humano deixaria de ser humano e o mundo perderia o sentido.

Em outras palavras: para Paulo Freire o ser humano é ser humano “no mundo” e o mundo só existe porque o ser humano nele habita.

Com essa proposição, Paulo Freire desfaz algumas ilusões de que é possível mudar a realidade apenas construindo escolas ou alterando diretrizes curriculares.

Educar é desenvolver a autonomia de alunos e alunas para que possam reivindicar a própria humanidade, o que se traduz na criação de um mundo em que não mais haja oprimidos e opressores. Inspirado por Frantz Fanon e Amílcar Cabral, Freire considera a educação um processo inevitavelmente político e revolucionário.

Para os que querem tornar aceitável a miséria e a exploração, Paulo Freire é o educador do fim do mundo. Com toda a sua amorosidade e rigorosidade, o filósofo brasileiro nos leva a pensar que este mundo, tal como conhecemos, precisa de fato acabar para que outro, fundado em uma práxis de solidariedade e respeito, possa vicejar.

Grupos em permanente busca por direitos estão mais vulneráveis ao adoecimento mental, por Cida Bento.

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Autocuidado nos estimula a recuperar memórias sobre nossas potências coletivas

Cida Bento Conselheira do CEERT (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades), é doutora em psicologia pela USP

Folha de São Paulo – 16/09/2021

Neste Setembro Amarelo, mês em que concentramos nossa atenção na prevenção ao suicídio — que atinge, no Brasil, 13 mil pessoas a cada ano—, mais do que nunca temos que atentar para as condições que tornam a vida de tantas pessoas insuportável de ser vivida.

De acordo com estimativas da OMS (Organização Mundial da Saúde) de 2021, o suicídio continua sendo uma das principais causas de morte no mundo. A campanha Setembro Amarelo envolve várias organizações, como a ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria) e o CFM (Conselho Federal de Medicina). O CVV (Centro de Valorização da Vida) é um apoio permanente ao enfrentamento desse desafio no campo da saúde.
Muitos problemas no campo da saúde mental da população brasileira foram acirrados pela crise sanitária e econômica, que incide sobre o aumento dos índices de suicídio, como diversos estudos que ganharam manchete na grande mídia nos mostraram nestes tempos de pandemia.

No Brasil, milhões de pessoas se encontram desempregadas, e os problemas de segurança alimentar, de acesso à saúde, à moradia, ao trabalho digno geram sofrimento principalmente em períodos como o que estamos vivendo, em que o governo reduz orçamentos para políticas públicas.

Do lado oposto, o fortalecimento de políticas de proteção social funcionou como elemento de prevenção ao aumento de doenças mentais na Itália, no período de 2000 a 2010, segundo publicação do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz.

Nesse sentido, estabelecer diálogo social é imprescindível para encontrar saídas que envolvam governos, empregadores, trabalhadores e movimentos sociais, para enfrentar conjuntamente a crise.

Conflitos de classe, de raça, violência de gênero e outros estão relacionados com o sofrimento psíquico, individual e coletivo. Grupos que vivem uma permanente busca pelos seus direitos e para afirmação social da sua identidade estão mais vulneráveis ao adoecimento mental.

Na população indígena, o suicídio foi quase três vezes maior que a média nacional, segundo o Ministério da Saúde, em 2018. Acrescente-se a isso o fato de que 79% dos suicídios ocorrem em países de baixa e média renda, segundo a Opas (Organização Pan-Americana de Saúde), em 2016.

Audre Lorde, mulher negra, apontou caminhos essenciais para acolher e enfrentar esse desafio de crise, cunhando o termo “autocuidado”, debatido em grupos feministas e antirracistas e conectado com o contexto político e coletivo.

Audre fala em transformação pessoal e política ao mesmo tempo. Trata autocuidado como a construção de nosso bem-estar, de nossa sobrevivência.

Em um coletivo acolhedor, o autocuidado permite reconhecer-se com medo, impotente, frágil e buscar a autopreservação diante de um ambiente ameaçador. Ou seja, um coletivo com uma escuta ativa para os sentimentos de dor, de perdas, de humilhação e sujeição.

Ao cuidar dos outros e se deixar cuidar, alimentam-se a reciprocidade, a cumplicidade e a solidariedade, resgatando e fortalecendo a autoconfiança e a fé no coletivo.

O autocuidado vem sendo exercitado por coletivos de mulheres negras, indígenas e quilombolas. São grupos que nos provocam a pensar em uma humanidade que preserva tanto a vida humana como a de outros seres vivos no planeta. Ou seja, do próprio planeta.

Nessa atividade política coletiva, criam-se redes de solidariedade para garantir alimentação e produtos de higiene para periferias urbanas desempregadas, reduzindo os danos da política genocida, pois o autocuidado está no território do bem viver, do afeto e da amorosidade.

Nos estimula a recuperar as memórias sobre nossas heranças, nossas riquezas esquecidas, nossas potências coletivas que permitem criar outras realidades políticas e sociais e reforçar o nosso compromisso e bem-estar com a vida.

Caos generalizado

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A economia brasileira está caminhando a passos largos a uma recessão com impactos generalizados para grande parte da sociedade, com incremento dos conflitos institucionais, diminuição da confiança e da credibilidade dos agentes econômicos, com queda dos investimentos e instabilidades que nada auxiliam na recuperação da economia, neste ambiente de incertezas o desemprego aumenta, a renda diminui e limitam as perspectivas de melhora econômica.

Vivemos um momento de desgoverno, descrédito e instabilidades crescentes, a inflação cresce de forma acelerada, o câmbio se desvaloriza e impacta sobre os preços internos. Os preços proibitivos dos combustíveis impactam diretamente sobre a estrutura produtiva, prejudicando a grande massa da população, inviabilizando os motoristas dos aplicativos que ganharam relevância neste período de pandemia. O aumento dos preços dos combustíveis garante os lucros de um pequeno grupo social em detrimento da população, contribuindo para a piora da concentração da renda, aumentando a inflação e reduzindo a renda da população, efeito imediato menos consumo e menor geração de emprego.

No país do agronegócio, conhecido como o celeiro do mundo, a fome e a exclusão crescem de forma acelerada e, em contrapartida, os ganhos dos grandes produtores agrícolas crescem, estimulando o consumo nos mercados de luxos, estimulando os investimentos em imóveis de alto padrão e aumentando a ostentação, contribuindo para incrementar as contradições que crescem na sociedade brasileira, perpetuando os privilégios de poucos grupos em detrimento de uma sociedade centrada na desigualdade, no racismo e na exploração.

Neste ambiente de incertezas e instabilidades os investimentos se concentram no curto prazo, o planejamento é deixado de lado e prescinde de profissionais altamente capacitados para entendermos o momento e construirmos os cenários futuros. Os investimentos que dominam a economia brasileira buscam rendimentos imediatos e deixam de lado os dispêndios de longo prazo, postergando os recursos para a infraestrutura, negligenciando os investimentos da educação, cujos retornos são mais distantes e demorados, a ciência e a tecnologia são negligenciadas e nos tornando mais dependentes do mercado internacional, acreditando que as tecnologias estarão disponíveis para a aquisição no mercado global. A pandemia nos mostra que, sem desenvolvimento próprio de tecnologias, de máquinas e de vacinas, somos cada vez mais dependentes dos humores dos agentes econômicos e políticos internacionais, países que optaram, anteriormente, na construção de sua autonomia científica e tecnológica.

Estas tecnologias podem estar disponíveis no mercado global, mas os valores serão, cada vez mais elevados e, num momento de crises mundiais, como numa pandemia, os desenvolvedores destas tecnologias priorizam seus mercados internos e seus interesses imediatos, deixando de lado seus “parceiros” comerciais. Neste ambiente de grandes desafios e concorrências crescentes, os investimentos em educação, pesquisa, ciência e tecnologia se mostram cada vez mais relevantes e, infelizmente, não estamos aprendendo as lições deste momento de pandemia e de crises crescentes, insistindo em conflitos políticos desnecessários, propondo pautas atrasadas e perpetuando o caos generalizado.

A pandemia desagregou as estruturas produtivas globais, gerou aumento dos custos produtivos, a falta de insumos está levando muitos conglomerados a rever políticas de investimentos, aumento da inflação e levando os bancos centrais a elevarem as taxas de juros, cujos impactos imediatos são visíveis na economia brasileira, menos investimentos, menos empregos, mais inflação e maior endividamento das famílias e dos setores produtivos.

Num ambiente de desconfianças e discursos de ódio e de ressentimento, precisamos de uma agenda para superarmos os atrasos que perpetuam nosso subdesenvolvimento, atacando os verdadeiros problemas da sociedade brasileira, a pobreza, a fome, a exclusão social e o desemprego que crescem de forma acelerada.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 15/09/2021.

A cultura, a economia criativa e a retomada pós-pandemia, por Eduardo Saron

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Construir ambientes trará impactos à educação e ao mundo do trabalho

Eduardo Saron Diretor do Itaú Cultural, presidente do Conselho de Cultura e Economia Criativa do governo de São Paulo e membro dos conselhos do Instituto CPFL e do Instituto Cultural Vale

Folha de São Paulo, 09/09/2021

No final de julho, os ministros da Cultura do G20, reunidos na Itália, deram um recado para o mundo: a cultura e a economia criativa terão papel determinante na retomada da pós-pandemia e devem estar no centro das políticas públicas para estimular o emprego, a renda, a educação, a diminuição das desigualdades, a criação de um ecossistema digital saudável e seguro, a saúde mental e a sustentabilidade do planeta.

A constatação não é mera retórica. No campo da economia, por exemplo, a importância desses segmentos é inquestionável. No caso do Brasil, em 2019, ano pré-pandemia, a economia criativa respondeu por 2,61% do PIB e movimentou R$ 171,5 bilhões no país, segundo Estudo da Firjan (Federação das Indústrias do Rio de Janeiro). No mesmo período, o importante setor da construção civil contribuiu com 3,7% para o PIB nacional, de acordo com o Dieese.

No campo do emprego, o segmento também é uma máquina de geração de oportunidades. Segundo o Observatório do Itaú Cultural, no último trimestre de 2019 a economia criativa empregava nada menos que 5,2 milhões de trabalhadores.

Aqui também vale a pena a comparação com a construção civil, que, no mesmo período, registrava 6,8 milhões de empregos. Ou seja, o cotejo do PIB das duas indústrias mostra que a economia criativa empregava, proporcionalmente, mais que a construção civil no pré-pandemia.

Mas não é só no campo da economia que as bandeiras defendidas pelos ministros do G20 podem fazer a diferença. Em um momento em que iniciamos a volta dos alunos às escolas, a cultura e as atividades criativas podem contribuir para acolher e encantar as crianças e os jovens neste recomeço.

Exemplos de que a arte melhora o aprendizado, diminui a violência e reduz as desigualdades são abundantes. O Programa Guri da Grande São Paulo, por exemplo, demonstrou que os alunos atendidos em seus projetos de formação musical apresentaram melhora significativa das habilidades emocionais, comportamentais e vivenciaram estreitamento das relações familiares, entre outros indicadores positivos. Cada real investido nessa iniciativa gerou R$ 6,53 em benefícios sociais.

A cultura também é apontada por especialistas como estratégica para desenvolver a criatividade, o pensamento crítico e as relações colaborativas. Construir ambientes que estimulem essas competências terá impacto na educação e no mundo do trabalho, beneficiando os indivíduos e a competitividade do país.

Na Carta de Roma, como ficou conhecido o documento elaborado pelos ministros do G20, fica patente, ainda, a centralidade da cultura para enfrentarmos o desafio da saúde mental, que está afetando milhões de brasileiros nesta crise sanitária. Na Inglaterra, por exemplo, o programa Artlift, que adota atividades artísticas para melhorar a qualidade de vida de pacientes com depressão e ansiedade, reduziu em 37% as taxas de consulta e, em 27%, as de hospitalização dos atendidos, gerando economia de 216 libras por indivíduo ao NHS, o sistema de saúde pública do país.

Mesmo com todo esse potencial, não se viu e não se vê no horizonte uma estratégia do Estado e da sociedade brasileira para colocar a arte e as atividades criativas no centro das políticas públicas. O que se observa, na verdade, é um desmonte e um debate ineficiente e desfocado, que só amplifica o descaso com esses segmentos que tanto podem contribuir para a nossa recuperação.

A cultura e a economia criativa, com as suas múltiplas potencialidades transformadoras, podem ser decisivas para o Brasil conquistar desenvolvimento com equidade. O país precisa focar na retomada e abandonar as crises artificiais e deletérias que estão tragando toda a nossa energia.

Converter a Carta de Roma, que sobretudo fortalece os direitos humanos e a democracia em um guia central de políticas públicas, seria um bom começo. Precisamos agir.

Estado de Direito nos protege dos devaneios de capitães e tecnocratas, por Marcos Lisboa

A maioria celebra os feitos dos grandes, mas por vezes se esquece do potencial destrutivo dos incompetentes que exercem o poder

Marcos Lisboa Presidente do Insper, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005) e doutor em economia.

Folha de São Paulo – 12/09/2021

Um paranoico comandante norte-americano, acreditando que os russos estariam envenenando a água nos EUA, decide despachar aviões com bombas nucleares para serem descarregadas na União Soviética.

“Dr. Fantástico”, de Stanley Kubrick, é uma comédia sobre os apocalípticos anos 1960. Em tempos de Guerra Fria. não faltavam militares ensandecidos para provocar o temor.

Muitos temiam que o clima beligerante, agravado por comandantes desvairados, pudesse resultar em um conflito que saísse do controle. A documentação do período, incluindo gravações de conversas de presidentes dos EUA, mostra quanto se mentiu para a sociedade naqueles anos.

O confronto bateu na trave na crise dos mísseis soviéticos em Cuba. Durante dias, autoridades americanas procuraram decifrar os movimentos do oponente, em meio a relatos de ataques inexistentes.

No auge do conflito, o líder soviético, Khruschov, enviou dois telegramas para o presidente dos EUA, Kennedy, com mensagens contraditórias. O governo americano jogou com a sorte para interpretá-las, decidiu na contramão da linha-dura e o descontrole foi evitado.

Em “Dr. Fantástico”, Kubrick nos alerta sobre os riscos do poder desmedido. No filme, o comandante ignora que os soviéticos haviam pouco antes concluído um dispositivo que responderia com armas nucleares contra os EUA se a União Soviética fosse atacada. Uma vez acionada, a reação não poderia ser interrompida.

O objetivo seria evitar a guerra nuclear uma vez que a existência do dispositivo fosse anunciada. Por que os americanos iniciariam um conflito se o resultado, independentemente da vontade de quem quer que fosse, seria a destruição de todos?

Não deu tempo. O comandante delirante iniciara o gatilho da guerra uma semana antes de os soviéticos anunciarem o dispositivo que dissuadiria os confrontos nucleares.

A maioria celebra os feitos dos grandes, mas por vezes se esquece do potencial destrutivo dos incompetentes que exercem o poder na ausência dos contrapesos do Estado de Direito.

O presidente do Brasil insiste no confronto com os demais Poderes. O problema já foi o ex-presidente da Câmara, agora é o Supremo. Desde o começo, a imprensa é inimiga.

Há quem afirme estar decepcionado com o governo. Não deveriam. O chefe do Executivo sempre disse, com seu linguajar usual, a que vinha. Alguns acreditaram na promessa de terceirização da gestão da política econômica. A inconsistência das propostas não parecia incomodar empresários experientes. Pois bem, as consequências vêm depois.

Trata-se de um presidente que vocifera, desde que esteja no comando. Sua preocupação principal parece ser distribuir privilégios às corporações que o apoiam, como aumentar a remuneração dos militares, ou defender medidas pouco relevantes, como alterar a legislação sobre pontos na carteira de motorista.

Por vezes, defende propostas descabidas, revelando o despreparo do seu governo. No começo do seu mandato, por exemplo, disse que iria apresentar uma medida que supostamente geraria mais recursos do que a reforma da Previdência.

O país enfrenta crises anunciadas, como a inflação e o preço da energia, que o presidente trata como um torcedor de futebol. Aparentemente, ele ignora o papel do seu governo nos aspectos sutis da gestão pública, que requer governança organizada, avaliação de impacto e cuidado com a implementação das políticas.

Ser o chefe do Executivo não se resume a fazer bravatas no cercadinho. Construir uma agenda para o país não implica ser conivente com as emendas parlamentares.

O presidente ataca o Supremo Tribunal Federal que o teria impedido de agir durante a pandemia. Caso pudesse decidir, ele afirmou ao STF em petição conjunta com o então advogado-geral da União, André Mendonça, que sua opção seria por não adotar qualquer medida de distanciamento social.

Ficamos assim: o presidente nada pôde fazer porque o Supremo restringiu suas ações. Mas, se ele pudesse agir, sua decisão seria por nada fazer.

Durante a pandemia, o chefe do Executivo limitou-se a propor que fossem utilizados medicamentos sem eficácia comprovada, enquanto defendia que motociclistas não pagassem pedágio nas estradas e denunciava supostos culpados pelo alto preço dos combustíveis.

O presidente parece desconhecer a sua responsabilidade pela gestão da política econômica e pela crise institucional que resultaram no câmbio desvalorizado, contribuindo para o aumento da inflação e do custo do diesel.

A cada derrota, o presidente bradou sua vitimização, denunciou inimigos e convocou ao confronto. Houve quem se arvorasse o direito de ameaçar prédios públicos e de planejar golpes.

Felizmente, ele compensou o despautério com uma coragem de calças-curtas diante da reação em defesa da democracia. “Minhas palavras, por vezes contundentes, decorreram do calor do momento”, escreveu o presidente da República em um dia em que caminhoneiros bloquearam estradas e ficaram a ver navios.

Kubrick conhecia a arte de fazer filmes. Peter Sellers surpreende nos três papéis que exerce em “Dr. Fantástico”, incluindo o de um cientista emigrado para os EUA que, por vezes, não consegue evitar que seu braço se erga em saudação nazista.

Capitães e tecnocratas prometem fantasias, mas revelam, descontroladamente, os seus instintos. O Estado de Direito nos protege dos seus devaneios.

Recuperação da Economia em K

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A recuperação brasileira é um dos maiores anseios da sociedade brasileira, sem recuperação das atividades econômicas os agentes econômicos não conseguem criar cenários consistentes, gerando novos investimentos produtivos, aumentando o emprego, melhorando os indicadores de renda e salário, dinamizando a produção e abrindo espaço para perspectivas mais positivas, numa sociedade que passa por grande desagregação na estrutura produtiva e indicadores sociais e políticos sofríveis.

Vivemos uma verdadeira tempestade perfeita, fomos vitimados por graves crises concomitantes, desde a degradação gerada pela pandemia, desestruturação das cadeias produtivas com impactos sobre o aumento do desemprego e redução da renda agregada, além de graves conflitos institucionais entre os poderes e fortes pressões inflacionárias, acrescentamos ainda os riscos de apagão energético, com aumento dos preços da energia, penalizando os setores produtivos e impactando fortemente sobre os grupos mais fragilizados.

O cenário que estamos presenciando nos gera preocupações crescentes, medos de conflitos institucionais, descontrole dos preços e limitações da recuperação econômica, postergando a melhora do ambiente econômico, retomando os investimentos produtivos e criando as perspectivas na melhoria dos indicadores sociais.

Neste ambiente percebemos muitos analistas destacando que a economia tende a se recuperar em V, ou seja, depois de forte retração econômica, a recuperação atual tende a ser rápida e consolidada, melhorando os indicadores macroeconômicos. Infelizmente estas análises estão se mostrando limitadas, a recuperação ocorre lentamente, os indicadores positivos são localizados e o cenário econômico é frágil, carecendo de investimentos públicos e a ausência de planejamento econômico. Percebemos que estamos vivendo uma recuperação em K, ou seja, uma recuperação limitada e desigual, onde os grupos de cima ganham mais em detrimento dos grupos mais fragilizados, uns poucos grupos ganham mais e outros perdem cada vez mais, contribuindo para o crescimento da desigualdade, gerando conflitos distributivos e instabilidades social e política.

Vivemos num momento de boom das commodities, ou seja, os preços dos produtos primários estão em alta no mercado internacional, elevando os ganhos para os setores ligados ao agronegócio, mesmo assim, este boom de compras externas não está estimulando a recuperação econômica, além de desvalorizar o câmbio, elevando os preços internos, com fortes impactos na inflação e redução da renda agregada.

No começo do século, o boom das commodities se caracterizou pelo crescimento da economia, gerando estabilidade e ganhos substanciais para os setores produtivos, melhorando os indicadores macroeconômicos, valorizando o câmbio, reduzindo a inflação, aumentando o emprego, a renda dos trabalhadores e dinamizando os setores produtivos.

Naquele momento, o boom de commodities foi associado a políticas públicas efetivas de inclusão social, aumento dos salários, incremento do crédito e elevação dos investimentos públicos em setores de infraestrutura, gerando aumento no emprego, melhora na renda e estímulo ao consumo e, em contrapartida, mais produção e melhora nos indicadores macroeconômicos. Atualmente, percebemos o incremento das commodities e, infelizmente, os resultados positivos não estão aparecendo, as vendas externas do agronegócio crescem, os lucros crescem rapidamente, garantindo melhorias na arrecadação pública e o enriquecimento de setores agroexportadores, mas a recuperação não acontece.

A recuperação econômica prescinde de instrumentos efetivos do Estado, estamos num momento de oportunidades crescentes geradas pelo boom das commodities, precisamos construir políticas públicas para aumentar a renda e os salários da população, concedendo crédito para a população e retomando os investimentos públicos, que atualmente são os menores em décadas. Sem estas políticas ativas e consistentes do Estado, a recuperação em K se efetivará, gerando ganhos crescentes para uma minoria e perdas crescentes para a maioria da população.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 01/09/2021.

‘A democracia fica em risco sempre que a disparidade cresce’, diz historiadora americana

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Mary Jo McConahay autora de ‘América Latina sob Fogo Cruzado’

Fernanda Simas, O Estado de S.Paulo – 29/08/2021

Mary Jo McConahay explica perigo que representa a ascensão de governos autoritários na América Latina
“A pandemia é como um estado de guerra. O tipo errado de político vai usar isso para seu próprio benefício e para aprovar programas autoritários que já existiam antes.” Com essa frase, Mary Jo McConahay, autora do livro América Latina sob Fogo Cruzado, explica o perigo da ascensão de governos autoritários na região e a necessidade de se olhar a história para não repetir os erros. Para a americana, o papel dos latinos durante a 2® guerra deveria servir de lição para as nações que hoje assistem ao crescimento da extrema direita e às ameaças à democracia.

A sra. imaginava o tamanho da participação de atores latino-americanos?
Muitas vezes temos uma lacuna no conhecimento sobre lugares próximos e a América Latina foi encoberta pelas notícias de outros lugares na 2.ª Guerra, mas a razão pela qual a guerra é chamada de mundial é justamente por ter afetado todos os lugares. Para Franklin Roosevelt, o presidente americano durante a guerra, o maior medo era do que estava acontecendo na América Latina, em razão da proximidade com os EUA. Ele tinha muita simpatia pelos países que tinham uma enorme quantidade de riquezas, o que é fundamental para qualquer guerra que se aproxima. E esses recursos tinham de estar sob o controle dos EUA, pensava Roosevelt. A América Latina foi extremamente importante durante a 2.ª Guerra.

Por que as perdas de recursos na região não são abordadas com frequência?
Claramente, as histórias que não possuem elementos de orgulho são escondidas de nós. Durante a 2.ª Guerra, o Brasil, como vários outros países, com exceção da Bolívia, por exemplo, em algum momento fechou a porta para os judeus que fugiam do Holocausto. O meu país, os EUA, também fechou as portas, enquanto alguns latino-americanos, como um cônsul do México, por exemplo, faziam vistos falsos para essas pessoas entrarem nos países. E digo isso porque atualmente fazemos (EUA) a mesma coisa, fechamos as portas para refugiados que chegam de países latino-americanos fugindo da violência.

Qual o papel do Brasil nisso?
O Brasil foi extremamente importante para a vitória dos Aliados por conta de seus recursos naturais. Alguns especialistas americanos dizem que a produção de borracha do Brasil pode ter sido decisiva para ganhar a guerra. Dezenas de produtos, incluindo 20 mil partes de navios de batalha, foram feitas de borracha. Se não fosse por essa produção em um ponto crucial da guerra, a história poderia ter sido diferente. Talvez os brasileiros não entendam o incrível sacrifício que o País passou durante a guerra. Acho que as pessoas não têm noção do que o Brasil forneceu durante o conflito.

Que lições podemos tirar da importância da América Latina na 2.ª Guerra?
Como o poeta John Donne disse: “Nenhum homem é uma ilha em si mesmo”. Eu digo que nenhum país pode ser uma ilha em si mesmo, especialmente hoje em dia. Tudo que acontece em qualquer lugar tem efeito em todas as partes do mundo. Temos de ter consciência do que ocorre na Palestina, no Oriente Médio, na África, não apenas porque isso vai afetar o preço dos nossos produtos, mas porque a humanidade está conectada e ignorar isso é nos eximir de responsabilidades.

A sra. fala que alguns pontos da 2.ª Guerra já nos mostravam o que enfrentaríamos na atualidade. Pode explicar?
Não se pode dizer que campos de concentração, tortura, Estados que falam apenas de segurança nacional surgiram apenas na 2.ª Guerra. No entanto, é possível dizer que algo aconteceu naquele período que nos tornou familiar com essas táticas. Temos a tendência de achar que esse tipo de prática, de autocracia, apareceu do nada, mas conhecendo a história podemos entender melhor nossa atualidade. Existe uma ponte entre o que ocorreu na 2.ª Guerra e o que ocorre hoje.

Qual é o perigo do uso político da pandemia?
A pandemia, de certa forma, é como um estado de guerra. O tipo errado de político vai usar isso para seu próprio benefício e para aprovar programas autoritários que já existiam antes. Falando dos EUA, a pandemia foi usada pela administração anterior (de Donald Trump) como ferramenta política para dividir. Por que? Porque a divisão favorecia quem estava no poder. A pandemia afeta brancos e negros, aqueles que recebem pouco, os mais pobres, da mesma forma que a guerra afeta. Esse é o motivo de termos a necessidade de olhar para o que acontece agora do ponto de vista humanitário, da mesma forma que foi feito na guerra. Claro que todos querem ser os primeiros na fila da vacina, mas é tempo de olhar para as histórias das crises e guerras e tirar lições disso para usar no presente.

A sra. acredita que a pandemia tornou mais evidente a fragilidade da democracia em alguns países?
Com certeza, inclusive aqui nos EUA, onde as populações mais vulneráveis, geralmente os mais pobres, negros e pardos, estão entre as que mais sofreram com a doença e mais morreram. Sempre que a disparidade cresce, como em uma crise sanitária, a democracia fica em perigo. A situação piora quando os líderes mentem ou tentam se aproveitar de algum tema que as pessoas sabem ser sério ou assustador.

Como a sra. vê o crescimento de governos autoritários na América Latina?
O crescimento do autoritarismo em qualquer lugar do mundo é preocupante. Na América Latina, onde tantos sofreram e morreram por justiça e democracia nos últimos anos, a volta das mentiras públicas e do autoritarismo é um desafio. As memórias são tão curtas? Tivemos uma ameaça assim nos EUA também, com o ataque à democracia de nosso ex-presidente e seus aliados, uma ameaça que continua circundando a vida política.

‘Paulo Guedes se desmoralizou por completo’, diz Eduardo Giannetti

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Para economista, ministro não tem ‘firmeza’ para resistir ao ‘impulso populista’ do presidente Jair Bolsonaro

Luciana Dyniewicz, O Estado de S.Paulo – 29/08/2021

“Paulo Guedes já se desmoralizou por completo e vai se desmoralizar ainda mais se continuar (atuando do modo atual)”, avalia Eduardo Giannetti. Segundo o economista, a presença de Guedes no governo não garante mais uma condução parcimoniosa da política fiscal. “Parece que o apego dele ao cargo é bem maior do que se imaginava e ele não teria grande restrição ou mesmo firmeza para resistir aos impulsos populistas do presidente.”

Giannetti destaca que não há “nenhuma perspectiva” de um crescimento econômico robusto no ano que vem, dado que as reformas prometidas por Guedes não foram feitas e o clima de incerteza política promovido pelo presidente Jair Bolsonaro afasta o investidor. A seguir, os principais trechos da entrevista.
Houve uma mudança no humor do mercado neste mês. Isso se deve a fatores internos ou o cenário global também dificulta?

Predominantemente à deterioração da situação doméstica. Já está bastante claro que o governo não tem proposta sequer para as reformas tributária e administrativa. Quase não há mais perspectiva de que alguma coisa relevante aconteça. Estamos com um cenário de inflação preocupante, que tem obrigado o Banco Central a conduzir um aperto da política monetária. Isso vai frear o nível de atividade no ano que vem. Por fim, há uma ameaça cada vez mais concreta de uma guinada populista fiscal por parte do governo Jair Bolsonaro, à medida que ele fica acuado e que os hormônios eleitorais começam a funcionar de maneira mais exacerbada.

Como avalia a atuação do ministro Paulo Guedes diante desse cenário?
A presença do Paulo Guedes no Ministério da Economia, que até pouco tempo atrás parecia uma salvaguarda em relação a uma aventura fiscal, já não dá mais essa confiança. Parece que o apego dele ao cargo é bem maior do que se imaginava e ele não teria grande restrição ou mesmo firmeza para resistir – como aliás não tem resistido – aos impulsos populistas do presidente. As atitudes do presidente, aliás, não são novidade nenhuma, porque ele está mostrando o que sempre foi. Só quem acreditou nele foi o ministro quando aceitou entrar nessa aventura. Na época da campanha, eu dizia que os economistas podem ser mais ingênuos sobre a política do que os políticos são ingênuos sobre a economia. E isso o tempo está confirmando.

O ministro deveria deixar o governo ou ele ainda pode fazer alguma coisa?
O último resquício que talvez justificasse a presença dele no governo seria manter o mínimo de responsabilidade na política fiscal. Se ele continuar cedendo – como vem cedendo até aqui – a todas as pressões e exigências, que são crescentes, do governo e do Centrão em relação à política econômica, não vejo mais nenhum sentido. Aliás, já não vejo nenhum sentido na continuidade dele há um bom tempo. Ele já se desmoralizou por completo e vai se desmoralizar ainda mais se continuar.

Em algum momento o sr. viu comprometimento do ministro com a agenda liberal que ele propagou?
Ele dizia que ia zerar o déficit primário no primeiro ano do mandato, que ia privatizar R$ 1 trilhão, que ia fazer reforma tributária e reforma administrativa. Não fez nada disso. Foi quase tudo ao contrário. A privatização praticamente não andou. A aprovação da reforma da Previdência ocorreu muito mais por causa do protagonismo do Congresso. O que se montou no Brasil foi quase um estelionato eleitoral, e pode se chamar assim sem exagero. É lamentável que boa parte do empresariado, em nome de evitar Lula a qualquer preço, mais uma vez tenha embarcado em uma aventura que está custando muito caro para o Brasil e que põe em risco a nossa democracia. Não é a primeira vez que vejo esse enredo de que, contra Lula, vale qualquer coisa. Vimos isso na eleição do Collor também.

Recentemente, houve manifestações de empresários contra posicionamentos do presidente. Acha que o empresariado está desembarcando do governo?
Aí tem havido uma certa injustiça, porque os empresários minimamente lúcidos e informados nunca acreditaram nesse engodo chamado Jair Bolsonaro. Outra parte do empresariado que sempre foi chapa branca e oportunista, agora, muito tardiamente, está começando a se dar conta de que nós estamos indo por um caminho muito ruim e que estamos vivendo um enorme retrocesso nas mais diferentes dimensões, que vão da fiscal à ambiental, passando pelo crescimento econômico, pelo ambiente de negócios e praticamente por qualquer outro tema.

O presidente vem perdendo popularidade e querendo ampliar gastos para reverter essa tendência…
Esse ponto talvez valha a pena analisar um pouco. Você tem de um lado a questão da sobrevivência política de curto prazo, que levou Bolsonaro a ficar de joelhos em relação ao Centrão. De outro, tem os hormônios eleitorais e a questão de viabilizar uma campanha de reeleição em 2022. Essas duas forças convergem para uma guinada populista fiscal – a política já aconteceu há um bom tempo. O próximo capítulo é a tradução disso em ações de política econômica: gastos, cargos, preferências, favores que atendam às demandas crescentes desse grupo (o Centrão) que desde sempre faz o jogo da chantagem em relação ao Executivo.

Tenho usado um modelo de biologia política: você tem na estrutura do governo federal brasileiro uma relação entre hospedeiro e parasita. O Executivo federal é o hospedeiro, e o Congresso fisiológico é o parasita. Quando o Executivo é eleito e está com seu capital político intocado, o parasita fica adormecido. Quando há uma crise política e o Executivo começa a perder capital político, o parasita começa a mostrar vida e apresentar suas demandas. Quando o Executivo está acuado, o parasita manda. Ao fim do mandato, se inverteu aquela relação entre hospedeiro e parasita. Agora, um dos requisitos disso é que o parasita não pode matar o hospedeiro. Então, ele vai aumentando as demandas.

Estamos vendo essa dinâmica se repetir no Brasil desde o início da redemocratização. A pergunta para todos nós brasileiros que queremos aprimorar nossa democracia é como é que nós saímos disso para que não se repita novamente esse enredo que é terrível, porque a partir da segunda metade do mandato o Executivo passa a governar com o que há de mais fisiológico e sinistro na política brasileira.

Qual é a saída?
Tem de haver uma reforma política. Não dá para governar com um Congresso tão fragmentado. Nenhum sistema político vai funcionar se nós não tivermos uma estrutura partidária mais enxuta que permita ao Executivo federal governar com base em negociação, porque isso é parte da democracia, mas negociação de programa, e não negociação de troca de favores. Se a gente não tiver apenas quatro ou cinco partidos apenas no Congresso, com posições razoavelmente definidas em relação aos grandes temas da nação e isso não constituir uma base de sustentação programática, vamos ter um sistema político que já estava em xeque antes do descalabro representado pelo desafio institucional do Bolsonaro.

Com o governo com a popularidade em baixa e em meio a uma pandemia, a campanha eleitoral foi antecipada? Qual o risco para a economia?
Esse panorama antecipa a campanha eleitoral e ameaça a ordem institucional da democracia brasileira por dois canais. Um é o enfrentamento entre Poderes. Se você tiver uma situação em que uma decisão de um poder soberano, o Judiciário ou o Legislativo, não for acatada pelo Executivo, você estará no meio de uma crise institucional gravíssima. E nós já caminhamos para a vizinhança de situações desse tipo. O outro canal é o desespero de um poder que está derretendo a olhos vistos levar o presidente a uma tentativa de excitar a opinião pública de modo a provocar uma situação muito anárquica e conflituosa, que lhe dê meios e legitimidade para algum tipo de Estado de emergência, para algum tipo de demanda de poderes extraordinários para estabelecer a ordem. É muito perigoso excitar uma população que está claramente polarizada, porque ela pode descambar para algum tipo de enfrentamento e descontrole da ordem pública, que cairia como uma luva para alguém que tem um impulso autoritário, que nem o esconde.

Qual cenário o sr. está vendo para a economia em 2022?
Não há nenhuma perspectiva de o País ter um crescimento satisfatório no ano que vem. O nível de investimento continua no piso histórico. A capacidade de investimento do setor público está comprometida. Não criamos um ambiente de negócios institucional para infraestrutura. Com essa incerteza política e econômica, nenhum empresário vai querer comprometer recursos em investimento de longo prazo. Então, a gente está caminhando para, depois de uma pequena recuperação cíclica (em 2021), um ano de crescimento baixo, que talvez mal alcance 2%.

E no panorama político?
O presidente já declarou que não aceita outro resultado que não seja sua vitória eleitoral. Ele questiona a legitimidade do sistema eleitoral de antemão, sem nenhuma evidência e não muito diferente do que Trump tentou fazer nos EUA quando, ao ser derrotado, entrou com aquele discurso de que a eleição tinha sido fraudada, sem nenhuma base ou evidência. Isso levou à invasão do Capitólio, e o que se desenha por aqui é um enredo não muito diferente. Espero que tenha o mesmo desfecho de lá.

‘O modelo de capitalismo que desenvolvemos é essencialmente desumano’, por Giles Slade.

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Revista GAMA – Leonardo Neiva – 29/08/2021

Na cidade de Livermore, Califórnia, uma lâmpada vem iluminando a sede do corpo de bombeiros local há 120 anos. O fato é considerado tão impressionante, num mundo de lâmpadas que se queimam em menos de um ano de uso, que o lugar virou até ponto turístico. Num site dedicado ao curioso objeto, é possível inclusive acompanhar sua trajetória em tempo real — vai que você dá sorte, ou azar, de captar o momento histórico em que ele finalmente vai se apagar.
Mais interessado na regra que na exceção, no entanto, o jornalista, escritor e crítico social canadense Giles Slade publicou em 2006 o premiado livro “Made to Break” (feito para quebrar), um dos principais relatos contemporâneos sobre o fenômeno da obsolescência programada. Em linhas gerais, trata-se da estratégia usada por diversas indústrias — mas que é mais latente na área de tecnologia — de criar produtos com um prazo de validade planejado, como forma de garantir que o consumidor terá que retornar para comprar novamente.

Em sua obra, Giles, que é doutor em história cultural, explora desde as raízes bem americanas desse projeto de mercado, que nasceu em produtos como tampas de garrafa, aparelhos de barbear e carros da GM, até seu desenvolvimento ao longo do século 20, desembocando em questões diversas, como a produção de lixo eletrônica em massa e o esfriamento das relações humanas.

Seu interesse pelo tema despertou depois de passar um período lecionando cultura americana em universidades da Ásia e Oriente Médio, tendo voltado para o Canadá após os eventos que se seguiram ao 11 de Setembro. “Você entra numa loja e te empurram todo tipo de coisa. Numa locadora, tentavam te vender uma carteirinha de sócio ou alugar dez filmes em vez de um só.”

Numa sociedade feita para o consumo rápido e imediato, em que durabilidade não é do interesse de ninguém, não espanta a curiosidade despertada por uma simples lâmpada incandescente. Além do fascínio pelo objeto em si, ela demonstra que outros produtos também poderiam ser feitos para durar uma vida inteira. “Na União Soviética, o problema não era produção nem consumo, porque todo mundo queria o que a indústria estatal produzisse. […] Se você tiver um refrigerador soviético, ele vai durar para sempre”, aponta o jornalista.

Em entrevista a Gama, Giles fala sobre como empresas como a Apple têm usado a estratégia para ampliar seus negócios e seus lucros. Também aborda o direito de consertar um produto, algo que vem sendo tirado dos consumidores, além da crescente produção de lixo no mundo e o distanciamento causado pela tecnologia.

Por que as empresas não criam coisas que durem? Isso quebraria nossa economia, como parece ser o pensamento corrente?

Vivemos um modelo de capitalismo baseado no consumo repetitivo. Movemos as engrenagens da indústria ao continuamente produzirmos coisas novas. Os fabricantes enxergam isso como uma forma de ficar muito ricos, fazendo crescer seu poder, influência e seus recursos econômicos e fiscais. Obviamente, é muito fácil criar uma máquina que perdure. O Mars Rover [veículo explorador de Marte], por exemplo, foi pensado para durar três anos. Mas, como não sabiam quais seriam as condições da superfície de Marte, estenderam esse período de forma tremenda. Ele já existe há 20 anos e continua andando. Na União Soviética, o problema não era produção nem consumo, porque todo mundo queria o que a indústria estatal produzisse. Eles não tinham como ampliar suas fábricas para competir com o capitalismo. Se você tiver um refrigerador soviético, ele vai durar para sempre. No Ocidente, a marca registrada de um produto de luxo é que ele dura muito tempo. Coisas como relógios Rolex e carros da Mercedes. Também supostamente a Apple, mas, apesar de você pagar mais pelos produtos, a marca, de forma muito inteligente, vai lá e limita seu aparelho para que seja forçado a comprar um novo. É uma política deliberada e está presente em todos os aspectos da Apple. É como um vício. Eles não vão te dizer como parar de comprar, não faria sentido. E é exatamente assim que a indústria funciona, especialmente a de tecnologia.

No seu livro “Made to Break”, você explora a evolução da obsolescência programada ao longo do século 20. Quando diria que ela começou a ser aplicada pela indústria?

É uma estratégia econômica que ganhou importância na virada do século 19 para o 20, com produtos como tampas de garrafas de Coca-Cola e aparelhos de barbear descartáveis. A ideia era criar produtos que precisassem ser eternamente substituídos. Essa mudança foi possível porque aconteceu uma revolução no tipo de materiais que eram usados. De repente, papel, estanho e aço se tornaram muito mais baratos, porque ficaram mais fáceis de processar.

Acabei de voltar de Cuba, que nos oferece uma perspectiva bem interessante do problema, porque o embargo americano bloqueou o país para a maioria dos mercados do mundo. Não existem novos materiais, carros ou celulares. As pessoas precisam se virar com o que já têm. Os cubanos são muito resilientes e inteligentes ao reciclar tudo, incluindo sua maldita revolução. Voltei para o Canadá um mês atrás e me senti sobrecarregado com todas as opções de consumo. O mercado tem tantos celulares que não sou mais capaz de diferenciar um do outro. A Apple está usando sua posição de poder, influência e monopólio para criar novas formas de lucrar. Então, se o aparelho que você compra custa US$ 1,2 mil dólares, eles ganham US$ 500 em cima disso. Antigamente, você comprava um produto e era seu, podia fazer o que quisesse com ele. Hoje, as marcas enxergam como uma oportunidade de controlar a receita em um pós-mercado. Por isso, o direito de consertar é uma questão tão vital para eles, e é por isso que gastam tanto dinheiro tentando derrubá-la no mundo inteiro.

Que impacto essa estratégia de mercado vem causando no mundo?

Esse impacto acontece em muitas frentes. Nosso fascínio por tecnologia pessoal tem raízes no período em que as pessoas deixaram a Europa e outras partes do planeta e vieram para o Novo Mundo. Cartas, cartões-postais, telefones, gravações, fotografias são coisas que foram permitindo que as pessoas mantivessem contato com seus parentes e entes queridos que moram longe. Só que acabamos desenvolvendo um fascínio e uma dependência desses objetos, a ponto de usá-los como substitutos para interações humanas reais. Como descobrimos neste último ano, com a covid-19, são substitutos vazios. Não liberam no cérebro os mesmos feromônios que a comunicação cara a cara.

Acredito que isso tenha nos tornado mais solitários. Ainda que sejamos consumidores que deveriam ser temidos por grandes corporações, elas podem formar monopólios e influenciar até a legislação que precisamos obedecer. Isso desgastou nossa liberdade e também nossas interações sociais. Hoje, as pessoas preferem mandar um texto ou ligar, porque encontros físicos são vistos como mais frágeis e perigosos do que eram no passado. A pandemia fez as pessoas entenderem que nenhuma soma de dinheiro significa conforto, o que elas precisam é de gente ao redor delas. Então essa é também uma grande oportunidade.

Quais estratégias as empresas usam para impedir que os consumidores consertem seus aparelhos?

O próprio sistema operacional impede interferências. Por isso, uma das principais reivindicações do movimento pelo direito de consertar é o acesso aos manuais e códigos do sistema, assim como aos componentes. A empresa pode argumentar que qualquer provedor de serviço independente é capaz de consertar seu telefone. Mas, infelizmente, só um técnico treinado pela Apple pode realmente efetuar o reparo necessário. Eles obstruem esse movimento porque querem toda a receita pelo conserto de seus aparelhos que, após um certo ponto, são programados para funcionar de forma piorada. Em 2017, houve um processo nos EUA contra a Apple por seu novo sistema iOS. O iPhone 6 deliberadamente ficava mais devagar para encorajar as pessoas a comprarem novos produtos. Essa estratégia obscura acontece em toda a indústria.

Você acredita que o movimento pelo direito de consertar deve mudar esse cenário?

Já está acontecendo. No Brasil, a Apple foi processada porque o novo sistema operacional do iPad 4 torna o anterior obsoleto. No ano anterior, fizeram uma campanha de marketing tremenda para vender todos os iPad 3. Só que, é claro, eles não funcionavam tão bem porque o sistema operacional era para o iPad 4. É algo brilhantemente cínico.

Por que esse problema fica tão evidente no caso da Apple? E como isso nos afeta?

Para começar, não acho que haja nada inerentemente superior em relação a um iPhone hoje. Aparelhos Samsung são tão bons quanto eles. A Samsung aplica o mesmo tipo de política que a Apple, também não querem que você entre nos dispositivos deles. Apesar disso, mais pessoas consertam Samsungs de forma independente do que iPhones. A Apple desenvolveu um parafuso que você não consegue abrir com uma chave de fenda comum. Precisa comprar uma ferramenta especial só para abrir o dispositivo. Programas de fidelidade, obsolescência programada de moda e tecnologia, todas essas coisas incentivam o consumidor a não manter seus produtos, mas sim comprar novos. E nossos relacionamentos interpessoais têm refletido essa relação com as coisas. As próprias pessoas se tornaram mais descartáveis por causa disso. Se um amigo te causa problemas demais, você larga ele ou deixa de responder e arranja outro. Não é algo que acontecia no passado. Nós mudamos, nos tornamos muito mais temporais e temporários.

A sociedade sempre esteve ciente da existência da obsolescência programada? Ou isso é algo recente?

Durante a Grande Depressão, quando as pessoas tinham muito menos dinheiro para gastar, a prática chegou a ser investigada. Mas nos anos 1930, 1940 e 1950, empresas como a General Motors vendiam isso como uma coisa incrível, porque você tinha um produto melhorado todo ano. Um importante livro americano sobre o assunto foi publicado na década de 1960, e as pessoas ficaram ultrajadas. É algo que sempre aconteceu, a mesma coisa que colocar água no vinho. São todas formas de enganar o consumidor. Pode parecer moralista, mas é uma questão moral: que responsabilidade o fabricante tem com você? E que responsabilidade você tem com a marca, uma vez que já pagou pelo produto? Se eu paguei por algo, aquilo é meu, posso fazer o que quiser com ele. A Apple, a Samsung, a Microsoft e várias empresas não pensam da mesma forma. Elas querem mudar o princípio fundamental da propriedade. É a isso que temos que resistir. Porque, assim como a propriedade, o direito à privacidade também pode virar uma questão.

Como sua preocupação com esse problema começou?

Eu estava dando aulas na Arábia Saudita e, quando voltei para a cultura de consumismo do Canadá nos anos 1990, isso realmente me atingiu. Você entra numa loja e te empurram todo tipo de coisa. Numa locadora, tentavam te vender uma carteirinha de sócio ou alugar dez filmes em vez de um só. No restaurante: você quer fazer disso uma refeição completa? Batatas para acompanhar? Algo para beber? E não era só porque estavam tentando ampliar o lucro, mas também porque não eram interações sociais de verdade, mas uma troca econômica. Isso realmente me irritou, porque na Arábia, assim como em países latinos, quando você compra algo, existe uma interação social muito mais calorosa.

Você pode realmente desenvolver uma relação com o vendedor. Isso não acontece na América do Norte, onde você não passa de uma engrenagem no motor. Foi aí que comecei a pensar que nossa atitude sobre coisas materiais afeta nossas relações interpessoais. A perda dessas preocupações sociais nos deixou com uma cultura vazia, materialista, na qual substituímos a felicidade genuína por objetos. Isso também tem a ver com os vícios e outros problemas psicológicos, com nossa profunda insatisfação e a violência social.

A questão da produção de lixo, que tem a ver com a obsolescência programada e se tornou ainda mais urgente na pandemia, deve entrar no foco das atenções?

Com certeza. Nós nos fixamos na imagem histórica da imunização individual porque não tínhamos sido atingidos por uma pandemia. São sete bilhões de pessoas no mundo, que precisam receber duas ou três doses de vacina em seringas descartáveis. Uma quantidade infernal de plástico. Isso sem contar todo o aparato cirúrgico que vai parar no oceano. Nós tínhamos a capacidade de fazer a imunização de forma intramuscular com um aplicador por gás. Existem muitos preconceitos históricos como esse, que causaram enormes desperdícios. Se formos pensar em componentes, por que não temos um smartphone que se desconstrói inteiro e é fácil de consertar? Tiveram essa ideia alguns anos atrás, mas o aparelho foi rapidamente comprado por outra empresa e simplesmente sumiu.

É possível lutar de alguma forma contra essa realidade, já que ela está tão integrada ao mercado e à sociedade?

O problema são essas poderosas corporações multinacionais como a Apple, que tem um lucro anual de US$ 300 bilhões, quase um terço do PIB do Brasil. Então imagine grandes empresas como a Apple, a Microsoft ou o Facebook. Por mais que um governo queira enfrentá-las, elas têm muito dinheiro e poder, além de influência política. É provável que, mesmo que percam ações em alguns casos, continuem fazendo o que fazem hoje, porque são tão poderosas que é muito difícil quebrar seu modelo de negócio atual.

Meu pai tinha uma tendência maior de querer consertar aparelhos digitais do que eu ou minha irmã. Para muita gente, se algo quebra, é hora de trocar. Como é possível mudar essa forma de pensar em toda uma sociedade que cresceu com ela?

O nível de satisfação que as pessoas recebem com uma nova compra tecnológica decaiu substancialmente. O remorso por consumir também tem batido mais forte e mais rapidamente. É vendido para nós que uma camisa branca, óculos de sol, um carro zero vão nos tornar pessoas melhores ou nos ajudar a conquistar uma mulher ou um homem. Existe toda aquela mitologia, mas, no final, não conseguimos nos satisfazer. Se pretendemos continuar sendo humanos, precisamos alterar radicalmente nosso sistema de valores. Senão, empresas como o Facebook vão intensificar essa estratégia, nos induzindo a comprar coisas sem que saibamos. A visão que a indústria tem sobre a humanidade é muito superficial, como se fôssemos um rebanho de ovelhas que precisa ser tosado periodicamente, mas não muito bem alimentado ou cuidado. O modelo de capitalismo que desenvolvemos é essencialmente desumano. Ele está nos destruindo, por causa de todo o lixo que despejamos sobre o planeta, mas também por razões espirituais difíceis de quantificar.

Nesse caso, o que dizer sobre esses cultos que rodeiam marcas como a Apple, com filas enormes na frente das lojas a cada novo lançamento?

Nós nos dissolvemos em tecnologia de forma injustificável. Olhamos para novas tecnologias como uma forma de salvar o futuro de problemas que a própria tecnologia criou. Pensamos que seremos capazes de limpar a atmosfera, produzir menos carbono ou retirar plástico do oceano, porque os investimentos aumentam a cada ano. Só que isso simplesmente não é verdade. Essa realidade está nos danificando e nos mudando. Nossa confiança nela é uma evidência profunda da nossa incapacidade de confiarmos uns nos outros. Preocupações fundamentalmente humanas foram despedaçadas. É uma sociedade muito ampla, com pessoas demais, e não é possível responder por todo mundo, mas também não somos encorajados a fazê-lo. Nosso capital social está sendo destruído.

Que futuro você gostaria e acha que é possível deixar para nossos filhos e netos?

Esse ethos de fazer avançar a indústria capitalista e a máquina de consumo hoje está causando incêndios, inundações, o aumento do nível do mar e o aquecimento global. Isso é resultado do desperdício e da falta de qualquer tipo de responsabilidade pelo lugar onde vivemos. Não vivemos na natureza, vivemos da natureza. Para isso mudar, teria de haver uma revolução de valores. Essa revolução só vai acontecer se houver um colapso social horrível. Essa possibilidade não me parece fora da realidade, especialmente depois desses últimos 16 meses. Algo semelhante à queda do Império Romano é possível, e pode acontecer mais rápido do que a gente imagina. Não quero falar sobre política, mas é só pensar no líder do seu país, que ignora todas as instituições e invariavelmente toma o caminho errado. Isso tem acontecido cada vez mais no mundo. Não estamos mais conectados uns aos outros porque não estamos conectados a nada. Nossa responsabilidade com o próximo é mínima neste momento.

É possível que, nesse caminho que tomamos, não haja mais volta?

Pessoalmente, acho que pode ser tarde demais. Mas parte do foco — além do movimento pelo direito de consertar, que é muito importante — deveria estar em limitar o poder desses monopólios globais, que nos forçam a ser locatários de seus produtos apesar de termos pagado por eles.

Procurada por Gama para comentar a entrevista, a Apple não respondeu até o fechamento da edição.

Desprovida de verdade, a sustentabilidade vira fé ou publicidade, por Rodrigo Tavares .

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Sem auditoria e verificação viveremos na ilusão da esperança ou no pântano da mentira

Rodrigo Tavares Fundador e presidente do Granito Group; professor de Sustainable Finance na Nova School of Business and Economics. Nomeado Young Global Leader pelo Fórum Econômico Mundial, em 2017.

Folha de São Paulo, 18/08/2021

O arquipélago reconhecido recentemente como o destino turístico mais sustentável do mundo fica no meio do Oceano Atlântico, algures entre Portugal e o Canadá. E é exatamente daqui, dos Açores, que escrevo, em tarde azul-clara úmida e com vista para um oceano azul-escuro, por onde passam ritmicamente jamantas e tubarões-baleia. Aqui o termo sustentável é tão onipresente quanto os milhares de vacas malhadas pastando pelas ilhas. No aeroporto também contei pelo menos 3 billboards de empresas de bebidas, imobiliário e hotelaria aludindo aos seus produtos sustentáveis. No jornal Público, o principal diário português, mais dois anúncios de multinacionais com metas de transição carbônica.

Nos Açores, no Brasil e um pouco por todo o mundo ocidental, a sustentabilidade banalizou-se. Empresas e governos fazem fila para anunciar, de forma cada vez mais esverdejante, novos produtos e iniciativas – os sapatos veganos, o suco ético, o carro elétrico, a casa ecológica, o bairro sustentável, a energia solar, a economia circular. Na hierarquia corporativa, ao longo dos anos, o comando deste tema foi passando do diretor de sustentabilidade para o diretor de comunicação, CFO e agora CEO. Falta apenas tentar inserir princípios verdes no Bhagavad Gita e convencer o presidente do Brasil e o novo ocupante do palácio presidencial em Cabul sobre os méritos da igualdade de género ou da sustentabilidade planetária.

A incontinência sustentável seriam boas notícias. Sem hesitação. Mas este novo mundo ético, justo e sustentável não existe. É um metaverso político e corporativo, um espaço onírico compartilhado, criado pela convergência entre a comunicação e a realidade física virtualmente aprimorada. É um espaço onde só há boas notícias. Ânimo e comprometimento. O “alerta vermelho” para a humanidade feito recentemente pelo IPCC não faz parte deste mundo imaginário. É demasiado realista, negativista e emergencial. Nenhum governo respondeu imediatamente com ações ainda mais profundas para evitar o colapso da humanidade.

Por isso, o mundo real da sustentabilidade ou do ESG não poderá crescer e se credibilizar sem auditoria, verificação, monitoramento. Sem verdade, a sustentabilidade vira crença ou propaganda.

Quando explodiu o número de empresas entre a Revolução Industrial e a Primeira Guerra Mundial e começou a se popularizar a figura do acionista, nasceram também as primeiras empresas de auditoria. A verificação de dados financeiros é demandada pela lei inglesa desde 1845 para proteger os acionistas de ações impróprias ou informações errôneas dos diretores das companhias. No final do século 19, nos EUA e no Reino Unido, o livro Auditing: A Practical Manual for Auditor de Lawrence R. Dicksee, publicado originalmente em 1892, já era a principal referência no assunto. Em 1926, mais de 90 porcento das empresas listadas na bolsa de Nova York já eram auditadas.

Quanto começaram a se proliferar as fake news, há cerca de 10 anos, a mídia, a sociedade civil, as empresas, governos e organizações internacionais reagiram com o lançamento de iniciativas, tecnologias ou agências de fact-checking para tentar conter a E. coli da informação. O Brasil tem mais de 10 destas agências (a primeira foi a Lupa, criada em 2015).

Mas não temos visto nada semelhante para combater o greenwashing. As históricas empresas de auditoria do mercado ainda não oferecem este tipo de serviços. E a principal razão é porque não existem regras, normas, regulamentos ou leis que determinem o que é um produto sustentável ou um fundo de investimento ESG, Sem benchmark não há auditoria.

Sejamos mais precisos: na Europa alguns reguladores criaram selos de qualidade ESG de fundos de investimento. A União Europeia também lançou uma taxonomia de atividades econômicas ambientalmente sustentáveis. E empresas como a GreenWatch ou iniciativas acadêmicas como o ClimateBert usam inteligência artificial para comparar declarações pró-ambientais com a pegada de carbono de uma empresa.

Mas estas iniciativas ainda são tangenciais ou aplicáveis apenas a uma geografia. Ainda não existe um sistema global de verificação e accountability. Se uma grande empresa brasileira anunciar informações contábeis falsas para iludir o mercado, será fortemente penalizada. É o mundo da realidade. Se a mesma empresa divulgar informações irrealizáveis na área da sustentabilidade terá espaço na imprensa e o aplauso do mercado. É a realidade virtual.

Banqueiros ostentação, por Marilene Felinto.

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Colunista ostentou arrogância de classe ao defender escolha mais ao centro

Marilene Felinto Escritora e tradutora, autora de “As Mulheres de Tijucopapo”. Mantém o site marilenefelinto.com.br

Folha de São Paulo, 26/08/2021

Não adianta ler jornal a partir da perspectiva da pobreza. Jornal não é feito para pobre (que, de fato, não lê jornal, nem anuncia em jornal). E do que adianta escrever para jornal do ponto de vista da pobreza? Jornal é feito com e para o poder econômico.

Então eis que, com um tema como este, da luta de classes, uma pessoa pode soar como idiota… É provável. Mas eu, idiota, mantenho o tema, como resposta à indignação de uma amiga (que não é pobre, mas está à esquerda em política) que leu nesta Folha um texto de Candido Bracher (em 19/06), que dizia dos “riscos e perspectivas das nossas eleições de 2022”.

Fui ver. Reparei de cara no “nossas”, como se estivéssemos (que leitores?) em pacto social com o banqueiro: com a opulência dos multimilionários, o rentismo improdutivo, a especulação do capital financeiro, o ultraliberalismo econômico que segue esmagando a maioria trabalhadora.

O alerta da amiga era para o desserviço que o colunista prestava ao país —num momento como este, de grave ameaça à democracia—, equiparando Bolsonaro e Lula, embora Bracher não cite esses nomes, e se refira apenas aos “extremos”, comparando a situação política do Brasil com a do Peru, onde saiu vencedor à Presidência, recentemente, o candidato das forças populares, um indígena, contra um direitista.

Bracher falava em “escapar [nas eleições de 2022] à escolha compulsória entre os extremos e defendia adesão a tendências “mais próximas ao centro”. Ora, ninguém mais ao centro do que Lula —que não teria governado sem algum conchavo com a massa parasita e podre do chamado “centrão” político, nascedouro e criadouro da corrupção sistêmica brasileira.

O contorcionismo ideológico do colunista é o modo que ele arranjou para dissimular a verdade (que Lula não é, de forma alguma, igual a Bolsonaro). Num tom algo blasé, com laivos de erudição, ele comemorava no texto sua aposentadoria, após 40 anos de trabalho “gratificante” como executivo de banco.
(Como pode ser gratificante trabalhar para manter o esquema do capital que alimenta a plutocracia concentradora da riqueza do país e eleva exponencialmente a desigualdade?)

Os números há tempos gritam o escândalo: de que 1% da população brasileira detém hoje, sozinha, 50% da riqueza do país. Trata-se do pior nível de concentração de renda desde pelo menos o ano 2000, conforme relatório sobre a riqueza global feito pelo banco Credit Suisse, citado em matéria da CNN: naquele ano, o 1% mais rico era dono de 44,2% das riquezas no Brasil; em 2010 (atenção, governo Lula), esse número havia caído para 40,5%, a menor proporção registrada no período.

Em países de classes dominantes menos indecentes, menos deformadas, como o Japão, por exemplo, o 1% mais rico concentra apenas 18% da riqueza.

A verdade matemática é essa. E a prova dos nove é o lucro dos maiores bancos brasileiros: neste ano, o lucro líquido trimestral desses bancos com ações negociadas em Bolsa, no segundo trimestre, teve alta de 90% em relação ao mesmo período do ano passado.

Ora, o que mais teve aumento tão expressivo no país desde 2020? Os sem-teto, a fome, o gás de cozinha, a carne, a gasolina… Mas, sejamos justos: o colunista não ostentou, em seu texto, as propriedades de luxo que porventura tenha, a ilha, o iate, o helicóptero. Não precisaria ostentar nada disso.

Ostentou a arrogância de sua classe ao defender uma “escolha” mais ao centro (na chamada terceira via), o voto em alguém com a mesma cara branca privilegiada, que mantenha intacto (ou maior) seu capital, seu patrimônio familiar herdado: um tipo João Dória, quem sabe, esse mascarado, esse “Bolsonaro de sapatênis e camisa polo de marca”, como disse um amigo.

Ora, essa tal “terceira via”, como se sabe, não tem interesse em nenhuma reordenação social efetiva, que opere na estrutura mesmo da desigualdade, com redistribuição de riqueza, que elimine a exclusão galopante.

A turma da Faria Lima certamente endossou com entusiasmo o artigo de Bracher. A Faria Lima é uma avenida ostentação de São Paulo, que concentra grandes empreendimentos empresariais e financeiros em prédios inteligentes. Essa turma assinou um “manifesto”, divulgado no dia 5/8 último, em defesa das eleições, pelo fim do “confronto” e pela volta “à normalidade”.

Uma porção de nomes brutais, que dizem compor o “PIB” nacional, alinhou-se na assinatura da tal “carta”. E depois foram dormir tranquilos, com a sensação de dever cumprido, já que também costumam doar uns trocados filantrópicos a uma ou outra fundaçãozinha ou organização da sociedade civil. Mas este é apenas meu ponto de vista, o da pobreza. Não é normal.

Confiança

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Vivemos num momento de grandes alterações estruturais, a pandemia está transformando as relações sociais, os hábitos e os comportamentos mudam rapidamente, exigindo adaptações constantes, as empresas precisam se adaptar a estes novos ambientes, criando novos produtos, bens e mercadorias. Os consumidores sentem intimamente as alterações, o mercado de trabalho exige qualificações e capacitações cotidianas e os governos buscam maior transparência e modernização. Vivemos num momento de incertezas e de instabilidades em ascensão, com medos novos, preocupações crescentes e uma busca constante por confiança e credibilidade, como forma de reconstruir os laços do sistema social e econômico.

Nesta sociedade, a confiança é fundamental para a reconstrução dos laços econômicos, centrais para a consolidação dos espaços políticos e o fortalecimento dos valores sociais, sem confiança os investimentos não se realizam, as estruturas produtivas pouco evoluem e as questões sociais se agravam, criando crises institucionais e conflitos dos agentes sociais, reduzindo os espaços de recuperação econômica.

A sociedade vive um momento de grandes desconfianças, a pandemia gerou graves constrangimentos, milhares de mortes, crise sanitária, desajustes produtivos e uma constante crise política, colocando os setores políticos em conflitos abertos. Sem confiança os setores produtivos postergam investimentos, aumentam o desemprego, falências crescentes, aumento da miséria e da exclusão social, desnudando a desigualdade da sociedade brasileira, exigindo uma atuação rápida e eficiente do Estado Nacional.

A confiança é fundamental para consolidar a recuperação da economia e retomar os investimentos produtivos. Sem confiança os atores nacionais e internacionais tendem a reduzir as exposições na economia nacional e postergando os projetos de investimentos. Num ambiente globalizado, a confiança é o cimento social crucial para a consolidação dos acordos políticos de reconstrução nacional, este cimento social está no cerne dos movimentos de recuperação da autoestima, a atração de investimentos e a geração de novos empregos.

Percebemos o aumento da desconfiança no cenário interno, os atores econômicos desconfiam uns dos outros, os setores buscam seus interesses imediatos, os projetos nacionais são substituídos por interesses individuais e os investimentos se concentram em especulações crescentes, aumentando os ganhos dos rentistas em detrimento da sociedade em geral, degradando a maioria dos trabalhadores e contribuindo para piorar a concentração da renda e piorando as condições de vida da grande massa da coletividade.

Os programas econômicos prescindem de liderança política e projetos nacionais, mostrando para a sociedade os passos que devem ser seguidos como forma de levar a sociedade ao desenvolvimento. Sem liderança política os setores econômicos e produtivos carecem de rumos e direcionamentos, num momento de graves transformações da sociedade internacional é fundamental a construção de confiança entre os poderes institucionais, deixando de lado os conflitos que criam instabilidades, inimizades, postergam os investimentos e levam ao caos econômico.

No ambiente econômico percebemos sinais preocupantes no front fiscal, contas públicas, inflação acelerada, juros em elevação, aumentando a desconfiança dos agentes econômicos, reduzindo investimentos produtivos e postergando a retomada dos indicadores macroeconômicos, com graves prejuízos para o sistema econômico e produtivo. A confiança prescinde de fortes acordos políticos e consensos sociais, dinamizando a democracia e construindo espaços sólidos e consistentes para a recuperação. Sem confiança cultivaremos mais incertezas, instabilidades e uma frágil recuperação econômica, com forte degradação social, fome e exclusão, agravado com a pandemia.

A sociedade brasileira precisa encarar os grandes desafios do mundo contemporânea, escolhendo os caminhos corretos e abandonando subterfúgios que postergam a recuperação da economia. As grandes crises servem como espaço de reconstrução dos laços sociais e de consolidação dos setores produtivos. Sem confiança não teremos recuperação econômica, infelizmente.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 25/08/2021.

Privatizações de empresas estatais.

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Porque privatizações como a dos Correios e das refinarias da Petrobras não tem como dar certo.

A perda dos financiamentos baratos e da sinergia de estatais privatizadas levam a aumentos de custos, de tarifas e resultam em deterioração dos serviços, chama atenção economista

Revista Carta Capital – 20/08/2021.

Em especial as estatais lucrativas, como é o caso dos Correios, ao serem privatizadas deixam de ter o financiamento mais barato do mercado e no caso da venda das refinarias da Petrobras, sobressai a elevação dos custos impostas pela redução da sinergia da companhia, destaca o economista Pedro Paulo Zahluth Bastos, professor do Instituto de Economia da Unicamp, na entrevista abaixo:

CartaCapital: Privatizações como a dos Correios parecem dispensar critérios mínimos de racionalidade antes observados em desestatizações realizadas até mesmo no Brasil. O fato de os Correios serem lucrativos e eficientes como nenhuma organização privada conseguiria ser, com universalização do serviço prestado, parece não ter nenhuma importância, assim como não se dá atenção ao grave risco de desabastecimento de derivados de petróleo representado pela privatização das refinarias da Petrobras, conforme alertou até o próprio TCU. Como classificaria o processo em curso?

Pedro Paulo Zahluth Bastos: Um problema essencial das privatizações, que ficou claro no caso do Reino Unido, é que, em geral, as estatais que podem ser capitalizadas pelo Estado brasileiro, sobretudo quando são lucrativas, têm acesso a um custo de capital muito pequeno. Porque o Estado tem como capitalizá-las, por exemplo, lançando títulos públicos com o juro menor que existe no mercado. Portanto, quando uma empresa é privatizada, além de ela já ter sido amortizada, em geral ela é transferida para um grupo que tem um custo de endividamento muito maior do que o Estado. Então esse custo de endividamento vai implicar necessariamente uma elevação de receitas futuras das empresas, mesmo na suposição de uma mesma taxa de lucro, embora seja comum o grupo privatizador querer uma taxa de lucro maior. Então esse processo vai provocar um aumento do custo para os consumidores.

Outro aspecto é que os investidores privados não vão usar subsídios cruzados, que é a utilização das receitas obtidas com as partes lucrativas atendidas pelas empresas estatais para financiar serviços em áreas onde não há lucratividade, por serem muito distantes.

Com a privatização, o consumidor vai perder tanto por causa da elevação das tarifas quanto porque muitos dos serviços vão ser racionalizados. Em algumas localidades a correspondência ou encomenda não vai ser entregue ou isso será feito com espaçamento muito mais longo, de modo a reduzir os custos para as empresas.

CC: Como analisa a justificativa de que a privatização possibilita reduzir a dívida pública?

PPZB: O argumento de que isso vai abater a dívida pública é ridículo porque se o dinheiro entrar no caixa do governo, e se ele utilizá-lo para comprar títulos de dívida pública no mercado, os agentes que obtiverem esses recursos vão depositá-los no sistema bancário. Isso vai aumentar a liquidez do sistema bancário e jogará os juros para baixo. Para evitar que os juros caiam, o BC vai acabar emitindo títulos da dívida pública, nas chamadas operações compromissadas, consumando uma troca de dívida por dívida. É uma bobagem portanto também do ponto de vista financeiro, pois não produz nenhum tipo de redução da dívida pública.

CC: Qual o efeito no caixa do governo?

PPZB: Quanto ao aumento de recursos em caixa (conta única do Tesouro), não pode ser gasto por conta da Lei do Teto; a intenção declarada é comprar dívida, o que é absurdo por conta do aumento da liquidez. A liquidez e a riqueza que saem do mercado pela compra da estatal voltam pela recompra do título público, O excesso de liquidez é enxugado pelo BC e vira dívida compromissada de novo (ou empréstimo voluntário).

CC: Mas o que explica as atuais privatizações?

PPZB: Só se explicam por um objetivo de transferir recursos, bens, ativos e patrimônio públicos e capacidade de coordenação de políticas públicas por meio de empresas estatais, transferir tudo isso para os grandes investidores privados, financiadores que bancam politicamente a eleição de Jair Bolsonaro e que tem como representante ideológico o ministro da Economia Paulo Guedes.

CC: Qual outro caso exemplifica o problema das privatizações?

PPZB: O mesmo ocorre para as refinarias de petróleo, na verdade para o conjunto de empresas que tinham sinergia com a Petrobras. Além das oito refinarias que já se começou a vender, privatizaram 70 bilhões em ativos com muita sinergia. Ocorre que quando se perde sinergia em uma grande empresa, aumenta-se os custos. No caso das refinarias e outras estruturas, perde-se a sinergia da capacidade de distribuição que uma grande empresa tem. Então isso vai elevar os custos, ao invés de reduzi-los Além de que o custo de financiamento, que no caso de uma empresa como a Petrobras tende a ser muito menor que o de qualquer outra empresa que não tenha o mesmo porte nem o Estado brasileiro na retaguarda, se eleva. Na verdade, isso vai provocar uma elevação de custos que prejudicará os consumidores sem produzir nenhum impacto líquido sobre a dívida pública por causa do mecanismo que eu expliquei.

CC: A tendência é as privatizações continuarem?

PPZB: Se Bolsonaro se reeleger, provavelmente a Petrobras e os bancos públicos serão privatizados. Isso prejudica não só os consumidores pessoas físicas, mas as empresas privadas nacionais, sobretudo as menores, que dependem de crédito dos bancos públicos ou do Bndes e que contam com as encomendas das empresas estatais para eventualmente concorrer e crescer para competir no médio prazo em pé de igualdade com empresas estrangeiras. Esse movimento favorece muito, portanto, os grandes investidores privados e as empresas estrangeiras. É claro que ficam prejudicados ainda os fornecedores e os consumidores locais e também, evidentemente, os trabalhadores. Porque isso vem acompanhado de uma inflação dos derivados de petróleo, da energia elétrica, do gás e de outros preços administrados por conta da retirada de subsídios e da insistência de tratar as empresas, mesmo as estatais, como se fossem corporações privadas sujeitas a regras de maximização do valor das ações, sem nenhum controle dos preços e nenhum objetivo de mais longo prazo para a economia como um todo.

CC: Qual o risco de comprometimento de uma retomada do desenvolvimento em uma economia subtraída de estatais como Correios, Eletrobras, refinarias da Petrobras, BR Distribuidora, entre outras?

PPZB: Eu diria que o risco de comprometimento do desenvolvimento é a dificuldade de você coordenar investimentos que tem de ser feitos, muitas vezes, antes do investimento privado, não só para estimulá-lo como também para criar condições para que o investimento privado se realize na medida em que antes se disponha de infraestrutura ou insumos básicos para que ele não seja barrado por pontos de estrangulamento.

Isso é ainda mais grave por conta das necessidades de conversão energética. Essa conversão para uma transição verde conta em todos os principais países do mundo com grande importância dada à política pública, e o Brasil teria uma vantagem, contando com Eletrobras e Petrobras conjuntamente, para realizar essas políticas orientadas para a conversão verde. Acrescente-se que foi inteiramente desbaratado aquilo que a Petrobras pesquisava nessa direção, depois do golpe de 2016. Por exemplo, parques eólicos no oceano, diferentes formas de produção de hidrogênio, eventualmente até investimentos conjuntos das duas empresas em energia eólica ou solar. Tudo isso, que vai ser fundamental para a indústria e a matriz energética do futuro, e que precisa ser planejado pelo Estado, se coloca em risco diante da questão mais grave da história da humanidade, a possibilidade de extinção associada à mudança climática, por conta dos eventuais ganhos de curto prazo. Os recursos obtidos não são nem para abater da dívida pública, são basicamente para os financiadores do governo Bolsonaro.

Bolsonaro nunca foi o candidato ideal da nova direita, diz cientista política

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Para Camila Rocha, presidente pode se ‘divorciar’ de Paulo Guedes e ideias liberais para se manter no poder

EDUARDO CUCOLO – FOLHA DE SÃO PAULO – 20/08/2021

“Menos Marx, Mais Mises”, publicado neste ano pela cientista política Camila Rocha 37, é resultado do trabalho iniciado em 2015 de pesquisa e entrevistas com diversos expoentes desse grupo.

Em entrevista à Folha, ela afirma que Jair Bolsonaro nunca foi o candidato ideal da nova direita e que o atual presidente não hesitará em abandonar as ideias desse grupo, principalmente na área econômica, se isso aumentar suas chances de reeleição.

Ela também tem realizado pesquisas qualitativas com grupos do que chama de “bolsonarismo popular moderado” e que mostram piora acentuada na imagem do presidente, inclusive com pessoas que já cogitam votar no PT.

A nova direita brasileira
A direita tradicional é aquela que vinha atuando dentro dos parâmetros do pacto democrático de 1988 e também do que se convencionou chamar de presidencialismo de coalizão.

Essa nova direita vem para romper com os limites desse pacto, querendo falar que a Constituição de 1988 já não serviria mais, romper com as ideias que estavam ali e também com o próprio presidencialismo de coalização.

Pensamento econômico da nova direita
Essa nova direita se afirma muito mais abertamente a favor de um radicalismo de livre mercado, que eu e várias pessoas chamamos de ultraliberalismo. E eles fazem isso a partir, principalmente, da releitura de diversas obras, principalmente do economista austríaco Ludwig von Mises.

A defesa desse radicalismo de livre mercado é uma coisa nova no Brasil, combinada, em variados graus, com a defesa de um conservadorismo mais programático. Não que a direita tradicional não fosse conservadora, mas ela era muito mais reativa e muito pouco propositiva.

No Brasil, principalmente a partir da década de 1980, quando a difusão do neoliberalismo ficou mais acentuada, a discussão toda era feita muito mais em coisas como controle da inflação e toda essa questão do tripé macroeconômico.

Essa nova direita vem com um radicalismo de discutir coisas que não eram postas em discussão pelos economistas neoliberais. Educação pública, saúde pública, privatizar determinadas empresas no Brasil era algo que não era posto em discussão ou a discussão era muito ainda obstaculizada por certo consenso de que em certas coisas você não iria mexer. E a nova direita vem para romper com isso.

Conservador nos costumes
Há pessoas, eu diria que é uma minoria no conjunto de forças que compõem essa nova direita, que, ao mesmo tempo que defendem um radicalismo de mercado, também defendem liberalização de substância ilícitas, de aborto, de propriedade intelectual, até de doação de órgãos, tudo isso sem regulação estatal.

A questão Bolsonaro
A formação dessa nova direita antecede em muitos anos a emergência do bolsonarismo. Quando Bolsonaro se torna pré-candidato, uma liderança com apelo popular, ela já está razoavelmente organizada.

Só que a grande dificuldade da nova direita é encontrar lideranças com apelo popular. Aí o Jair Bolsonaro aparece como uma liderança política que tinha um apelo popular muito grande, principalmente surfando na onda do lavajatismo. Na época, ele não tinha sido formalmente acusado de se envolver em esquema de corrupção.

Porque o próprio Bolsonaro passou a sinalizar com a possibilidade de incorporar esse programa da nova direita, e, também para tirar o PT do poder, as pessoas acabaram apoiando [a candidatura]. A indicação de Paulo Guedes para ser ministro também foi fundamental.

Decepção com o governo
Decepcionados talvez não seja o melhor termo, porque Bolsonaro nunca foi o candidato ideal da nova direita. Quando eu estava fazendo a minha pesquisa, as pessoas já reclamavam bastante, inclusive o desprezavam em certo sentido como político. Foi um apoio a contragosto. Esperava-se que, com Guedes, fosse possível avançar no âmbito da economia.

Hoje, de um lado, tem gente que acredita que o governo poderia ter avançado mais nas privatizações, em toda essa agenda. Outros fazem uma leitura mais otimista, de que teve a crise pandêmica no meio disso tudo que atrapalhou, que o governo teve alguns avanços, sim, nessa agenda de reformas econômicas. Talvez não como seria esperado.

Divórcio
Esse casamento entre a nova direita e Bolsonaro sempre foi muito frágil. Bolsonaro e o grupo mais próximo dele na verdade não estão tão interessados nessa defesa do livre mercado. Tanto que por anos ele defendeu a orientação econômica da ditadura militar.

Se ele tiver de fazer uma alteração brusca nesse sentido para se manter no poder, é o que vai fazer. Se tiver de se divorciar de Guedes, vai fazer, como já fez com outros ministros.

O bolsonarismo é um fenômeno diferente disse que eu estou chamando de nova direita. Bolsonaro não é dessa nova direita. É outra coisa, um fenômeno de extrema direita, que muitas pessoas entendem como populista.

Voto no PT
No início, esse grupo [bolsonaristas moderados] tinha muita esperança de que ele fosse fazer muitas mudanças, a economia fosse melhorar. Passada a pandemia, a maioria das pessoas se sente hoje muito decepcionada, em maior ou menor grau, com a atuação do governo e do próprio Bolsonaro.

As pessoas dizem que até poderiam votar nele novamente, mas como uma alternativa menos ruim, principalmente para quem não quer votar no PT de jeito nenhum.

Outras pessoas já estão começando a se afastar e, eventualmente, até cogitando votar no PT. A gente tem notado muito uma tendência, nesse segmento que a gente chama de moderado, de as pessoas irem desembarcando do bolsonarismo.

‘MENOS MARX, MAIS MISES – O LIBERALISMO E A NOVA DIREITA NO BRASIL’
Preço R$ 69,90 (impresso) e R$ 44,90 (ebook)
Autor Camila Rocha
Editora Todavia

Banco Central errou a mão nos juros e Bolsonaro precisa começar a governar, diz Affonso Pastore

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Para ex-presidente do BC, Selic deveria ter sido revista antes para conter a inflação e crescimento fraco em 2022 é inevitável

Douglas Gavras – Folha de São Paulo, 20/08/2021 – SÃO PAULO

Para o ex-presidente do Banco Central Affonso Celso Pastore, o BC errou ao demorar a subir a Selic, o que vai custar uma desaceleração do crescimento no ano que vem, que já é notada nas revisões pessimistas para o PIB (Produto Interno Bruto) de 2022.

Na avaliação do economista, os ataques do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) ao sistema democrático e ministros do Supremo Tribunal Federal só servem para piorar um cenário que já é complicado, afastando investimentos e mergulhando o país em mais insegurança –e o presidente precisa começar a governar.

Ele ressalta que a alta de juros demora de três a seis meses para começar a fazer efeito na atividade econômica, ou seja, o impacto dos aumentos da Selic só vai se dar no ano que vem. “O próximo ano será de crescimento abaixo de 2%, e as pessoas já estão percebendo isso.”

As revisões mais pessimistas dos indicadores, em um momento de avanço da vacinação, mostram que os problemas do país iam além do que a pandemia causou? Isso tem a ver com a política monetária e com o fato de o Banco Central ter ficado atrás da curva. Ele colocou estímulos demais na pandemia. Quando a crise sanitária começou, o Brasil entrou em recessão e era preciso tomar duas medidas. [A primeira era] combater a pandemia para normalizar a mobilidade social. E a segunda coisa era dar duas ordens de estímulos: uma, por meio de crédito, para evitar que as empresas quebrassem e evitar um desemprego maior; e outro estímulo para dar renda para as classes mais baixas. Tudo isso foi feito em 2020. Além disso, o BC reduziu a taxa de juros, como deveria mesmo ter feito e todos os bancos centrais do mundo fizeram.

Além disso, estamos passando por choques de inflação desde que a economia começou a reagir, certo? Conforme a economia foi se recuperando, começamos a ter choques inflacionários. O primeiro deles veio do câmbio, que gerou aumento de alimentos, junto com uma alta do preço das commodities. Quando se tem um choque, não dá para ir contra ele, mas acomodar a política monetária a uma nova realidade. É preciso calibrar a taxa de juros para cima, para evitar que isso se propague para outros bens. Então, veio um segundo choque, que atingiu os preços administrados. O preço do petróleo subiu, o do gás também. O BC acomoda esse choque e calibra os juros.

Depois, veio um terceiro choque, nas cadeias de suprimento. Não adianta dar estímulo monetário para as pessoas comprarem mais automóveis, se você não consegue aumentar a produção por não ter a parte eletrônica, que não pode ser produzida pela falta de oferta de semicondutores. Com o estímulo, as pessoas querem comprar automóveis e não há veículos para entregar, isso tem o efeito de aumento de preços.

Estamos sofrendo os efeitos da desorganização das cadeias de produção? Os dados de confiança da indústria que a FGV [Fundação Getulio Vargas] capta mostram que a produção está sendo limitada por falta de matéria-prima. A pandemia produziu o rompimento de cadeias de suprimentos no mundo inteiro. O BC só resolveu subir os juros agora, depois que a inflação já deu 9% ao ano. Ele desancorou as expectativas, aumenta a inércia inflacionária e ele é obrigado a subir o juro real de mercado acima do juro neutro. Em vez de crescer, acaba reduzindo o PIB [Produto Interno Bruto]. Quando chegamos neste estágio, somos obrigado a reduzir o crescimento econômico. Tudo isso tem a ver com um erro de política monetária e com um erro de política fiscal. Já está determinado, não tem o que fazer, agora é aguentar as consequências.

Isso é um reflexo da política do Banco Central? Quem está tomando a atitude de reduzir o crescimento é o Brasil e ele está fazendo isso por ter ficado sem alternativa. Ele se preocupou demais com a atividade econômica durante a pandemia, não com a meta de inflação. E agora ele vai ter de produzir uma desaceleração de crescimento do PIB.

Acontece que a defasagem de política monetária é longa e ainda não chegamos acima dos juros neutros [estimados hoje em 6,5% ao ano], deve atingir isso no fim desse ciclo de alta dos juros. Isso demora de três a seis meses para começar a fazer efeito na atividade econômica, ou seja, esse efeito só vai se dar no ano que vem. O ano que vem será de crescimento abaixo de 2%, e as pessoas já estão percebendo isso e revendo o crescimento.

Esse clima ruim já é um reflexo do aumento de gastos com a aproximação da eleição do ano que vem? O câmbio no Brasil depreciou mais do que em outros países e mesmo quando aumentou, a valorização foi menor do que em países.

Isso é um prêmio de risco que vem do risco fiscal. Há uns quatro meses, quando a inflação começou a subir, ela fez aumentar o PIB nominal. Quando sobem os preços, aumenta a arrecadação e reduziu o deficit primário. O lado fiscal melhorou, por ter inflação. Vamos chegar no fim do ano com a dívida/PIB entre 81% e 83% do PIB, um patamar muito menor do que se imaginava no começo do ano.

A inflação causou uma falsa sensação de que a questão fiscal estava encaminhada? Em um certo momento, as pessoas olharam e acharam que o risco fiscal tinha caído. Agora, elas percebem que isso derivou da inflação. É como uma maré que subiu, com a inflação, e agora baixou —e agora a gente consegue ver quem estava nadando sem calção. No ano que vem, tem uma eleição e o governo não tem espaço no teto. Existe uma probabilidade de que o governo aumente gastos para ganhar a eleição, já que a economia vai estar crescendo pouco e temos um desemprego ainda alto e que não vai cair tão cedo.

As pessoas que julgavam que a valorização do câmbio poderia ajudar a inflação a cair agora estão vendo que tem um risco razoável de mais gastos públicos no ano que vem, o que reforça a ideia de que o BC vai ter de manter os juros reais altos e que o crescimento do ano que vem será menor.

A folga no teto de gastos, com a inflação mais alta, para a área social também é menor do que se imaginava? A folga se dá da seguinte forma: o teto deste ano é corrigido pela inflação de junho, para gerar o teto do ano que vem. A inflação foi de 8,3%. Todo mundo ficou contente, com uma folga estimada em R$ 120 bilhões. Mas acontece que os gastos sociais também são corrigidos pela inflação, mas não pelo índice de junho e nem pelo IPCA [Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo, considerado a inflação oficial]. Os gastos sociais são corrigidos pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor, o INPC, de dezembro, e todas as projeções são de que ele deve ficar em torno de 7,5%.

Quando se corrigir os gastos sociais, aquela projeção de R$ 120 bilhões de folga virarão R$ 30 bilhões. O governo agora tenta aprovar uma PEC dos precatórios, que joga um pedaço de gastos para reabrir uma folga no teto, que não é grande, mas tem de acomodar os gastos com o novo Bolsa Família que o governo nem divulgou quanto vai custar. A confiança no governo caiu e o risco vai aparecendo –a taxa de juros longos já está refletindo isso.

A crise política provocada pelos ataques do presidente Jair Bolsonaro ao sistema eleitoral e a investida contra ministros do Supremo pode atrapalhar ainda mais o crescimento da economia? Ele está provocando uma crise institucional, que obviamente aumenta os riscos e ficamos com um ambiente de negócios que não estimula investimentos e piora o quadro atual, que já é difícil.

E tem alguma coisa que o governo poderia fazer para melhorar o crescimento no ano que vem? Sim, começar a governar. Se eles começarem a governar, as coisas melhoram. Mas se continuarem criando esses confrontos desnecessários, contra as instituições, a começar pelo presidente da República, que é o maior iludido com regimes autoritários, não tem como dar certo.

RAIO-X
AFFONSO CELSO PASTORE, 82
Formado economia pela Universidade de São Paulo, foi assessor do secretário da Fazenda do Estado de São Paulo e presidente do Banco Central. Hoje é consultor na Pastore & Associados.

Ciência e Tecnologia

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Numa sociedade marcada por grandes transformações tecnológicas, percebemos que as alterações recentes estão gerando grandes oportunidades e desafios, neste ambiente, os investimentos em ciência e tecnologia ganham espaços nas economias como forma de melhorar os indicadores sociais e o bem-estar da coletividade. Os investimentos em ciência e tecnologia são cruciais para aumentar a autonomia e a soberania nacionais, num momento de conflitos geopolíticos, econômicos e financeiros.

Ao analisar os países desenvolvidos percebemos fortes investimentos pregressos em capital humano, pesquisa, ciência e tecnologia, melhorando as estruturas produtivas, aumentando a produtividade e incrementando o bem-estar da população. Os países subdesenvolvidos ou periféricos, carecem de investimentos em capital humano, com isso, constroem sociedades atrasadas socialmente e frágeis estruturas econômicas, perpetuando atraso e degradações.

Os investimentos em ciência e tecnologia, centrados em inovação exigem a construção de consensos sociais e políticos, colocando os investimentos produtivos, tanto público quanto privado, em ascensão, estimulando a produção científica das universidades, das faculdades e dos centros de pesquisas, agentes centrais do desenvolvimento de novas tecnologias, contribuindo para a capacitação dos setores produtivos para a competição da contemporaneidade.

Os países que se desenvolveram economicamente conseguiram alçar novos degraus tecnológicos, construíram sólidos espaços de inovação e fortes instrumentos de fomento a ciência e a tecnologia, onde destacamos os países asiáticos, que conseguiram angariar novas posições na concorrência global, construindo indústrias de ponta e desenvolveram novos modelos de negócios que revolucionaram o cenário global, levando estes países para o centro das inovações globais.

As inovações foram motivadas por fortes e consistentes projetos nacionais, centrados em planejamento, com políticas efetivas de inovação, cobranças por retornos no longo prazo, financiamento fartos e taxas de juros baixas, compras governamentais, proteção de setores estratégicos e fortes investimentos em educação, desde as tenras idades até as universidades, construindo centros de pesquisas e laboratórios de inovação e de empreendedorismo, criando um ambiente de cooperação entre os setores privados e os órgãos governamentais.

Os investimentos em educação geram grandes retornos econômicos e sociais para a coletividade, exigindo um direcionamento da sociedade para a construção de setores produtivos dinâmicos, eficientes e flexíveis, garantindo a atração de profissionais de alta qualificação, garantindo salários elevados e estímulos crescentes para o mercado consumidor.

Sabemos que os investimentos em inovação são altamente arriscados e são marcados por grandes riscos. Os recursos são vultosos e as perdas são imensas, os países que conseguiram construir grandes setores produtivos tiveram altas perdas na caminhada, mas conseguiram construir novos empreendedores, novos modelos de negócios e lucros extraordinários. Uma das empresas mais admiradas da sociedade global, a norte-americana Apple, foi construída não apenas pela genialidade de seu criador, mas contou por investimentos vultosos do governo dos Estados Unidos, além de pesquisas desenvolvidas pelas forças armadas e pelos órgãos de pesquisas oficiais. Diante disso, percebemos que a inovação é um investimento de longo prazo, cujos recursos iniciais foram iniciados pelos governos nacionais, sem estes, estas tecnologias dificilmente existiriam.

Na contramão dos países desenvolvidos, que construíram uma ampla discussão política entre os atores econômicos e produtivos, o Brasil materializa seu atraso no ranking internacional da educação, das ciências e das tecnologias. Na ausência de estratégias claras e eficientes, sem planejamento e coordenação do Estado Nacional, estamos condenando o futuro do país a ser uma economia exportadora de produtos agrícolas e extrativos de baixo valor agregado. Estamos rifando o futuro do país e perpetuando a subserviência econômica e política de outras nações que, anteriormente, conseguiram investir em inovação e passaram a dominar as cadeias globais de tecnologia.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno de Economia, 18/08/2021.

Ensino híbrido não vai resolver um ano e meio sem escola, diz professor brasileiro de Columbia

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Para Paulo Blikstein, pandemia trouxe uma ideia “messiânica” sobre tecnologia na educação e é preciso se preocupar com empresas tendo acesso a notas e outros dados de alunos. Ele diz ainda que o foco do ensino tem que continuar no professor

Paulo Blikstein professor da Universidade Columbia

Renata Cafardo – O Estado de São Paulo, 15/08/2021

Apesar de dedicar toda a sua carreira à pesquisa do uso da tecnologia na educação, Paulo Blikstein acha que a lição da pandemia é valorizar mais o professor. Não que o especialista em Educação e Ciência da Computação da Universidade Columbia, em Nova York, defenda crianças em bolhas analógicas. “A tecnologia é uma ferramenta muito poderosa de criação, de motivação, de empoderamento”, explica ele, que é o criador do primeiro programa acadêmico de educação maker do mundo, o FabLearn. “Mas não adianta pegar uma aula tradicional, que o aluno já não gosta muito, e colocar isso numa telinha de celular de 10 centímetros”.

Ele está convencido de que não existe mais a discussão sobre se a tecnologia vai estar na escola e, sim, como. E a resposta são vídeos que as crianças possam fazer com celular sobre problemas da sua comunidade, fotos da vegetação da região, entrevistas com a família, projetos de robótica e programação. “Tem essa coisa messiânica de o ensino híbrido vai nos salvar, que vai recuperar um ano e meio fora da escola. O que vai realmente recuperar é o contato dos alunos com professores, a ressocialização na escola”, diz ele, que assina um relatório sobre o assunto feito para uma parceria entre o grupo D3e, Todos Pela Educação e laboratório Transformative Learning Technology, de Columbia.

Blikstein diz ainda se preocupar com a segurança dos dados dos estudantes, já que grandes empresas de tecnologia entraram em massa nas escolas durante a pandemia, sem legislação no País. “Imagina se tivesse um sujeito da empresa X sentado em cada sala de aula, anotando tudo o que acontece com as crianças, tirando foto delas, vendo suas notas, seria um escândalo. Mas como é tudo pelo computador, a gente acha que tudo bem.”

Com a volta às aulas neste segundo semestre, a tecnologia vai estar cada vez mais presente na escola?
No Brasil, alunos de escolas particulares e de algumas regiões voltam em situação melhor, por estarem em situação de privilégio, tiveram aprendizado diferente com pais, família e internet. Mas tem um contingente muito grande de crianças em situação diferente. Sem condições de conectividade, sem um lugar pra estudar, não tinham quarto, uma mesa, computador, estavam assistindo aulas em condições precárias. Eles voltam não só tendo perdido o ano como esquecido muitas coisas e até com experiências traumáticas. São necessárias políticas públicas bem planejadas e realistas para recuperar. Vejo muito essa visão messiânica, milagrosa, dizendo que a gente vai usar o ensino híbrido para recuperar perdas de um ano e meio. Não tem tecnologia nenhuma que vai recuperar estar longe da escola.

E, sim, o contato dos alunos com professores, a ressocialização na escola. Se for a criança da escola particular, um ou dois dias em casa, estudando no computador, no quarto, com os pais ajudando, talvez até funcione. Mas a gente está falando de um país de desigualdades gigantescas. Achar que uma criança de uma comunidade de baixa renda vai ficar três dias por semana em casa, calmamente, sentada num lugar estudando, é completamente fora da realidade.

O ensino híbrido não funciona?
O ensino híbrido virou uma jabuticaba, ninguém sabe definir e as pessoas estão fazendo uma grande confusão. Tem algumas modalidades híbridas de educação que funcionam, por exemplo, fazer projetos na sua comunidade, na sua casa, trazer dados de fora para a escola, assistir um vídeo ou até uma aula numa quantidade em torno de 10% do tempo da presencial. O dia em casa é pra fazer projetos, coletar dados, não pra ficar assistindo aula em casa. Entrevistar pessoas na sua casa ou pelo zoom, fazer projetos em casa. Se for um ensino criativo e híbrido, tudo bem, mas se for mais do mesmo, um pouco online e outro na sala de aula, não tem sentido nenhum. Infelizmente tem muita conversa de ensino híbrido que é só fazer mais do mesmo, mas um pouco mais virtual. Acho complicado confiar tanto na tecnologia sem ter evidência de que funciona. Essas soluções funcionam quando são guiadas pelo professor.

Qual seria a saída para essas crianças então, se todas ainda não puderem estar na escola todos os dias por causa dos protocolos?
Deveríamos estar pensando em fazer projetos, vamos pedir para a criança usar o celular para tirar fotos da comunidade, fazer um vídeo dos problemas, tirar foto da vegetação da região, fazer um filme sobre os pratos que sua família cozinha, fazer projetos com tecnologia, usando várias mídias, projetos interessantes pra criança, que dialoguem com a vida dela, dos familiares. Nas redes sociais, em vez de postar memes, postar uma entrevista com o avô, um vídeo sobre o córrego da comunidade, o trânsito? Há mil possibilidades de uma educação mais relevante, que também usa tecnologia e está pouco aproveitada. Ao contrário, o que se está fazendo é pegar a aula tradicional, que o aluno já não gosta muito, e colocar numa telinha de 10 centímetros do celular. Mandar o aluno ficar horas vendo isso e depois fazer um monte de exercícios é pedir para ele se desmotivar, sair da escola.

Em seu relatório mais recente você fala justamente disso: que não se discute mais se a tecnologia vai estar na escola, mas, sim, como. É disso que está falando?
Sim. Antigamente, o computador entrava na escola quando o governo falava que ia fazer salas de informática, o governo tinha esse monopólio de colocar a tecnologia, hoje ela já está na escola, ou por alunos que já têm celular ou por empresas que fazem projetos com escolas. Não é mais o “se”, não tem mais sentido criar uma bolha e dizer: aqui não entra tecnologia, é só livro, papel e caneta. Mas tem que pensar no “como”. Os alunos têm celular, então vamos mandar fazer pesquisas de campo. Também não pode dar tablet para as crianças e esperar um milagre. Tem que ter currículos que vão usar isso de forma interessante, não é pra ler PDF ou fazer prova de múltipla escolha no tablet em vez do papel, que é a mesma coisa, mas com verniz digital.

Mas os professores muitas vezes não têm formação para isso.

A gente não pode colocar nas costas do professor e professora a responsabilidade de saber usar a tecnologia de uma forma interessante, mas as redes precisam criar estrutura para dar suporte a eles. Tem redes que criaram equipes de tecnologia pedagógica, não é o cara da TI, é uma pessoa que entende de redesenho curricular com tecnologia. Em Sobral, colocaram um professor a mais por escola, que senta com o professor e ensina a transformar a unidade curricular com tecnologia. Aí ele dá uma aula de biologia, usando robótica, programação. O professor contribui com a experiência que ele tem de sala de aula e o novo professor, de tecnologia, com ideias de como fazer aquilo mais interessante. Claro que tem custo. Mas acho melhor contratar um professor a mais por escola do que comprar 30 lousas eletrônicas que ninguém vai saber usar.

E as crianças precisam ter computador para fazer essas novas aulas?
Num país como o Brasil não se pode esperar que toda criança vai ter um celular com internet ilimitada. Então, assim como o Estado provê carteira, livro, mesa, ele tem que prover acesso à internet e aos dispositivos. Celular e tablet não são a melhor forma, não tem teclado, a tela é pequena. Tem que ter salas para as crianças usarem computadores, laptops que podem ser compartilhados. Tem que encarar esses materiais como básicos. Há computadores de baixo custo. A USP tem um projeto que produz um computador de 40 dólares, sem monitor, que funciona para as coisas básicas de educação. Há várias soluções para universalizar o acesso que não são comprando um Macbook para 1 milhão de crianças.

Na pandemia, empresas como o Google entraram fortemente nas escolas. O que acha disso?
Sem citar nomes, é muito preocupante elas entrarem sem um referencial de legislação. É claro que tinha uma emergência e que bom que muitas ajudaram, forneceram gratuitamente, mas quando começa a se tornar permanente é difícil. É preciso pensar sobre a proteção dos dados das crianças, onde eles estão, os pais podem requisitar, apagar, o que acontece se a empresa for vendida? A gente não tem nada equacionado. Esses dados estão sendo fornecidos para essas empresas sem que os pais e as redes de ensino tenham controle nenhum disso. Imagina se tivesse um sujeito da empresa X sentado em cada sala de aula anotando tudo o que acontece com as crianças, tirando foto delas, anotando se elas estão estressadas, vendo suas notas, seria um escândalo. Mas como é tudo pelo computador, a gente acha que tudo bem. Há uma tentativa de mistificar a tecnologia, como se ela fosse claramente benéfica e transformadora.

Além dos dados, há outros benefícios para as empresas.
Sim. Tem uma base de usuários de graça, faz uma geração de crianças que usam a ferramenta X da empresa X, com benefícios financeiros a longo prazo. É um oportunismo na pandemia. Claro que as empresas ajudam, não é para acabar com tudo, mas isso tem que ser regulado. Tem empresa que chegou nas prefeituras e deu produto de graça, não precisa de concorrência. Há também questões ligadas ao Estatuto da Criança e do Adolescente, da publicidade infantil.

Escolas com logotipo da empresa pintado na escola, nos materiais online. Como não pode ter na escola propaganda de um brinquedo, isso também não pode. Existe um discurso de falar que professor é tudo velho, o computador é muito mais personalizado, mas o professor é muito mais personalizado que um vídeo, que uma aula digital. Falam em educação 4.0, híbrida, tudo é uma cortina de fumaça para as pessoas engolirem essa presença das empresas sem controle.

Tem também o outro lado, dos pais que agora não querem mais nada de tecnologia na escola pelo tempo que o filho passou usando.

Tem o tipo de tecnologia que tem que ser controlado, quando a criança fica jogando, vendo vídeo, sendo sugado pelas telas, que foram desenhadas com esse objetivo. Ou as redes sociais, que realmente são coisas que até os adultos têm problemas em se controlar. Eu não acho que a criança tem que ir pra escola e ficar na frente de um computador, mas tem um outro tipo de tecnologia. Como ir ao laboratório de ciência e usar um computador para fazer o experimento, colocar os dados, fazer um projeto de robótica, de ativismo digital, de arte interativa. A tecnologia como matéria prima para construir coisas. É um uso muito diferente, instrumental, que não é esse viciante que a gente conhece.

Essa ideia de colocar a criança numa bolha sem tecnologia é um problema, é você tirar dela uma ferramenta muito poderosa de criação.

O que fica de lição da pandemia para a tecnologia?
O que fica de lição é, primeiro, tem que levar a sério essa desigualdade de conectividade e acesso. A escola não tinha internet, mas isso nunca tinha sido posto à prova. É uma lição de casa enorme conseguir oferecer para as crianças o mesmo ponto de partida. Mas também mostrou para algumas empresas que achavam que as crianças iam ficar em casa e aprender no seu próprio ritmo…isso foi um desastre. A gente não quer esse mundo dos utopistas da tecnologia, a gente quer o mundo que as crianças vão pra escola, se sujem e convivam, aprendam de outras pessoas, conversem com outras crianças. A escola não é só lugar de aprender o conteúdo, mas de ser cidadão, ser gente, ser amigo, todas essas coisas que se achava que era secundário. Outra lição é como é importante investir no professor.

Nos sistemas em que a tecnologia na educação funciona melhor, ela sempre funciona como ferramenta que é colocada na mão do professor. É algo como o médico usa a tecnologia, ele tem que saber medicina, mas às vezes ele usa uma máquina pra fazer raio x, ressonância, mas o médico tá no controle.