Ideológicos e corruptos, por Sílvio Almeida

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Negacionistas, corruptos e fundamentalistas de mercado jogam no mesmo time

Silvio Almeida Professor da Fundação Getulio Vargas e do Mackenzie e presidente do Instituto Luiz Gama.

Folha de São Paulo, 23/-7/2021

Documentos obtidos pela CPI da Covid demonstram que o Ministério da Economia teve participação fundamental no atraso na compra de vacinas e, consequentemente, na tragédia criminosa que resultou, até o momento, em mais de 540 mil mortes. Segundo apuração de William Castanho, Mateus Vargas e Bernardo Caram, na Folha, a compra de vacinas da Pfizer teria sido atrasada por “negacionismo” e “preocupação com o risco fiscal” por parte do ministério.

Outra matéria, da Folha, de 12 julho deste ano, noticiou que a Secretaria de Política Econômica – órgão ligado ao Ministério da Economia -, em vez de recomendar a vacinação, apostava na chamada “imunidade de rebanho”, ou seja, na contaminação massiva da população com vistas a uma espécie de “imunidade natural” contra o coronavírus.

Essa solução vislumbrada pelo Ministério da Economia, por óbvio, ignora a ciência, a quantidade de mortes, as possíveis sequelas aos sobreviventes e a pressão sobre o sistema de saúde.

Essas duas revelações feitas pela CPI da Covid não apenas servem para expor a condução genocida da pandemia por parte do governo federal, mas também nos apresenta como se dá a relação entre política, economia e ideologia em nosso tempo. Sobre essa relação é possível retirar duas lições importantes.

A primeira é a de que não existe oposição entre uma “ala racional” e uma “ala ideológica” no governo Bolsonaro.

Todos estão em profunda sintonia. Os supostos “técnicos” e “estudiosos” do governo são movidos por ideologia e repudiam todas as ideias que contrariem sua fé cega no mercado, na meritocracia e no Estado mínimo. Aliás, o Estado —com exceção do que reprime trabalhadores e minorias— se torna a projeção do mal que deve ser contido a qualquer preço, ainda que isso implique na morte de centenas de milhares de pessoas.

Por sua vez, os “ideológicos” não se distanciam das premissas racionais que movem os “técnicos”. Mais do que deixar as hostes bolsonaristas em constante prontidão, a sustentação de uma pauta de costumes e a suposta defesa da família feitas pela ala ideológica concorrem para naturalizar a deterioração da esfera pública e para colocar nas costas dos indivíduos a culpa pela pobreza e, agora, pela doença. Em comum, tem-se o fato de que ninguém aqui respeita verdadeiramente a ciência.

A segunda lição é de que corrupção e ideologia não se excluem e, na maioria das vezes, são faces da mesma moeda. A imposição de dificuldades na compra das vacinas em nome do equilíbrio fiscal e a consideração da imunidade de rebanho como alternativa denotam que há aqueles que acreditam que a vida é uma grande concorrência, em que somente os mais fortes sobrevivem.

É mais ou menos assim: se você está desempregado e passando dificuldades, é porque não é empreendedor o suficiente; se faliu, é porque não soube administrar seu negócio; se ficou doente, a culpa é sua já que não fez o “tratamento precoce”.

Na história do pensamento, ideias deste tipo ficaram conhecidas como “darwinismo social”, embora muito pouco ou nada tenham a ver com as teorias de Darwin sobre a evolução das espécies. Na verdade, tais teorias são de Herbert Spencer, sociólogo inglês que se opunha firmemente à intervenção estatal e às teorias reformistas de liberais como Jeremy Bentham.

A defesa da imunidade de rebanho, em vez da vacinação em massa, é perfeitamente adequada ao pensamento de Spencer, segundo o qual “uma criatura que não é suficientemente enérgica para se bastar deve perecer”.

A visão da sociedade como um espaço de permanente concorrência e de luta pela vida, em que cada um se vira como pode, abre espaço para a corrupção uma vez que a fragilização da administração pública e o afastamento de mecanismos de controle social fazem com que interesses particulares se sobreponham às necessidades da população. No fim, corruptos e ideológicos jogam no mesmo time: o da destruição do Brasil.

República dos acionistas, por Tabata Amaral.

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Para um país justo e desenvolvido, precisamos rever a isenção dos dividendos e acabar com as distorções do sistema tributário

Tabata Amaral, Cientista política, astrofísica e deputada federal por São Paulo. Formada em Harvard, criou o Mapa Educação e é cofundadora do Movimento Acredito.

Folha de São Paulo, 24/07/2021

Em 2020, a maior declaração feita por um brasileiro à Receita Federal foi de R$ 1,4 bilhão. No entanto, R$ 1,3 bilhão dessa renda não foi tributado. Isso porque, enquanto o 1% mais rico tem grande parte de sua renda isenta, a isenção para os outros 99% é de apenas 25%.

As diferentes taxas cobradas de proprietários de imóveis deixam evidentes essa distorção. Quem declara o aluguel de um apartamento pode pagar até 27,5% de impostos, enquanto quem tem alguns imóveis em uma empresa de lucro presumido paga menos da metade desse valor. O maior absurdo, no entanto, é que aqueles que têm seus muitos imóveis em um Fundo de Investimento Imobiliário têm isenção completa.

O nosso sistema tributário é extremamente injusto, e buscar apenas a sua simplificação, apesar de importante para o nosso desenvolvimento econômico, é ignorar a raiz do problema. Precisamos também garantir uma maior progressividade.

Uma das principais distorções do nosso sistema é a isenção de lucros e dividendos distribuídos, regra que coloca o Brasil na contramão do mundo —entre os países da OCDE, somente a Letônia tem essa isenção. Por isso, o governo acerta ao propor uma revisão dessa isenção, mas, novamente, erra na forma.

A proposta do governo é isentar os primeiros R$ 20 mil mensais de pequenos negócios, o que continuaria incentivando a “pejotização”, com profissionais contratados constituindo empresas para escapar de encargos trabalhistas. Além disso, essa proposta não vem acompanhada de uma redução proporcional do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica nem da correção de suas distorções, medidas estas que contribuiriam para um maior investimento na geração de empregos e em inovação. Precisamos enfrentar o nosso sistema regressivo sem onerar ainda mais o setor produtivo, especialmente em um momento de grave crise econômica.

Eu e o deputado Felipe Rigoni apresentamos uma emenda à PEC 45/2019, do deputado Baleia Rossi, durante a sua discussão no Congresso, propondo justamente a tributação de lucros e dividendos de acordo com a tabela de alíquotas do Imposto de Renda de Pessoa Física. Defendemos ainda a tributação de embarcações e jatinhos —que hoje não pagam IPVA—, o aumento do imposto sobre herança e a devolução do imposto sobre consumo à população de baixa renda.

Não há como alcançarmos o objetivo de sermos um país socialmente justo e economicamente desenvolvido sem que os mais ricos abram mão de seus privilégios, quer queiram, quer não. Essa é a visão que deve guiar a construção de qualquer reforma tributária. Pode não ser o caminho mais fácil, mas é o certo.

Oportunidades perdidas

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A sociedade internacional vem vivendo momentos de grandes transformações com impactos generalizados, o crescimento da tecnologia, mudanças no mundo do trabalho, novos modelos de negócios, instabilidades nas cadeias produtivas com reflexos imediatos sobre os preços e perspectivas de inflação. Neste ambiente, cabe a sociedade se capacitar para compreender as novas oportunidades e os desafios que se abrem para a economia nacional, com isso, se capacitar para que as oportunidades abertas no cenário global possam ser aproveitadas, angariando espaços de crescimento econômico.

Neste ambiente, os consensos internacionais estão se materializando em políticas públicas efetivas para reduzir as desigualdades crescentes em todas as regiões, não mais entre os países, como anteriormente, mas dentro dos países, desde os países pobres como os países mais ricos. Neste momento, a pandemia está gerando novos consensos globais, a sociedade brasileira precisa se aproveitar das discussões, de forma clara e efetiva, para minorar as variadas desigualdades, que fragilizam e limitam os potenciais de desenvolvimento econômico.

Neste momento, a sociedade brasileira precisa reconstruir os instrumentos de combate à pobreza e a exclusão social, criando políticas públicas eficientes de transferências de recursos para os grupos mais fragilizados, tributando grupos que pagam menos impostos, que usam brechas legais e subsídios conquistados de forma inusual, angariando recursos contribuirão para a redução das desigualdades de riquezas e de rendas. Na condição brasileira, percebendo um fosso enorme entre os grupos sociais, criando um antagonismo crescente, gerando desagregações e conflitos generalizados, inviabilizando a governabilidade e levando a retrocessos constantes.

Vivemos um momento de escolhas limitadas, mas cruciais, neste instante precisamos construir novos consensos políticos e econômicos, construindo espaços de negociações internacionais, priorizando os interesses nacionais, estimulando os setores que gerem novos investimentos produtivos e a geração de empregos. Na sociedade internacional, todos os países e as empresas transnacionais buscam seus interesses imediatos, angariando investimentos e visando seus interesses nacionais. No caso brasileiro, precisamos buscar os nossos interesses nacionais, construindo espaços de consenso entre as elites econômicas e financeiras, priorizando os investimentos que aumentem a capacidade produtiva da economia, a geração de empregos qualificados e a capacitação dos trabalhadores, melhorando o mercado interno e transformando-o como o grande motor de crescimento da economia e beneficiando todos os grupos sociais, reduzindo as desigualdades e investimentos maciços em capital humano.

As oportunidades abertas na sociedade internacional neste momento de pandemia precisam ser mais encaradas com maior planejamento estratégico e profissionalismo, estudando as políticas de desenvolvimento de países que conseguiram entender as bases do crescimento econômico, onde destacamos os países asiáticos e as políticas adotadas pelos Estados Unidos, vide os fortes investimentos na indústria bélica e nas políticas de inovação e proteção de seus interesses nacionais, como estamos percebendo nos conflitos com os chineses em torno da indústria 5G e da indústria de semicondutores.

A sociedade brasileira construiu, com o passar dos tempos, setores importantes na economia internacional, onde destacamos o agronegócio, o complexo de petróleo e gás e os setores vinculados ao complexo da saúde. Estes setores, ao contrário do agronegócio, perderam espaço no cenário global, cabendo ao país repensar estas indústrias e reconstruir os laços do desenvolvimento, investindo maciçamente nestes setores, gerando empregos qualificados e estimulando outros com potencial dinamizador. Estas políticas foram amplamente utilizadas por países que construíram espaços de respeito na comunidade internacional, alguns analistas ainda querem acreditar que os avanços foram possíveis por gênios empreendedores dotados de grande competência gerencial e inovação, mas na verdade isso só se materializou em decorrência da mão visível, ativa e intervencionista dos Estados Nacionais, lembrem-se sempre disso.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre, Doutor em Sociologia/Unesp e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 21/07/2021.

SOS da educação universitária

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A sociedade vem passando por grandes transformações nas últimas décadas, onde a tecnologia vem ganhando relevância para toda a coletividade, exigindo de todas as nações fortes investimentos em formação do capital humano, diante disso, cabem aos atores econômicos, políticos e sociais construírem novos espaços de consolidação do sistema educacional, gerando trabalhadores mais capacitados para atuarem neste ambiente de forte competição e de grande concorrência. Sem estes investimentos maciços em educação, ciência e tecnologias as nações tendem a perderem espaços na comunidade internacional, como estão percebendo com as perdas recorrentes da sociedade brasileira.

A educação precisa voltar a ser visto como o investimento mais importante para a sociedade, os países que colocaram os recursos educacionais como uma prioridade nacional, conseguiram alçar novas posições nos rankings internacionais, mas é fundamental que os investimentos na educação, na pesquisa e no conhecimento científico estejam garantidos contra as intempéries fiscais dos governos. Importante destacar, que os investimentos em educação devem ser consolidados dentro de um grande projeto de desenvolvimento, onde os investimentos na formação da população devem ser preservados para a construção de um novo modelo de desenvolvimento industrial e da reconstrução da estrutura produtiva.

Os rankings internacionais de educação mostram as grandes dificuldades para que alcancemos indicadores melhores e mais consistentes para a formação da mão de obra da população, gerando constrangimentos dos setores produtivos e impasses que limitam o crescimento econômico, deixando o país nos últimos lugares do cenário internacional, condenando a população a pobreza e empregos de baixo valor agregado.

As universidades e as faculdades isoladas não conseguem formar profissionais para as grandes dificuldades do mercado contemporâneo, colocando profissionais pouco capacitado e, com isso, limitam a construção de um horizonte mais consistente para estimular o crescimento econômico, levando o país a não construir espaços sólidos para o tão sonhado desenvolvimento econômico.

Muitas instituições usam os setores como espaços de acumulação de recursos imediatos e deixam de lado investimentos para a melhoria do conhecimento, absorvem “clientes” num ambiente marcado por alunos pouco capacitados, sem estudos, sem leitura e pouco empenhados de angariar os conhecimentos para as exigências da sociedade contemporânea. Neste ambiente, vivemos um ambiente marcado por um acordo tácito de mediocridade, onde os alunos acreditam que estão aprendendo e as instituições acreditam que estão auxiliando na construção no futuro de sua clientela.

Neste ambiente, encontramos profissionais pouco capacitados, professores que não se atualizam, diretores e coordenadores pouco qualificados para compreender os desafios da educação da contemporaneidade e os alunos, na sua maioria, querem apenas o diploma, acreditando que este documento vai lhe dar novas oportunidades de sobrevivência material, sem compromissos profissionais, limitando-se apenas aos ganhos imediatos. O resultado deste “acordo” é permanecermos nas rapeiras da educação mundial, a desindustrialização cresce de forma acelerada, o desemprego aumenta e o subemprego acelera, além disso, destacamos o desalento que aumenta de forma significativo, criando espaços de desesperança e medos generalizados, que levam as pessoas a terem medo de investir seus tempos, seus recursos financeiros em cursos superiores, que atualmente não consegue mais criar um diferencial profissional.

Antes as faculdades eram vistas como um diferencial, um instrumento de ascensão profissional e crescimento intelectual, mas infelizmente, na contemporaneidade, as expectativas profissionais, depois de anos nos bancos escolares, se reduziram de forma significativa.

As universidades sempre foram vistas como espaço de pesquisa e transmissão do conhecimento, onde a pesquisa era visto como uma forma de desenvolvimento científico e tecnológico, tendo os centros de pesquisas e as universidades públicas, federais e estaduais, como os grandes gestores do conhecimento, responsáveis pelo desenvolvimento da ciência, sendo que, a grande maioria, as faculdades privadas se concentravam em ganhos imediatos, formando profissionais e prestando serviços para a coletividade.

Neste ambiente, percebemos que, precisamos reconstruir os laços entre as universidades e as pesquisas, reduzindo a existência de instituições caças níqueis, que investem muito em marketing agressivo e geram constrangimentos para os concorrentes, gerando destruições crescentes de instituições qualificados que querem prestar serviços de qualidade, mas somente conseguem sobreviver entrando nesta competição agressiva e degradante, deixando de lado a qualidade e a formação de uma mão de obra capacitada.

O ambiente é muito preocupante para a comunidade acadêmica, vivemos um ambiente de pouca discussão intelectual e muitas agressões e violências generalizadas, onde aqueles que querem participar sofrem constrangimentos, impedindo os debates e evitando as conversações, fundamentais para as trocas de informações e a construção do conhecimento.

Nas mudanças em curso, percebemos que a educação é cada vez mais vista como fundamental, mas precisamos priorizar profissionais capacitados e absorverem estes trabalhadores para auxiliar no desenvolvimento econômico, impedindo que profissionais saia do país em busca de oportunidades em outras nações. Os gestores da educação precisam conhecer os desafios da educação nacional, as frustrações e as limitações do país para contribuir mais decisivamente para o crescimento do setor. Neste ambiente, faz-se necessário a construção de profissionais capacitados para a gestão de escolas e faculdades, cargos estratégicos e de grande relevância mas que, na atualidade, são geridos por profissionais do mercado financeiro, os chamados CEO genéricos, como o jornalista Luís Nassif chama este profissional, que dizem conhecer tudo e em todas as áreas, desconhecendo as peculiaridades de cada setor, com isso, percebemos gestões centradas exclusivamente no imediatismo, priorizando os lucros de seus acionistas e deixando de lado visões mais de longo prazo, se reduzindo apenas aos ganhos imediatos e sem visão de longo prazo.

A pandemia está mostrando as desigualdades da sociedade brasileira, são inúmeros os atrasos e as dificuldades, muitos deles remontam a colonização, mas todos os problemas, para serem superados, precisamos reconstruir um projeto nacional, investimentos maciços em capital humano e a construção de uma estrutura produtiva centrada na indústria, na pesquisa e o conhecimento, sem isso, estaremos nos perpetuando no atraso, na submissão e na exploração.

‘O negativo é que a polarização deixou de ser democrática’, por Moisés Naín.

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O Estado de São Paulo, 18;07/2021

Um dos principais observadores do cenário geopolítico mundial nos últimos anos, o venezuelano Moisés Naím alerta para os riscos da polarização tóxica e uma alteração nas dinâmicas de poder. Ele defende a recuperação da narrativa da sociedade liberal para defender a democracia.

No seu livro ‘O Fim do Poder’, o sr. diz que estar no comando não é o que costumava ser, porque o poder está mudando. Como isso afetou a democracia?
Demais. No século 21, o poder ficou mais fácil de se adquirir, mas mais difícil de usar, e mais fácil de perder. Há uma série de forças centrífugas que espalham o poder: grandes corporações, mídias sociais, novas tecnologias. O embate entre as forças centrífugas que espalham poder e as forças centrípetas que concentram poder é uma dinâmica central. Você pode ver que onde o poder importa, esse duelo entre as forças que diluem e as forças que concentram é constante.

O que trouxe o mundo a esse estado? Foi a polarização, as redes sociais, os desafios econômicos, a insatisfação das pessoas com a desigualdade econômica?

É preciso ter cuidado, porque a maioria dessas questões sempre existiu sem criar os problemas que temos na magnitude que temos hoje. Populismo sempre existiu. Populistas existem há tempos imemoriais: demagogos que mentem para seu povo e prometem coisas que não podem ser cumpridas. Polarização é um componente natural da sociedade. Você tem pessoas com visões distintas que duelam com diferentes pontos de vista. Mas a polarização é como colesterol: tem o bom e o ruim. É bom que sociedades tenham visões discordantes de grupos e segmentos de interesse e compitam em favor dos eleitores e ganhem poder. Isso é saudável, que grupos polarizados tenham poder. O negativo é que a polarização deixou de ser democrática e âncora da globalização para uma polarização tóxica, que impede o debate, que é paralisante, impede a sociedade de funcionar e o governo de funcionar. Me mostre uma democracia no mundo hoje, e eu te mostro uma sociedade altamente polarizada. Essa é a novidade.

Por quê?

Bom, são vários fatores. As novas tecnologias, notadamente as mídias sociais. A pandemia agravou muito a situação, mas há outros fatores. Em países em desenvolvimento, especialmente na América Latina, houve um boom de commodities que criou uma benevolência econômica. Então isso acabou, veio uma crise econômica e uma crise financeira seguida por uma pandemia, e a América Latina acabou sofrendo os efeitos dessa parada. Então ficou-se numa situação muito ruim e ficou impossível não culpar quem está no governo pela péssima situação. E aí temos um outro fenômeno que sempre existiu, que antigamente chamava-se propaganda e agora chamam de “pós-verdade”. É essa noção de que tudo é relativo, que não há verdadeiro ou falso, nada pode ser definitivo, as fake news e tudo mais.

O sr. acredita que todas as democracias do mundo estão em perigo hoje com a ascensão dos populistas?

Nem todas. Me recuso a imaginar que a democracia escandinava esteja em risco. Eles têm uma espécie de imunidade cultural a esse tipo de crescimento populista. Você tem de um lado os suecos, dinamarqueses. No outro extremo temos México, Argentina, Brasil, e ainda mais extremos como Mianmar. As democracias têm sido desafiadas seriamente em todo o planeta, mas alguns países têm mais imunidade do que outros.
Mario Vargas Llosa escreveu que, apesar de as democracias estarem em perigo em muitos países, há um “desespero retórico” entre intelectuais e jornalistas. As democracias estão em perigo real ou as pessoas estão exagerando?
Você precisa escolher entre ser alarmista e ser complacente. São dois perigos iguais: você corre o risco de o céu estar caindo sobre sua cabeça e as democracias estarem em perigo e você estar sendo alarmista ou ser complacente e dizer: “Isso já aconteceu no passado e demos conta, está tudo ok”. Eu prefiro cometer o erro de ser alarmista do que de ser um analista complacente que minimize o que está acontecendo.

Como os líderes eleitos podem erodir a democracia?

O mundo está vendo um assalto global aos sistemas de pesos e contrapesos. Quando você fala em ameaças à democracia, essencialmente são os sistemas de pesos e contrapesos que estão sob ataque ou não funcionam, que o Parlamento não é independente e é refém do Executivo. Há o Judiciário, o Parlamento, o Poder Executivo, a mídia, a mídia independente. O que causa a erosão da democracia são esses ataques contínuos aos componentes desse sistema. Alguns desses ataques são abertos, gritantes, cruéis e dramáticos. Outros são praticamente invisíveis, disfarçados, chatos, burocráticos e difíceis de perceber que estão acontecendo, mas estão causando danos iguais.

Como proteger as democracias de ataques daqueles que querem controlar o poder?

Há várias coisas. A primeira é recuperar a narrativa do que é uma sociedade liberal. As forças que estão levando a cabo sua guerra contra os sistemas de freios e contrapesos têm uma história para contar: a narrativa que mina a confiança e a credibilidade da narrativa liberal e os valores das democracias no mundo, liberdade, justiça para todos. Os liberais estão perdendo a narrativa e deixando haver confusão sobre a importância da democracia. Isso tem a ver com a pós-verdade, mídias sociais, fake news. É preciso retomar essa narrativa. A segunda é a guerra pela legitimidade, que é o ativo político mais escasso do mundo. Por isso ditadores organizam eleições e fazem campanhas, mesmo que fajutas. Quando Maduro faz uma eleição na Venezuela, ninguém acredita que aquele processo seja honesto, pois sabem que aquilo é manipulado. Mas eles precisam da narrativa para sustentar sua legitimidade. A legitimidade pode vir da narrativa ou da performance. Um líder que entrega o que promete, que alcança os objetivos e mostra para a sociedade, tem mais legitimidade do que aquele que apenas promete.

A democracia brasileira está ameaçada por esses pequenos passos que podem levar a um caminho final para a autocracia em um futuro próximo?

Muito depende da próxima eleição presidencial brasileira no ano que vem, com um duelo de titãs entre Bolsonaro e Lula. Essa parece ser a tendência. Mas acho que o principal a se observar é como estão os sistemas de freios e contrapesos na sociedade brasileiro. Isso é determinante para saber o que vai acontecer no país.

Reforma administrativa na Europa, por Regina Camargos e José Celso.

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Reforma administrativa na Europa: retração do Estado impacta negativamente capacidades e funções públicas, dinamismo econômico e proteção social e laboral

O Estado de São Paulo, 09/07/2021

Regina Coeli Moreira Camargos, Doutora em Ciência Política (FAFICH/ UFMG), Pesquisadora em pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Econômico (CESIT/IE/Unicamp). Economista do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) entre 1993 a 2018.

José Celso Cardoso Jr., Doutor em economia (IE-Unicamp). Desde 1997, é Técnico de Planejamento e Pesquisa do Ipea. Atualmente, exerce a função de Presidente da Afipea-Sindical e nessa condição escreve esse texto.

Diante do vendaval de fake news e ameaças aos servidores públicos propagados pelo governo Bolsonaro/Guedes e defensores, acerca das supostas – e irreais – vantagens da PEC 32/2020, resolvemos mapear evidências acerca dos impactos de reformas administrativas de mesma inspiração e já em implementação em países da União Europeia desde a crise financeira internacional de 2008, cujos desdobramentos seguem em curso.

Para tanto, apresentamos nesse artigo um resumo – não exaustivo, mas suficiente – das principais conclusões do livro Public Sector Shock. The impact of policy retrenchment in Europe, organizado por Daniel Vaughan-Whitehead, economista sênior da OIT (Organização Internacional do Trabalho). A publicação descreve em profundidade as características e principais efeitos das reformas administrativas que ocorreram em diversos países da União Europeia a partir da referida crise. A partir do título o leitor antevê o que encontrará em suas mais de 600 páginas.

Nos países mais desenvolvidos da Europa, observou-se aprofundamento da retração do Estado na prestação de serviços à sociedade, algo que já vem ocorrendo desde o fim dos anos 1970. Mas, nos países menos desenvolvidos e na periferia do capitalismo europeu, houve reformas abruptas, que num curto espaço de tempo, modificaram substancialmente ou mesmo extinguiram diversas estruturas do Estado em áreas centrais dos respectivos sistemas de bem-estar social. Em uns e noutros casos observaram-se alterações qualitativas e quantitativas para pior no atendimento do Estado às demandas sociais em áreas como educação, saúde, segurança pública e sistemas de intermediação de emprego. Além disso, em todos os casos, houve redução no quadro de servidores, piora nas condições de trabalho e precarização das formas de contratação, demissão e remuneração. Em suma, observou-se generalizado aumento da desproteção social e da insegurança laboral no setor público em todos os países.

As reformas – abrangentes, profundas e velozes – ocorreram por meio de cortes lineares e indiscriminados no orçamento, visando conter ou reduzir o déficit público, e resultaram no congelamento do investimento governamental em áreas como previdência, saúde e educação, além de demissões e cortes na remuneração dos servidores. As reformas são abrangentes, pois envolvem e afetam uma ampla gama dentre as principais áreas de atuação governamental. São profundas, já que promovem modificações paradigmáticas, e não apenas paramétricas, nos modos de organização e funcionamento das respectivas áreas. E são velozes, pois estão ocorrendo em ritmo tal que setores oposicionistas e mesmo analistas especializados mal conseguem acompanhar o sentido mais geral das mudanças em curso, as quais apontam em direção ao enfraquecimento da democracia e ampliação das desigualdades sociais.

De acordo com Daniel Vaughan-Whitehead, cada programa teve características e ritmo próprio de aplicação, sendo mais radicais nos países menos desenvolvidos da União Europeia. Alguns programas foram diretamente impostos aos governos de países como Grécia, Portugal e do leste do continente pela chamada Troika, organismo formado pelo Banco Central Europeu, FMI e Comissão Europeia. Nesses países, o teor das reformas do setor público foi nitidamente fiscalista e privatista ou, nos termos do autor, limitaram-se a ajustes quantitativos, à transferência de ativos e da gestão de órgãos públicos para empresas e entidades do setor privado. Por sua vez, os países que vinham implantando reformas de caráter mais estrutural desde os anos 1980, como Alemanha, Suécia, Reino Unido e França, aprofundaram o ajuste quantitativo do setor público e a privatização dos seus respectivos sistemas de proteção social, embora tentando manter alguma regulação estatal sobre eles para mitigar a diminuição da coberta e da qualidade do atendimento às demandas da sociedade por serviços essenciais.

Na avaliação do autor, mesmo os países que fizeram reformas menos fiscalistas e privatistas não obtiveram resultados virtuosos. A médio e longo prazos, os sucessivos cortes orçamentários, a gradativa precarização das condições de trabalho dos servidores, o recurso indiscriminado ao outsourcing e às parcerias com a iniciativa privada para realização de atividades essenciais, dentre outros fatores, resultaram em custos muito elevados, tais como o aumento das desigualdades e a redução do dinamismo econômico.

Obviamente, os países menos desenvolvidos que fizeram ajustes ainda mais severos – por imposição de organismos internacionais – colheram resultados muito piores, pois, em geral, suas estruturas econômicas e seus sistemas de bem-estar eram menos robustos que os dos países mais desenvolvidos. Mas, em ambos os casos, como tais reformas aconteceram em contextos desfavoráveis, caracterizados por altas taxas de desemprego e baixo dinamismo econômico, acabaram contribuindo para agravar os problemas já existentes.

Dentre as principais consequências desse tipo de reformas administrativas se destacam: i) Aumento dos conflitos trabalhistas no setor público; ii) Achatamento salarial nos níveis hierárquicos mais elevados da administração pública, o que tem levado a uma onda de aposentadorias precoces e desligamentos voluntários de profissionais mais qualificados; iii) Redução expressiva das diferenças salariais entre servidores de carreira e funcionários das prestadoras de serviços e organizações sociais nos níveis hierárquicos menos graduados da administração pública, em detrimento dos primeiros, o que tem gerado desmotivação e queda na produtividade sistêmica; iv) Substituição gradativa, mas contínua, de servidores com contratos a prazo indeterminado por outros com contratos temporários e a tempo parcial; v) Aumento das desigualdades salariais de gênero, pois os cortes e congelamentos de salários, benefícios e promoções afetaram sobremaneira as categorias funcionais com maior participação de mulheres, como saúde, educação e serviços de assistência social; vi) Queda na qualidade dos serviços públicos oferecidos à população, devido ao rebaixamento das condições de trabalho dos servidores, aumento das jornadas de trabalho, demissões e aposentadorias precoces, congelamento das promoções e progressões funcionais e redução dos investimentos em infraestrutura, qualificação e treinamento; vii) As reformas fiscalistas do setor público foram frequentemente acompanhadas por campanhas de desqualificação dos servidores, imputando-lhes privilégios inaceitáveis num contexto de crise geral do mercado de trabalho; viii) O rebaixamento salarial e das condições de trabalho no setor público está prejudicando a luta por direitos trabalhistas na iniciativa privada, pois o estatuto de proteção social ao trabalho no Estado sempre foi uma referência importante para o sindicalismo no setor privado; ix) O rebaixamento das condições de trabalho de servidores públicos mais qualificados no leste europeu está estimulando movimentos migratórios desses profissionais para países mais desenvolvidos do continente; e x) Na maioria dos países, as reformas foram realizadas sem qualquer negociação com servidores e demais segmentos da sociedade afetados por elas, exceção feita àqueles que tinham práticas mais longevas e consolidadas de diálogo social. Ademais, observaram-se restrições ao direito de greve e de negociação coletiva que resultaram em intensificação dos conflitos trabalhistas e queda nas taxas de sindicalização no setor público.
Portanto, tudo somado, ao contrário do argumento disseminado pelos defensores das reformas e ajustes, inclusive a OCDE, esses processos não resultaram em aumento da eficiência (e muito menos ainda da eficácia e efetividade) dos serviços prestados pelo Estado. Na realidade, em diversos casos, levaram à queda do desempenho do conjunto do setor público e da qualidade dos serviços. O autor também menciona que os cortes no investimento público em áreas como tecnologia da informação, segurança e sistemas de justiça estão levando, respectivamente, à fragilização dos sistemas nacionais de estatísticas, ao aumento da violência e da corrupção endêmica.

Para Daniel Vaughan-Whitehead, qualquer reforma do setor público deveria ser precedida de minuciosa análise sobre o desempenho da economia e do setor público num longo período de tempo, bem como de projeções de resultados a longo prazo acerca de seus custos e benefícios. Isso porque reformas fiscalistas e privatistas podem até trazer resultados fiscais vistosos no curto prazo, mas costumam ensejar consequências socioeconômicas danosas, dificilmente reversíveis a médio e longo prazos.

Além disso, reformas dessa natureza requerem a existência de estruturas institucionais sólidas, constituídas por diversos órgãos e agências do Estado, que devem subsidiar os responsáveis pela implementação das reformas com informações, dados e análises para que a tomada de decisões se baseie em evidências e critérios objetivos e vise a melhoria das condições de vida dos cidadãos e o estímulo ao desenvolvimento econômico.

Também é desejável que as reformas sejam acompanhadas e avaliadas por organizações da sociedade civil, sindicatos de servidores, conselhos de usuários e concessionários de serviços públicos. Ou seja, uma reforma virtuosa do setor público deveria ter o diálogo social permanente como princípio e meio de realização, pois tende a afetar as condições de vida de milhares de pessoas.

Em síntese, após analisar os resultados das reformas administrativas ocorridas em 15 países da União Europeia desde a crise de 2008, Daniel Vaughan-Whitehead sugere uma proposta diferente para reformar o setor público, baseada nas seguintes premissas: i) Incrementalismo, evitando-se mudanças abruptas e disruptivas; ii) Diálogo social permanente; iii) Reformar com base em evidências, no planejamento, monitoramento e avaliação permanentes; iv) Fortalecimento do Estado Social; e v) Revisão profunda da teoria e política econômica dominante, notadamente no que se refere ao peso e papel das finanças públicas no processo de financiamento do desenvolvimento nacional em cada caso concreto.

Como se vê, há semelhanças inegáveis entre o desenho da PEC 32/2020, ora em tramitação apressada, e as reformas administrativas de cunho neoliberal implementadas recentemente na União Europeia. Nada garante que os maus resultados ali observados não sejam aqui replicados, com o agravante de que, no Brasil, pretende-se desmontar estruturas estatais que sequer haviam sido plenamente implantadas desde a reforma administrativa republicana e democrática sugerida pela Constituição Federal de 1988.

Finalmente, a PEC 32/2020 causará enormes danos ao funcionalismo público, cuja maioria é representada por servidores de carreira selecionados mediante concursos que exigem formação educacional mais consistente. Um quadro funcional bem preparado, com dignas condições de trabalho e em constante profissionalização é, por sua vez, condição necessária para um atendimento eficiente e qualificado aos cidadãos.

Tal como em relação a outros temas da agenda econômica e social, sugerimos cautela extrema com a importação de ideias e modelos estrangeiros de reforma administrativa, claramente fadados ao fracasso em países tão heterogêneos e desiguais como o Brasil.

Oposição de cientistas a negacionismo é questão de ética, diz Renato Janine Ribeiro

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Novo presidente da SBPC lista crise de financiamento da ciência como prioridade

Reinaldo José Lopes – Folha de São Paulo, 17/07/2021

O negacionismo do governo federal a respeito da pandemia acabou levando muitos cientistas brasileiros a adotar posicionamentos políticos mais claros. Para o presidente eleito de SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência). o professor de filosofia política e ética Renato Janine Ribeiro, a reação é um resultado natural de valores que se tornaram centrais para a comunidade científica, como a preocupação com a ética, a inclusão social e a sustentabilidade.

“A comunidade científica americana ficar contra o Trump, ou a comunidade científica brasileira mostrar perplexidade com o negacionismo do governo federal ou pessoas ligadas a ele, é sobretudo um posicionamento ético, que pode ter desdobramentos políticos, mas não é partidário”, diz o professor da USP. Janine Ribeiro, 71, foi escolhido pelos membros da SBPC para um mandato de dois anos em eleição com participação recorde – quase 2.000 votantes, ou 60% dos sócios ativos.

A prioridade inicial da nova diretoria do órgão será “tentar salvar o que tem de ser salvo” diante da crise de financiamento da ciência nacional. Sem a volta do apoio à pesquisa, diagnostica ele, o Brasil viverá uma situação inédita de fuga de cérebros em massa.

A eleição que fez do sr. o novo presidente foi a que teve o maior comparecimento desde 2009. O fato de haver duas candidaturas explica isso ou também tem a ver com o senso de urgência que a pandemia trouxe para os cientistas?

Tem a ver com esse senso de urgência, de fato. Os filiados sentiram que era muito importante participar dessa eleição para mostrar que a luta em prol da ciência, da educação, dos valores que a SBPC representa, é quase uma questão de salvação nacional. Mas é claro que a competição significa que quem prefere um dos candidatos vai se empenhar mais do que numa eleição de candidato único.

Ao mesmo tempo, relativamente poucos membros da comunidade científica pertencem à SBPC. Como enfrentar isso?
Temos de fazer uma campanha de filiação, para que muitas pessoas que já foram filiadas retornem e para que novas entrem. O valor é relativamente barato. Ao mesmo tempo, muitas pessoas se sentem representadas pela SBPC, mas por alguma razão não se filiaram a ela. Sabemos que o impacto da sociedade é bem maior [do que o número dos filiados].

É comum você ter, numa reunião anual da SBPC, 10 mil, 20 mil pessoas frequentando.

Quais são as primeiras prioridades do sr. e da nova diretoria?
O primeiro ponto é tentar salvar o que tem de ser salvo. Eu dou o exemplo do supercomputador Tupã [do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais]. Eu sei que o Tupã está um pouco defasado, e a manutenção dele é cara, mas o rumor que correu de que ele ia ser desligado por falta de pagamento de luz é de se comparar a uma situação na qual você tem um Mercedes Benz último tipo e não coloca óleo –e aí o motor vai fundir. O valor para o Brasil, seja desse emblema que é o Tupã, seja das universidades federais e dos institutos de pesquisa, é algo enorme para a gente perder.

O mesmo vale para as bolsas de pós-graduação. Nós estamos vivendo um fenômeno praticamente inédito no Brasil, que é a fuga de cérebros. Digo inédito porque o Brasil sempre teve uma fuga de cérebros relativamente baixa, bem menor
que a da Argentina ou da Índia.

E agora você ouve falar de jovens que o país formou durante a graduação ou mesmo até o doutorado, gastando dinheiro e criando laços que vão além do dinheiro, com família, amigos e colegas, e aí você entrega essa pessoa pronta para um laboratório americano ou europeu. Isso é um absurdo. É uma economia boba.

Isso tem de ser uma prioridade, mas temos de lutar em vários fronts. Além de tentar defender o que pode ser perdido, nós também temos de pensar no futuro. Numa sociedade que depende da economia do conhecimento, a ciência e as áreas correlatas –a cultura, a educação em todos os níveis, o meio ambiente e a inclusão social– têm um papel decisivo. Todos esses fatores entram num círculo virtuoso inclusive para o crescimento econômico, daí o erro de algumas pessoas que colocam em oposição a necessidade de salvar vidas e a de salvar o PIB.

Veja o caso da floresta amazônica. Ela é, em grande parte, uma mata plantada pelas civilizações do passado. O que hoje nós chamamos de engenharia genética dos vegetais foi algo dominado, numa escala mais lenta de milhares de anos, pelos povos indígenas. Quando a gente vê uma foto como aquela do ex-ministro [do Meio Ambiente] Ricardo Salles, todo gabola na frente daquelas toras imensas, algumas talvez mais velhas que o próprio Brasil –é um absurdo você transformar isso em móvel sem nem fazer uma pesquisa.

Todos esses fatores que estão sendo desprezados hoje por uma visão de curto prazo do atual governo são muito importantes para o desenvolvimento econômico e para uma sociedade mais justa. E a ciência e a educação podem ser muito importantes, entre outros fatores, para revelar talentos hoje ignorados.

O fato de que a população mais pobre, nas favelas, tem pouquíssimo acesso a essas carreiras é um entrave tremendo para o desenvolvimento brasileiro. Você está perdendo possíveis cientistas, médicos, engenheiros e empresários. Eu costumo calcular que nós temos cerca de um terço ou um quarto da população que teve acesso a oportunidades de crescer na vida. É assustador –o Brasil está rendendo um terço do que ele pode render em todos os campos.

Ministros da Educação do governo Bolsonaro chegaram a defender uma visão mais elitista do ensino universitário, afirmando que ele não é para todos e que é preciso priorizar o ensino técnico. Até que ponto isso faz sentido?
Bom, o governo que eu conheço que mais se empenhou no ensino técnico foi o governo Dilma, por meio do Pronatec, um projeto, a meu ver, muito bem pensado, que infelizmente não funcionou como deveria porque faltaram verbas. Não tenho nada contra o ensino técnico, que muitas vezes é até melhor que o ensino médio.

Já os problemas do ensino superior talvez sejam dois. Primeiro, é necessário pensar na qualidade, sobretudo nos cursos privados. Em segundo lugar, é preciso discutir bem quais são as formações desejadas.

Grande parte dos estudantes hoje seguem para três áreas que são, pela ordem, direito, administração e pedagogia, formações oferecidas principalmente pelo setor particular. Mais tarde, esses estudantes muitas vezes têm dificuldade para se empregar. Portanto, é preciso discutir quais são os cursos que dão futuro para as pessoas.

Uma experiência muito interessante é a dos bacharelados interdisciplinares, na Universidade Federal da Bahia e na Universidade Federal do ABC. Na UFABC, há um bacharelado de ciência e tecnologia interdisciplinar que dura três anos. O curso leva o aluno a analisar a mesma questão por múltiplos ângulos, unindo matemática, física, química e biologia, e qualifica a pessoa para enfrentar uma série de desafios profissionais.

Com isso, você sai da lógica do diploma com reserva de mercado. Vamos supor que você queira ser designer de games, por exemplo. Com a formação desse tipo de bacharelado, você já tem meio caminho andado para essa e outras carreiras. E a UFABC fez algo muito bonito, que foi apresentar o curso aos alunos das escolas públicas das cidades do ABC e atraí-los, em vez de só atrair gente da capital.

Muitos cientistas brasileiros acabaram adotando postura política mais clara na pandemia, em parte como reação ao negacionismo do governo federal. Isso é algo que vale apenas para uma situação-limite, como a atual, ou é importante que os cientistas mantenham uma atuação política aberta sempre?

O desenvolvimento científico no século 20 esteve muito ligado à guerra, e o maior exemplo disso é a bomba atômica.

Durante muito tempo, não havia problema em vincular a ciência a artefatos que matavam.

Já faz várias décadas, porém, que a comunidade científica desenvolveu uma preocupação ética clara e, mais recentemente, com a sustentabilidade ambiental. Quando você tem uma pandemia, isso salienta um processo que já existia e se fortalecia. É um posicionamento ético, antes de mais nada, que pode se desdobrar num posicionamento político. A comunidade científica americana ficar contra o Trump, ou a comunidade científica brasileira mostrar perplexidade com o negacionismo do governo federal ou pessoas ligadas a ele, é sobretudo um posicionamento ético. A defesa da paz, do meio ambiente, da vida e da inclusão social são pontos que foram adquirindo um consenso ético cada vez mais forte para os cientistas.

Antes da pandemia, o negacionismo contra a ciência não parecia ser uma força considerável no Brasil, mas ele parece ter emergido nos últimos dois anos. Como explicar isso?
Eu vejo dois fatores. O primeiro é que, embora seja difícil traduzir a linguagem das ciências exatas e biológicas para as pessoas, elas usam inúmeros produtos delas. Você pode usar um GPS e acreditar na Terra plana, ou se tratar com um remédio sem entender os princípios por trás dele. Isso é algo que a gente tem de sanar, mostrando melhor o vínculo entre o bem-estar das pessoas e a ciência.

O segundo ponto tem a ver com os avanços das últimas décadas em áreas como igualdade de gênero e igualdade racial, por exemplo. Quando vem a crise econômica, entre os que perdem o poder aquisitivo e o emprego, a busca de culpados é muito comum, e o mais fácil é culpar o diferente. Essas reações são soluços –calamitosos, doloridos, mas que acabam sendo superados. Vejo com otimismo essa superação.

RAIO-X
Renato Janine Ribeiro, 71
Professor titular de ética e filosofia política da USP desde 1994, foi também professor visitante na Unifesp entre 2018 e 2020, onde criou o Instituto de Estudos Avançados e Convergentes (IEAC). Ex-ministro da Educação (governo Dilma, 2015), é autor de ‘A Pátria Educadora em Colapso’ (ed. Três Estrelas)

Desigualdade na renda e nos riscos, por Sérgio Firpo

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O Estado descuida dos riscos dos mais pobres

Folha de São Paulo, 17/07/2021

Sergio Firpo Professor titular e diretor de pesquisa do Insper, é Ph.D. em economia pela Universidade da Califórnia em Berkeley

Há muito tempo se sabe que o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo. Há menos de dez países com coeficiente de Gini, medida usual da desigualdade de renda, maior do que o nosso.

Contudo pouco se sabe sobre a volatilidade da renda no país. Dados recentes do IBGE, que permitem acompanhar a mesma pessoa ao longo do tempo, revelam que os rendimentos do trabalho oscilam de maneira desigual. No período de um ano, a variação de renda entre as famílias pobres é quase cinco vezes maior do que entre as ricas.

A flutuação da renda do trabalho, quando não antecipada, implica maiores riscos. Não somos apenas desiguais na renda, somos desiguais do risco.

Trabalhadores jovens e com baixa qualificação transitam entre empregos sem carteira, trabalho autônomo e desemprego. Encargos trabalhistas, baixa produtividade e rigidez salarial ajudam a tornar mais da metade da força de trabalho pouco atrativa no mercado formal. Esses trabalhadores ficam sem acesso ao seguro-desemprego e ao saldo e multa do FGTS, que são instrumentos relevantes de seguro.

O trabalhador autônomo nos centros urbanos está desassistido frente a reduções abruptas de demanda por seus serviços. Não há um empregador com quem dividir o risco do negócio. O acesso a crédito é restrito. Sua poupança, quando possui, é geralmente ilíquida. Não há opções de seguro contra oscilações inesperadas da renda.

Para compensar a exposição involuntária ao risco, os investimentos em ativos arriscados, como em capital humano próprio ou dos filhos, ou os relacionados à expansão do empreendimento são reduzidos. Sem esses investimentos perpetua-se, entre gerações, a pobreza.

O leque de políticas sociais existentes não contempla o trabalhador urbano que vive na informalidade e enfrenta, sem anteparos, o verdadeiro risco-país. São os 30 milhões de trabalhadores que, com a pandemia, se descobriu serem “invisíveis” ao governo.

O Estado descuida dos riscos dos mais pobres. Enquanto isso, grupos empresariais são protegidos da competição externa e servidores públicos têm estabilidade de emprego.

O enfrentamento estrutural da distribuição desigual de risco deveria envolver diversas ações governamentais. Exemplos são a redução de encargos e a criação de mecanismos institucionais de agregação de riscos e de garantias para linhas de crédito privadas para o microempreendedor. Não há bala de prata aqui.

Em nosso país, em que alguns valores têm sinais trocados, tomar risco não gera status social. Estabilidade e segurança, ao contrário, dão status. Quem mais toma risco no Brasil tem baixa escolaridade, é pobre, negro, jovem. É invisível.

Oração e socorro no mundo espiritual

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A sociedade vem passando por momentos de grandes instabilidades e incertezas em decorrência da pandemia, cujos impactos diretos e indiretos estão levando ao óbito milhares de pessoas nas mais variadas regiões e países. Neste momento, as perspectivas de morte estão mais próximas para as pessoas, levando as pessoas ao medo, desesperanças e desequilíbrios, gerando desajustes emocionais, espirituais e psicológicos.

A morte sempre foi um dos maiores tabus para os indivíduos, com a pandemia que crassa a sociedade mundial, as pessoas passam a expor suas preocupações, seus maiores desequilíbrios e suas dificuldades mais íntimas, gerando ambientes pesados, marcados pelas instabilidades espirituais, abrindo espaços para desagregações familiares, emotivas, afetivas e sentimentais no cotidiano.

Com a pandemia percebemos rachaduras emocionais enormes, as pessoas estão mostrando suas carências psicológicas e suas desesperanças, com isso, desnudando os desequilíbrios financeiros, os medos das incertezas do futuro, os receios da violência e as esperanças perdidas, incrementando as depressões e as ansiedades que, nos momentos de desesperos crescentes, gerando incrementos de suicídios e mutilações físicas e emocionais.

A crise sanitária está gerando um aprofundamento da recessão e do desemprego, gerando uma grande leva de trabalhadores sem emprego e, principalmente, sem esperanças. O futuro que sempre foi percebido com expectativas positivas, afinal sempre fomos percebidos, pela comunidade internacional, como o país do futuro, estamos acordando de uma realidade assustadora, óbitos vitimados pela pandemia em ascensão, crise econômica e depressão, ansiedade e, em muitos casos, aumento substancial de suicídio.

Neste momento, os relatos enviados do mundo espiritual nos assustam, a quantidade de indivíduos vitimados pelo coronavírus é tão elevado que os trabalhadores do mundo espiritual não conseguem atender a todos os desencarnados, levando os socorristas no mundo espiritual a estimularem aos desencarnados ao sono, estimulando-os a dormirem, levando-os a uma soneca reparadora. Os espíritos do bem atuam na proteção dos desencarnados, transmitindo energias no momento do descanso, evitando os desequilíbrios emocionais e espirituais daqueles que chegaram “inesperadamente”, dando mostras claras de degradações emocionais e fragilidades espirituais. A atuação destes espíritos socorristas do mundo espiritual é fundamental para o reequilíbrio dos desencarnados, sem estes, os indivíduos estariam sujeitos a grandes desequilíbrios.

A pandemia está gerando impactos para todos as regiões, desde o mundo material até o mundo espiritual. Neste momento, a atuação dos espíritos socorristas é fundamental, como nos foi mostrado no clássico livro Nosso Lar, psicografia de Francisco Cândido Xavier e ditado pelo espírito André Luiz, onde se descreve a atuação dos espíritos na chegada dos irmãos no mundo dos espíritos, as dificuldades, os medos, os remorsos e as preocupações dos dois lados do mundo.

Neste instante de grandes transformações geradas pela pandemia em curso na sociedade, percebemos que os indivíduos estão sendo estimulados, pela espiritualidade maior, a rever conceitos arraigados, conceitos e comportamentos das pessoas individualmente ou nas atuações coletivas, levando-os a repensar os seus conceitos, suas atitudes e suas formas de atuação. A pandemia, para muitos, era é um castigo enviado pelos deuses como forma de depurar a sociedade. Esta reflexão nos parece muito limitada, a pandemia é fruto das escolhas dos seres humanos, das ambições materiais, os imediatismos reinantes e a constante busca pelos prazeres da matéria. Neste momento, a pandemia nos deixa claro que, somos muito menores do que muitos acreditamos, somos muitos limitados na compreensão das ideias que comandam a sociedade, num momento que somos levados a rever conceitos que se concentram na concorrência e deve ser substituído pelos conceitos de cooperação, mais cooperação e menos competição.

Neste momento precisamos nos preparar para as mudanças que estão em curso na sociedade global, não as alterações individuais como as coletivas, não esquecendo a importância da oração, da caridade e da comunhão com a espiritualidade maior, lembrando dos ensinamentos trazidos pela literatura espiritual, onde destacamos uma conversa entre Chico Xavier com seu mentor espiritual Emmanuel:
“Certa vez Chico Xavier em desdobramento, numa visita ao Plano Espiritual com Emmanuel, viu milhões de bolinhas coloridas, nas mais diversas cores subindo e perguntou a Emmanuel:
– O que é esta maravilha Emmanuel?
– São as Vibrações de Amor de milhões de encarnados que estão realizando Preces e Vibrando
Amor por todos os necessitados.

Chico responde:
– Sempre pensei que as vibrações viessem do Plano Espiritual para os encarnados!
Emmanuel: – Não Chico, onde houver alguém ligado em preces, manda pra cá as vibrações de Amor que são armazenadas em jarros especiais para beneficiarem aos irmãos necessitados que chegam ao Plano Maior em difíceis condições, e também são direcionadas aos nossos irmãos encarnados que passam por provações”.

O mundo passa por momentos de apreensão e desesperança, neste momento e em todos os momentos da sociedade, percebemos a importância e a centralidade da oração, como nos mostra a conversa acima entre Chico Xavier e o mentor Emmanuel, a oração é um verdadeiro bálsamo de fortalecimento de todos instantes da vida dos seres humanos, um momento de agradecimento, de humildade, de reflexão e fortalecimento para superarmos os embates cotidianos, nos capacitando para superar a pandemia, a desesperança e do desânimo, lembrando que como nos diz o ditado popular, depois da tempestade vem a bonança.

Pós-pandemia é melhor momento para atacar desigualdade, diz economista de Oxford

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Para Diego Sánchez-Ancochea, países devem buscar políticas redistributivas mais ambiciosas e avançar em reformas tributárias

DOUGLAS GAVRAS – FOLHA DE SÃO PAULO, 15/07/2021

A recuperação dos países após a debacle causada pela pandemia do novo coronavírus tem ocorrido de maneira desigual ao redor do mundo e já há estudos mostrando que um dos efeitos da crise sanitária é o aumento da concentração de renda em diferentes países.

Uma reportagem recente da Folha, baseada em um levantamento anual do banco Credit Suisse, apontou que o 1% no topo da pirâmide brasileira aumentou sua renda durante a pandemia e já concentra mais da metade dos recursos do país. Na comparação com outros países, o Brasil só concentrava menos renda que a Rússia.

Para Diego Sánchez-Ancochea, que é chefe do Departamento de Desenvolvimento Internacional da Universidade de Oxford (Reino Unido), no entanto, as medidas econômicas que precisam ser adotadas para a recuperação global podem ser uma oportunidade única para atacar a desigualdade e mesmo países com um histórico de péssima distribuição de renda e endividamento elevado, como o Brasil, não devem adiar o combate ao problema.

O economista espanhol avalia que todos os países podem buscar mais espaço para desenvolver políticas redistributivas mais ambiciosas e avançar com reformas fiscais que permitam aumentar a arrecadação.
“Em países da América Latina, como o Brasil, a tímida recuperação ainda não foi acompanhada por uma melhora significativa no mercado de trabalho formal”, diz Sánchez-Ancochea, autor de “The Costs of inequality in Latin American”: Lessons and Warnings for the Rest of the World (Os custos da desigualdade na América Latina: lições e advertências para o resto do mundo), livro em que discute o aumento da desigualdade nos países ricos e como as políticas adotadas por eles tornaram-se cada vez mais semelhantes às da América Latina.

A seguir, os principais trechos da entrevista.

A pandemia acabou ajudando a concentrar renda em vários países, entre eles o Brasil. Os ricos conseguem ficar ainda mais ricos mesmo em momentos trágicos? Na verdade, a pandemia parece ter aumentado a concentração de renda e riqueza nos mais ricos por diferentes razões. Em primeiro lugar, esses grupos são proprietários (ou pelo menos têm investimentos) em grandes empresas que, em geral, se adaptaram melhor às políticas de distanciamento social. Além disso, em muitos países, eles se beneficiaram do apoio do Estado por meio de vários incentivos e ajuda fiscal. Em segundo lugar, no último ano, os índices do mercado de ações aumentaram exponencialmente (especialmente nos Estados Unidos), ajudando a acelerar a concentração da riqueza. Além disso, aprendemos que profissionais e outros setores de alta renda podem se adaptar e até se beneficiar da economia digital e do trabalho remoto, algo que muitos outros trabalhadores não têm condições de fazer.

Os países mais pobres e endividados terão ainda mais dificuldade em reduzir a desigualdade após a pandemia? Acredito que sim. De fato, para muitos países de baixa renda será ainda mais difícil adotar programas sociais que favoreçam uma redistribuição progressiva da renda. Eles simplesmente não têm a capacidade que países como os Estados Unidos têm de tomar empréstimos e criar programas nesse sentido. No entanto, também é importante reconhecer que todos os países podem buscar mais espaço para desenvolver políticas redistributivas mais ambiciosas.

O Brasil começa a discutir uma proposta de reforma tributária que também mexe no Imposto de Renda de pessoas físicas e fala de tributação de dividendos. O momento é favorável para fazer esse tipo de discussão? Sim. Na verdade, creio que este é o melhor momento de tentar avançar com reformas fiscais que permitam aumentar a arrecadação e fazê-lo, sobretudo, com o imposto de renda das pessoas físicas e até a formulação de novos impostos sobre o patrimônio.

O Brasil teve um bom desempenho em termos de PIB (Produto Interno Bruto) no início deste ano, mas a maioria da população ainda não sente essa melhora. O que estamos fazendo de errado? Devemos estar cientes de que a pandemia ainda não acabou e muitas famílias continuam sofrendo suas consequências. No último ano, diversos pequenos negócios tiveram de fechar as portas e muitas famílias gastaram todas as suas economias para se manter durante a pandemia.

Além disso, em muitos países da América Latina, como o Brasil, a tímida recuperação ainda não foi acompanhada por uma melhora significativa no mercado de trabalho formal.

Como reverter essa situação, para alcançarmos uma recuperação menos desigual? Acho que é o momento de pensar em como aumentar a arrecadação tributária no longo prazo, como dar continuidade às políticas de transferência que foram adotadas em 2020, (mas não tiveram a continuidade que alguns de nós esperávamos, e também buscar caminhos para impulsionar o mercado de trabalho.

Como fazer para que uma família que saiu da pobreza pode manter o padrão de vida melhor e não perder o que conquistou? Essa é uma questão fundamental! Da mesma forma que agora está sendo discutido nos Estados Unidos, precisamos desenvolver um novo modelo econômico focado na proteção da ampla classe média e na redução da pobreza.

Para isso, é importante, por um lado, desenvolver políticas macroeconômicas anticíclicas que ajudem a estabilizar a economia. Quanto mais brandas forem as crises econômicas, melhor para os grupos mais vulneráveis.

Em segundo lugar, precisamos de políticas sociais que protejam os indivíduos de choques (por exemplo, por meio de transferências de renda) e, ao mesmo tempo, permitam que melhorem seu nível educacional. Lá no futuro será importante aprofundar a educação pré-escolar. Por último, é importante apoiar o setor de trabalhadores informais e tentar aumentar o emprego de carteira assinada, um dos grandes sucessos da primeira década dos anos 2000 no Brasil e em outras partes da América Latina.

Essas medidas ficaram mais difíceis de serem implementadas após a pandemia? Claro, estou ciente de que esta é uma agenda muito ambiciosa e que não será adotada da noite para o dia. Mas, esperançosamente, é a aspiração de todos os governos e pode progredir pouco a pouco nessa direção. Caso contrário, enfrentaremos mais instabilidade política e social na região.

O atual governo brasileiro foi eleito com discurso neoliberal. Essa receita da Escola de Chicago ainda faz sentido no mundo hoje? Acho que há um consenso crescente de que a receita neoliberal não é a solução para promover o desenvolvimento. Todos os países mais bem-sucedidos foram vitoriosos devido à sua capacidade de desenvolver uma economia mista, com uma relação mais construtiva entre os setores público e privado.

Se pensarmos na posição recente do FMI [Fundo Monetário Internacional] ou do Banco Mundial ou nas propostas da OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico] ou do governo Biden, nos EUA, vemos que cada vez mais atores estão propondo políticas de Estado mais ativas em áreas como política industrial, política social e política redistributiva. O grande desafio do desenvolvimento não é reduzir o papel do Estado, mas ter um Estado mais eficiente, ativo e com uma relação mais construtiva com o setor privado.

O mundo tende a se preocupar em reduzir a desigualdade após a pandemia ou esse é um desejo irreal? No plano internacional, sem dúvida, acredito que mais atenção será dada à desigualdade como um problema com graves custos sociais, econômicos e políticos, como mostrei em meu recente livro The Costs of Inequality in Latin America [Os Custos da Desigualdade na América Latina]. Porém, no que cabe a cada país, tudo dependerá da capacidade das sociedades de gerar novos consensos sociais e novas alianças pró-redistributivas. O problema é que, se isso não acontecer, as chances de aumentar o descontentamento e a polarização social são muito grandes.

RAIO-X
Diego Sánchez-Ancochea, 46
Nasceu em Madri, na Espanha. É economista, tendo estudado na Universidade Complutense de Madri, na New School for Social Research (em Nova York) e Universidade de Oxford, no Reino Unido, onde é chefe do Departamento de Desenvolvimento Internacional. É autor de “The Costs of Inequality in Latin America” (Os Custos da Desigualdade na América Latina).

Apagão da mão de obra

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Neste momento de pandemia, marcados por grandes instabilidades econômicas, crise sanitária e constantes desequilíbrios políticos, percebemos que a recuperação da economia, fundamental para o retorno do sistema produtivo, tende a prescindir de mão de obra capacitada para alavancar a economia e retomar os investimentos produtivos, sem capital humano especializado as dificuldades da retomada tendem a se limitar a poucos setores, gerando espaços de crescimento com pouco emprego, aprofundando as gigantescas desigualdades sociais.

A sociedade precisa criar instrumentos para estimular os setores educacionais para formar mão de obra capacitada, qualificando os trabalhadores e construindo ambientes de ensino e aprendizagem, num ambiente de constantes transformações, de forte concorrência, de informações crescentes, prescindindo de um sistema educacional consolidado, profissionais capacitados e empresas em condições de formar cidadãos críticos, metodologias modernas e fortemente competitivas.

A pandemia está acelerando os desafios para a sociedade, todos os setores estão sentindo os impactos deste fenômeno, exigindo atitudes organizadas e concatenadas, onde o planejamento e as estratégias são fundamentais, exigindo dos setores púbico e privado, instrumentos efetivos e imediatos para que o país consiga pensar os momentos pós-pandemia e adotar políticas planejadas. Dentre os setores mais estratégicos na economia contemporânea, não devemos relegar os setores educacionais, criando instrumentos de financiamentos, coordenação entre os setores e a construção de metodologias que motivem os estudantes e os profissionais, fomentando o dinamismo dos espíritos empreendedores, elementos centrais neste momento de incertezas e instabilidades generalizadas.

Os índices de desemprego são preocupantes, estamos falando em mais de 20 milhões de desempregados e desalentados, cujos impactos sociais e econômicos são elevados e degradantes, com estes números, percebemos que o potencial de geração de riqueza é elevado, mas subocupado, gerando desperdício elevado para a sociedade. Uma grande contradição brasileira, estamos vivendo desemprego e subempregado crescentes e, ao mesmo tempo, carência de mão de obra capacitada, profissionais qualificados para compreender os desafios do mundo contemporâneo.

O mundo do trabalho está passando por um período de reconfiguração, marcados pela automação, pela inteligência artificial e pela quarta revolução industrial. Estes trabalhadores estão em falta na sociedade brasileira, diante disso, os grupos econômicos e políticos precisam criar instrumentos de capacitação do capital humano, para isso, faz-se necessário a junção de todas as forças ativas da sociedade, unindo universidades públicas e privadas, centros de pesquisas, o sistema S (Senai, Senac, Sebrae, dentre outros), secretarias de educação, ministério da educação, dentre outros. O esforço deve ser costurado visando auxiliar na recuperação da economia, motivando a melhora do ambiente dos países desenvolvidos, estimulando investimentos, gerando empregos e dinamizando os setores produtivos.

Sem crescimento econômico, baixa confiança dos setores produtivos, percebemos a fuga de cérebro, profissionais altamente capacitados estão deixando o país em busca de oportunidades de trabalho e desenvolvimento profissional, desta forma, sem planejamento e organização dos setores educacionais, o país rifa o futuro e deixa de angariar novos espaços de crescimento econômico, deixando, mais uma vez, oportunidade de surfar neste ambiente externo favorável que se avizinha.

Vivemos um momento preocupante, anteriormente éramos vistos com um futuro respeitável e admirado pela comunidade internacional, atualmente estamos se degradando a olhos vistos, neste momento de degradação, muitos jovens e adolescentes estão buscando novas paradas, deixando famílias em busca de novos horizontes, de novas oportunidades profissionais, ascensão social e melhores condições de vida. Vivemos na era da informação e do conhecimento, neste momento o ativo mais importante da sociedade contemporânea é o capital humano, sem melhorarmos a formação dos cidadãos seremos relegados ao subdesenvolvimento e a dependência eterna.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre, Doutor em Sociologia/Unesp e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 14/07/2021.

Economia global tem rachaduras após a covid-19

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O crescimento está voltando rapidamente em todo o mundo após a pandemia, mas há problemas abaixo da superfície

The Economist, O Estado de S. Paulo – 11 de julho de 2021

A pandemia provocou uma terrível recessão econômica, mas, agora, um estranho e empolgante boom econômico ocorre a todo vapor. O preço do petróleo disparou e restaurantes e empresas de transporte estão tendo de lutar e agradar para recrutar funcionários. Enquanto empresas listadas sinalizam que os lucros atingirão recordes neste ano, os mercados de ações estão em alta. Um índice produzido pela JPMorgan Chase e IHS Markit sugere que o crescimento global está em seu ponto mais alto desde os grandiosos dias de 2006.

Qualquer saída da covid-19 é motivo de comemoração. Mas a economia em expansão de hoje também é uma fonte de ansiedade, porque três rachaduras estão abaixo da superfície. Juntas, elas determinarão quem prosperará e se a recuperação mais incomum de que se tem lembrança conseguirá ser mantida.

A primeira divide os vacinados dos não vacinados. Apenas aqueles países que estão recebendo vacinas em seus braços serão capazes de controlar a covid-19. Essa é a condição para que lojas, bares e escritórios reabram permanentemente, e os consumidores e trabalhadores tenham confiança para sair de casa. Mas apenas uma a cada quatro pessoas no mundo tomou a primeira dose de vacina e apenas uma a cada oito está completamente imunizada. Mesmo nos Estados Unidos alguns Estados com poucas pessoas são vulneráveis à infecciosa variante Delta do vírus.

A segunda está entre a oferta e a demanda. A escassez de microchips interrompeu a fabricação de eletrônicos e carros justamente quando os consumidores mais os queriam. O custo do envio de mercadorias da China para os portos da costa oeste dos EUA quadruplicou em relação ao seu nível antes da pandemia.

E mesmo à medida que esses gargalos são desbloqueados, as economias recém-abertas criarão novos desequilíbrios. Em alguns países, as pessoas parecem mais dispostas a sair para tomar algo do que para trabalhar atrás do balcão, causando uma escassez estrutural de mão de obra no setor de serviços. Os preços das casas dispararam, sugerindo que os aluguéis também começarão a subir em breve. Isso poderia sustentar a inflação e intensificar a sensação de que a habitação está cara demais.

A última rachadura é em relação à retirada de incentivos. Em algum momento, as intervenções estatais que começaram no ano passado devem ser revertidas. Os bancos centrais do mundo rico compraram ativos no valor de mais de US$ 10 trilhões desde o início da pandemia e estão nervosamente considerando como se libertar sem causar desespero nos mercados de capitais por um aperto rápido demais. A China, cuja economia não encolheu em 2020, dá um sinal do que está por vir: o país apertou a política de crédito neste ano, desacelerando seu crescimento.

Enquanto isso, os esquemas de ajuda emergencial do governo, como complementos de seguros-desemprego e moratórias de despejo estão começando a expirar. É improvável que as famílias recebam uma nova injeção de incentivos em 2022. Os déficits se contrairão em vez de expandir, puxando para baixo o crescimento. Até agora, as economias têm evitado em grande parte uma onda de falências, mas ninguém sabe quão bem as empresas vão lidar com isso quando os empréstimos
de emergência vencerem e os trabalhadores não forem mais capazes de ficar de licença às custas dos contribuintes.

Você talvez ache que um evento tão extremo como uma pandemia, combinado com a resposta sem precedentes do governo a ele, em algum momento, desencadearia uma reação econômica global igualmente extrema. Os pessimistas se preocupam com um retorno à inflação ao estilo dos anos 1970, ou um colapso financeiro, ou que a energia subjacente do capitalismo seja drenada por esmolas do Estado. Tais resultados apocalípticos são possíveis, mas não são prováveis.

Em vez disso, uma maneira melhor de pensar a respeito do prognóstico incomum é examinar como as três linhas interagem de modo diferente em diferentes economias.

Comece com os Estados Unidos. Com vacinas abundantes e enormes incentivos, o país corre o maior risco de superaquecimento. Nos últimos meses, a inflação alcançou níveis não vistos desde o início dos anos 1980. Seu mercado de trabalho está sob pressão à medida que a atividade econômica muda. Mesmo depois de um crescimento de 850 mil novas vagas de emprego em junho e levando em consideração as vagas em abundância, o número de pessoas trabalhando com lazer e hotelaria é 12% menor do que antes da pandemia. Os trabalhadores estão relutantes em retornar ao setor, o que fez com que os salários aumentassem.

O pagamento por hora está quase 8% maior do que em fevereiro de 2020. Talvez eles voltem quando os benefícios do seguro-desemprego de emergência expirarem em setembro. Mas os países sem tais esquemas de ajuda, como a Austrália, também estão vendo uma escassez de mão de obra. As atitudes em relação ao trabalho podem estar mudando na base do espectro de renda, entre garçons e faxineiros, não apenas entre os profissionais com grandes salários que sonham com iates e anos sabáticos.

Os países de renda baixa e média estão em uma situação difícil. Eles deveriam estar se beneficiando pelo aumento da demanda global por commodities e bens industriais, mas estão passando por dificuldades. A Indonésia, lutando contra outra onda de covid-19, está transferindo oxigênio da indústria para os hospitais. Em 2021, prevê-se que os países mais pobres, que estão desesperadamente com escassez de vacinas, crescerão mais lentamente que os países ricos, pela terceira vez apenas em 25 anos.

Mesmo com a covid-19 enfraquecendo suas recuperações, os mercados emergentes enfrentam a possibilidade de taxas de juros mais altas no Fed. Isso tende a pressionar para baixo suas moedas à medida que os investidores compram dólares, aumentando o risco de instabilidade financeira. Seus bancos centrais não podem se dar ao luxo de ignorar a inflação temporária ou importada. Brasil, México e Rússia aumentaram as taxas de juros recentemente, e mais lugares podem fazer o mesmo. A combinação de vacinação tarde demais e aperto cedo demais será dolorosa.

O ciclo econômico tem sido frenético, deixando a recessão para trás em apenas um ano. Talvez no verão do Hemisfério Norte de 2022 a maioria das pessoas esteja vacinada, os negócios tenham se adaptado aos novos padrões de demanda e os incentivos estejam sendo relaxados de maneira organizada. Nesse estranho boom, entretanto, cuidado com as rachaduras.

TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA

A OCDE e os desafios da educação brasileira, por Claudia Costin

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Relatório enfatiza as profundas desigualdades educacionais que vivemos

Claudia Costin Diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais, da FGV, e ex-diretora de educação do Banco Mundial.

Folha de São Paulo, 08/07/2021

Foi lançado, há poucos dias, um relatório da OCDE, em parceria com o Todos pela Educação e o Sonho Grande, sobre os desafios atuais da educação brasileira. Com o título “A Educação no Brasil, uma Perspectiva Internacional”, o texto analisa o contexto geral da educação brasileira no período imediatamente anterior à pandemia, os impactos do prolongado fechamento das escolas e a resposta educacional à Covid, finalizando com algumas recomendações para assegurar uma aprendizagem de qualidade para todos.

Ao apresentar as características da educação brasileira, o texto chama atenção para o incrível avanço no acesso à escola que o Brasil viveu desde a Constituição de 1988, o que permitiu ao país ampliar a escolaridade média de sua população e, portanto, melhorar a qualificação da sua força de trabalho, o que é vital para o momento que vive a economia mundial.

Para isso, melhorias no financiamento da educação foram essenciais e foi importante, mais recentemente, torná-lo permanente e mais redistributivo. Mas não é suficiente estar na escola e ali permanecer por mais anos. É fundamental garantir que crianças e jovens aprendam o que é relevante em cada etapa de escolaridade e desenvolvam competências não só para o trabalho, mas para a vida em sociedade. E aí o problema ganha uma dimensão muito maior.
Vivemos uma crise de aprendizagem, com a maioria dos alunos com grandes dificuldades para ler e interpretar textos um pouco mais sofisticados, o que demanda um repertório cultural mais amplo, raciocinar matematicamente ou pensar cientificamente.

O relatório enfatiza as profundas desigualdades educacionais que vivemos, expressas não só em exames internacionais, como o Pisa, como no próprio acesso a diferentes etapas de escolaridade e na permanência em instituições escolares. São os que mais precisam do efeito escola e os que têm menos apoio para assegurar a tão necessária aprendizagem que acabam abandonando os estudos.

Da mesma maneira, a pandemia e sua inadequada gestão afetaram mais a aprendizagem e a permanência justamente dos mais vulneráveis, que não contam com conectividade, equipamentos e presença de adultos para organizar o ambiente de estudo dos pequenos. Mesmo com todo empenho de professores para oferecer outros meios de aprendizagem, as perdas decorrentes do fechamento das escolas foram imensas.

As saídas? A OCDE aponta dez, e destaco aqui algumas: proteger os gastos em educação, apoiar os mais pobres desde cedo, oferecer reforço escolar sólido e tornar a carreira docente altamente qualificada e atrativa, melhorando as práticas de ensino.

Vergonha nacional

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Estamos vivendo um momento de grandes instabilidades, além da crise sanitária e da crise econômica, o país está sentindo as bases de outra crise, a política. As revelações da CPI da Covid estão mostrando os equívocos da gestão do Executivo.

Neste ambiente, as taxas de câmbio começam a assombrar a sociedade e impactando sobre os indicadores econômicos, afastando a recuperação da economia em V, uma mentira difundida pelo Ministro da Economia, Paulo Guedes.

Neste ambiente, os dados vergonhosos divulgados pela Receita Federal nos trazem novos elementos importantes para a discussão, onde vinte mil cidadãos que auferiram mais de R$ 230 bilhões de renda no ano passado deixaram de pagar tributos, ou seja, estes indivíduos não pagaram nada de imposto de renda.

Diante disso, percebemos muitos indivíduos equivocados defendem o “excesso” de pagamentos de tributos no país, na verdade esta narrativa é errada, quem realmente paga imposto no Brasil? Os dados são precisos e necessitamos incrementar as discussões de como financiar os gastos excessivos gerados pela pandemia.

Muitos empresários rechaçam os incrementos da tributação, defendendo que serão afetados pelo aumento dos tributos, um equívoco generalizado. Esses grupos que se acreditam ser classe alta, na verdade são verdadeiros indivíduos de classe média, defendem uma bandeira que não é sua, são verdadeiros iludidos e alienados, precisam estudar e refletir sobre as bases da desigualdade do país, que tem na questão tributária desigual, uma das causas da concentração de renda.

Os grandes donos do capital são aqueles que auferem bilhões e bilhões de reais, estes sim seriam os verdadeiros que deveriam ser tributados, como forma de justiça fiscal e instrumento de diminuir o fosso entre os grupos sociais, sem eles não seremos elevados a patamares mais altos de civilização… Reflitamos.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

A grande mentira, por Antônio Prata.

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O sistema imunológico da democracia foi minado por ela mesma

Antonio Prata Escritor e roteirista, autor de “Nu, de Botas”.

Folha de São Paulo, 03;07/2021

Na revista piauí de junho, Roberto Andrés discute o ousado pontapé inicial do governo Biden. O presidente americano irá injetar trilhões de dólares na economia, estendendo o cobertor do bem-estar social e investindo pesado para reduzir emissões de carbono. O cavalo de pau foi dado, entre outras razões, pela constatação de que o trumpismo e demais arroubos antidemocráticos mundo afora só foram possíveis pois o discurso das democracias liberais estava fazendo água havia tempo.

Como as pessoas podem acreditar que a terra é plana? Como podem acreditar que a vacina vai instalar um chip em seus corpos? Como puderam acreditar nas mentiras do Trump e seguem acreditando nas do Bolsonaro, do Qanon, do Olavo de Carvalho? Bem, tanto nos EUA quanto no Brasil essas pessoas passaram décadas crendo numa mentira não menos gigante: que as democracias liberais, este nosso mundo com eleições, Netflix, cartão de crédito, Peppa Pig, politicamente correto, cross-fit, Carteira de Trabalho, McFlurry, habeas corpus, Fuvest e afins iria melhorar suas vidas, garantir seus direitos básicos e introduzi-las numa sociedade justa, onde todos teriam as mesmas oportunidades. Balela.

No longevo reinado de quase meio seculo do neoliberalismo, enquanto o estado do bem-estar social ia sendo desmantelado mundo afora, a distância entre o 1% e os 99% crescia. As pessoas se sentiram enganadas –e foram. (Sobre este processo, vale ler “A consciência de um liberal”, do Paul Krugman, e os contos “O cobrador”, do Rubem Fonseca, e “O espremedor de culhões”, do Bukowski).

Não adianta virem os Stevens Pinkers da vida mostrar que o capitalismo melhorou as condições dos pobres nos últimos 250 anos. O motoboy que se arrisca todo dia sob sol e chuva pra levar refeições valendo metade do seu salário não quer saber dos últimos 250 anos, quer saber do mês seguinte. Quer ter um trabalho que curta e seja bem pago, quer ser olhado com desejo pela moça bonita do Shopping Higienópolis e não com desconfiança pelos frequentadores e seguranças. Quer ser admirado pelos filhos e comer sua picanha com cerveja no domingo.

As pessoas não são burras. O motoboy olha pela fresta da porta na casa chique e sabe que é o mais próximo que vai chegar daquela sala, embora o discurso reinante seja o de que se ele se esforçar bastante, prosperará. Se isso não é fake news, não sei o que é.

O bolsonarismo e o trumpismo são infecções oportunistas: alastraram-se porque o sistema imunológico da democracia foi minado por ela mesma. Essa picaretagem de prometer aos pobres propaganda de margarina e entregar gás lacrimogêneo aguenta só até certo ponto. Quando a mentira cai de madura, a dissonância cognitiva deixa na cabeça dos desiludidos um rombo pelo qual entra todo o tipo de terraplanismo.

Não vamos vencer o fascismo fazendo jogral com artistas no Facebook nem escrevendo colunas argumentando que a democracia é a melhor forma de governo –tenho lugar de fala, de jogral e de coluna neste assunto. A melhor saída, a única eficaz e justa, é construirmos uma democracia que seja radicalmente inclusiva. Do contrário, na hora de escolher entre ser engambelado pela conversa pra boi dormir ou se tornar gado no estouro da boiada, as pessoas seguirão optando pelo segundo. Ou o Brasil paga o que deve à maioria dos brasileiros ou em breve não serão de polegares e indicadores as armas apontadas pela turba enfurecida. Pensando melhor: já não são.

Tempestade perfeita

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Numa sociedade marcada por tantas instabilidades, onde as tecnologias ganham espaços crescentes, onde a pandemia ainda gera grandes destruições, onde a concorrência cresce de forma acelerada, onde as transformações no mundo do trabalho crescem rapidamente, gerando desempregos e subempregos, neste mundo de tantas iniquidades, sentimos mais uma outra crise, vivemos num momento de novas instabilidades, novos conflitos políticos, percebemos, literalmente que estamos sem rumo, sem perspectivas e os presságios são ruins e preocupantes.

Neste ambiente, as previsões otimistas são limitadas e centradas nas crenças dos financistas, os bons números da Bolsa de Valores e do mercado financeiro contrastam com os quase 15 milhões de desempregados, onde a fome cresce de forma acelerada, investigações políticas, promessas de melhoras sem lastro e credibilidade. Estamos vivendo uma verdadeira tempestade perfeita, criamos fantasmas, inimigos imaginários, os confrontos se espalham pelas redes sociais e, neste ambiente, o mundo civilizado se recupera, suas economias mostram sinal de melhora e a população começa a enxergar novos movimentos de crescimento econômico. Neste ambiente, estamos aguardando horizontes positivos, mas ao mesmo tempo enxergamos apenas bizarrices, xingamentos, grosserias e contradições crescentes.

A pandemia está em curso, neste ambiente percebemos cenário de algum crescimento econômico, motivado pela economia global, alguns países estão se mostrando mais resilientes, motivados pelas intervenções econômicas agressivas, investimentos em infraestrutura e fortes recursos em ciência e tecnologia, impulsionando o consumo interno e impactando aos países em desenvolvimento. O Brasil está sentindo o estímulo adotado pelos países desenvolvidos, como exportadores de produtos primários, a economia senti as demandas externas, aumentando as vendas externas e melhorando as contas internas, atraindo moeda forte e valorizando a moeda nacional. Estes movimentos positivos devem ser vistos como um momento de adotar políticas efetivas para melhorar os indicadores econômicos e a adoção de políticas públicas para reduzir os desequilíbrios sociais, melhorando o ambiente interno e contribuindo para a construção de um cenário marcado por credibilidade e confiança, fundamentais para aumentar o investimento produtivo e estimular novos empreendimentos.

Os desafios da sociedade brasileira são imensos, estamos convivendo com crises conjuntas com impactos desastrosos para a sociedade, gerando mais desemprego e crescimento das falências e desestruturação dos setores econômicos e produtivos. Neste ambiente, percebemos a importância do direcionamento do Estado, como ator central nas políticas públicas, mas num ambiente de instabilidades crescentes, faz-se necessário a atuação conjunta com os mercados, construindo novos espaços de confiança mútua, sem credibilidade os agentes econômicos não investem no crescimento econômico de forma sólida, consistente e duradouro.

Neste ambiente, vivemos um momento de união de todos os atores sociais, as dificuldades crescem pelo ambiente de conflagração crescente que percebemos na sociedade nacional, mostrando que os agentes econômicos se voltam para seus interesses imediatos e particulares, sem pensar na coletividade e esquecendo do planejamento estratégico, instrumentos fundamentais para a construção de uma nação.

As dificuldades existentes na sociedade brasileira mostram as fragilidades da construção política, neste cenário os agentes políticos e econômicos precisam refletir sobre os resultados conseguidos, esta análise deve ser feita de forma racional e abrangente, percebendo os equívocos e reconstruindo espaços e caminhos mais consistentes.

Vivemos num ambiente de tempestade perfeita, muitos desafios estão acontecendo ao mesmo tempo, a pandemia matou mais de quinhentos mil brasileiros, a crise econômica está gerando desagregação de comunidades inteiras e as crises políticas podem levar o país ao caos generalizado, levando o país a um retrocesso enorme e exigindo das gerações futuras desafios sobre humanos, evitemos esta destruição, pois a história será implacável.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 07/07/2021.

‘20 mil recebem R$ 230 bi sem pagar Imposto de Renda’, diz secretário especial da Receita

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José Tostes rebate as críticas ao projeto que estabelece a volta da taxação sobre dividendos de empresas

Entrevista com José Tostes, secretário especial da Receita Federal

Adriana Fernandes e Idiana Tomazelli, O Estado de S. Paulo – 03/07/2021

BRASÍLIA – Diante da acusação de empresários de que a reforma do Imposto de Renda apresentada pelo governo elevaria a carga tributária, o secretário especial da Receita Federal, José Tostes, afirma que não se pode misturar a tributação de empresas com a de pessoas físicas e cita uma distorção na isenção de lucros e dividendos.

“Temos aqui apenas 20.858 pessoas, numa população de 210 milhões, que receberam R$ 230 bilhões sem pagar imposto”, afirma. Essas pessoas pagaram só 1,8% de todo o rendimento que receberam, argumenta Tostes.

Confira os principais trechos da entrevista:

A carga tributária do Brasil está em torno de 31%. A maior crítica é de que a Receita colocou muita gordura na proposta para aumentar a arrecadação.

Não concordamos com essa avaliação. Fizemos uma proposta para ter equilíbrio entre medidas que aumentam e que reduzem a arrecadação. Esses argumentos de que haverá aumento, precisamos avaliar de que forma estão sendo calculados. O não aumento da carga tributária é um princípio que o ministro Paulo Guedes colocou no início do seu trabalho.

A carga não aumenta?
De fato, a carga tributária não aumentou. Se essas medidas agora possibilitarem algum aumento de carga, não será por conta delas em si, porque, como nós estamos vendo, está havendo um aumento de arrecadação este ano que poderá ser utilizado para reduzir incidências tributárias no próximo ano. Estamos com resultados bastante auspiciosos de arrecadação este ano, e que não têm nada a ver com o aumento de impostos, de alíquotas ou alterações nas regras tributárias.

O sr. falou que não tem como saber como está sendo feita a conta do aumento de carga. A Receita também divulgou apenas parcialmente os números. Eles serão detalhados?
Sim. Estamos preparando uma nota exaustivamente detalhada, inclusive quanto a parâmetros, quanto às variáveis, quanto à metodologia utilizada. Veja que, por exemplo, a alíquota da pessoa jurídica está sendo reduzida para 29%, e está sendo extinta a isenção do Imposto de Renda incidente sobre a distribuição dos dividendos, com uma alíquota de 20%. Muitos comentários que revelam a preocupação com o aumento de carga tributária somando as duas alíquotas.

Completamente errado esse cálculo. Não posso somar os 29% da pessoa jurídica com os 20% da distribuição dos dividendos. São tributos que incidem sobre contribuintes distintos, pessoa jurídica e pessoa física.

Mesmo assim, fica em 43%, o que os críticos acham alto.

Exatamente a mediana dos países da OCDE. É 43,75%. E aí você vai ver: os 29% que incidem sobre o lucro da pessoa jurídica estão um pouco acima da média da OCDE, e os 20% na distribuição de dividendos estão bem abaixo.

O sr. pode dizer onde está o caráter distributivo da proposta?
As empresas estão tendo uma redução de impostos, de 34% para 29%. Isso é uma brutal redução de alíquota que incide sobre o setor produtivo. O que está sendo criado, como nova incidência, é sobre uma renda de pessoa física, sócio de pessoa jurídica, que é isento até hoje e vai passar a ser tributado em 20%, o que absolutamente não é novidade na maioria dos países. O Brasil antes de 1995 tinha exatamente este modelo de tributar a pessoa jurídica e tributar também a distribuição na pessoa física. Em 1995, optou por tributar só na jurídica e isentar a pessoa física.

Agora, estamos avaliando voltar à situação anterior, usada hoje na maioria dos países.
Há uma confusão entre empresa e pessoa física?
Claro. Se a pessoa jurídica obtiver um lucro, vai pagar pela proposta 29%. Se reinvestir no próprio negócio os seus lucros, se capitalizar, se expandir em termos de investimentos com o seu próprio lucro, a tributação acabou aí. Só vai haver a incidência dos 20% se este lucro for distribuído como rendimento à pessoa física do sócio. Se ela reinvestir o lucro no próprio negócio, na expansão empresarial, na geração de empregos, não vai haver tributação dos 20%. Então, é uma medida que estimula o reinvestimento na própria empresa.

Quem hoje recebe na pessoa física esses lucros e dividendos e por que há essa grita diante da proposta de tributação?
Os que recebem acima de 320 salários mínimos (mais de R$ 352 mil por mês). São 20.858, que recebem de rendimentos isentos R$ 230,81 bilhões. Não preciso dizer muito mais para identificar quem vai deixar de ser isento e vai pagar imposto a partir de agora. E mais ainda: se você somar os rendimentos tributáveis dessas 20.858 pessoas, que são apenas R$ 18 milhões tributados como salário e como rendimentos de trabalho, e os R$ 230 bilhões como dividendos e rendimentos isentos, essas 20.858 pessoas terminam por ter uma alíquota média de imposto de 1,8%. Ou seja, considerando todos os rendimentos que receberam, o imposto que elas pagaram representa 1,8%. Vamos mostrar os números e ver de fato quem vai ser afetado com esta medida. Nós temos aqui apenas 20.858 pessoas, numa população de 210 milhões, que receberam R$ 230 bilhões sem pagar imposto. Isentos de acordo com a legislação atual, não tem nada de ilegal aqui.

E o caso de contribuintes que detêm ações de empresas, estão na faixa até R$ 20 mil por mês, mas não terão isenção porque o incentivo só valerá para micro e pequenas empresas?

Esse público existe, mas sem dúvida é muito reduzido em relação ao conjunto. É um tema que estamos discutindo, e podemos fazer ajustes para aperfeiçoar a proposta.

Não há a preocupação de o projeto ficar uma “emenda pior do que o soneto”, como aconteceu com a MP da Eletrobrás?
Estamos já em interação com o Congresso. É claro que isso ainda vai ter desdobramentos na votação a partir das emendas que forem apresentadas, existe naturalmente a possibilidade de o texto ser alterado. Mas estamos na expectativa de que os princípios gerais e as regras mais importantes do projeto possam ter a aprovação no Congresso.

‘Apagão de mão de obra pode se tornar uma deficiência crônica’, alerta economista Ricardo Henriques

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Especialista foi um dos criadores do Bolsa Família diz que a sociedade tem que eleger a educação como prioridade absoluta, uma ‘escolha que nunca fez’

Cássia Almeida – O Globo, 04/07/2021

Se a sociedade brasileira não der prioridade absoluta à educação, o Brasil vai patinar por muito tempo como um país de renda média, com desemprego estrutural maior, mesmo se houver crescimento da economia, alerta o superintendente do Instituto Unibanco, Ricardo Henriques, que foi um dos criadores do Bolsa Família.

Em entrevista ao GLOBO, ele alerta que ainda é possível recuperar o tempo perdido, mesmo com retrocesso que a pandemia provocou, deixando a educação “de joelhos”.

Aumentou a exigência de qualificação?
Reconfiguração do mundo do trabalho, automação, inteligência artificial e a quarta revolução industrial geram a necessidade de aumentar a qualidade da qualificação média da população no ensino básico e superior massivamente.

O risco é que o desemprego de longa duração se perpetue, e o apagão de mão de obra virar uma noite longa. Pode se tornar uma deficiência crônica de mão obra que esteja adaptada à sociedade contemporânea.

Como enfrentar esse apagão?
O ensino técnico precisa sair desse patamar de 2 milhões para 3, 4, 5 milhões, que é a meta do Plano Nacional de Educação para 2024. Não vamos conseguir cumprir essa meta. Podemos aproveitar a janela da reforma do ensino médio, de ter saído da armadilha gerada pelo conteudismo irrelevante que distanciou a formação daquilo que é necessário para sociedade contemporânea.

Por isso, jovens não viam sentido nesse ensino médio. O ensino técnico abre oportunidade real de dar conta das competências e habilidades necessárias ao mundo de hoje.

Quais habilidades?
O mundo está reduzindo demandas física e manual, indo cada vez mais para a cognitiva avançada, a tecnologia, a habilidade socioemocional. Caminhar para habilidades que não estão associadas a um campo específico, mas que são fundamentais: empatia, gestão de estresse, trabalho em grupo, criatividade, comunicação, negociação, que vão servir para qualquer configuração do mundo do trabalho.

E adquirir competência digital básica, tecnologia digital avançada, processamento de informações complexas, análise de dados, pesquisa cientifica, gestão de projetos.

Mas não avançamos na educação?
Os inegáveis avanços na educação nos últimos 30 anos não foram suficientes. Continuamos patinando como um país de renda média. E a pandemia deixou a educação de joelhos.

A sociedade precisa reconhecer esse desafio e dizer que a educação é prioridade absoluta. O Brasil nunca fez isso. Não será fácil e nem imediato. Esse novo mundo exige que a sociedade brasileira faça a escolha que nunca fez.

A educação de mais qualidade para poucos é suficiente para fazer o país crescer?
Até bem pouco tempo atrás, uma elite, um grupo pequeno com alta inserção no mundo tecnológico conseguia que o país se movesse como um todo.

Na atual situação, todos precisam ter altas expectativas de educação, a performance de alta qualidade precisa ser massificada. Para que o país se mova, integrada ao circuito contemporâneo, a grande maioria da população, principalmente os jovens, precisa ter qualificação de alta de qualidade.

Se não houver alta expectativa para todos desde a primeira infância, aumenta-se o potencial do ressentimento na sociedade. Altas expectativas inibem os espaços de ressentimento, aumentam a probabilidade de harmonia. É essa utopia que sociedade deveria perseguir.

Milton Santos, morto há 20 anos, nos convida a construir uma outra globalização, por Itamar Vieira Júnior.

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Geógrafo apontou caminhos para um projeto humanitário que se contraponha ao poder totalitário do dinheiro

Itamar Vieira Júnior, geógrafo e escritor, autor de “Torto Arado”

Folha de São Paulo, 25/06/2021.

Há 20 anos, Milton Santos, um dos maiores pensadores brasileiros do século 20, nos deixava.
Nascido em 1926 no município de Brotas de Macaúbas, região da Chapada Diamantina, Santos migrou com a família para Salvador ainda na infância, onde concluiu o ensino fundamental e ingressou no curso de direito da Universidade Federal da Bahia.

Embora tenha se tornado bacharel, Santos se sentia vocacionado mesmo para a pesquisa e o ensino da geografia, sua grande paixão, o que fez com que se tornasse professor do colégio municipal de Ilhéus. Lá, passou a colaborar como correspondente do jornal A Tarde, de Salvador, atividade da qual nunca se afastou em definitivo, tendo inclusive escrito regularmente para esta Folha.

De volta à capital, tornou-se professor da Universidade Católica e, pouco tempo depois, seguiu para seu doutoramento em Estrasburgo, na França, sob a orientação do geógrafo Jean Tricart.

De volta ao Brasil, fundou o Laboratório de Geomorfologia e Estudos Regionais. Continuou atuando como professor, pesquisador e jornalista. Perseguido após o golpe de 1964, Santos foi preso por subversão e logo depois se exilou na França, tornando-se professor de algumas universidades do país —Toulouse, Bordeaux, Sorbonne—, além de outras nas Américas e na África, como MIT, Toronto, Columbia, Stanford e Dar es Salaam.

Em Dar es Salaam, pôde estabelecer um contraponto à sua formação predominantemente europeia, deixando-se influenciar por grandes pensadores do pós-colonialismo e incorporando ao seu pensamento marxista perspectivas do socialismo africano, alicerçado em valores caros ao continente, como o coletivismo, o humanismo e a sociabilidade.

Essa influência surgiu com força em seus escritos que interpretavam os desafios da descolonização e do neocolonialismo.

Milton Santos foi um dos grandes expoentes da renovação da geografia no final da década de 1970. Seu livro “Por uma Geografia Nova” contribuiu de forma definitiva para as bases da renovação crítica metodológica e epistemológica da disciplina.

A partir de então, aprofundou ainda mais seus estudos epistêmicos em livros como “O Espaço do Cidadão”, “A Natureza do Espaço”, “Espaço e Método”, “Metamorfose do Espaço Habitado”, na mesma medida em que avançava em sua análise para a compreensão do Brasil e do mundo em desenvolvimento ante os processos de globalização cada vez mais radicais e que têm ampliado, sobretudo, as desigualdades de forma jamais vista na história. Em 1994, foi agraciado com o Prêmio Internacional Vautrin Lud, considerado o Nobel da geografia.

A obra de Milton Santos é o reflexo de seu pensamento humanístico, crítico, político e solidário. Em “Por uma Outra Globalização”, publicado um ano antes de sua morte, Santos ilumina com suas reflexões os fenômenos sociais e econômicos de nosso tempo. Com sua análise acurada, ele anteviu a possibilidade de uma outra globalização, quiçá solidária, nascida das camadas mais desfavorecidas da sociedade.

Nesse livro, ele se antecipa no tempo ao descrever o poder totalitário do dinheiro, da monetização dos afetos e de um mundo cada vez mais subjugado pelo imperativo da informação. Mas, além de refletir sobre a “globalização perversa” ou “globalitarismo” que nos é imposto, Santos nos convida a construir uma outra globalização, como projeto humanitário a se contrapor às normas hegemônicas e predatórias das grandes corporações e dos Estados nacionais.

Assim como Milton Santos, estudei na Universidade Federal da Bahia, onde segui da graduação à pós-graduação. Logo após sua morte, Maria Auxiliadora da Silva, professora da universidade, e a viúva de Santos, Marie-Hélène, resgataram um antigo desejo dele: subsidiar a formação de alunos carentes.

Com recursos próprios, a família Santos tornou real esse propósito e, desde então, tem colaborado com a formação de estudantes de baixa renda através de bolsas de iniciação científica que levam o seu nome, projeto já institucionalizado pela universidade e que em 2022 completa 20 anos.

Foi assim que me tornei o primeiro “bolsista Milton Santos”, fato fundamental para que pudesse prosseguir com meus estudos universitários e que contribuiu, sem nenhuma dúvida, para minha formação superior. Hoje, já são dezenas de alunos egressos do mesmo programa, e nesse gesto altruísta podemos entrever a práxis de uma cidadania solidária.

Em um país de pouca memória, haveremos sempre de contar e recontar as histórias dos nossos, daqueles que não apenas sonharam com um lugar mais justo e humano, mas também se dedicaram a apontar os caminhos para alcançá-lo.

Nos EUA, nova maioria democrática precisa de uma nova economia, por Stepnhen Marglin

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Mesmo retirando as verrugas do capitalismo, você ainda terá um sistema que não possui mecanismos para produzir os empregos necessários

Stephen Marglin, Professor de economia da cadeira Walter S Barker da Universidade Harvard, é autor de “Raising Keynes: A Twenty-First-Century General Theory” (Ressuscitando Keynes: Uma Teoria Geral do Século 21, sem tradução para o português)

Não adianta procurar uma filosofia que oriente a economia do Partido Republicano além de “quero meu pedaço”. Mas qual é exatamente a filosofia dos democratas? É fácil deixar de perceber a divisão profunda entre a velha economia que guiou o Partido Democrata por uma geração e uma nova economia emergente.

A velha economia se baseia na crença de que a intervenção do governo, como o aborto, deve ser segura, legal e —acima de tudo— rara. O governo é necessário para lidar com verrugas periódicas que aparecem no corpo do capitalismo, mas tudo o que os curativos de curto prazo do governo podem fazer é acelerar o poder natural de cura inerente a uma economia de mercado.

Melhor ainda, são as medidas para remover as verrugas de uma vez por todas, para transformar a economia à imagem do modelo clássico de competição perfeita. Essa filosofia atingiu seu apogeu sob Clinton, culminando no seu caso de amor com a desregulamentação, particularmente do setor financeiro.

Sabemos como isso terminou. Alan Greenspan —discípulo de uma versão extrema dessa filosofia consagrada na ficção para jovens adultos de Ayn Rand— presidiu o Fed de 1987 a 2006, saindo logo antes da merda no ventilador, diante da qual declarou-se “chocado! chocado! chocado!” ao descobrir que a autorregulação do sistema financeiro não era tão confiável.

A crise de 2008 e a recessão que se seguiu foram um sinal de alerta, e Greenspan não foi o único que acordou —pelo menos momentaneamente. Pareceu por um tempo que a economia ortodoxa poderia estar aberta a novas ideias.

Infelizmente, a profissão rapidamente cerrou fileiras e vozes dissidentes foram, mais uma vez, marginalizadas.

A visão de que o problema são as verrugas, e não o próprio capitalismo, continua a dominar na academia. Mas a heterodoxia começa a fazer ondas. Economistas heterodoxos oferecem entendimentos alternativos de mudança climática, criação de dinheiro, banco central, desigualdade de renda e macroeconomia.

Ironicamente, a macroeconomia surgiu do trabalho do proeminente economista do século 20 John Maynard Keynes. Com o tempo, o radical e heterodoxo Keynes de “A Teoria Geral do Emprego, Juros e Dinheiro” foi transformado pela velha ortodoxia em um teórico supersofisticado das verrugas, especificamente, um teórico de como o capitalismo pode travar se os salários forem insuficientemente flexíveis.

A teoria das verrugas permitiu que os economistas aceitassem alguns dos insights de política de Keynes, em particular as limitações da política monetária e a necessidade de uma política fiscal anticíclica “in extremis”, enquanto rejeitava a ideia de que há alguma falha mais séria que as próprias verrugas. E, extremamente importante, restringir o papel do governo ao alívio das verrugas como esforço estritamente de curto prazo e limitado.

Minha própria contribuição para um crescente corpo de trabalhos heterodoxos, “Raising Keynes”, mostra como e por que a leitura ortodoxa de Keynes está errada e apresenta uma teoria que fundamenta o insight do economista de que, mesmo retirando as verrugas do capitalismo, você ainda terá um sistema que não possui mecanismos confiáveis para produzir os empregos necessários para os que desejam trabalhar.

Você precisa do governo, não de forma ocasional e intermitente, nas emergências, mas o tempo todo, tanto a longo prazo como nas emergências.

A seção de relevância mais imediata para a batalha pela alma econômica do Partido Democrata é a estrutura que apresento para compreender os meandros dos déficits e dívidas. Não só a política fiscal anticíclica mas também os déficits no contexto de uma economia com alto índice de empregos, quando não há mais o almoço grátis possibilitado pela simples combinação de homens e mulheres ociosos às máquinas ociosas. Em que medida a dívida pública deve restringir nossas escolhas?

Está começando a ser entendido que, além das áreas tradicionais de gastos do governo, a economia do século 21 deve incluir a provisão do governo para creches, para idosos e, talvez o mais importante, para uma transição para energias renováveis. Quanto desses bens é suficiente, e quanto devemos nos preocupar com qualquer dívida adicional que um governo robusto possa acarretar?

O governo Biden e a ala Sandres /Warren/ Ocasio-Cortez do Partido Democrata substituíram a abordagem apologética dos anos Obama por um compromisso ousado de mobilizar o governo para fazer o que for preciso para fornecer um futuro sustentável e equitativo. Tal como acontece com as iniciativas políticas de Franklin Roosevelt, a ação não esperou a teoria.

Mas as teorias econômicas e a prática política sobem e descem juntas. Keynes e a coalizão do New Deal nos EUA e a social-democracia na Europa apoiaram-se mutuamente; Milton Friedman e outros teóricos de direita e a política antigovernamental Reagan-Thatcher também.

Chegou a hora de uma simbiose de uma nova economia, em que a bideneconomia realmente faça sentido, com a política de uma nova maioria democrata.

Tradução de Joaquim Andrade