China dobra aposta em tecnologia, por Tatiana Prazeres.

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País mobiliza grandes investimentos para projetos de tecnologia em estágios iniciais

Folha de São Paulo, 02/04/2021

Volumes fabulosos de recursos já foram investidos no desenvolvimento de semicondutores e, apesar disso, a China segue altamente dependente da importação desses insumos.

Anos de expectativas frustradas incomodam o governo chinês. Não apenas porque isso evidencia a dificuldade de transformar desejos em realidade, mas também porque coloca a China numa posição vulnerável do ponto de vista tecnológico.

Do total de semicondutores que consome, a China produz apenas 30% e importa o restante, numa proporção que há anos insiste em não se alterar.

A China depende de chips para produzir outros bens, para exportar e para inovar. Produtores de carros chineses, por exemplo, importam 90% dos semicondutores de que necessitam.

Os EUA enxergaram na fragilidade chinesa uma oportunidade. Adotaram medidas para restringir suas exportações de semicondutores para a China. Foram além e criaram dificuldades para que empresas estrangeiras mesmo fora dos EUA vendessem, para a China, equipamentos e software para a produção de chips.

Ainda que em escala menor, histórias parecidas se repetem em outras tecnologias. É extensa a lista de empresas chinesas proibidas de fazer negócios com firmas americanas. Com isso, limita-se o acesso chinês a certos insumos estratégicos.

Qual a consequência do outro lado do mundo? O Estado-investidor chinês aumenta seu apetite pelo risco. Pequim passa a atuar como um “venture capitalist” —como argumentou Arthur Kroeber num webinário organizado pelo Cebri e Conselho Empresarial Brasil-China nesta semana.

Claro, investimentos em política industrial, em tecnologia e mesmo em autossuficiência não são novidade na China. No entanto, agora Pequim mais que dobrou a aposta.

O que há de novo são a ousadia na maneira de investir, o volume de recursos envolvidos na empreitada e a coerência estratégica da intervenção do Estado, segundo Kroeber.

Pequim passa a mobilizar grandes investimentos em setores intensivos em tecnologia, especialmente para vários projetos em estágios iniciais —arriscados, mas potencialmente promissores.

Como é típico do modelo de “venture capitalism”, nem todas as apostas vão se revelar acertadas. Mas, claro, a ideia é de que haja vencedores suficientes para compensar os investimentos que inevitavelmente fracassarão.

Apesar de tudo, o sucesso não é garantido. As dificuldades normalmente associadas a política industrial estão presentes também na China. Há espaço para desperdício, favorecimentos, distorções e corrupção.

Quando, no ano passado, Pequim definiu novos incentivos para o desenvolvimento de semicondutores, empresas de todos os tipos se aprontaram para pleitear benesses. O governo precisou agir para evitar abusos. Definiu três “nãos”.

Empresas sem experiência, sem tecnologia e sem capital humano na área não deveriam se aventurar aí —não com recursos públicos.

Se o intervencionismo estatal tem seus riscos, a lógica do relacionamento entre Estado e mercado na China, no entanto, sempre foi diferente. O setor público é visto sobretudo como parte de solução e não como o problema na economia.

Expressões como China Inc. e capitalismo de Estado, por exemplo, representam o esforço de capturar a essência deste modelo híbrido —e que também se transforma. Mas enquanto o resto do mundo aponta para as contradições, os chineses enxergam as sinergias da relação.

Nas atuais circunstâncias, a dependência tecnológica da China e o ambiente internacional difícil para o país contribuem para a ousadia do Estado-investidor. Não por acaso o recém-adotado plano quinquenal prioriza autossuficiência tecnológica.

Se fosse um investidor privado, a China de hoje teria perfil arrojado. O risco é alto, mas o retorno também pode ser. Em jogo, estão os rumos da competição tecnológica, econômica e geopolítica. Com bolsos mais fundos que no passado, Pequim está disposta a pagar para ver.

A reforma revolucionária de Biden, por Nelson Barbosa.

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Se proposta tiver sucesso, acabará o festival de planejamento tributário nos EUA

Nelson Barbosa – Folha de São Paulo, 02/04/2021

O governo Biden mais uma vez mostrou o caminho para sair da crise, confirmando o que vários economistas heterodoxos vêm dizendo, há décadas, nos EUA e por aqui. Aos números.

Depois de aprovar um “programa de resgate” de US$ 1,9 trilhão, focado em transferência de renda aos mais pobres e mais recursos para saúde e educação, Biden lançou um “programa de emprego” de US$ 2,3 trilhões nesta semana.

O valor da segunda iniciativa se divide em: US$ 621 bilhões em infraestrutura de transporte (incluindo rede de energia para veículos elétricos), US$ 689 bilhões em habitação e serviços públicos (como saúde, educação e creches), US$ 578 bilhões em inovação e geração de empregos (política industrial e tecnológica) e US$ 400 bilhões para expandir e melhorar o cuidado de idosos e pessoas portadoras de necessidade especiais.

Somando os planos de resgate e emprego, o “Pacote Biden” está em US$ 4,2 trilhões. O valor parece alto, mas como o programa de emprego será distribuído em oito anos, seu impacto imediato na economia não é grande. Por esse motivo Biden já recebeu críticas da extrema-esquerda dos EUA, que desejava um valor maior.

Biden foi “comedido” no programa de emprego porque foi ousado no programa de resgate. O US$ 1,9 trilhão já aprovados pelo Congresso terá impacto maior em 2021-22, ajudando os EUA a sair rapidamente da crise.

A ideia do plano de emprego é suceder as ações de resgate, de modo crescente a partir de 2022, gerando sustentação econômica, social e política para um novo ciclo de desenvolvimento dos EUA. Por este motivo, o pacote Biden já seria revolucionário, mas tem mais.

Para pagar o aumento do gasto, Biden também propõe ampla revisão tributária, cobrando mais do “andar de cima”. Rompendo a lógica de desoneração do capital que domina a política econômica desde 1980, Biden quer aumentar a tributação sobre o lucro das empresas e das famílias mais ricas, desfazendo parte da desoneração regressiva adotada por Trump.

Mais importante, o novo governo dos EUA discute que, acima de um valor anual mínimo, toda renda pessoal do capital seja taxada pela mesma alíquota de imposto de renda aplicada à renda do trabalho. E como se isso não fosse suficientemente progressista, Biden também quer alíquota mínima de imposto de renda sobre empresas, tanto sobre lucros domésticos (de 15%) quanto sobre lucros no exterior (de 21%).

Se a proposta tributária de Biden tiver sucesso (tomara que tenha), acabará o festival de planejamento tributário nos EUA, com efeito altamente positivo sobre todo o mundo ocidental.

Há 40 anos, o movimento Thatcher-Reagan gerou grande desoneração do capital, com aumento da desigualdade e volatilidade econômica, culminando na crise financeira de 2008 e estagnação econômica da década seguinte.

Agora, seja por demanda popular, seja por pressão da competição com a China, os EUA finalmente parecem se mover na direção contrária do neoliberalismo, adotando tributação mais progressiva e aumento do investimento público, com “pegada” ambiental e social.

Não sei se Biden terá sucesso. O plano de resgate já foi aprovado pelo Congresso, mas haverá oposição ferrenha de Wall Street e do Vale do Silício às iniciativas tributárias anunciadas nesta semana.

Torço e até rezo para que Biden prevaleça sobre a Faria Lima deles, pois isso melhorará a situação da maioria da população norte-americana e abrirá possibilidade de que outros países sigam o mesmo caminho.

Armadilhas

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A pandemia está trazendo grandes transformações para a sociedade, criando novos desafios, novas oportunidades e novas preocupações. A sociedade global vive um momento de desesperança, para muitos especialistas, a globalização era uma realidade inexorável e todas as nações deveriam se adaptar, abrir suas economias e se integrar os fluxos de comércio e de finanças. Se não nos adaptássemos aos ventos da globalização seríamos deixados de lado diante do progresso e renegados do desenvolvimento econômico. Na verdade, com as mudanças contemporâneas, alguns mitos estão perdendo espaço, levando a novas estratégias e novas formas de planejamento, não apenas centrados nos governos, mas na integração entre os governos e os mercados. Neste momento, todas as nações que estão superando este momento de incertezas e instabilidades são os que conseguiram construir um projeto nacional.

A pandemia deixou claro para a sociedade que é fundamental um setor industrial moderno e dinâmico, sem isso, nossa dependência será mais visível, deixando claro a nossa pouca autonomia. Sem desenvolver o setor industrial, somos uma nação dependente de insumos farmacêuticos, dependentes da importação de produtos hospitalares, respiradores e outros insumos fundamentais para a tão proclamada independência nacional.

Estamos numa situação de crescimento da dependência externa, somos importadores de produtos que, anteriormente, éramos autossuficientes. Deixamos de lado os sucessivos investimentos em ciência e tecnologia, reduzimos os recursos para os centros de pesquisas e passamos a acreditar que, num momento de instabilidade, seríamos socorridos pelos parceiros internacionais. Ledo engano, percebemos que precisamos construir nossas tecnologias e, para isso, não existe fórmulas rápidas e imediatas, demandam investimentos, focos na pesquisa científica, na formação de capital humano qualificado, ensino da ciência e o estímulo constante ao desenvolvimento da investigação científica.

Sem estes recursos, sem uma política pública concatenada pelos gestores públicos e pelos investimentos privados, vamos continuar formando profissionais de alta qualificação, cujos custos são elevados e, na maioria das vezes são formados por instituições públicas e, sem oportunidades internas e digna remuneração, são contratados por outras nações, cujos investimentos são valorizados no desenvolvimento de pesquisas científicas e tecnológicas.

A globalização nos trouxe grandes transformações, alterou a estrutura produtiva, aumentou os investimentos em ciência e tecnologia, mas ao mesmo tempo, deixou claro a necessidade de um projeto nacional, um plano concatenado que deve unir todos os setores da sociedade e estimulando a construção de um setor produtivo consolidado e diversificado. Nesta empreitada, percebemos que é fundamental a construção de um consenso político, consciente de que os entraves são violentos, tanto internos e externos. De um lado, encontramos grupos ganhadores desta situação de degradação social e pobreza crescentes, pessoas e grupos socais que ganham fortunas com a miséria que degrada a sociedade. De outro lado, países que sempre atuaram para impedir o desenvolvimento das potencialidades deste país, estimulando a perpetuação desta situação de desgoverno, desigualdade e degradação da sociedade.

Precisamos estimular a reflexão e a reconstrução da sociedade, a globalização reduziu os poderes nacionais e transferiu poder para os grandes grupos econômicos e financeiros, reduziu os poderes dos trabalhadores e criando espaços de dependência que ultrapassam as autonomias nacionais, aumentando as fragilidades e reduzindo a soberania.

Neste momento, precisamos retomar o controle dos rumos da sociedade, reconstruindo as estruturas industriais e consolidando nossa soberania. Nesta pandemia, percebemos o incremento da dependência externa, precisamos urgentemente de um grande projeto de desenvolvimento, fortalecendo os setores produtivos, investimento em capital humano e mostrando a importância da ciência nacional, retomando espaços de destaque na sociedade global.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre e Doutor em Sociologia/Unesp, professor universitário. Publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 31/03/2021.

Pesquisador critica fetiche pelo novo e o ‘discurso ilusório’ do Vale do Silício

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Em entrevista à Folha, Lee Vinsel argumeta que inovação nem sempre é positiva, já que pode criar expectativas irreais

Bárbara Blum – Folha de São Paulo, 29/03/2021 – SÃO PAULO

‘Mova-se rápido e quebre as coisas”. O mote da gigante de tecnologia Facebook resume o tom que dita a conversa sobre inovação hoje: é importante ser disruptivo. A hipervalorização dessa abordagem, comum ao modelo de startups, porém, nem sempre produz inovação de fato e pode prejudicar setores da economia e profissionais que não se pautam pela ruptura para medir o sucesso.

Essa é a leitura que faz Lee Vinsel, historiador especializado em tecnologia, no livro “The Innovation Delusion: How Our Obsession with the New Has Disrupted the Work That Matters Most” (“A ilusão da inovação: como nossa obsessão pelo novo corrompeu o trabalho que mais importa”, em tradução livre), publicado em 2020 nos Estados Unidos.

Vinsel argumenta que é importante distinguir entre inovação real e o discurso sobre inovação —marcados pelo léxico e por valores da indústria da tecnologia que incluem destruição criativa, velocidade e uma mente brilhante por trás das novidades. Para o pesquisador, a inovação nem sempre é positiva, já que pode destruir empregos e criar expectativas irreais.

Como distinguir inovação de verdade de ilusão de inovação? Existe a diferença do que chamo no livro de inovação de fato e o discurso da inovação. O primeiro seria a introdução de novos métodos, produtos e tecnologias na sociedade.
O discurso de inovação, por outro lado, é a forma como falamos e pensamos sobre essas mudanças. Quando pensamos na história da palavra inovação, ela não era tão usada antes da Segunda Guerra e os anos 1960.

Como esse discurso de inovação se tornou dominante na vida cotidiana? Parte da minha teoria sobre o assunto é que o discurso sobre disrupção é um produto dos anos 1990. Acredito que essa forma de falar ascendeu junto com a internet. Existem áreas de disrupção clássica que vieram com a internet, como o streaming, que acabou com as grandes redes de locação de filmes. Houve uma fase em que se pensava que todos os aspectos da vida seriam alterados pela internet. E é um processo ligado ao Vale do Silício, justamente porque são pessoas interessadas em usar a internet para quebrar uma ou outra indústria. Mas hoje já vimos que nem todas podem sofrer esse processo. É difícil pensar na disrupção via aplicativo da indústria de aço e de biocombustível. Houve muito hype envolvido nesse discurso. A geração constante de novidades em métodos e produtos não se aplica a todos os campos de produção.

No livro você menciona a importância da manutenção e do cuidado, setores importantes, mas desvalorizados, caso dos serviços de enfermagem, cuidado com idosos, reparos em estruturas físicas. Como a pandemia impactou as percepções sobre os trabalhos de cuidado e manutenção?
A pandemia trouxe à tona a importância dos trabalhos essenciais. O discurso nos Estados Unidos é a favor dos trabalhadores essenciais. Porém, não há conversas sobre mudanças estruturais capazes de melhorar a vida dessas pessoas, e muitos desses trabalhos são mal pagos. Existe um impacto maior disso nas mulheres e minorias étnicas. É um problema profundamente conectado com a desigualdade. Quando falamos em cuidado, estamos falando em mulheres, especialmente pertencentes a minorias. Seria possível usar o discurso dos trabalhadores essenciais para discutir essas desigualdades.

Empresas de tecnologia não têm interesse em investir em manutenção? É um desinteresse movido por razões econômicas ou ligado à ideia de manter inovações em curso? 
As empresas não apenas não estão interessadas em manutenção, como fecham as iniciativas que aparecem. Com certeza isso é movido por lucro, mas em um nível mais profundo é uma questão cultural. Nós nos tornamos uma sociedade ‘‘throw-away’’ (do desperdício). Existe uma conspiração entre consumidores e as grandes empresas que sabotam o reparo e a manutenção. Consumidores não querem se incomodar com o reparo, preferem comprar um item novo.

Como é construída a relação entre as ocupações ligadas a cuidados e as características sociais desses trabalhadores — principalmente mulheres? O trabalho é desvalorizado por causa do grupo que o realiza ou os grupos que o realizam têm acesso a ele por já ser culturalmente desvalorizado? 
Existe uma hierarquia de status de trabalho e, a partir disso, criamos ideias de quais tipos de pessoas realizam cada tipo de trabalho.

Existe um discurso da manutenção da mesma forma que existe um discurso da inovação? No livro, decidimos não fazer uma lista de recomendações de políticas para manutenção. Trabalhamos com níveis diferentes: nacional, de organizações e individual. Fazer com que líderes de organizações pensem mais a longo prazo, respeitem mais os responsáveis por manutenção. Precisamos de melhorias na infraestrutura e na manutenção dela, precisamos de mudanças de legislação que encorajem organizações a pensar no longo prazo. Existem estruturas hoje que nos fazem pensar em crescimento e lucro. Precisamos do pensamento a longo prazo.

O discurso de inovação, no livro, é focado no gênio, no indivíduo que tem sozinho novas ideias. É uma figura nova? Mesmo no início do século 20 era possível identificar alguns CEOs carismáticos, como Henry Ford. Mas após a Segunda Guerra Mundial, que é quando a obsessão com crescimento emerge, companhias estão sempre procurando aquela novidade que vai colocá-los na frente de todo mundo. Existe um sistema de recompensa que incentiva esse comportamento. Mas existe uma performance do inovador, e se forma uma estrutura de trabalho na qual pessoas precisam se apresentar dessa forma. Tem até um visual, um código de conduta.

Você diz que a relação entre inovação e crescimento não é quantificável e que talvez não deveríamos incentivar tanto o crescimento. Pode aprofundar essa análise? 
O avanço tecnológico é ligado ao crescimento econômico. Mas, embora falemos cada vez mais em inovação, não é verdade que estejamos inovando cada vez mais. Talvez seja até possível falar em redução da inovação desde os anos 1970. Existe uma desconexão entre o discurso e a coisa em si, mesmo em negócios que querem ser grandes inovadores. Só o discurso não vai levá-los à inovação.

Na política, é mais importante inaugurar projetos do que fazer manutenção dos antigos? 
Vivemos uma cultura de cortar o laço: inauguramos estradas, pontes. É fácil receber crédito fazendo coisas novas, e não é tão fácil receber crédito por manter o bom funcionamento. É um incentivo ao pensamento a curto prazo.

Existe um descompasso entre a forma como o discurso da inovação aparece na educação e as funções que os jovens de fato vão realizar na vida profissional? 
Quando olhamos para disciplinas STEM (ciências, tecnologia, engenharia e matemática), tudo ali é voltado a inovação. Estudantes de engenharia fazem competições de robôs. Essa abordagem pode ser prejudicial para a autoestima dos jovens, pois esse não é o tipo de trabalho que eles vão fazer quando se formarem. Vemos muito burnout nesses campos, não surpreende que esses jovens fiquem deprimidos. Precisamos de uma representação mais fiel do tipo de trabalho que existe. Além disso, a figura do inovador é excludente para grupos como mulheres e minorias raciais. Se apostássemos nas figuras do cuidador, do provedor, em detrimento do inovador seria mais apelativo. É o cuidado com o mundo. Talvez não seja tão sexy quanto a figura do inovador, mas é muito importante.

De fato, numericamente nem todos podem ser líderes inovadores. Mas o discurso do que é desejável profissionalmente é voltado para a inovação. Com certeza. É matematicamente impossível que todos os estudantes em uma sala sejam CEOs. Ignorar que os trabalhos são majoritariamente de manutenção é a ilusão de inovação da qual falo no livro. É ignorar o lugar de onde estamos falando, ignorar o mundo ao redor. Temos que lidar com desigualdade, mudança climática. E não vamos conseguir sem olhar para as coisas pequenas. Por exemplo, se uma estrada está se deteriorando, se vamos envelhecer com conforto… Precisamos colocar os pés no chão.

RAIO-X
Lee Vinsel, 41
Professor da universidade Virginia Tech, nos EUA, onde leciona sobre sociedade, ciência e tecnologia. Fundou o grupo The Maintainers (Os mantenedores), dedicado à pesquisa sobre manutenção e trabalho cotidiano com tecnologia. É autor de “Moving Violations” (Johns Hopkins University Press, 2019) e “The Innovation Delusion’’ (Currency, 2020), este com Andrew L. Russell.

Remédio amargo

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O termo lockdown ganhou espaço no vocabulário nos últimos meses, podemos defini-lo como a versão mais rígida do distanciamento social e quando a recomendação se torna obrigatória. Neste período muitos especialistas destacaram-na como a forma de auxiliar no combate ao coronavírus, responsável por uma das maiores crises sanitárias do país.

Neste momento precisamos construir laços sociais, políticos e econômicos para garantir o isolamento de todos os grupos sociais, empresas e instituições, levando-as para, literalmente, reduzir suas atividades. Nos exemplos mais exitosos de Lockdown, todos os grupos sociais atenderam ao chamado das autoridades, cabendo ao poder público construir uma estratégica de comunicação eficiente, garantindo auxílios monetários e financeiros, aumento e rapidez da vacinação. Na sociedade brasileira, marcada por grandes desigualdades e crises de emprego e queda da renda, percebemos que os conflitos são generalizados, confrontos políticos, falsos argumentos e incompetência na gestão, com isso, percebemos que caminhamos rapidamente para o colapso e para as convulsões. O lockdown é necessário e imprescindível, depois de contabilizarmos 300 mil mortes, com uma gestão pública caótica, adotá-lo é a única forma de diminuir o colapso que se avizinha para a sociedade. Além do lockdown, precisamos acelerar o auxílio emergencial e acelerar a vacinação. Sem organização e na ausência de liderança os problemas tendem a piorar rapidamente.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre e Doutor em Sociologia. Publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 28/03/2021.

Invisíveis, por Fernando Schuller,

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A desigualdade é ‘funcional’ no Brasil, e isso vem travando as políticas de isolamento

Fernando Schuller – Folha de São Paulo, 25/03/2021

Ele trabalha na segurança do prédio. Está sempre lá, cedo de manhã, o João. Nunca soube de onde ele vem e como chega até aqui. Um dia perguntei. “Pego um ônibus, embarco no metrô” e depois caminho um pedaço de Moema pra chegar aqui.”

Me lembrei do João quando vi um comunicador reclamando que a cidade andava “quase normal”, no meio de pandemia, com o transporte lotado e tal. Perguntei de onde as pessoas imaginam que surgem os entregadores de pizza, diaristas, motoristas, frentistas e porteiros que atendem o andar de cima, silenciosamente, todos os dias?

Alguém me disse que a pergunta era inconveniente e podia servir de boicote às medidas de isolamento. Era melhor manter essa coisa meio “invisível”. Achei curioso. Naquela visão, devíamos fingir que o problema não existia, ou quem sabe nem bem aquelas pessoas todas existiam. E irmos pra cama tranquilos depois de um filme na Netflix.

O problema da autoilusão é que você dá um drible na realidade, xinga seu adversário pra disfarçar, mas o mundo frio dos indicadores e as estações lotadas continuam lá, todas as manhãs. Os dados mostram que a taxa de isolamento social em São Paulo caiu a apenas 43%, agora no auge da pandemia. A pergunta é por que, e quem está pagando a conta.

Uma pista foi dada no estudo publicado no Journal of Population Economics, mostrando como diferenças de renda afetam as pessoas na pandemia. O grupo de maior renda tem até 54% a mais de chances em relação ao de menor renda de tomar medidas de proteção como o distanciamento social.

Há muitas pesquisas apontando nessa mesma direção. Uma das mais cruéis mostrou que a pandemia tem sido muito letal entre a população negra, no estado de São Paulo. Se estivéssemos na Dinamarca ou na Suécia, com uma estrutura social mais homogênea, medidas de isolamento atenderiam a todos de modo mais uniforme. Mas estamos no Brasil, com seu enorme contingente de pobreza. E aí as coisas se complicam.

Dan Ariely usou um termo difícil pra explicar o fenômeno. Sugeriu que a vulnerabilidade econômica leva as pessoas a fazer um “desconto hiperbólico”, priorizando os temas ligados à subsistência em detrimento de regras e cuidados com o futuro.

Meu ponto é que pouca gente parece de fato disposta a sair da retórica e encarar o problema. A maior probabilidade é de irmos levando. Podemos até fazer de conta que o auxílio emergencial vai resolver o problema, mas ele não vai.

Seu alcance é, quando muito, amenizar a situação de quem vive abaixo da linha de pobreza.

A verdade é que se trata, em boa medida, de um problema sem solução. O sistema político até poderia ter feito um ajuste duro e gerado uma transferência de renda mais robusta, mas não o fez. A elite do funcionalismo abriu mão de ganhar acima do teto? Os partidos abriram mão do fundão? Alguém topou discutir redução temporária de jornada na área pública, em meio à maré de demissões no lado privado?

Contar com a disposição da sociedade para isso é uma quimera. A mistura de pobreza e desigualdade é “confortável” no Brasil. Que percentual de famílias com maior renda deixa que a empregada fique em casa? Dias atrás vi o oposto: a família demite a empregada que precisava acompanhar o pai na UTI. Ela agora está “na batalha”, como me disse dia desses, no elevador. O risco da Covid não é o primeiro item de sua escala de urgências.

Escutei muita gente boa sobre como lidar com o problema. Há quem imagine que a solução é ir ao Supremo e aumentar o valor do auxílio. Quem sabe o STF ajude também a achar a fonte do recurso. Um interlocutor me falou de “pequenas medidas práticas”, como ampliar frotas de transporte e evitar aglomeração. “Não há bala de prata”, me disse ainda outro, “e já é quase tarde demais para tentar alguma coisa”.

Talvez ele esteja certo e o que nos resta, enquanto esperamos pela vacina, é exercitar a raiva política (quem sabe nossa grande especialidade) e evitar as perguntas inconvenientes. A opção seria ter liderança. Pactuar medidas duras e acelerar o fim dessa tragédia, mas não vejo disposição de quase ninguém nesta direção.

Oportunidades pós-pandemia

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O mundo vive momentos de ansiedade e preocupações, a pandemia está redefinindo as estruturas da sociedade, levando os indivíduos, as empresas e os governos a se reinventarem, buscando novos horizontes e perspectivas para a coletividade, reconstruindo novos espaços de produção e solidariedade dos seres humanos. Neste momento de crise sanitária global, ainda não conseguimos enxergar os horizontes que devem ser abertos para a sociedade global no período posterior a pandemia, mesmo assim, algumas características estão nítidas, criando desafios inéditos, preocupações crescentes e novas oportunidades, onde os atores mais preparados, ágeis e flexíveis, tendem a ganhar espaços na economia internacional.

Muitos acadêmicos estão refletindo sobre a sociedade internacional nos momentos posteriores da pandemia, cada um defende suas teses para compreenderem o comportamento dos consumidores, das empresas e governos dos próximos anos. Diante disso, percebemos que a grande maioria dos teóricos acreditam que o mundo pós pandemia será mais desigual e com novas formas de globalização, com novos modelos de produção, novos modelos de negócios e um aprofundamento da desigualdade e da exclusão social entre todas as regiões do mundo, exigindo uma atuação mais efetivas dos Estados Nacionais.

A indústria brasileira perdeu espaço na economia nacional, deixando claro a dependência de insumos importados, faz-se necessário um novo consenso entre todos os agentes econômicos e políticos para a reconstrução da indústria nacional. Reestruturando urgentemente os setores que foram impactados, tais como a indústria da saúde, que das últimas décadas perderam espaço na economia. Este fortalecimento reduzirá a dependência de parceiros internacionais, que num momento de crise, como a que vivenciamos, privilegiam sua produção interna e o bem-estar de sua população, reduzindo nossa autonomia. Neste momento, precisamos reconstruir nossa estrutura industrial e garantir forças produtivas autônomas e capacitadas para sobreviver e garantir a sobrevivência em momentos de crises, sejam sanitárias, econômicas, políticas e convulsões sociais. E fundamental aprendermos com a pandemia, que pode nos legar melhoras na estrutura econômica e produtiva, melhorando emprego e diminuindo a dependência internacional.

A pós-pandemia prescinde de uma consolidação da economia digital, que precisamos para concorrer e sobreviver no cenário internacional, onde as potencialidades das nações devem exigir investimentos adicionais na formação de capital humano, além de garantir investimentos científicos e tecnológicos, sem estes recursos as posições nos rankings educacionais e de produtividade tendem a piorar e perpetuar as péssimas condições de vida da população.

As novas tecnologias estão gerando grandes transformações na sociedade, neste momento precisamos construir as tecnologias 5G, estimular estas tecnologias e diminuir os hiatos crescentes com as nações desenvolvidas. No futuro devemos compatibilizar modelos híbridos entre atividades presenciais e digitais, exigindo a capacitação dos trabalhadores, estudos crescentes e contínuos, exigindo investimentos em inclusão digital, sem esta inclusão as desigualdades tendem a crescer, fragilizando o capital humano e diminuindo o desenvolvimento econômico.

O mundo pós pandemia exige uma maior cooperação entre as nações, internamente percebemos que vivemos num momento preocupante, existem inúmeras oportunidades para todos os agentes econômicos e políticos, mas faz-se necessário uma união e a busca de um consenso imediato. Neste momento se faz necessárias ações urgentes, precisamos reconstruir a indústria brasileira, esta reconstrução deve estimular a produção interna, a capacitação do capital humano, os investimentos de agências de fomento público, investimentos em pesquisas, ciência e tecnologia e políticas de proteção nacional, centrado no estímulo local e estímulo da concorrência global, com metas sólidas de vendas externas e incremento da produtividade. Sem atuações efetivas, serenas e imediatas, a sociedade tende a amargar outra década perdida.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre e Doutor em Sociologia/Unesp, Professor Universitário. Artigo publicado no Jornal Diário de Região, Caderno Economia, 24/03/2021.

A carta tardia do PIB, por Cristina Serra.

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Entenderam que não adianta ter dinheiro para pagar UTI aérea para Miami?

Cristina Serra – Folha de São Paulo, 23/03/2021

Quer dizer que foi preciso um ano de pandemia, quase 300 mil cadáveres, o colapso dos hospitais e um tombo colossal na economia para que parte expressiva do PIB se manifestasse publicamente sobre a catástrofe humanitária que nos põe de joelhos? Tirante honrosas exceções que assinam a carta divulgada neste fim de semana, a maioria permanecera em indiferente pachorra.

São mais de 500 assinaturas; alguns sobrenomes reluzentes, de banqueiros, empresários, ex-ministros, ex-dirigentes do Banco Central e economistas que, até outro dia, clamavam pela urgência das reformas, mas não mostravam a mesma preocupação com a premência de salvar vidas.

Muitos até devem ter achado, como disse o famoso animador de auditório, que Bolsonaro teria uma “chance de ouro de ressignificar a política”, seja qual for o sentido disso no dialeto da Faria Lima. Agora, com as UTIs dos hospitais privados lotadas, parecem ter despertado do modo “repouso em berço esplêndido”.

O que mudou? Entenderam que não adianta ter dinheiro para pagar UTI aérea para Miami? Que não somos bem-vindos em nenhum país porque cevamos um criadouro de variantes agressivas do vírus? Que estamos todos na mesma tormenta, embora milhões a enfrentem agarrados a um pedaço de pau e pouquíssimos em um transatlântico? Simplesmente perceberam que Paulo Guedes não tem força para demolir o Estado, como esperavam? Ou a soma disso tudo?

Com tal carta, nossa elite mostra como é elástica sua tolerância diante de uma tragédia que atinge principalmente os mais pobres. Ao ler o documento, procurei menção a, quem sabe, aumento de imposto sobre suas imensas fortunas. Nenhuma palavra. Apesar de tardia, a carta pode até ajudar a controlar rompantes autoritários de Bolsonaro. Daí a conter o genocídio que nos abate há longa distância. Para isso, é preciso combinar com os mercenários e franco atiradores do centrão. E enquanto você lê esse texto, mais um coração brasileiro parou de bater.

Negação, negacionismo e má-fé, por Vera Iaconelli.

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Vera Iacoconelli – Folha de São Paulo, 23/03/2021.

Normalidade não é coisa de humanos, mas há casos e casos

Lembra aquela sua amiga que te ligou para falar que ia se separar do marido monstro, te deixando com a certeza de que, finalmente, ela ia se livrar daquele pequi roído? Você se sentiu aliviada(o) pensando como foi ótimo ter confessado tudo que você pensava dele há anos. Pois é… não só ela nunca se separou dele, como nunca mais atendeu seus telefonemas.

Entre belos discursos – “vou me separar”— e as fantasias inconscientes — “amar é sofrer”, por exemplo —, cada um de nós tem que lidar com sua divisão interna. O mecanismo de negação nos protege de realidades desagradáveis e permite que sigamos no dia a dia sustentando desejos conflituosos dentro de nós.

Uma das genialidades de Freud foi apontada por Philippe van Haute e Tomas Geyskens em “Psicanálise Sem Édipo: Uma antropologia clínica da histeria em Freud e Lacan” (Autêntica, 2016), na qual os autores recuperam a via que denominaram de “patoanalítica” da psicanálise. Isso significa dizer que eles resgatam a ideia freudiana de que normalidade não é coisa do mundo humano e o que chamamos de loucura, neurose e perversão é mais da ordem do grau do que da diferença absoluta. Caetano já teorizava, “de perto…”.

Agora imagina que a amiga, que volta deliberadamente para os braços do boy lixo e que sempre foi criticada por fazer isso, encontra um grupo na igreja que acredita que a mulher tem que se submeter ao marido, comungando com sua fantasia inconsciente. E que fazendo parte desse grupo ela se sinta importante pela primeira vez e ainda se veja representada na figura da primeira-dama e de mulheres em cargos importantes do governo. Junte-se a isso que seu ódio ao marido —e a si mesma— possa ser desviado para fora, sendo projetado em feministas, esquerdistas, comunistas…

Negacionismo foi um termo criado para falar de negações de eventos específicos como Holocausto ou certezas científicas. Para sustentar tamanha negação e ter efeitos sociais importantes, os sujeitos precisam se separar de quem contradiz suas interpretações da realidade e se unir a quem pensa igual. Aí entra um ingrediente desconhecido de Freud: as redes sociais, nas quais negacionistas encontram milhares de pessoas que pensam como eles. Não se trata mais de se dirigir pessoalmente à Hofbräuhaus em Munique para ouvir um tal de Hitler discursar contra judeus e homossexuais. Basta um clique para você encontrar seus pares e confirmar que a Terra é plana, óbvio.

Além disso, os laços de reconhecimento mútuo que pessoas usualmente preteridas pela sociedade fazem nesses grupos costumam ser carregados de afetos e de sentido de reconhecimento e pertencimento. O amor que une as bolhas se sustenta na condição de se destilar ódio aos outros. Quando essas bolhas encontram um líder que as represente de forma pública, temos a tempestade perfeita. O amor ao líder e o ódio projetado no inimigo comum permitem que negacionistas briguem menos entre si, criando a patota dos cidadãos de bem.
Já na má-fé o sujeito sabe muito bem qual é a realidade dos fatos, mas explora a miséria e o negacionismo de outros. Entre os exemplos que pululam, temos o dado pelo “pastor” Edir Macedo.

Enquanto prega que seus fiéis não precisam se vacinar —pois o vírus só contaminaria homens de pouca fé— corre para tomar a vacina recém-liberada nos EUA, onde mora.

Reconhecer a importância da vacina e, deliberadamente, desmenti-lo em público para obter vantagens —e, ato contínuo, tomá-la— é traço inequívoco de psicopatia.

Dito isso, que fique claro que Bolsonaro é um negacionista de segunda, mas genocida de primeira.

Esquerda e direita têm demonstrado, ao longo da pandemia, o lixo que são, por Pondé.

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Peste prova que a humanidade não evolui moralmente um centímetro, apesar de o marketing vender o contrário

Luíz Felipe Pondé – Folha de São Paulo, 22/03/2021

Máximas vindas do coração da peste:
1) Os idiotas da peste estão por toda parte. Seguem seu mito. Fazem pancadão e churrasco na cobertura do prédio. São responsáveis, indiretamente, em parte, pelas mortes ao dar sustentação a um governo irresponsável. Alguém ainda duvida de como nossa espécie é irracional?

2) A vacinação centralizada no Estado é coisa de gente atrasada. Muita dessa gente atrasada tem diploma e é especialista em epidemiologia. Já temos mercado paralelo, corrupção, nepotismo e truques oportunistas de gente que se encosta em quem de fato está na linha de frente para faturar vacina furando a fila. A vacina virou mais um mercado para a corrupção. Quem quiser ver verá: nasce um canalha a cada instante.

3) Quanto mais a mídia esfregar na cara das pessoas um alto número de mortos, mais indiferente elas ficarão. Grandes calamidades são monótonas. Nunca subestime a potência da monotonia como causadora de indiferença ao sofrimento alheio. Faltou inteligência aos jornalistas: correndo atrás de “opiniões científicas” a todo custo, acabaram por ingressar no frenesi do excesso de dados.

4) A peste se tornou um grande mercado para oportunistas (com ou sem diplomas) virarem celebridades vendendo o terror. Revistas científicas de renome buscando furos. Artigos sem revisão pelos pares saem na mídia como verdade última acerca da não eficácia de vacinas. Cientistas buscando seus 15 minutos de sucesso. O vírus é parceiro da vaidade.

5) Grande parte do país é composta de retardados mentais em todos os espectros sociais e econômicos. Do pancadão à cobertura do prédio, a saturação de gente boçal é gigantesca.

6) Os burocratas do Judiciário só querem aparecer, inclusive atrapalhando no que for necessário para desfilar o poder da sua caneta sobre nós mortais.

7) Os militares perderam uma grande chance de mostrar autonomia em relação ao mito e se tornar uma força clara no combate à peste. As Forças Armadas hoje são uma sombra atrás do mito, que as chama de “Meu Exército”.

8) A classe política brasileira, em grande parte, mais uma vez mostrou seu oportunismo, politizando a peste, o tratamento e a vacina, fazendo do Brasil uma república das bananas.

9) Em outras épocas, as igrejas —fossem de que denominação for— eram agentes claros de civilização e combate a pestes. Pergunto: para além da preocupação com seus “dízimos”, o que as igrejas têm feito como protagonismo no combate da peste?

10) A peste já deveria ter derrubado Bolsonaro da Presidência, se as Casas Legislativas tivessem um mínimo de vergonha na cara.

11) O STF tampouco tem sido um agente exemplar na peste. Indiferente a ela, tenta furar a fila da vacina e finge estar preocupado com o país exigindo um “plano de vacinação” do inútil Ministério da Saúde, como se essa exigência tivesse alguma validade efetiva contra as mortes. Bravatas togadas.

12) No Brasil, a burocracia durante a peste tem demonstrado o quanto ela pode ser um entrave na solução dos problemas, mesmo quando essa burocracia vem de especialistas em saúde pública e vacinas.

13) O Brasil é um país, em grande parte, de ladrões e oportunistas. E essa gente mau caráter pesa sobre os ombros de quem luta no dia a dia, na peste e mesmo além dela, para fazer do Brasil um país menos canalha. Eventos como a peste deixam claro o mau-caratismo de uma população. Em meio a esses ladrões e oportunistas tem gente com ou sem casaca, com ou sem colarinho branco, com ou sem diploma, de todos os espectros ideológicos.

14) Esquerda e direita têm demonstrado, ao longo da peste, o lixo que são.

15) No Brasil, se você for inteligente, você será corrupto, político ou juiz.

16) As redes sociais brilham com a luz do Hades. Entre os mais adictos nelas estão os veículos de mídia que podem destruir sua credibilidade à medida em que rezam no altar do “deus engajamento”.

17) A peste prova que a humanidade não evolui moralmente um centímetro, apesar de o marketing vender o contrário.

18) A melhor coisa a fazer é não acompanhar mais o ruído. O silêncio e o quietismo são hoje formas de higiene pessoal.

Fareed Zakaria oferece dez lições para o mundo pós-pandemia

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Escritor prevê que desigualdade deve aumentar, e globalização, continuar.

Folha de São Paulo – Rafael Balago – 20/03/2021 – SÃO PAULO

O mundo deve sair da pandemia de coronavírus mais desigual e com novas formas de globalização, aposta o escritor Fareed Zakaria. Produtos digitais, afinal, circulam entre as fronteiras com muito mais facilidade do que itens físicos e se tornaram muito mais buscados no último ano.

No livro “Dez Lições para o Mundo Pós-Pandemia”, o autor faz uma série de reflexões sobre como a crise sanitária deve trazer mudanças e debate questões políticas, econômicas e culturais da atualidade. A obra, escrita em meados de 2020, foi lançada recentemente no Brasil.
Zakaria, 57, nasceu em Mumbai, na Índia. É doutor em ciência política pela Universidade Harvard (EUA), colunista do Washington Post e apresentador da CNN americana. Abaixo, algumas de suas conclusões:

1. APERTEM OS CINTOS
As inovações tecnológicas avançaram muito nas últimas décadas, e as sociedades foram mudando depressa, sem se preocupar com medidas de segurança. Zakaria faz uma comparação: é como se estivéssemos construindo um carro cada vez mais veloz, mas que não possui airbag, cinto de segurança ou seguro, e disputando corridas sem nos preocupar com os riscos. Assim, após desviarmos de vários pequenos perigos, a pandemia gerou um acidente grave. Os danos teriam sido minimizados caso tivéssemos menos desigualdade social e mais medidas de prevenção a epidemias, por exemplo.

2. O QUE IMPORTA NÃO É QUANTO, MAS COMO O GOVERNO INTERVÉM
Os EUA são um exemplo de governo que gastou muito, mas não conseguiu conter a propagação do vírus —é o país com mais casos e mortes acumulados até agora — nem retomar rapidamente a economia. Apesar dos auxílios muitas pessoas pobres demoraram a receber seus cheques, enquanto pessoas de classe média e alta também foram beneficiadas. Zakaria também avalia que ideologias como esquerda e direita ficaram obsoletas. “Os governos com atitudes mais relaxadas, que não funcionaram bem, foram os do Brasil [direita] e do México [esquerda], governados por populistas ferrenhos.”

3. MERCADOS NÃO SÃO SUFICIENTES
A pandemia mostrou a importância do Estado para atuar em uma emergência, de uma maneira que os mercados sozinhos não teriam interesse em fazer. Não se trata apenas de oferecer assistência médica a quem não pode pagar, mas dar apoio a desempregados e financiar pesquisas de vacinas.

4. AS PESSOAS DEVERIAM OUVIR MAIS OS ESPECIALISTAS, E VICE-VERSA
Zakaria aponta que muitos especialistas são vistos apenas como parte da “elite” e do “sistema”, o que gera desconfiança entre pessoas com menor escolaridade. Nos últimos anos, políticos como Donald Trump e Jair Bolsonaro passaram a atacar pesquisadores para reforçar sua imagem antissistema. Assim, ser contra a ciência se tornou um fator de identidade política.

Para serem mais ouvidos, a recomendação aos especialistas é que se aproximem mais das pessoas de outros grupos sociais e proponham soluções factíveis à realidade delas. As determinações de lockdown são um exemplo claro da dificuldade de transpor uma recomendação teórica para a realidade.

5. A VIDA É DIGITAL, E O TRABALHO DEVE VOLTAR A SE LIGAR COM A VIDA DOMÉSTICA
A tecnologia necessária para trabalho, educação, consultas médicas e entretenimento a distância já existia há anos, mas faltava um empurrão para serem adotadas em massa. Zakaria avalia que o futuro deverá ter um modelo híbrido entre atividades presenciais e digitais mais intenso do que no pré-pandemia.

Por isso, o trabalho volta a ser mais conectado à vida doméstica, como foi na maior parte da história humana. Era comum que um agricultor morasse perto das terras que cultivava ou que um comerciante morasse em cima de sua loja, por exemplo.

6. SOMOS ANIMAIS SOCIAIS, E AS CIDADES SEGUEM VANTAJOSAS
Apesar de a tecnologia facilitar o isolamento físico, a vida nas cidades segue mais interessante, diz Zakaria, já que temos mais pessoas por perto para trocar experiências em meio à convivência cotidiana, muitas vezes de modo informal. Assim, a pandemia mostrou o quanto alunos e funcionários perdem em conhecimento ao deixarem de interagir pessoalmente. E, mesmo em tempos de comércio fechado, o morador de uma metrópole tem muito mais opções do que o de uma cidade menor.

7. A DESIGUALDADE VAI AUMENTAR
Países ricos têm condições de conseguir dinheiro para a retomada pós-pandemia. Já as nações pobres terão mais dificuldade para se endividar e, assim, ajudar seus cidadãos. Em tempos de crise, investidores preferem lugares considerados mais seguros, como EUA e Europa, em um ciclo que os torna ainda mais seguros, enquanto enfraquece as economias de países da América Latina e da África. Grandes empresas também têm mais facilidade para se financiar do que os pequenos negócios, o que poderá aumentar seu poder e tirar comerciantes menores do mercado.

8. A GLOBALIZAÇÃO NÃO MORREU
Apesar dos fechamentos de fronteiras para viajantes, a troca de produtos entre os países seguiu forte na pandemia. O modelo é muito firme, pois as cadeias de produção são integradas, e os produtos, montados com peças de várias partes do mundo. Além de produtos, serviços digitais também viajam muito mais facilmente entre as fronteiras.

Assim, um exame de raio-x feito nos EUA pode ser analisado por médicos na Índia com ajuda de um software em Singapura, e a globalização vai ganhando novas formas.

9. O MUNDO ESTÁ SE TORNANDO BIPOLAR
Durante a pandemia, a China seguiu com crescimento econômico, enquanto os EUA enfrentam uma crise, com alto desemprego. Esse movimento favorece a ascensão do país asiático rumo ao posto de maior potência mundial. No entanto, este mundo bipolar será diferente do da Guerra Fria, pois as economias dos dois países estão profundamente integradas. Portanto, há um risco bem menor de conflito do que no caso da União Soviética, conclui o autor. Ainda assim, Xi Jinping segue com uma política agressiva para conquistar mais espaço no cenário internacional, como, por exemplo, com a Iniciativa do Cinturão e Rota.

10. UMA GRANDE CRISE ABRE ESPAÇO PARA IDEALISTAS
Após a Segunda Guerra, os países vencedores investiram na cooperação internacional, que incluiu a criação da ONU para estimular o desenvolvimento dos países e manter a paz. É uma visão contrária à de que cada país deve buscar seu sucesso por conta própria, sem se preocupar com os outros, e que ganhou espaço nos últimos anos estimulada por Trump. Zakaria avalia que os EUA não terão como recuperar o posto de líder global incontestável, pois muitas outras nações buscam protagonismo, mas que a pandemia abre caminho para resgatar a ideia de que, se todos cooperarem, todos terão mais ganhos.

Pandemia é chance para país desenvolver tecnologia de saúde, diz Monica de Bolle

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Para economista, Brasil tem potencial para ser referência em mundo no qual convivência com vírus será permanente

Eduardo Cucolo – Folha de São Paulo, 15/03/2021

Mundo pandêmico

A realidade que a gente tem pela frente não é uma realidade em que vai poder declarar um fim da pandemia. A fase aguda da pandemia vai passar, a gente não vai ficar no estágio em que está agora, mas esse estado de alerta permanente vai continuar conosco. Isso tem implicações em como os países, as pessoas e a economia vão se adaptar. Mercado de trabalho, ambiente de trabalho, aglomerações de todos os tipos, como eventos esportivos, viagens, todas essas coisas estão alteradas, e a gente não vai voltar ao que tinha antes.

No segundo semestre de 2021, a gente vai relaxar medidas restritivas, medidas sanitárias, em várias partes do mundo. Mas, supondo que todas essas vacinas deem conta dessas variantes, as que existem e as que vão surgir, a gente só consegue ter um contingente no mundo vacinado em quantidade suficiente para conseguir respirar com algum alívio, com certo otimismo, lá para o final de 2022.

Eu passei os últimos dois anos fazendo uma série de especializações em medicina em Harvard e calhou da pandemia acontecer. Para mim, pela natureza desse vírus, ele vai permanecer entre nós. A gente vai ter de se adaptar a conviver com isso, passar por surtos, por várias vacinas que vão ter de ser atualizadas recorrentemente e continuar com algum grau de cautela nas nossas vidas. Você vai ter sempre um repositório de Sars-Covid-2 em algum lugar do mundo sofrendo mutações.

Mudança na economia

O setor de serviços vai ter de se reinventar. Já havia uma pressão para se pensar novos modelos de trabalho e na pandemia isso teve de acontecer. Você pode pensar pelo lado negativo, algumas pessoas vão perder permanentemente os empregos que tinham porque eles vão desaparecer. Por outro lado, há mudanças que geram uma flexibilidade maior, muitas pessoas não voltarão aos escritórios, e isso gera um ganho de eficiência enorme.

Para um país poder se sair melhor que outro vai ter de investir muito na área de saúde. Em tudo: testagem, equipamento de proteção pessoal, capacidade de vigilância genômica, que requer vários laboratórios com equipamentos de ponta e uma rede que converse entre si e esteja rastreando no país inteiro.

Nova agenda para o Brasil

A agenda para mim no Brasil hoje, se tivesse um governo com visão estratégica, seria a saúde pública. É onde a gente tem uma vantagem natural, pelo sistema de saúde que a gente tem.
Você vê a Índia exportando vacina para muitos países e também exportando medicamente, produtos químicos. A China, a mesma coisa. A Rússia está tendo o mesmo tipo de posicionamento. Se você olhar para esses países [do Brics], tirando o B [de Brasil], o resto dos Brics estão todos fazendo esse reposicionamento. O Brasil teria uma posição muito privilegiada para fazer isso. Já fomos grandes produtores de medicamentos e vacinas, mas abrimos mão dessa vantagem.

A agenda de longo prazo deveria ser essa. Dessas coisas começam a vir inovações, tecnologias, inserção global, capacidade de estar mais envolvido nas cadeias de produção globais, tudo pela via da saúde pública.

Quais são as reformas que a gente precisa fazer para alcançar esses objetivos? Aí você faz as reformas com esses objetivos em mente. Vamos fazer uma reforma administrativa que atenda a esse objetivo, uma reforma tributária de modo a alcançar esse objetivo.

Estados Unidos da América

Colocar a saúde pública no centro das discussões faz com que essas oportunidades fiquem mais visíveis e você começa a mudar um pouco o debate no Brasil. Aqui nos EUA, vai acontecer a mesma coisa. O setor de saúde aqui tem uma precariedade que o Brasil não tem. Tem muitas escolas de medicina de ponta, mas o sistema de saúde vai ter de ser reinventado.

O envelhecimento populacional é outro aspecto importante do porquê investir em saúde pública. E tem as sequelas da própria Covid. O número de pessoas que vão precisar dessa área para continuar sendo produtivas… Algumas vão ter sequelas para sempre, que as torna dependentes de centros de reabilitação.

Aqui nos EUA, todos os hospitais têm centro de reabilitação para quem teve Covid. A gente já tinha essa realidade de envelhecimento populacional somada a uma carga de doenças crônicas cada vez maior. Agora, além disso, tem o efeito que vem com as sequelas da Covid.

A triste solidão da educação brasileira, por Débora Garofalo.

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Precisamos discutir um processo qualificado, igualitário e comprometido

Débora Garofalo
Mestra em educação, é professora na rede pública de São Paulo; em 2019, foi a primeira sul-americana a disputar o Global Teacher Prize, sendo considerada uma das dez melhores professoras do mundo

Folha de São Paulo, 18/03/2021

Temos vivido tempos difíceis na educação. O agravamento da pandemia e a ausência de uma coordenação do Ministério da Educação para os problemas em diferentes regiões do nosso país fazem com que uma das queixas recorrentes dos educadores seja lidar com a falta de infraestrutura, além do sentimento de solidão na sala de aula —não observado apenas neste ambiente, mas sim em todo o processo educativo.

Com o início da pandemia, vimos a educação parar no chão da escola. O que pensávamos que duraria poucas semanas foi substituído por um longo e angustiante período que já soma um ano, com consequências graves à aprendizagem de crianças e jovens e nos colocando no topo do ranking dos países que não conseguem controlar a pandemia e com o maior tempo de escolas fechadas. A epidemia de Covid-19 não só aumentou as desigualdades, mas a evidenciou de uma maneira brusca.

A escola não pode ser vista apenas como um local para aprendizagem. Muitas vezes ela é a extensão da casa dos estudantes, que cumpre e integra a rede de proteção da infância e adolescência nos papéis de garantir alimentação, convívio social, assistência médica e psicológica; ou seja, é reconhecida a necessidade de caminharmos para uma educação com valores integrais.

Há um ano com aulas mediadas por tecnologia ou distribuição de materiais didáticos, podemos destacar que a educação brasileira está solitária. Assistimos à inércia do MEC e à ausência de orientações para aulas no formato híbrido, além da falta de ações para o retorno presencial seguro e o fomento a políticas públicas, como o investimento em programas como o Educação Conectada. Fatores que deveriam ser prioridade para a elaboração de diretrizes básicas, com o objetivo de orientar redes e governos.

O novo Fundeb aprovado no final do ano passado, não será suficiente para superar os desafios e assegurar o retorno seguro e híbrido das aulas presenciais. Constantemente sofremos com ameaças de corte na pasta da Educação, mostrando ausência de diálogo e prioridade no setor. Erros que se somam ao passado recente e que novamente afetarão milhares de crianças e jovens.

No centro do processo, deve-se destacar o protagonismo docente, que materializou o planejamento e a gestão das ações nas unidades escolares, mostrando o importante papel social de construir saberes e o desenvolvimento integral que fundamenta a sociedade. Para planejar e executar as reaberturas das unidades escolares são necessários investimentos e, mais do que isso, fomentar diálogos com o território educativo e com quem faz a educação na ponta —gestores, professores e estudantes, com construção de protocolos locais, constituídos de maneira democrática.

Problemas educacionais também são problemas de desigualdade social. Promover a inclusão e a democracia digital a professores e estudantes é essencial para criar vínculos e pertencimento com o cognitivo, além da necessidade de ressignificar a educação. Caminhar para a educação híbrida é essencial para atender e cumprir os protocolos de saúde e de distanciamento social para o retorno gradual e, em paralelo, contribuir para a recuperação da aprendizagem.

Um dos maiores aprendizados desta pandemia é o de que nada substitui as aulas presenciais. E, para reinventar o processo educacional, é necessário se guiar de ações pertencentes, que envolvam a comunidade escolar e contemplem o risco de evasão —muitos jovens foram obrigados a emergir no mundo informal do trabalho. Não só a economia deve ser priorizada, mas também a educação.

Conseguimos descobrir a vacina para a Covid-19. Agora é preciso reunir esforços para transformar e priorizar a educação brasileira. O caminho passa pelo trabalho coletivo, escuta ativa, investimentos relevantes e aposta na educação como transformação da sociedade. Não basta apenas tecer discussões sobre voltar ou não, precisamos discutir a partir da crise: como não termos um processo isolado, mas sim qualificado, igualitário, comprometido com a aprendizagem e com políticas factíveis para todos.

Desagregação familiar, pandemia e neoliberalismo

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A pandemia está desnudando as grandes dificuldades existentes em todas as sociedades, em todas as nações estamos percebendo desafios assustadores, desequilíbrios emocionais, desagregações familiares, angústias e preocupações crescentes, exigindo políticas públicas para reconstruir as convivências sociais e a reconstrução dos laços afetivos e emocionais, num momento marcado pelas políticas sociais se fragilizando e o pensamento neoliberal, mesmo perdendo forças, ainda é hegemônico.

A pandemia está mostrando as pobrezas das sociedades, os desajustes econômicos e sociais estão num crescente, a consolidação do individualismo, da concorrência desigual, do crescimento do mito da meritocracia, medos e desesperanças que levam os indivíduos às depressões e às ansiedades, muitos deles mais fragilizados e desequilibrados recorrem ao suicídio, como forma de fuga das desesperanças, acreditando que este caminho o levará para acalmarem seus sentimentos mais íntimos e pessoais.

As famílias estão desagregadas, os lares estão devastados pelos desequilíbrios financeiros, as perspectivas são preocupantes, a pandemia está desnudando as estruturas. Os seres humanos estão no limite, de um lado, percebemos desequilíbrios emocionais centradas na ausência da inteligência emocional e, de outro lado, as perspectivas financeiras são assustadoras, as alterações no mundo do trabalho geram preocupações crescentes, gerando conflitos internos, conflitos familiares e medos generalizados.

Neste ambiente, percebemos o crescimento de movimentos fundamentalistas e religiosos, que estimulam os cultos e os rituais exteriores, marcados pelas interações centradas em falas superficiais e bem orquestradas, que estimulam o empreendedorismo e os negócios, marcados pela busca do enriquecimento, pelo entesouramento e o crescimento da meritocracia. Estes movimentos crescem de forma acelerada, transformando antigos espaços fechados de cinemas ou estruturas industriais desativadas de cidades médias e grandes em locais de cultos e louvações religiosas.

O mundo do trabalho passa por alterações crescentes, as atividades impactadas pelas tecnologias não mais se restringem aos trabalhos repetitivos e mecanizados, impactando para variadas atividades profissionais liberais, com isso, os movimentos de degradação dos trabalhadores da classe média, gerando perdas de rendas e das riquezas, fragilizando a classe média, cuja importância na sociedade sempre foi relevante e imprescindível.

Destacamos ainda, a fragilização das famílias, muitas degradadas por problemas financeiros e monetários, sem fontes de recursos adicionais acabam abandonando os convênios médicos e as escolas particulares, impactando vários setores da economia, fragilizando escolas e setores de saúde que perdem recursos e precisam fechar suas instalações ou aceitar promessas pouco atraentes pelos grupos maiores e mais estruturados. As famílias, acossados pelas crises financeiras, se entregam aos empregos existentes e, nesta busca acelerada pela sobrevivência com alguma dignidade, se percebem desintegrados, seus filhos cresceram, os espaços de convivência familiar se reduziram, os recursos monetários diminuíram e as surpresas negativas crescem, gerando decepções, medos e desesperanças.

Destacamos o incremento das drogas e as más companhias, que geram preocupações dos pais e dos familiares, crianças que cresceram e se transformaram em adolescentes, cheios de conflitos e desequilíbrios, criando constrangimentos com os pais, muitos deles se entregam aos pequenos furtos para bancar seus consumos internos, muitos, mais audaciosos e arrojados, começando negócios maiores, se aventurando no mundo das drogas e da delinquência. Estes relatos são naturais na sociedade contemporânea, onde as crises dos valores crescem aceleradamente, onde as religiões perdem a capacidade de construir novos espaços de sociabilidade, onde as escolas se limitam a construção de consumidores e os mercados se reduzem a locais do consumismo, da vaidade e de hedonismo.

No mundo da pandemia, as realidades são destrutivas, as famílias se entregam a conflitos abertos, os divórcios crescem de forma acelerada, as violências nos lares aumentam, gerando conflitos abertos entre pais e filhos, levando a assassinatos, agressividades e violências, as famílias perderam os laços de solidariedade, de respeito e de construções sociais, emocionais e afetivas.

A desagregação das famílias está impactando fortemente nas escolas e nas instituições de ensino, de um lado percebemos o abandono dos adolescentes pelas famílias, que mergulham nas atividades cotidianas de trabalho e justificam suas atitudes de descaso e de abandono, para trabalhar e conseguir acumular recursos monetários para garantir escolas de qualidade e a compra de bens, produtos e mercadorias para satisfazerem os desejos e as necessidades dos filhos. Os resultados imediatos estão sendo sentidos nos anos posteriores, desequilíbrios crescentes, desajustes emocionais, imaturidades e inseguranças, adultos imaturos e incertos sobre os rumos futuros e, muitas vezes, altamente dependentes dos pais e de seus familiares.

Neste momento de degradação, percebemos a hegemonia da ideologia neoliberal, centrada nos conceitos da redução do papel do Estado na sociedade, visto como o grande agente gerador de degradação e da putrefação da sociedade. Pelo pensamento neoliberal, quanto menor intervenção do Estado na sociedade, melhor para o crescimento econômico que, segundo este pensamento, os grandes indutores do desenvolvimento devem estar sempre centrados nos mercados e nos investimentos privados, sempre mais eficientes e produtivos para a coletividade.

O pensamento neoliberal se difunde pelos pensadores do capital, indivíduo ou pessoas que pensam através dos preceitos do capital, difundindo para a toda a coletividade as teses da aversão ao intervencionismo do Estado. Defendendo a competição e a busca crescente da concorrência, como a única forma de estimular o sistema ao desenvolvimento. Para o neoliberalismo os investimentos acreditam ou difundem para a coletividade que o grande responsável pelo desemprego da sociedade é o alto emaranhado de leis e regras que limitam o empreendedorismo, diante desta análise, a forma de estimular o mercado de trabalho é a redução dos benefícios trabalhistas, reduzindo os custos trabalhistas e estimulando novos investimentos. Seguindo estes preceitos, em novembro de 2017 a Reforma Trabalhista entrou em funcionamento e, ainda não gerou todos os benefícios para a coletividade, as promessas foram inúmeras, mas as realizações não aconteceram. Hoje o Brasil amarga mais de 14% de desempregados, se somando os subempregados e os desalentados, os números ultrapassam mais de 30%.

O mundo contemporâneo vive momentos de grandes inquietações, medos e desesperanças, as famílias sentem os impactos econômicos, políticos e culturais, levando as pessoas a instabilidades e incertezas crescentes, que demandam atenções maiores para evitar constrangimentos e convulsões em todos os países. O predomínio do econômico é um grande equívoco da sociedade, o enfoque do lucro e do enriquecimento geram cobranças crescentes, levando os indivíduos a desequilíbrios emocionais e psicológicos, levando a sociedade reconstruir os laços de afetividade e solidariedade, sem estes, o caos pode crescer e os desajustes conjunturais tendem a crescerem e se tornarem estruturais.

Vivemos momentos de grandes dificuldades em todos os quadrantes do mundo, os desafios são crescentes, as desigualdades crescem de forma acelerada, as famílias estão desestruturadas, o consumo e a acumulação estão se transformando em uma religião, a política está sendo criminalizada, os setores financeiros dominam a sociedade e adota sua agenda, defendendo seus interesses imediatos, diante isso, a sociedade precisa repensar seus interesses e preservar os valores que fazem dos seres humanos um indivíduo melhor e mais solidário, sem repensarem nossos caminhos e as escolhas, estaremos se afastando dos verdadeiros valores que constroem uma coletividade melhor.

Desigualdades

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Um dos grandes legados da pandemia que assola a sociedade brasileira é o quadro de desigualdades generalizadas com impactos para todos os grupos sociais, políticos e econômicos, estamos num momento de inflexão, as escolhas existentes podem criar novas oportunidades para o país ou pode contribuir para perpetuar desequilíbrios crescentes e estruturais que, sem uma resolução plausível, podem levar o país ao colapso, com grandes dificuldades de governabilidade e uma convulsão social, que podem levar a sociedade a fragilização democrática.

Neste momento de grandes desigualdades, a sociedade brasileira está começando a conhecer as entranhas das dificuldades de grande parte da população, pessoas que vivem sem proteção do Estado, sem empregos dignos e altamente degradados, sem acesso a educação de qualidade, sem atendimentos médicos e hospitalares e de proteções sociais. A pandemia está desnudando a desigualdade nacional, as dificuldades de acesso as tecnologias, os instrumentos de interação social são precários, as deficiências do ensino remoto se mostram mais claras e as pessoas estão morrendo pela falta de oxigênio, vivemos uma verdadeira tempestade perfeita, mostrando incompetência e degradação moral.

A pandemia está nos mostrando o tamanho da economia informal nacional, estamos percebendo a degradação do mercado de trabalho, onde milhões de trabalhadores estão rastejando em empregos precários e degradantes, sem proteção social, sem benefícios trabalhistas, sem rendas e sem perspectivas. Numa sociedade que sonha com a modernidade e com o desenvolvimento econômico, é imprescindível garantir para seus cidadãos condições dignas de sobrevivência, ainda mais num momento de crescimento dos desequilíbrios sociais, das incertezas econômicas e das degradações políticas e culturais. O mercado de trabalho está degradado, sem um acordo entre todos os agentes econômicos e na construção de consensos políticos consistentes, a economia nacional tende a continuar rastejando em recessões e depressões continuadas.

Outro ponto interessante que deve ser destacado, é a grande incapacidade dos governos de construir novos espaços de solidariedade, de confiança e de credibilidade, precisamos desenvolver eixos de empatia entre as elites econômicas e políticas com a população, que sofre de formas diferenciadas e aumenta a insatisfação social que podem criar conflitos que poderiam criar constrangimentos para toda a coletividade. A sociedade contemporânea prescinde de confiança e de credibilidade, sem elas o mundo dos negócios perde legitimidade e reduzem os investimentos produtivos, sem estes a economia não se reproduz e os indicadores macroeconômicos se degradam. Sem confiança na sociedade, os atores econômicos e sociais tendem a fragmentação e ao descontentamento com a classe política, levando ao crescimento das instabilidades e das incertezas, possibilitando o surgimento de outsiders, cujas consequências são desconhecidas.

Vivemos inúmeros dilemas contemporâneos, as instabilidades crescem de forma acelerada e a degradação política aumenta e retroalimenta as instabilidades na estrutura econômica e produtiva. Necessitamos de líderes capacitados e conscientes das dificuldades contemporâneas, sem resolvermos os desequilíbrios políticos e acalmarmos os conflitos que cresce em todos os momentos, não conseguiremos reconstruir as bases da economia nacional e as dificuldades sociais tendem a prevalecer e os conflitos podem ser avolumar. A pandemia nos mostrou as pobrezas materiais e as limitações espirituais, os desafios são imensos e os espaços de reconstrução nacional são reduzidos, neste momento novas lideranças devem aparecer, mostrando os rumos, mostrando as dificuldades e orientando para a reconstrução de novos espaços. Como nos mostrou o primeiro-ministro Winston Churchill britânico, um dos maiores líderes do século XXI: “A diferença entre um estadista e um demagogo é que este decide pensando nas próximas eleições, enquanto aquele decide pensando nas próximas gerações”.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 17/03/2021.

‘Desertificação da política é o legado da Lava Jato’, diz cientista político

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Para cientista político, operação ‘morre’ pelos próprios erros, como ações ‘messiânicas’ e querer ‘salvar o País’
Luiz Werneck Vianna

Wilson Tosta, O Estado de S.Paulo – 13/03/2021

Rio – Depois que o ministro Edson Fachin, do Suprema Tribunal Federal, anulou as condenações do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e considerou a 13.ª Vara Federal em Curitiba incompetente para julgá-lo, o cientista político Luiz Werneck Vianna afirmou ao Estadão que a Lava Jato “morreu de morte morrida”. Para o professor da PUC-Rio, a ação dos procuradores da força-tarefa e do então juiz Sérgio Moro tinha objetivo “messiânico” – mudar o País pelo Código Penal –, durou demais e deu errado. Vianna descartou ainda a possibilidade de Moro ser candidato à Presidência, e disse que o combate à corrupção será tema “lateral” em 2022.

Que balanço faz desse processo, com a decisão de Fachin?
Demorou muito. Não é a primeira vez que a Justiça tarda e falha. Mas o fato é que a decisão é inatacável do ponto de vista jurídico. A Lava Jato não podia assimilar todos os casos de corrupção que estavam ocorrendo no País. Desde o começo, foi um erro monumental, em que juízes e procuradores jovens, eu diria provincianos, assumiram o papel de salvadores do País. Andaram estudando a operação que transcorreu na Itália (Mãos Limpas) e aplicaram aqui. Fizeram uma leitura descontextualizada da situação italiana. E mobilizaram a mídia como peça de sustentação. Acho que foi um erro.

Mas tudo que o STF está revendo foi aprovado pelo próprio STF. Por que a mudança agora?
Não creio que tenha sido uma manobra conspiratória. A Lava Jato… ela durou demais. Nasceu de uma concepção abstrusa, em que um pequeno núcleo de procuradores e juízes assumiu um papel messiânico, de salvação da política.

Querer fazer política pelo Judiciário é um caminho ruim. E foi o que a “República de Curitiba” tentou. Pelo processo formal, os processos não deveriam ser vinculados a Curitiba, mas à Justiça Federal. Houve um erro humano.

Desqualificou-se a política, os partidos, e ficamos em um deserto. O legado da “República da Lava Jato” é a desertificação da política.

Qual foi o ponto de virada, no qual se notou que a Lava Jato estava indo além do que poderia?
Foi um processo. Começa com a revisão da política da chamada condução coercitiva. Havia as prisões demoradas, a que eram submetidos os indiciados nas ações, ações cercadas de espetaculosidade. A mídia participou disso, de uma forma inteiramente franca e aberta. Não existiria “República de Curitiba” sem a mídia.

Essas prisões prolongadas muitas vezes foram confirmadas pelo Supremo…

Mas de outras vezes, não. A sociedade também não estava atenta ao que se passava, na medida em que a luta contra a corrupção encontrou guarida na alma popular. Encontrou legitimidade nos anseios escondidos, ocultos, da sociedade.

Os integrantes da Lava Jato atendiam a uma demanda social?
É, eles foram levados à desgraça pelo sucesso. Foi um grande sucesso, não é? Chegou-se até a especular uma candidatura de Moro a presidente da República.

Isso está afastado?
Está. Moro sai desse processo inteiramente desqualificado como juiz. Ele foi parcial.
Que saldo fica?

O saldo primeiro, para mim, é o de que não se deve combinar ação política com ação judiciária. São duas dimensões: a política é uma coisa, a Justiça é outra. Houve essa combinação esdrúxula, e deu no que deu.

Mas isso, de certa forma, continua, não? Porque agora, com a decisão de Fachin, a Justiça também interveio na política…

Ah, continua. Isso agora faz parte do nosso DNA. A política se judicializou no Brasil. Por falta de política, falta de partido. Não se veem medidas judiciais interferindo na questão sanitária brasileira? Na compra de vacina? No lockdown? Isso foi trazido para a política pelos erros da própria política. E agora dificilmente sai.

Quais são as consequências do retorno de Lula à política?
O fato é que, para escapar da polarização extremada, Bolsonaro e Lula, seria preciso que as forças do centro tivessem outra capacidade de interferir nos acontecimentos. Mas o centro está fraco também!

Existe centro na política, com chances de sucesso eleitoral?
Não sei se o centro vai se reconstituir. Ele pode se reconstituir para ter um papel marginal. Penso que, se o PT tiver maior lucidez, não vai ser o protagonista da sucessão. Seria, nessa minha projeção utópica, o construtor de uma frente de centro-esquerda. Ele participaria, evidentemente, ativamente. Agora, sem o papel principal. É possível? Ele não tem história disso. Sempre procurou ser o protagonista. E ficou claro, no discurso de Lula, que isso vai persistir.

Voltando à Lava Jato: a postura messiânica do Ministério Público e da Justiça acabou?
A Lava Jato está acabada. Morreu de morte morrida.

Não foi de morte matada?
Não.

Não foi o STF que matou?
Pode ter sido um golpe de misericórdia, mas estava morta. Passou da conta. Foi um projeto messiânico de salvação do Brasil pela reparação da criminalidade, pela punição, pela extirpação do crime. Isso é uma proposta fora de sentido. Os males do Brasil não são esses. Tem corrupção, sempre teve. É necessário que se combata a corrupção de outra forma, não de uma forma que comprometa todo o tecido político, como se fez. Queriam salvar o País por mecanismos judiciários, pelo Código Penal. Não é por aí.

Em 2022, um candidato com a bandeira do combate à corrupção seria então enfraquecido?
Olha, a bandeira da luta contra a corrupção não fará parte da próxima sucessão eleitoral de forma protagônica. Vai ser um tema adjetivo, lateral.

Mulheres criam filhos, acumulam plantões e limpam a casa na folga, por Drauzio Varella

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O que a sociedade oferece em troca dessa generosidade e dedicação? Salários baixos e condições precárias

Drauzio Varella – Folha de São Paulo, 14/03/2021

Deu no que deu. É a crônica de uma tragédia anunciada: caminhamos para perder 3.000 brasileiros por dia.

Não temos estrutura hospitalar para dar conta dos que procuram os pronto-socorros e superlotam nossas enfermarias e UTIs, do Amazonas ao Rio Grande do Sul, passando por São Paulo, o estado mais rico.

É a consequência das ações e atitudes da autoridade máxima do país, que desde o início da epidemia fez de tudo para combater as medidas de prevenção, da irresponsabilidade demagógica de muitos governadores e prefeitos incapazes de impor restrições à movimentação nas cidades nos momentos cruciais e do egoísmo fraticida dos nossos conterrâneos que decretaram por conta própria o fim da epidemia, comemorado com desfaçatez perversa nas festas e aglomerações.

Quem teve o privilégio de nunca haver entrado numa UTI com todos os leitos ocupados não faz ideia do inferno vivido pelas equipes de plantão. As emergências e as solicitações são ininterruptas, atender a todas é humanamente impossível quando há 20 ou 30 pacientes em estado crítico e um punhado de
profissionais para cuidar deles.

Enquanto todos se mobilizam para socorrer um paciente em parada cardíaca, outro fica mais grave porque o aparelho de ventilação mecânica deixou de ser ajustado, ao mesmo tempo em que uma senhora inconsciente aspira o próprio vômito e o monitor de um dos leitos dispara o alarme para indicar queda da pressão arterial.

Quem já viveu situações como essas sabe que há horas nas quais nos sentimos tão estressados e impotentes, que dá vontade de sair correndo para nunca mais voltar.

A demanda crescente por plantonistas nas UTIs leva à contratação de profissionais que nem sempre receberam treinamento adequado. Para piorar, os salários baixos obrigam muitos a trabalhar em mais de um hospital.

A insegurança financeira, o medo de contrair o vírus e infectar os familiares, o cansaço físico, a sucessão de noites mal dormidas, a frustração por não conseguir realizar o melhor atendimento e o convívio com a morte onipresente causam impactos psicológicos que nem todos conseguem suportar.

Outro dia, ouvi o desabafo de um colega que, ao sair de um plantão no qual precisou dobrar o turno, para cobrir o horário de um companheiro que havia que havia morrido de Covid, passou por um bar na Vila Madalena lotado de gente sem máscara. “Senti vontade de descer do carro e esbofetear um por um aquele bando de imbecis.”

Nesta semana seguinte à do Dia da Mulher, quero fazer uma homenagem àquelas que estão na linha de frente do atendimento de pacientes com Covid. São enfermeiras, auxiliares de enfermagem, fisioterapeutas, fonoaudiólogas, farmacêuticas, faxineiras, psicólogas, nutricionistas, médicas, atendentes e outras mulheres que constituem no mínimo 60% a 70% da força de trabalho dedicada aos cuidados com os doentes e seus familiares. Não fossem elas, o que seria de nós?

Essas figuras anônimas criam filhos sozinhas, gastam duas horas para ir e mais duas para voltar do trabalho, acumulam plantões em outras unidades de saúde para cobrir as despesas da família, cuidam das lições dos filhos, da saúde dos pais e ainda cozinham, fazem compras e limpam a casa nas horas em que deveriam descansar.

Quando vejo prestarem homenagens aos “médicos da linha de frente”, acho merecido, é claro, mas sinto falta do reconhecimento a essa legião de mulheres que administram os medicamentos prescritos, dão banho nos acamados, levam ao banheiro os que ainda conseguem andar, trocam as roupas de cama e as fraldas dos incontinentes, dão comida na boca, consolam os que se desesperam, seguram as mãos dos aflitos e ainda amparam os parentes inconformados, alguns dos quais transmitiram o vírus ao ente querido.

O que a sociedade oferece em troca dessa generosidade e dedicação aos mais frágeis? Salários baixos, condições precárias de trabalho e de assistência social. Quando perdem a vida por causa do vírus contraído no emprego, os filhos e os que dependem financeiramente delas ficam desprotegidos.

O que leva tantas mulheres a exercer uma profissão que lhes impõe tamanhos sacrifícios, renúncias, tristezas e frustrações para cuidar de pessoas que podem lhes transmitir um vírus capaz de pôr em
risco a vida delas e das pessoas que mais amam é um dos mistérios da alma feminina.

Degradação Econômica

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A pandemia está confirmando todas as previsões catastróficas feitas anteriormente pelos especialistas, vivemos num momento de degradação em todas as áreas, culminando no ambiente sombrio de desesperança e de incertezas. Em pleno século XXI, onde as tecnologias comandam a sociedade, aproximam as pessoas e estimulam a comunicação, estamos envoltos em medos, instabilidades e na ausência de empatia, nos sentimos inseguros, amedrontados e carecemos de lideranças e direcionamentos.

Recentemente, o governo divulgou os dados do produto interno bruto do ano passado, uma queda de 4,1%, pior indicador desde o começo dos anos 90, com sérios impactos sobre a sociedade, aumento no desemprego, queda do consumo, redução do investimento produtivo e degradações sociais. Os dados nos mostram que a economia brasileira está devastada, sem capacidade de recuperação, exigindo atuação de todos os agentes econômicos, num verdadeiro acordo entre todos os grupos sociais, deixando as críticas de lado e construindo novos consensos políticos, sem estes os números da degradação tendem a piorar.

A gestão econômica é caótica, os resultados positivos estão sempre adiados, as promessas de emprego não se efetivam, o crescimento do subemprego é patente, as esperanças do empreendedorismo crescem, mas num ambiente de negócio cada vez mais degradado, as esperanças inexistem. Os dados econômicos mostram uma piora em muitos setores produtivos, levando muitas empresas a deixarem o mercado nacional, como grandes conglomerados internacionais que estão de saída, como a Ford, a Sony, a Mercedes e a Audi, aumentando o desemprego, a informalidade e espalhando um caos generalizado.

Os dados divulgados recentemente mostram ainda, que a queda seria mais acentuada se o governo não atuasse mais efetivamente para estabilizar a queda na renda agregada, adotando políticas públicas como o auxílio emergencial, o programa de apoio às pequenas e médias empresas (Pronampe), o programa de preservação de empregos formais e a recuperação da economia internacional, cujos impactos foram positivos. Mais uma vez devemos destacar que, sem políticas públicas efetivas, transparentes e universais, não conseguiremos sair deste imbróglio econômico, social e político.

A pandemia desnudou as condições sociais existentes na sociedade brasileira, a pobreza se mostrou mais nítida e evidente, as limitações econômicas ficaram mais expostas e passou a exigir, de forma estratégica, a reconstrução do tecido industrial. Vivemos um momento de inquietação e incertezas, marcados pelas degradações sanitária e econômica, os investimentos em ciência e em tecnologia são fundamentais e inadiável, como forma de garantir a soberania nacional, reconstruir as bases da indústria nacional, estimulando a cooperação entre os setores produtivos e capacitando os trabalhadores para empregos mais dignos e decentes, dinamizando as demandas internas e incrementando a produtividade da economia.

Precisamos construir um projeto de nação, ressuscitando as ideias de desenvolvimento econômico, observando exemplos exitosos de outras economias, reorganizando os setores produtivos, estimulando os setores mais dinâmicos da economia nacional, reconstruindo os grupos mais vulneráveis da sociedade, investindo em ciência e tecnologia, deixando de lado discursos de curto prazo e construindo novas narrativas contemporâneas. Estamos num momento decisivo, precisamos de sinergias entre todos os setores, capacitando a sociedade para os embates que crescem numa sociedade marcada por instabilidades, inseguranças e incertezas generalizadas.

No momento necessitamos construir confiança e credibilidade, sem estes não teremos investimentos produtivos, gerando as sementes de crescimento da economia e contribuindo para o desenvolvimento econômico. Os indicadores divulgados mostram que, neste momento estamos, sem confiança, sem projeto econômico e sem consenso político, o país ruma rapidamente para o caos, para a degradação econômica e para a convulsão social.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno de Economia, 10/03/2021.

Profissão, qualidade e desenvolvimento econômico

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A sociedade vem passando por grandes transformações nos últimos anos, com impactos generalizados para toda a comunidade, levando as empresas a repensar seus modelos de negócios, os indivíduos estão perdendo os espaços no mundo do trabalho e os governos estão buscando novos instrumentos de desenvolvimento, com isso, numa sociedade em constantes transformações todos os agentes econômicos se mostram ansiosos e assustados com estas mudanças.

Estamos vivendo a quarta revolução industrial, desde o final do século do XVIII, o mundo passou por mudanças assustadoras, as estruturas foram destruídas e outras formas de sobrevivência nasceram e desenvolveram, desde então os indivíduos perderam seus eixos de comparação, estimulando as capacitações e qualificações constantes como forma de sobrevivência. Estas alterações impactam para todos os indivíduos, as empresas e o Estado Nacional, construindo novas concorrência e novos espaços de competitividade, reduzindo momentos de ociosidade e aumentando o tempo de qualificação, deixando uma diminuição crescentes das horas em convivência familiares.

Com o incremento da revolução industrial, novas ocupações e profissões surgem para impulsionar o desenvolvimento industrial, exigindo novos escolas e universidades na capacitação dos profissionais, surgindo novos cursos e modelos de negócios, impulsionando novos negócios na educação, crescendo e se consolidando na esteira das novas demandas do mercado do conhecimento. Novas ciências nascem neste intuito de estimular a consolidação das pesquisas e reflexões sociais, exigindo professores qualificados e remunerados, diminuindo até acabar com modelos de ensinos nas casas e nas residências, crescendo os investimentos em escolas públicas e particulares, se transformando a educação em um negócio muito atrativo e interessante para os donos do capital.

Setores educacionais crescem e impulsionam novos investimentos e atraindo setores privados e garantindo espaços na construção de conteúdos e metodologias. Estes investimentos contribuíram para o crescimento de estruturas educacionais e garantindo empregos e remunerações para professores e profissionais da educação, impulsionando novos setores que estão integrados para o setor educacional, angariando vários investimentos correlatos e deixando claros a importância dos setores educacionais e formação profissional.

Os setores educacionais foram fundamentais para impulsionar o crescimento das economias, levando economias ao caminho do desenvolvimento econômico, capacitando profissionais e contribuindo para o bem-estar social da sociedade, melhorando o salário da população, incrementando a renda, o consumo de todos os grupos sociais.

Nos últimos anos, ao analisar o caso brasileiro, perdemos o incremento acelerado de investimentos em setores educacionais, desde que o governo estimulou o crescimento destes setores, surgindo novos fundos de investimentos, criando grandes grupos econômicos, que despejaram recursos na aquisição de escolas, faculdades e universidades em todas as regiões do país. Estes investimentos contribuíram para aumentar a inclusão de estudantes nas universidades. Devemos destacar ainda, que este crescimento deve ser creditado pelas políticas públicas do governo federal, com investimentos maciços do setor educacional, onde devemos destacar o Programa Universidade para Todos (PROUNI) e o crescimento do FIES, que abriu espaços para negros, pobres e marginalizados socialmente a entrarem nas universidades. Além desta política, devemos destacar o incremento do governo federal de novas universidades federais em variadas regiões e o incremento dos institutos federais, criando novos campis em todas as comunidades, contratando professores e garantindo espaços para cidadãos que, sem estes investimentos, dificilmente teríamos condições de ter acesso ao ensino superior ou cursos de nível técnico de qualidade e excelência.

Estes movimentos foram interessantes e aumentaram a qualificação da população, garantindo muitos grupos sem recursos financeiros e condições de demandar espaços no ensino superior, destacando nomes de relevo da intelectualidade e de empreendedores sociais, tais como destacamos Silvio Almeida, Djamila Ribeiro, autora dos livros “Lugar de fala”, “Quem tem medo do feminismo negro?” e “Pequeno manual antirracista”, dentre outros livros. Devemos destacar o intelectual e professor Silvio Almeida, advogado, professor universitário e jurista, autor dos livros “Racismo Estrutural” e “Racismo sem racistas”. Estes autores que fazem sucesso nas discussões contemporâneas só podem ser compreendidos através de políticas públicas que angariaram espaços para muitos negros e indígenas nos bancos escolares e das universidades, aumento a inclusão nas universidades públicas e fortalecimento a democracia, dando espaços para várias vozes e construindo novas oportunidades de ascensão social.

O papel da educação é fundamental para o desenvolvimento da sociedade, nenhum país se transforma em uma sociedade desenvolvida sem estudos de qualidades, empregos mais dignos e salários decentes, nestes países percebemos a importância dos investimentos educacional, desde os ensinos fundamental, ensino médio e ensino superior. Devemos salientar que a educação é fundamental para todo este crescimento, mas precisamos destacar que se faz fundamental da adoção de políticas de desenvolvimento industrial e tecnológico. Sem estes investimentos no conhecimento, na pesquisa científica e na melhora educacional, perceberemos que teremos uma sociedade com quantidade de bacharéis sem empregos dignos, levando uma leva de trabalhadores altamente qualificados para se vender aos empregos precarizados, sem carteira de trabalho assinados, sem FGTS, sem férias, sem descanso semanal, como estamos percebendo os novos empregos no mundo contemporâneo, como aqueles atrelados com os da Uber, os chamados uberizados.

Destacamos ainda, que cabe aos investimentos em educação a construção de uma sociedade desenvolvida e qualificada, onde as universidades públicas e privadas precisam formar indivíduos capacitados e conscientes dos desafios da sociedade do conhecimento, a educação é uma concessão pública e devem ser cobradas das empresas privadas a entrega de uma mercadoria de qualidade, queremos educação de qualidade para todos os setores econômicos, sociais e políticos, desde que cumpram com seu papel de serviço de alta qualidade, não apenas setores que buscam lucros e crescimentos econômicos elevados, sem preocupações com a formação profissional, acadêmica e moral da sociedade.

Dowbor lê Mariana Mazzucato

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Livro da economista italiana mostra as engrenagens do rentismo. Desvinculado da economia real, deforma a noção de riqueza de países. Por emaranhados de instituições financeiras, acossa Estado e o setor produtivo — e endivida milhões de famílias…

Ladislau Dowbor

Outras Palavras – 04/-3/2021

Conhecemos bem Mariana Mazzucato pelo seu excelente estudo sobre o papel do Estado na economia moderna (O Estado Empreendedor), mas o presente livro, The Value of Everything: Making and Taking in the Global Economy (PublicAffairs, 2018), cujo subtítulo podemos traduzir como “produzir e extrair na economia global”, é mais amplo, e sistematiza de forma clara e muito organizada as transformações do capitalismo nas últimas décadas.

Em termos econômicos, produzir e extrair constituem dinâmicas diferentes. Os magnatas das arábias se entopem de dinheiro vendendo o petróleo que nunca tiveram de produzir, inclusive repassando para corporações transnacionais a tarefa da extração, comercialização e transporte. Estão vendendo o futuro dos seus países, dilapidando recursos naturais de que as próximas gerações irão precisar. O petróleo alimenta não só os sheiks, como um mundo de acionistas pelo mundo afora, que dizem “investir” o seu dinheiro, e que passam a aumentar o seu capital à medida que o capital natural do planeta vai se esgotando. No Nordeste usam a imagem de “festa com o chapéu dos outros”, e a expressão traduz rigorosamente o que em economia chamamos de rentismo, que extrai valor sem aumentar ou contribuir para a produção. Quem produz, no sentido de produzir efetivamente coisas úteis para a sociedade, tem lucro, que vai permitir que a pessoa aumente a sua ‘renda’. Quem extrai dinheiro apenas drenando o que outros produzem é um rentista, e o dinheiro extraído é “renta”.

O livro de Mariana Mazzucato, The Value of Everything, analisa precisamente a diferença entre “Making and Taking” na economia global. Por que é tão importante? Porque o capitalismo atual gerou um mundo de parasitas que extraem renta por meio de um emaranhado de mecanismos de intermediação financeira, de pedágios sobre qualquer transação, permitindo fortunas absurdamente elevadas nas mãos de gente esperta, mas que trava a economia. “Renta – considerada como renda não ganha – foi classificada como uma transferência do setor produtivo para o setor improdutivo, e era em consequência excluída do PIB.”

Entender como se alimentam as maiores fortunas do planeta, e se agrava a desigualdade mundial, em proveito de gente que não só não produz como essencialmente descapitaliza a economia, é essencial para resgatar os rumos de uma economia que funcione. São os mecanismos que permitem entender como, em plena pandemia, com a economia em plena crise (com exceção da China), 42 bilionários no Brasil aumentaram suas fortunas em 34 bilhões de dólares, equivalentes a 180 bilhões de reais, seis anos de Bolsa Família, em praticamente quatro meses (entre março e julho de 2020), sem precisarem produzir, simplesmente cobrando juros, dividendos e outros ganhos financeiros. Inclusive ver a Bolsa subir enquanto a economia cai, é significativo.

Outro exemplo: a publicação Valor Econômico: Grandes Grupos apresentou em dezembro de 2020 a evolução dos 200 maiores grupos econômicos do país. Baseado em dados de 2019, portanto antes do impacto da pandemia, o estudo constata que “dos quatro setores analisados, apenas o setor de Finanças registrou aumento no lucro líquido (27,1%). Comércio (-6,8%), Indústria (-7,8%) e Serviços (-34,8%) caminharam para trás”. Trata-se não do conjunto da economia, mas dos grandes grupos, onde as finanças predominam, mas é impressionante. O estudo ressalta “o bom desempenho da área financeira, sobretudo bancos, cuja fatia no lucro líquido consolidado dos 200 maiores aumentou de 37,7% para 48,9%” (p.12). Traduzindo, o que rende é ser banco, e de preferência grande; não é produzir, é cobrar pedágio de quem produz. E quanto mais os intermediários financeiros extraem, menos sobra para o investimento produtivo.

A força do livro de Mariana Mazzucato é explicitar os mecanismos. “Hoje, o setor [financeiro] se expandiu muito além dos limites da finança tradicional, essencialmente atividades bancárias, para envolver uma imensa gama de instrumentos financeiros, e criou uma nova força no capitalismo moderno: gestão de ativos (asset management). O setor financeiro hoje representa uma parte significativa e crescente do valor agregado e dos lucros da economia. Mas apenas 15% porcentos dos fundos gerados vão para as empresas no setor de indústrias não-financeiras. O resto é negociado entre instituições financeiras, fazendo dinheiro simplesmente pelo dinheiro mudar de mãos, um fenômeno que se desenvolveu enormemente, dando lugar ao que Hyman Minsky chamou de “capitalismo de gestores de dinheiro” (money manager capitalism). Ou dizendo de outra maneira: quando as finanças fazem dinheiro ao servir não à economia ‘real’, mas a si mesmas” (p.136). O setor financeiro passou a “capturar uma parte crescente do excedente da economia” (p.124).

O sistema passou a drenar a capacidade de compra das famílias, o ritmo de investimento das empresas produtivas, e os investimentos públicos, pelo endividamento generalizado. As empresas abertas se veem drenadas na sua capacidade de expansão pelos dividendos cobrados pelos “investidores institucionais”. As fortunas dos mais ricos em vez de servirem para financiar atividades produtivas, passaram a ser geridas pela indústria de gestão de fortunas (wealth management). O comércio internacional de commodities passou a ser administrado por traders, grandes intermediários que criaram gigantes financeiros por meio dos chamados derivativos: o maior deles, a BlackRock, tem ativos da ordem de 8,7 trilhões de dólares, cinco vezes o PIB do Brasil. Desenvolveu-se a indústria de securitização, autêntica indústria de distribuição de riscos que levou em boa parte às crises sistêmicas, e que também cobra pedágios sobre as operações. As corporações financeiras são suficientemente poderosas para extrair parte dos nossos impostos por meio de suporte público direto (QE, Quantitative Easing) em volume que nos EUA superou 4 trilhões de dólares. O dreno é generalizado, os favorecidos nunca tiveram o trabalho de entrar numa fábrica, numa fazenda, num hospital. Administram papéis, hoje aliás simples sinais magnéticos.

Os bancos também cobram taxas impressionantes sobre o lançamento de ações de empresas (IPOs), e aplicam um conjunto de tarifas que oneram o setor produtivo. Financeirizar o ensino superior também se generaliza: temos hoje uma geração de jovens enforcados em dívidas que lhes permitiram aceder ao ensino superior, mas que eles irão carregar por décadas. Quando as contraíram lhes acenaram com os excelentes salários que iriam ganhar. A autora traz os diversos mecanismos que expandem a apropriação do excedente social por intermediários financeiros dos mais diversos tipos.

Um impacto indireto da financeirização é que ela deforma profundamente o nosso cálculo do PIB. Quando calculamos como aporte produtivo o que são custos adicionais de intermediários – obrigando-nos a sustentar uma imensa burocracia financeira privada – criamos uma falsa impressão de crescimento econômico. Contar os lucros dos atravessadores da atividade produtiva como aumento do PIB, portanto como expansão da própria produção, quando apenas aumentamos os custos com mais intermediários, constitui um absurdo ao qual Mazzucato dedica boa parte do livro.

Na realidade, trata-se de uma contabilidade simplesmente errada. Se eu tenho uma empresa produtiva, e tenho custos financeiros, esses serão incorporados no valor do meu produto final, fazem parte dos custos de produção. Mas se o dinheiro que eu transfiro para os bancos são igualmente contabilizados nos bancos como valor de produção, estou contando duas vezes a mesma soma no PIB. Na contabilidade tradicional, seriam deduzidos como “consumo intermediários”. Se eu produzo carros, e incorporo no meu custo final o que me custou o aço que comprei, em termos de contas, não posso contar como produto o aço da siderúrgica, pois já está incorporado no valor do carro.

Essa dupla contagem dos custos financeiros, uma vez no lucro dos bancos e outra vez no valor da produção final das empresas tomadoras dos serviços financeiros, é recente. “Durante grande parte da história humana recente, em radical contraste com o atual entusiasmo com o crescimento do setor financeiro como sendo um sinal (e estimulante) da prosperidade, os bancos e os mercados financeiros foram durante longo tempo considerados como o custo de fazer negócios. Os seus lucros refletiam o valor agregado apenas na proporção em que melhoravam a alocação dos recursos de um país.” (102) Mais recentemente, no entanto, “por meio de uma combinação da reavaliação econômica do setor e de pressões políticas exercidas, as finanças foram promovidas de fora para dentro das fronteiras produtivas – e no processo geraram o caos (havoc).” (105)

Assim, a partir da revisão do sistema de contabilidade nacional de 1993, os custos financeiros passaram a ser calculados como valor agregado, contribuindo para o PIB: “Isso transformou o que previamente era considerado como um custo, em uma fonte de valor agregado, da noite para o dia. A mudança foi oficialmente apresentada na conferência da International Association of Official Statistics de 2002, e incorporada na maioria das contabilidades nacionais bem a tempo antes da crise financeira de 2008. Os serviços bancários são naturalmente necessários para manter as rodas da economia girando. Mas isso não significa que os juros e outros encargos cobrados dos que usam os serviços financeiros sejam um ‘output’ produtivo” (p.108). “As contas nacionais agora declaram que estamos melhor quando uma massa maior da nossa renda flui para pessoas que “administram” o nosso dinheiro, ou que jogam (gamble) com o seu próprio dinheiro” (p.109). Para o Brasil, isso é muito significativo, pois os lucros dos intermediários financeiros, custos para a economia, permitem que o PIB apareça como “crescendo”.
Mazzucato apresenta uma série de exemplos de como isso deforma a economia, pelo fato de que custos de intermediários são apresentados como “produto”, aumento do PIB, portanto da prosperidade. Da mesma forma, os atravessadores que compram barato na mão do agricultor e revendem caro nos mercados poderiam apresentar os seus lucros como aumento do PIB, enriquecimento da sociedade. Na realidade, os fazendeiros recebem pouco dinheiro e podem investir menos na produção, e os consumidores irão comprar menos porque o produto está mais caro. O que acontece quando, como é atualmente o caso, expande-se a venda direta, online, do agricultor para o consumidor, é que os dois polos do ciclo, o produtor e o consumidor, ficam mais eficientes. Dizer que fragilizar o atravessador fragiliza a economia é absurdo.

Mas o que acontece nas formas como a economia analisa o processo? Mazzucato vai direto ao ponto: “Quando os custos da intermediação financeira se elevam em termos reais, nós celebramos o fortalecimento do setor vibrante e cheio de sucessos dos bancos e das seguradoras” (p.108). Na realidade, o que foi um setor que reunia poupanças e financiava atividades produtivas, fomentando a economia, transformou-se num dreno descontrolado, que torna claro como bilionários improdutivos, especuladores de Wall Street, banqueiros, no conjunto que Michael Hudson resume como FIRE (Finance, Insurances, Real Estate), especuladores imobiliários, traders internacionais – uma massa de intermediários improdutivos – controlam hoje tantas fortunas.

O livro de Mazzucato desdobra o raciocínio para a compreensão do rentismo por meio de patentes, e fecha com a análise do “mito da austeridade”. Não há como não lembrar aqui a clareza de Conceição Tavares: “Rendemo-nos à financeirização, sem qualquer resistência… O Brasil virou uma economia de rentistas, o que eu mais temia. É necessário fazer uma eutanásia no rentismo, a forma mais eficaz e perversa de concentração de riquezas”.