Juros altos e crise nas startups, por Luiz Guilherme Piva.

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Há risco inerente, mas investidores desconhecem efetivo potencial

Luiz Guilherme Piva, Economista, mestre (UFMG) e doutor (USP) em ciência política e autor de ‘Ladrilhadores e Semeadores’ (Editora 34) e ‘A Miséria da Economia e da Política’ (Manole)

Folha de São Paulo, 19/08/2022

No Brasil, segundo a ABVCAP (Associação Brasileira de Private Equity e Venture Capital), os investimentos em startups vinham crescendo muito: passaram de R$ 8 bilhões, em 2016, para quase R$ 50 bilhões, em 2021, com o número de aportes anuais saltando de menos de 100 para mais de 300. Só que 2022 está registrando um grande refluxo: no primeiro trimestre foram R$ 6,4 bilhões investidos em 41 aportes —e caindo.

Quem tem (juros reais altos à disposição)… Tem medo (de investir). É uma lição que está nos manuais econômicos com nomes como “preferência pela liquidez”, “custo de oportunidade”, “flight to quality” ou “farinha pouca, meu pirão primeiro”.

Negócios de maior risco, como as startups, sofrem mais para captar em cenários de juros elevados – como o atual. Elas abrigam apostas dos investidores no crescimento futuro e precisam oferecer perspectivas melhores do que outros investimentos.

Trata-se da indústria de “venture capital”, cujos benefícios para as startups são inegáveis: melhoram a governança e a gestão das empresas, viabilizam produtos e serviços que atendem a lacunas do mercado, dão às investidas acesso ao mercado de dívida etc. Há muitos casos de sucesso, recentemente denominados de “unicórnios” (startups que atingem o valor de US$ 1 bilhão antes de abrir capital), com altos retornos aos investidores. Outro benefício é a inovação. Muitas empresas aportam em startups e obtêm ganhos de produtividade e avanços tecnológicos. É a chamada inovação aberta.

Mas, além do risco inerente, existe a assimetria de informações. Investidores desconhecem o efetivo potencial das startups. No mais das vezes, mitigam o risco diversificando a carteira, de modo que perdas em algumas sejam compensadas por ganhos em outras (quem sabe até num unicórnio, não é?). E também (como se ensina em Harvard, Princeton e no interior de Minas: “ganha-se dinheiro é na compra”) rebaixando a avaliação inicial do ativo para assegurar, na saída (ou evento de liquidez; não confundir com cervejada), grandes retornos.

Quando os juros sobem, essa assimetria diminui no pior sentido: o investidor tem certeza de que não vale a pena entrar no negócio. Mesmo sabendo que, por necessidade de recursos agora escassos e por terem sua avaliação ainda mais degradada (os juros altos diminuem seu valor presente), as startups ficam bem baratinhas. É que, além de preferirem o caldo de galinha, eles temem a seleção adversa: empresas ruins que oferecem retornos fantásticos —e, claro, irreais.

Os investidores, neste período recente, têm visto isso ocorrer a um nariz diante de seus palmos vazios (o dinheiro está na renda fixa). Hoje as startups brasileiras têm tido maior dificuldade em captar. Quem tinha que ter fôlego para cerca de seis meses sem aportes está refazendo as contas para ficar na seca até o triplo desse prazo. A consequência imediata é o fechamento de várias delas —cuja mortalidade é alta mesmo em marés mais mansas— e a diminuição das maiores, principalmente na força de trabalho: no primeiro semestre, ao menos 2.000 funcionários de unicórnios (ou quase) foram demitidos, a maior parte em pacotes de 200 a 300 de uma só vez.

Nisso, não se vê inovação nenhuma. Nos manuais econômicos, nas “business schools”, no interior de Minas e nas cervejadas sabe-se que a corda estoura sempre no lado mais fraco.

Mercado Interno

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A economia brasileira apresenta grandes dificuldades de engatar um ciclo de crescimento econômico sustentável com geração de emprego, investimentos produtivos, incremento da renda e fortalecimento do mercado interno, com isso, percebemos que vivemos em ciclos curtos de melhoras imaginárias, com inúmeras promessas e frustrações constantes, além de desesperança, insatisfação e instabilidades.

Para que a sociedade brasileira consiga alcançar o tão almejado desenvolvimento econômico é fundamental a construção de um mercado interno pujante, com estruturas produtivas consolidadas e fortes investimentos produtivos, crescimento do emprego, melhora na renda agregada, estabilidade política, instituições sólidas, tudo isso, contribuem para o fomento da estrutura produtiva.

O desenvolvimento econômico é um processo constante que demanda tempo, planejamento e a construção de pactos sociais e políticos, exigindo empenho e dedicação de todos os atores institucionais, criando novos consensos para a reconstrução industrial, com investimentos em capital humano com melhoras consideráveis na educação, na pesquisa e no desenvolvimento científico e tecnológico.

Para a construção de um mercado interno pujante e dinâmico é fundamental a adoção de um novo modelo econômico, priorizando os investimentos produtivos em detrimento dos investimentos especulativos. O desenvolvimento do mercado interno como motor do crescimento econômico exige uma alteração radical da estrutura tributária nacional, acabando com as isenções fiscais e tributárias indiscriminadas, sem critérios claros e geradores de privilégios de poucos grupos econômicos, adotando uma tributação progressiva, tributando lucros e dividendos e canalizando estes recursos para um novo modelo de construção coletiva, priorizando o combate das desigualdades que perpassam a sociedade brasileira e contribuem para perpetuar os péssimos indicadores socioeconômicos.

Poucas nações do mundo possuem mercados internos pujantes e capacidades de alavancar os investimentos produtivos, criando espaços de crescimento impulsionados por demandas internas. O Brasil possui mais de 200 milhões de pessoas sedentos de consumo e de dignidade, precisamos construir um projeto de nação que inclua a totalidade da população, garantindo educação de qualidade para os cidadãos, serviços públicos decentes e novas perspectivas para o futuro, melhorando o ambiente institucional, respeitando os direitos humanos e valorizando o meio ambiente.

Ao analisarmos a situação brasileira, percebemos que o mercado nacional carece de dinamismo, o alto desemprego e a elevada informalidade limita o crescimento do mercado interno e criam travas evidentes de recuperação mais efetiva da economia.

Neste ambiente, percebemos o paradoxo crescente da economia nacional, de um lado, poucos grupos econômicos ganham elevadas quantias monetárias, acumulando ganhos substanciais, como demostrado recentemente pelos elevados lucros auferidos pelos bancos nacionais e, de outro lado, o crescimento visível do empobrecimento da população, com incremento de indivíduos vivendo na rua, o crescimento de pessoas sobrevivendo através dos auxílios governamentais, a degradação da renda em decorrência de uma inflação acelerada e da desesperança que fragiliza a sociedade, gerando incertezas e medos constantes.

O mercado interno pode ser um grande motor do crescimento econômico, para isso, faz-se necessário a reconstrução das estruturas sociais e políticas, reduzindo os ganhos elevados de grupos que se apoderaram dos setores governamentais e se comprazem com a perpetuação das desigualdades, auferindo grandes lucros especulativos e poucos retornos concretos para a sociedade, concentrando a renda e centralizando os poderes econômicos e políticos, evitando alterações estruturais, impedindo a adoção de um sistema tributário progressivo e garantindo seus vultosos ganhos centrado no rentismo e no imediatismo.

O crescimento e a consolidação do mercado interno podem garantir novos espaços de desenvolvimento socioeconômico, sem este ativo fundamental, o sonho do desenvolvimento se fará cada vez mais distante e nos afastará do verdadeiro conceito de civilização.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Comportamental, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 17/08/2022.

Entrevista: ‘Mesmo depois da corrupção endêmica, instituições brasileiras seguem fortes’, diz Daron Acemoglu

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Referência em economia política e autor de ‘Por que as nações fracassam’ afirma que Bolsonaro é uma ameaça à democracia já consolidada

Por Janaína Figueiredo 09 agosto de 2022 – Jornal O Globo

Autor de “Por que as nações fracassam” e referência em economia política, o economista Daron Acemoglu diz que a academia ainda não entende nem sabe explicar o surgimento do populismo de direita no mundo e que, no Brasil,
Bolsonaro é uma ameaça à democracia já consolidada.

Em seu livro “Por que as nações fracassam”, o senhor insiste na importância de se ter instituições políticas inclusivas. Esse é um elemento central quando se analisa por que alguns países dão certo e outros não?

Sim, absolutamente. Nenhum país nasce com esse tipo de instituições, e o Brasil as teve, as desenvolveu. Essa questão é mais profundamente explorada em nosso livro posterior, “O corredor estreito”, já lançado no Brasil.

Qualquer tipo de boa governança, boas instituições, devem ser equilibradas em relação a diferentes tipos de forças sociais, atores políticos. Numa sociedade controlada por produtores rurais ou industriais o poder político não terá equilíbrio em suas instituições. No Ocidente, países como Inglaterra ou França não nasceram com instituições inclusivas, foi um processo longo e doloroso, eu diria, de uns 500 anos. O movimento trabalhista foi crucial. As conquistas não foram entregues facilmente pelas elites, foi um processo movido pelas demandas dos trabalhadores organizados. Esse era o retrato do PT que tínhamos em mente, o PT original. O que aconteceu, no caso do Brasil, foi que chegaram ao poder muito rápido e, quando chegaram, as instituições que deveriam supervisar o poder não estavam fortes o suficiente. As más tentações estavam lá e, bem, foram engolidos. Nada do que digo os absolve, mas havia muitos grupos de interesse, homens de negócios e operadores políticos que estavam prontos para engoli-los e corrompê-los.

Os erros do PT explicam, em parte, o que aconteceu no Brasil após seus governos?

Absolutamente. Da mesma maneira, eu diria, em relação aos Estados Unidos, porque muitas vezes se foca no narcisismo, audácia, corrupção etc. de Trump, no Partido Republicano aceitando o domínio de Trump, e se esquece que também foi um fracasso dos democratas. Não encararam questões fundamentais sobre igualdade, pobreza, pessoas perdendo seus trabalhos, pessoas que deixaram de se sentir representadas. Acho que temos uma versão diferente da mesma coisa no Brasil. Na Presidência de Dilma Rousseff, o sistema político como um todo, não apenas o PT, esteve envolvido na corrupção. Era necessário reagir, e essa reação aconteceu. Depois da chegada do PT ao governo o Brasil ia bem, não era perfeito, havia problemas, mas o Brasil foi um dos países onde mais rapidamente foi reduzida a desigualdade social, a pobreza. Mas também é verdade que se tornaram muito poderosos muito rápido.

Em comparação com os processos vividos por países como o Reino Unido …

Sim, mas também comparado com outros países como Chile. No Chile também houve melhoras em termos sociais, o país cresceu rapidamente, houve uma transição democrática bem-sucedida, com problemas, claro, mas eu diria que foi uma aterrissagem mais lenta. Mas no Chile você não pode dizer que um único partido acumulou tanto poder.

O que aconteceu no Brasil teve muito a ver com a corrupção, mas também com o surgimento e o fortalecimento de um movimento global de direita?

Claro, está 100% relacionado. Esta é uma das peças de um quebra-cabeças que a Ciência Política Internacional ainda não conseguiu explicar bem. Se olharmos para países como a França, onde Marine Le Pen quase chegou ao poder, Hungria, Turquia, os EUA, vemos poucas coisas em comum. Pense nas Filipinas, ou na Turquia, onde as pessoas se beneficiaram, por exemplo, de acordos comerciais vistos como negativos em países como os EUA. A desigualdade é um problema nestes países, mas não da mesma maneira que é nos EUA. No Brasil, acabamos de falar sobre isso, a desigualdade foi reduzida.

Podemos incluir a Rússia…

Claro, a Rússia também. Então, o que temos em comum entre estes países? Acho que obviamente o fato de que a comunicação tradicional colapsou, as redes sociais fizeram muitas coisas ruins, estaríamos muito melhor sem Facebook, Twitter e outras. Mas não podemos culpar as redes sociais por Trump ou Bolsonaro. Não é apenas isso.

Provavelmente tem também a ver com a globalização, com tudo o que foi prometido às pessoas ao redor do mundo, e com o aumento das aspirações que não se realizaram na realidade. Vimos grandes progressos em países como Chile e Brasil, transições de regimes ditatoriais para democracias, crescimento, mas as aspirações eram maiores, muito mais foi prometido. Falta muito a ser feito, e não houve um entendimento de que este era um trabalho em processo. Ainda existem elites, existe desigualdade, falta de oportunidades para pessoas que não são de certas famílias, tudo isso causa mal-estar pelas aspirações que foram criadas. São processos que as redes sociais tornaram muito mais difíceis de serem entendidos. A comunicação, em geral, ficou mais difícil, e ficou mais difícil para os políticos comunicaram que se trata de processos e temos de trabalhar neles. Teremos eleições presidenciais na Turquia, a situação é um desastre, a economia vai mal, e todos prometem mais populismo e não transmitem a mensagem de que o país levará anos para ser reconstruído.

É interessante ouvir que a academia ainda não sabe explicar exatamente o que estamos vivendo politicamente em países como EUA e Brasil…

Não entendemos ainda o surgimento do populismo de direita, especialmente, ou temos uma reposta sobre o que fazer com o problema. Mas é verdade, também, que identificamos alguns elementos importantes. Por exemplo, temos de tornar a globalização melhor para os trabalhadores, criar redes de proteção social mais fortes, investir em tecnologia para ajudar os trabalhadores e não apenas o capital, e temos de ouvir o que todos têm a dizer. Qualquer que seja a visão das pessoas, temos de ouvi-las com respeito, mesmo que não estejamos de acordo. Algo em que o Partido Democrata dos EUA está falhando, essa é uma grande ameaça.

Na América Latina e em muitos outros países, a ameaça não é mais um golpe militar…

Sim, a ameaça é totalmente diferente. As futuras ameaças à democracia não vestem uniforme militar. Elas virão de pessoas ativas nas redes sociais, enviando mensagens como a de construir grandes países novamente.

Nas próximas eleições, os brasileiros deverão eleger entre opções radicalmente opostas. Imaginou este cenário quando escreveu “Por que as nações fracassam”?

O livro foi publicado em 2012, e escrito em 2010. Ele reflete um clima de otimismo com o mundo democrático naquele momento. Nenhum de nós, os autores, ou outros acadêmicos antecipou que, pouco depois, emergiria Donald Trump, e teríamos um grande momento de populistas de direita, movimentos autoritários, incluindo no Brasil. Para nós, o maior êxito do Partido dos Trabalhadores de Lula foi consolidar a democracia. Não era imaginável ter a volta ao poder de um regime militar. Sabíamos que a corrupção era um problema, mas, apesar disso, a democracia era estável.

O que muitas pessoas não previram foi, até a eleição de Trump, que a maior ameaça não seria militar ou algo similar, mas que viria de pessoas como Bolsonaro e Trump. Eles não são ditadores, são populistas. Como Trump, o presidente Bolsonaro causou um dano às instituições brasileiras, pelo que todos entendemos. Da mesma maneira que penso sobre Trump, um segundo governo de Bolsonaro poderia causar mais dano, porque esse tipo de líderes autoritários e personalistas corroem as instituições formais da democracia.

Em seu livro, o senhor usa como exemplo os governos de Alberto Fujimori (1990-2000) no Peru, vê similares com Trump e Bolsonaro…

Vejo, sim. Mas, ao mesmo tempo, com uma origem de esquerda, poderíamos fazer uma comparação com Hugo Chávez. Ele foi militar, mas não chegou ao poder através de um golpe militar, ele concorreu à Presidência, venceu, e terminou destruindo as instituições venezuelanas. (Nicolás) Maduro está, de fato, atuando em base ao que foi construído por Chávez. Nos EUA, Trump não ficou muito tempo no poder. Na Venezuela, Chávez sim. Voltando à eleição brasileira, algumas pessoas podem ter dúvidas sobre o PT, ou sobre Lula, mas, para mim, está muito claro que se trata de uma ameaça existencial pensar num segundo governo de Bolsonaro.

Recentes tentativas do presidente Bolsonaro de ampliar seu poder sobre a Petrobras levaram analistas a fazer uma comparação com Chávez, que se apropriou da Petróleos da Venezuela (PDVSA).

Absolutamente. Se você olhar para trás, a Venezuela tinha instituições mais fortes do que as do Brasil, uma economia mais moderna do que muitos países da América Latina. Em termos econômicos e institucionais o país estava num nível superior ao de países como Brasil e Argentina. O que aconteceu na Venezuela poderia acontecer em outros países da região. O que a Venezuela nunca viveu foi um momento como o que vive o Brasil hoje, tão decisivo de luta pela democracia.

Atualmente, a oposição venezuelana está profundamente enfraquecida e sem rumo…

Sim, o Brasil tem a chance de evitar chegar a isso. Mesmo depois da corrupção endêmica, as instituições brasileiras continuam fortes, mais fortes do que foram com Chávez ou são com Maduro.

O senhor é otimista?

Bom, temos de ser realistas, mas não quero perder meu otimismo. Não existe nada inevitável sobre democracia. A História da humanidade está cheia de erros, regimes horríveis, sofrimento, mas ainda sou otimista e acho que aprendemos certas lições dessa História. Mas haverá retrocessos. Não acredito num caminho inexorável, nem um fim da História.

África tem muito a ensinar sobre inovação, por Ronaldo Lemos.

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Arrasada por uma guerra civil, Moçambique está em pleno processo de reconquista do tempo perdido

Ronaldo Lemos, Advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro.

Folha de São Paulo, 15/08/2022

Quando se pensa no continente africano nem sempre é comum pensar em inovação. Isso é um erro. Primeiro por conta dos aspectos tradicionais e da diversidade do continente, que sempre foram propícios para experimentação e criatividade.

Recentemente, também pelo fato de haver uma vitalidade enorme apontando para inovações tecnológicas e sociais no continente. Não é por acaso que se fala cada vez mais em afrofuturismo ou de Wakanda.

Moçambique pode facilmente ilustrar esses conceitos. A história do país é cheia de desafios. A começar porque só se tornou independente em 1975. Logo após a independência mergulhou em uma guerra civil, que acabou somente em 1992.
A guerra destruiu mais de mil escolas do país, além de arrasar recursos e infraestrutura, incluindo flora e fauna. Até os elefantes de Moçambique são especialmente agressivos, traumatizados pelo conflito.

No entanto, o país hoje está em pleno processo de reconquista do tempo perdido. É um país demograficamente jovem que tem produzido iniciativas inspiradoras.

Por exemplo, há um ecossistema de inovação e criatividade em curso. A começar pela questão dos pagamentos digitais. Há mais de dez anos é possível transferir dinheiro pelo celular, sem precisar de conta bancária. Mais do que isso, é possível sacar dinheiro nos caixas eletrônicos sem usar cartão, apenas com mensagens de texto. Ou ainda, pagar qualquer compra com o celular, também sem cartão.

Enquanto o Pix no Brasi tem pouco tempo, Moçambique tem um sistema de pagamentos digitais há bem mais tempo e com mais funcionalidades que as implementadas até agora pelo Pix.

Além disso, há uma cena crescente de startups. Por exemplo, o Biscate.com. Trata-se de um site e aplicativo de celular (acessível também por mensagens de texto) que permite aos 14 milhões de trabalhadores informais do país encontrar trabalho eventual.

Em Moçambique há cerca de 1 milhão de empregos formais, insuficientes para ocupar a força de trabalho. Depois do sucesso inicial, o Biscate está agora investindo em organizar cadeias produtivas mais complexas: conectar trabalhadores com habilidades distintas, criando laços mais sólidos entre demanda e oferta.

A indústria cultural também avança. O X-Hub, por exemplo, é uma iniciativa que permite a músicos, produtores audiovisuais e outros profissionais criativos alavancarem seu trabalho, inclusive internacionalmente.

Funcionam com capacitação, internacionalização (traduzem tudo do artista para o português, inglês e francês). Oferecem estúdio de gravação e produção de vídeo. E criam uma rede capaz de profissionalizar a produção local.
Como sempre gosto de lembrar, a cultura é a porta de entrada para a economia do conhecimento. E o X-Hub aposta exatamente nisso.

Mais ao norte do país o Parque Nacional da Gorongosa criou um programa de mestrado aberto a pesquisadores do mundo todo. É uma rara junção de parque nacional, com pesquisa e programa social de apoio às comunidades do entorno. Cheguei inclusive a participar da maratona promovida pelo parque com as comunidades vizinhas, com 2.500 participantes.

Enquanto corria com esforço máximo, fui ultrapassado facilmente por um corredor local que corria de costas. Isso serviu para mim de metáfora.

No continente africano há muita criatividade, ousadia e formas diferentes de fazer as coisas. Mesmo correndo de costas, com tantos desafios, o horizonte é cada vez mais de ultrapassagens.

Já era Achar que inovação acontece só no Vale do Silício

Já é Inovação no continente africano

Já vem A 6ª temporada do Expresso Futuro, que vai mostrar inovação no continente africano (estreia em outubro)

Reindustrialização

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Ao refletirmos sobre o mundo contemporâneo, percebemos o crescimento das incertezas e das instabilidades que impactam todas as nações, gerando preocupações para as organizações, para os indivíduos e todos os grupos sociais. Neste ambiente, centrado nas volatilidades políticas, guerras crescentes, crises econômicas, possíveis pandemias, degradação do meio ambiente, desigualdades em ascensão e dependências externas crescentes, cabe a sociedade reconstruir os laços sociais e econômicos, buscando aproveitar, este momento de incertezas elevadas, reconstruirmos a estrutura industrial, reestruturando a indústria nacional e retomando seu papel no mercado internacional.

A pandemia quebrou várias cadeias produtivas que impactou fortemente os preços de inúmeros produtos comercializados, além disso, a guerra na Ucrânia e as sanções econômicas dos países ocidentais contribuíram negativamente para o crescimento da inflação, se espalhando para todas as regiões, gerando uma queda da renda dos trabalhadores, reduzindo o mercado interno e prejudicando os agentes econômicos que perceberam a queda de vendas e seus ganhos materiais, reduzindo investimentos produtivos e canalizando-os para os mercados financeiros.

Neste ambiente de escassez de insumos e dificuldades crescentes de obtenção de variados produtos que entram na confecção de outras mercadorias, os governos deveriam criar instrumentos diretos e indiretos para reconstruir os setores industriais, atuando como atores centrais, fomentando a indústria, aumentando os investimentos em capital humano, estimulando a ciência nacional, despejando recursos na pesquisa e nas universidades públicas, grande responsável pela pesquisa científica no Brasil, além de criarmos instituições sólidas e consistentes para as transformações que estão moldando a sociedade contemporânea.

A indústria brasileira foi construída no século passado e teve alguma relevância mundial, alcançando mais de 30% do produto interno bruto (PIB) e, atualmente, não passa de 10%. Neste cenário, percebemos a fragilização da indústria nacional, setor dotado de baixa complexidade econômica e, desta forma, estamos caminhando a passos largos para nos tornarmos um país produtor de produtos primários de baixo valor agregado e importador de tecnologias, de máquinas e de equipamentos industrializados de alta sofisticação, gerando pouco emprego qualificado e uma grande quantidade de trabalhadores precarizados, transformando engenheiros, advogados e demais profissionais capacitados em motoristas de aplicativos, num mercado altamente competitivo, com cargas elevadas de trabalho, sem proteção social e salários degradantes.

Um projeto integrado exige que todos os setores da sociedade se empenhem na reindustrialização da economia nacional, utilizando os bancos públicos de fomento para investimentos de longo prazo, garantindo recursos financeiros com taxas de juros atrativas, fomentando a integração entre empresas, fortalecendo os centros de pesquisas e universidades, protegendo os setores produtivos, exigindo retornos constantes e transparências, desenvolvendo a governança organizacional, conquistando mercados internacionais, priorizando seus mercados internos, os investimentos nacionais e garantindo a reconstrução da soberania nacional que, na atualidade, percebemos que essa autonomia está fortemente ameaçada, sem insumos, sem lideranças e dependendo de nações que priorizam seus interesses imediatos.

O projeto de reindustrialização pode contribuir ativamente para que produzamos internamente produtos que importamos, diminuindo a dependência externa, gerando empregos de qualidade e estimulando a educação, a ciência e a tecnologia que sempre foram negligenciadas e percebemos quanto estamos atrasados no cenário científico e tecnológico do mundo.

Embora percebamos que estamos num momento único para a sociedade nacional, a reindustrialização poderia abrir novos horizontes para a sociedade brasileira, retomando as esperanças da população, garantindo a reconstrução de setores industriais que perderam relevância nas décadas anteriores, investindo em capital humano e abrindo espaços para resolvermos, por completo, as dívidas históricas acumuladas pela nação, garantindo empregos decentes, salários dignos, saúde de qualidade e condições dignas para todos os brasileiros.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Brasileira, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 10/08/2022.

O declínio do Ocidente Por Paulo Nogueira Batista Jr

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Por PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.*

A Terra é Redonda – 08/08/2022

O Ocidente não quer a emergência dos outros povos, mas esta virá de qualquer maneira, quer se queira quer não
Proponho, querido e paciente leitor, que conversemos hoje sobre um tema vasto e complexo que adquiriu urgência nos anos recentes, em especial em 2022. Refiro-me, como indica o título deste artigo, ao declínio do Ocidente. Trata-se de uma questão intrincada, que mobiliza afetos, preconceitos, interesses. E é por isso mesmo que ela se mostra fascinante.

O leitor, como eu, certamente gosta de desafios e não quer se restringir a assuntos batidos, onde reina certo consenso. Vamos em frente então.

Primeira pergunta: é fato ou mito essa decadência ocidental? Note-se que ela já foi proclamada muitas vezes. O assunto não deixa de ser batido, portanto. A própria expressão “declínio do Ocidente” foi tema e título de um livro de Oswald Spengler, publicado há pouco mais de cem anos, em 1918.

O século XX não confirmou a previsão de Spengler. O Ocidente se deu até ao luxo de promover duas guerras civis, de escala mundial ou quase, conhecidas europocentricamente como Primeira e Segunda Guerras Mundiais. Foram guerras sem precedentes, sangrentas e custosas. E nem por isso o Ocidente perdeu a hegemonia planetária. Sobrava poder. A verdade é que a resiliência ocidental foi maior do que imaginavam detratores e adversários.

As formas de dominação se modificaram, mas o século XX terminou sem que o domínio fosse de fato superado. O eixo do poder passou de um lado para o outro do Atlântico Norte, mas se manteve em mãos ocidentais. Até aumentou na reta final do século, com a surpreendente desintegração do bloco soviético e até mesmo da própria União Soviética.

Foram muitos os livros e ensaios publicados na esteira de Spengler ao longo do século passado. A frustração dessas previsões de decadência levou os ideólogos do Ocidente a se referir depreciativamente a uma suposta escola “declinista”, mais motivada por ideologias ou desejos do que por avaliações objetivas. E havia, claro, um elemento fortíssimo de desejo nessas previsões.

Afinal, leitor, a hegemonia de europeus e seus descendentes norte-americanos vinha sendo duradoura e nada benevolente, para dizer o mínimo. Suscitou assim antipatia profunda e generalizada nos povos colonizados ou dominados, com ecos nos segmentos humanistas das próprias sociedades mais desenvolvidas. Humano, humano demais que os tropeços do Ocidente sejam recebidos com satisfação urbi et orbi.

Nada é para sempre. E o domínio do Ocidente sobre o resto do mundo já leva mais de duzentos anos. Começou, como se sabe, com a revolução industrial iniciada na Inglaterra no final do século XVIII. Consolidou-se no século XIX e persistiu, como mencionei, ao longo do século XX. Teve seu Indian summer depois do colapso soviético.

Agora parece claro, entretanto, que o século XXI não será mais um século de domínio inconteste do Ocidente. Ao contrário, os sinais de declínio estão por toda parte. Em termos demográficos, econômicos, culturais, políticos. Os “declinistas” terão enfim razão? Há muitas indicações de que agora sim.

Cuidado, entretanto. De um modo geral, o declínio ocidental é relativo, não absoluto. Em algumas áreas, o declínio pode, sim, ser absoluto, por exemplo na cultural, onde o retrocesso parece acentuado. Mas o que ocorre de uma maneira geral é perda de peso relativo vis-à-vis do resto do mundo, em especial da Ásia emergente, a China à frente. O declínio é mais acentuado para a Europa, mas se sente também nos Estados Unidos.

A perda relativa não deixa de ser sentida como real, dolorosamente real. Afinal, o ser humano é tão deficiente, constituído de tão pobre e imperfeita maneira que chega a ver na ascensão do outro uma ameaça, um prejuízo para si.

A mera ascensão pacífica já desencadeia os piores sentimentos e receios. No caso dos europeus e norte-americanos esse lamentável traço humano se vê agravado pelo hábito arraigado de dois séculos de predomínio global.

Os brancos dos dois lados do Atlântico Norte não se acostumam, simplesmente não se acostumam a ver povos antes dominados – asiáticos, latino-americanos, africanos – querendo emergir, ser ouvidos e participar das decisões internacionais. Ainda que essas pretensões dos emergentes sejam modestas, cautelosas, até tímidas às vezes.

Habituados a ditar, ensinar, pregar, os brancos não conseguem dialogar e negociar com o que para eles é uma massa ignara e até repugnante.

Mas a emergência dos outros povos vem de qualquer maneira, quer se queira quer não. Vai acontecendo em termos populacionais, econômicos e políticos. Aos ocidentais resta conformar-se ou espernear. Até agora preferiram espernear. Mais do que espernear, infelizmente. Reagem com violência e provocações à inevitável formação de um mundo multipolar. Em última análise, são essas reações que explicam a guerra na Ucrânia e as tensões crescentes com a China. A mais recente provocação foi a visita de Nancy Pelosi a Taiwan.

A que dará lugar o fim da hegemonia do Ocidente? A julgar pelas tendências recentes, o que virá não é a substituição dos Estados Unidos pela China, ou do Atlântico Norte pela Ásia. A China dificilmente terá no mundo a hegemonia que a Europa e os Estados Unidos já tiveram um dia. Por motivos históricos e intrigas ocidentais, os chineses não comandam a confiança da maioria dos seus vizinhos. Japão, Índia, Vietnã, por exemplo, têm diferenças importantes com a China e não aceitam a sua hegemonia. Os chineses dificilmente conseguirão estabelecer uma zona de influência sólida, mesmo no Leste da Ásia, o que dizer em outras regiões. Uma observação semelhante pode se fazer sobre a Rússia e a Índia, que têm de qualquer maneira peso bem inferior ao da China.

O cenário que vai se configurando desde o início deste século é de um mundo multipolar, fragmentado, sem governança e regras aceitas globalmente. As entidades globais existentes, ONU, FMI, Banco Mundial, OMC etc., continuarão a ter sua importância, mas com influência declinante, tanto mais que os ocidentais se recusam a reformá-las para refletir plenamente a realidade do século XXI. No lugar de ou em substituição parcial a essas instituições multilaterais de alcance mundial ou quase mundial, surgiram e surgirão instituições novas, criadas por países emergentes em busca de mais espaço no plano internacional.

Essa multipolarização do mundo é interessante para os países em desenvolvimento, pois abre oportunidades e pode facilitar a consolidação da sua autonomia nacional. Por outro lado, a fragmentação do mundo multipolar também é muito perigosa, como estamos vendo. Com esses perigos seremos todos obrigados a lidar, sem nostalgias inúteis por situações de concentração de poder que não mais voltarão.

E o Brasil nisso tudo? Bem. Superadas nossas desventuras recentes, temos muito a fazer, por nós e por outros países. Ao nosso imenso Brasil cabe, acredito, um papel especial: trazer ao mundo uma palavra de solidariedade, cooperação, paz e amor.

Mas isso já é assunto para outras e mais ousadas divagações especulativas.

*Paulo Nogueira Batista Jr. é titular da cátedra Celso Furtado do Colégio de Altos Estudos da UFRJ. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai. Autor, entre outros livros, de O Brasil não cabe no quintal de ninguém (LeYa).
Versão ampliada de artigo publicado na revista Carta capital, em 5 de agosto de 2022.

Cotas podem ajudar a resgatar o mérito, enquanto excluem os medíocres, por M. França

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Ações afirmativas são apenas uma forma emergencial de tentar diminuir a perda de talentos

Michael França, Ciclista, doutor em teoria econômica pela Universidade de São Paulo; foi pesquisador visitante na Universidade Columbia e é pesquisador do Insper.

Folha de São Paulo, 09/08/2022

A história da humanidade é marcada pelo domínio de alguns grupos sobre os demais, e tal fato assumiu diferentes configurações ao longo do tempo. Em um passado não muito distante, a aristocracia representava um tipo de organização sociopolítica em que a origem familiar ditava o modo de vida das pessoas. Uma pequena parcela da população herdava automaticamente um conjunto de privilégios simplesmente pelo fato de ter nascido em determinada família.

Depois de algumas revoluções, em vários cantos do mundo, os nobres foram retirados de suas cadeiras cativas. Instalou-se gradativamente o ideal de que a ascensão social deveria se dar por meio de esforço e talento. Essa concepção permitiu ampliar as oportunidades de progresso para um conjunto maior da população, e diversos avanços socioeconômicos foram obtidos. Porém, ao mesmo tempo, milhares ficaram para trás.

Os bem-sucedidos de uma geração começaram a transmitir significativas vantagens para seus descendentes. A origem familiar passou, novamente, a ter um amplo papel na determinação dos resultados alcançados pelos indivíduos. Mas, diferentemente do passado, em que era comum pessoas despreparadas assumirem cargos relevantes devido apenas ao privilégio hereditário, atualmente as famílias com melhores condições financeiras investem pesadamente na formação de seus filhos.

Isso não quer dizer que todos se tornarão pessoas brilhantes ou, ao menos, competentes. O talento não surge espontaneamente, mas costuma ser reflexo de uma combinação bem orquestrada entre os esforços individuais e os investimentos corretos realizados pela família e sociedade.

Nesse âmbito, sabe-se que a falta de empenho não tem classe social. Entretanto, mesmo nos casos dos filhos da elite que não se esforçam, os altos investimento realizados por seus pais ajudarão no desenvolvimento de um currículo com credenciais para o mercado de trabalho. Além disso, em certas situações, a rede de contatos e o patrimônio herdado ou construído por seus pais tendem a permitir que aqueles filhos medianos mantenham o status familiar.

Esse cenário contribui para alimentar a profunda crise de legitimidade em relação ao mérito. As posições de maior prestígio social são marcadas pela alta dominância daqueles que nasceram em famílias ricas. Grande parte da disputa por esses espaços acaba se limitando aos filhos da elite, enquanto ao resto da população cabe participar de uma competição muito desigual com aqueles que herdaram consideráveis vantagens.

Nesse contexto, as ações afirmativas, sendo as cotas uma delas, podem ser pensadas como uma forma de procurar colocar para competir indivíduos com trajetórias de vida parecidas e, assim, contribuir para que os “vencedores” tenham maior legitimidade em suas conquistas. Dependendo de como esse tipo de intervenção é desenhada, também representa um meio de selecionar os melhores entre aqueles que tiveram investimentos semelhantes e, assim, diminuir a enorme perda de talentos em classes sociais desfavorecidas.

As ações afirmativas tendem a ampliar as chances de as minorias atingirem determinado objetivo. Isso pode se refletir em uma mudança nas aspirações sociais daqueles que foram historicamente excluídos e, consequentemente, fazer com que um conjunto maior dos desfavorecidos se empenhe ainda mais.

No caso dos favorecidos, aumenta-se a pressão por maior esforço, visto que agora os medíocres podem ficar de fora. As cotas nas universidades são um exemplo disso. Caso um filho da elite não tenha sido bem-sucedido no vestibular competindo com aqueles que tiveram um conjunto de investimento semelhante, talvez ele não tenha se esforçado o suficiente ou, simplesmente, não seja talentoso.

A formação de capital humano para a inovação no Brasil, por Flávio Bartman

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Orientada a fornecer diplomas, universidade precisa se integrar à economia

Flavio Bartmann, Engenheiro mecânico (ITA) e doutor pela Universidade de Princeton, é professor na Universidade Columbia e na NYU Stern School of Business

Folha de São Paulo, 09/08/2022

Uma posição popular nos meios acadêmicos é a de que uma educação superior de altíssima qualidade seria uma condição “sine qua non” para o desenvolvimento; sem um ensino universitário da mais alta qualidade, voltado para ciência e inovação, o país continuaria na sua atual situação. O exemplo seria o papel importante que as grandes universidades nos Estados Unidos e na Europa têm na inovação.

Essa é uma leitura errada da evidência histórica. Os Estados Unidos já eram, em 1900, a maior potência industrial, enquanto o papel principal de Harvard, Princeton e Yale era dar um verniz cultural para os filhos da classe privilegiada. Quase todos os avanços científicos e tecnológicos importantes da época, relatividade e mecânica quântica e o desenvolvimento do motor a jato, por exemplo, foram realizados na Europa. As universidades americanas só se tornaram as melhores do mundo depois da guerra, após se beneficiarem enormemente dos grandes projetos tecnológicos realizados a partir de 1940, do Projeto Manhattan, da corrida espacial, da internet e outros, e do grande influxo de cientistas e intelectuais vindos da Europa.

Um processo semelhante ocorre na China, que se tornou uma superpotência econômica, mas que segue enviando centenas de milhares de estudantes aos EUA, à Europa e à Austrália, reconhecendo que suas universidades ainda não estão, em geral, no mesmo nível.

Esses exemplos não são, é claro, evidência de que as universidades devam simplesmente reagir às demandas do sistema produtivo. Como centros de investigação e pesquisa, as universidades, energizadas por aquelas demandas, irão adiante, abrirão novos caminhos. O sistema produtivo nunca demandou o laser, a energia nuclear ou os relógios atômicos que permitiram o desenvolvimento do GPS.

O que é necessário para inovação, portanto, é um processo de realimentação intenso, entre a economia e o governo, por um lado, e a universidade por outro, nas duas direções. Exemplos disso estão por toda a parte; um, particularmente importante, tem a ver com o desenvolvimento dos computadores digitais. A ideia foi uma consequência do trabalho de Alan Turing em lógica na década de 1930; o Eniac, o primeiro computador digital programável, foi usado para o cálculo das trajetórias de cargas de artilharia. Outras aplicações da computação digital precipitaram avanços tecnológicos importantes, como o transistor e os circuitos impressos, que permitiram uma grande melhoria na performance dos computadores, abrindo muitas oportunidades para aplicações comerciais.

Foi exatamente para facilitar esse processo que Vannevar Bush, no seu extraordinário relatório “Science, the Endless Frontier”, escrito a pedido de Franklin Roosevelt em 1944-45, propôs uma estrutura de pesquisa e desenvolvimento, ancorada nas universidades e nos laboratórios nacionais, com o objetivo de preservar a superioridade científica e tecnológica dos EUA, assegurando a sua hegemonia geopolítica. A implementação dessa proposta como uma política nacional levou à criação da National Science Foundation, em 1949, de 18 laboratórios nacionais e de um rico sistema universitário integrado à dinâmica socioeconômica norte-americana.

Essa integração da universidade no processo econômico não ocorreu no Brasil, onde a universidade ainda está culturalmente orientada para oferecer diplomas, credenciais, não para oferecer uma formação que ajude a apontar soluções para os complexos problemas da sociedade contemporânea.

O caminho para um Brasil mais próspero, justo, democrático e ambientalmente saudável requer um investimento acelerado em infraestrutura e, simultaneamente, a expansão e valorização de um ensino e pesquisa de alta qualidade nas nossas universidades. Precisamos retomar o crescimento econômico, com uma série de projetos e empreendimentos, envolvendo governos e a iniciativa privada, projetos que iriam se beneficiar muito da participação de uma universidade moderna.

Qual legado escravocrata cabe aos brancos?

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‘O Pacto da Branquitude’ explica como a escravidão é associada às vantagens da população branca

ANELISE GONÇALVES – FOLHA DE SÃO PAULO, 06/08/2022

A história da sociedade brasileira é inseparável da escravidão. Muito se fala sobre as consequências sofridas pela população negra, mas qual legado cabe aos brancos? Isto é o que Cida Bento busca responder em seu livro “O Pacto da Branquitude”.

Doutora em psicologia pela USP (Universidade de São Paulo) e colunista da Folha, a autora faz um apanhado do conhecimento adquirido ao longo de suas pesquisas no mestrado e no doutorado, de suas experiências profissionais na área de recursos humanos e de suas experiências pessoais.

Ela ressalta, nos dez capítulos, algo nítido que parece ser esquecido pelo Brasil: a escravidão e o racismo beneficiaram e continuam beneficiando pessoas brancas nas mais distintas esferas sociais.

Para construir seu argumento, Cida mobiliza em primeiro lugar a história. A autora afirma que antes do estabelecimento das rotas de comércio de escravos no contexto da colonização europeia, tanto a África quanto a Ásia eram regiões relativamente ricas e produtivas —diferentemente da Europa.

A chegada dos europeus e a dinâmica comercial estabelecida teve um impacto negativo nesses continentes, não só pela extração de recursos, mas também pela destruição das estruturas econômicas e sociais que existiam.

Com o trabalho duro sendo transferido para as colônias, países europeus experimentavam um período de desenvolvimento econômico. Isso beneficiava não somente as famílias ricas, que participavam diretamente da extração de riquezas, mas também as classes mais pobres (e brancas).

Segundo Cida, a noção de branquitude nasceu justamente nesse processo de colonização europeu. Conceitualmente, diz respeito à ideia de que a raça branca seria o padrão, e tudo o que foge dela seria o diferente, o “outro” do eu branco supostamente universal.

O pacto da branquitude, por sua vez, consiste nos acordos feitos para manter pessoas brancas em situação de privilégio e, ao mesmo tempo, higienizadas de todo o processo histórico e violento que o construiu.
Essa higienização se daria por justificar como uma questão de mérito os privilégios que pessoas brancas têm hoje nos âmbitos econômico, político e social. E não como fruto de centenas de anos de exploração de negros escravizados. Um exemplo é que a maioria de cargos de liderança são ocupados por pessoas brancas.

No caso do Brasil, país que sustenta o vergonhoso título de ser o que mais tempo permitiu a escravidão, as consequências desse processo se mesclam a praticamente todas as clivagens sociais, sejam elas de gênero ou classe.

Um exemplo dessa herança maldita é o trabalho doméstico, um resquício da dinâmica colonial que ainda funciona como sustento fundamental sobretudo para mulheres negras e pobres. O racismo se manifesta não apenas na cor e na renda, mas também nas práticas que envolvem a relação trabalhadora-empregador, ainda permeadas por práticas de submissão, desprezo e mesmo assédio.

Segundo um levantamento do Made/USP (Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades, da Universidade de São Paulo), os 705 mil homens brancos que fazem parte do 1% mais ricos do país têm renda maior que a de todas as 33 milhões de mulheres negras do Brasil.

Em março deste ano, a Folha mostrou que mudanças trabalhistas e culturais estão colocando em xeque a existência de cômodos específicos para empregados domésticos. No entanto, a autora afirma que a classe média e alta desaprova a formalização desse tipo de serviço e que ainda há muito a ser feito.

O livro trata sobre como os brancos pobres foram beneficiados pela escravidão no passado e nos dias atuais. Por mais que não participassem diretamente da extração das riquezas das colônias, eram beneficiados pelo desenvolvimento econômico que vinha delas. Além disso, o trabalho pesado era transferido para as colônias.

Os brancos pobres hoje seriam beneficiados pela narrativa da branquitude, que os favorece por serem mais propícios a serem escolhidos em entrevistas de emprego, por exemplo, por sua aparência.

Já a população negra não tem como ignorar a violência que permeia esse pacto. Cida relata no livro como sofreu, assim como seu pai, sua mãe e os sete irmãos, inúmeros episódios de racismo em seu cotidiano, seja na escola e no trabalho.

Ela conta que, quando trabalhava como recrutadora, selecionou uma vez duas mulheres negras para uma vaga de secretária. O cliente que oferecia a vaga respondeu com uma bronca.

Esses casos vão além da discriminação direta, e assumem também a forma do desconforto branco com a presença de negros com status hierárquico semelhante no ambiente corporativo. Aqui, a branquitude se revela para além do preconceito: ela é também uma forma de assegurar a soberania de um grupo, o branco. Eis o pacto.

Essa ideia é levada ao extremo —mas não ao absurdo, tendo em vista sua materialidade cotidiana— no longa “Medida Provisória”, primeiro filme dirigido por Lázaro Ramos. Na obra, o desconforto com a presença de negros é tão grande que o governo cria o projeto “Resgate-se Já”, em que paga esta parte da população para voltar para a África.

Ao mesclar as experiências pessoais com a argumentação histórica, Cida tira o racismo do campo teórico ou pessoal e trata dele como processo —em outras palavras, engrenagem estrutural que organiza a sociedade e molda individualidades.

“Pacto da Branquitude” é incisivo. Parte de uma premissa que parece ser esquecida, devolvendo a cor aos brancos e apontando as vantagens e desvantagens de cada parcela da população.

O livro ousa ao mostrar uma face brasileira que não queremos e não gostamos de ver, mas que é essencial caso queiramos avançar como sociedade.

O PACTO DA BRANQUITUDE
Autor Cida Bento; Editora Companhia das Letras; Preço R$ 39,90

Dificuldades fiscais

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Vivemos momentos de grandes desafios para a sociedade brasileira, recuperação lenta na economia e no sistema produtivo, instabilidades políticas e discussões eleitorais desnecessárias, além de grandes inquietações sociais, com crescente número de pessoas vivendo nas ruas, com violência crescente e sem esperanças.

Neste cenário, os analistas se mostram preocupados com as questões fiscais do Estado, as alterações intempestivas do arcabouço fiscal, gastos preocupantes, investimentos sem planejamento e orçamentos secretos e sem transparência.

Além deste cenário, destacamos os custos elevados dos preços, a inflação corrói o poder de compra da população, contribuindo para a concentração da renda em prol dos donos do capital em detrimento dos trabalhadores, neste ambiente, muitos se assustam com as dificuldades e as limitações do crescimento econômico, comemorando espasmos de melhoras num ambiente de incertezas e instabilidades.

No front externo, a possível recessão nos Estados Unidos tende a gerar preocupações para a economia brasileira, levando as autoridades monetárias norte-americanas a um incremento nas taxas de juros, atraindo recursos externos e desvalorizando o câmbio e gerando pressões crescentes nos preços que, posteriormente, pode culminar em mais juros internos, crédito mais caro, menos recursos disponíveis e uma lenta recuperação da estrutura econômica e produtiva, com graves impactos sociais.

Depois da guerra entre a Ucrânia e a Rússia e da visão belicista dos “líderes” ocidentais, os preços dos alimentos, dos combustíveis e da energia explodiram no mercado internacional, gerando desequilíbrios estruturais que impactam fortemente sobre para todas as nações. Neste cenário, os grandes prejudicados são os grupos mais fragilizados, com retração da renda, diminuição do consumo e aumento do desemprego.

Neste ambiente, os governos buscam novas formas de reduzir os impactos negativos para suas comunidades, buscando formas de diminuir os preços dos alimentos e dos combustíveis, usando a criatividade e a ousadia como forma de políticas públicas, reduzindo impostos e aumentando os subsídios, na maioria das vezes são medidas temporárias, mas geram desequilíbrios fiscais.

Neste momento de grandes desafios, como o que estamos vivendo, as sociedades precisam reconstruir os instrumentos fiscais e monetários para reduzir as desigualdades construídas desde os primórdios desta nação. Estas medidas não podem ser vistas como punitivas com relação a grupos específicos da sociedade, muito pelo contrário, devem ser vistas como instrumentos de redução dos desequilíbrios econômicos e das desigualdades sociais que perpassam a sociedade e tendem a levar o país a conflitos fratricidas que se mostram mais claramente nas violências contemporâneas, como as chacinas, os discursos de ódios, os arbítrios, as milícias e o crescimento de grupos armados, que nascem e se desenvolvem a partir da omissão e da incompetência do Estado.

As políticas fiscais devem ser vistas como um instrumento de racionalização das estruturas sociais e econômicas, tributando progressivamente os agentes econômicos e utilizando os recursos para estimular a melhora econômica, fomentando os investimentos produtivos, aperfeiçoando e diversificando a sociedade, garantindo empregos de qualidade, capacitando e qualificando a mão de obra, consolidando melhorias sociais substanciais para a comunidade, fortalecendo o mercado interno e fomentando o desenvolvimento econômico.

O desenvolvimento econômico prescinde de um mercado interno sólido e consistente, salários dignos, oportunidade para todos os setores, emprego qualificado e a busca crescente da tão sonhada cidadania. A caminhada é árdua e atribulada, mas passa pela redução dos spreads bancários, redução do custo do dinheiro, taxação pesada dos ganhos financeiros, controle do câmbio, renda universal e consolidação da agricultura familiar. Ao postergarmos estas medidas, os fantasmas do subdesenvolvimento e da desigualdade estarão sempre nos acompanhando na nossa caminhada pelo desenvolvimento.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Comportamental, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 03/08/2022.

Falhamos como país, porque suportamos o insuportável, por Naná De Luca

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Tudo de mais brilhante no legado das gerações anteriores à minha parece estar se desmanchando no ar

NANÁ DE LUCA – FOLHA DE SÃO PAULO, 02/08/2022

SÃO PAULO

Ando ponderando se o poeta Arthur Rimbaud estava correto quando escreveu que o insuportável é saber que nada, de fato, é insuportável. Será mesmo? O quão insuportável o insuportável precisa ser para que, enfim, o impulso de seguir em frente não se justifique mais?

No Brasil de sempre, mas em especial neste dos últimos anos, a realidade impõe o impossível como regra. É o céu de São Paulo escurecido às 15h pelo fogo na Amazônia, o que parece ter sido há uma vida, mas são três anos. É Genivaldo asfixiado, porque dirigia sem capacete. É o refrão paralisante: “E daí? Quão insuportável o insuportável deve ser e para quantos? Para quem? Em quantos lugares e horários diferentes?

Essas perguntas fixaram-se em mim, em definitivo, no dia 21 de setembro de 2019. Era um domingo e eu era o plantonista das 7h da manhã. Ágatha Felix, 8, foi baleada nas costas, na Penha, zona Norte do Rio, e morreu na madrugada de sábado. Nunca esqueci aquela manhã, muito menos esqueci Ágatha. Nunca esqueci seu avô em prantos, a fantasia de Mulher Maravilha, a versão da Polícia Militar incompatível com o que diziam as testemunhas.

Tudo era insuportável. Mas suportei, porque suportamos. Como neste país se suporta, por hábito histórico-macabro, a morte de crianças com balas nas costas ou na cabeça.

Como se suporta as mortes de 678.578 mil pessoas em uma pandemia, quando era claro o caminho para que este número fosse tão menor e, o cemitério, tão mais vazio. Como se suporta que 33 milhões dos nossos passem fome todos os dias. Como se suporta o assassinato de Bruno Pereira e Dom Phillips e todas as omissões institucionais. Como se suporta um governo que trabalha ativamente para destruir tudo de melhor que construímos nas últimas três décadas, pautados no espírito, ou ao menos na intenção, de sermos hoje melhores do que nosso passado permitiu. Este esforço de fundar, enfim, um Brasil que, se não um lugar fantástico, ao menos garanta dignidade a todos. O mínimo.

Tudo de mais brilhante no legado das gerações anteriores à minha, sinto, parece estar se desmanchando no ar, escorrendo entre os dedos. Falhamos —nossos avós, nossos pais, mães e nós mesmos. Porque suportamos esta sub-realidade, que para ficar ruim deve melhorar muito.

Aceitamos que generais de terno e gravata brinquem de governar nossa democracia. Nós os tememos, como nossa história bem dita que devemos temer. Mas basta. Chega um tempo, neste segundo semestre de 2022, quando não podemos mais aceitar viver com um longo passado pela frente. Não deixemos para nossos filhos e netos a responsabilidade de acertar as contas com o Brasil. Nem de suportar o insuportável.

‘Nova classe C’ perdeu terreno e ficou para trás, diz Marcelo Neri

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Segundo o diretor da FGV Social, os fatores de ascensão desse público nos anos 2000 foram revertidos

Thiago Bethônico – Folha de São Paulo, 02/08/2022

Um dos principais especialistas no fenômeno que ficou conhecido como ascensão da classe C, o economista Marcelo Neri diz que a classe média de hoje tem um novo perfil em relação aos governos petistas: ela é mais sofrida.

Segundo o diretor da FGV Social, o quadro socioeconômico que alavancou esse público nos anos 2000 era composto por três fatores principais: avanço da economia; crescimento da renda acima do PIB (Produto Interno Bruto) e redução contínua da desigualdade.

No entanto, todos esses efeitos duraram até 2014 e foram revertidos. “A desigualdade aumentou, o crescimento caiu e invertemos essa equação”, diz Neri, em entrevista à Folha.

Na visão dele, o conceito de classe média atualmente está mais próximo da classe média tradicional, que ascendeu no início da década de 1970. Nesse período, que ficou conhecido como milagre econômico, o Brasil teve altas taxas de crescimento, mas com uma escalada da desigualdade.

“Talvez tenhamos perdido aquele elemento de nova classe média, dos primeiros [a acessar certos itens de consumo]. Eu diria que hoje é uma tendência mais de conservadorismo, uma apologia da época do milagre econômico”, afirma.

Para Neri, outras mudanças de perfil também são perceptíveis. A carteira de trabalho, que ele considera o grande símbolo da classe média dos governos Lula, já não se encaixa mais no contexto de hoje.

“Acho que esse é um tempo que já foi. Estamos mais época de empreendedorismo, uberização, não é mais a carteira assinada.”

Existe hoje uma nova classe média no Brasil, um novo perfil? Temos falado muito de polarização, muitas vezes no sentido político, mas polarização é o oposto de classe média. Quer dizer, os extremos estão crescendo em detrimento do meio, que é por definição onde está a classe média, seja a nova classe média —mais ligada a uma classe C— ou uma classe média tradicional.

Mas, obviamente, existe esse grupo. Houve um episódio em 2020, auge do auxílio emergencial, em que vimos pessoas das classes A e B caindo, por conta do isolamento social, e pessoas das classes D e E subindo. Mas foi algo que durou pouco.

Talvez vivamos um processo parecido com essa concessão do auxílio de R$ 600, mas nada que seja muito permanente. Essa é a preocupação.

O que surpreendeu daquele movimento da nova classe média [dos governos petistas] é que persistiu durante um tempo. Sempre teve muita instabilidade, mas durou do fim da recessão de 2003 até 2014. Foi um processo de crescimento contínuo e baseado em três partes.

Uma parte é o próprio crescimento da economia, crescimento do PIB, na época do boom de commodities. Outro foi um crescimento da renda das pessoas acima do crescimento do PIB. Além disso, uma redução contínua da desigualdade.

Mas todos os efeitos duraram até 2014 e foram revertidos. A desigualdade aumentou, o crescimento caiu e invertemos essa equação. A renda das pessoas passou a crescer menos que o PIB. Então, existe essa classe média mas, nos últimos anos, ela é sofrida.

O que muda no perfil de consumo dessa classe média mais sofrida? Existem dois tipos de classe média. Uma é a classe média americana, o padrão europeu, que figura no imaginário das pessoas mundo afora. Aquela que tinha dois carros, dois cachorros e dois filhos. Mas esse é um padrão de países ricos.

Há também a chamada classe C, que é mais associada à nova classe média, que é uma classe média brasileira e num certo sentido global, porque a distribuição de renda brasileira —a partir da qual nós calculamos a classe média— é surpreendentemente próxima da média global.

Agora, de 2015 em diante, o Brasil teve um desempenho bem pior. Certamente não se comportou como um país emergente, então perdemos terreno.

Houve esse achatamento, em função da grande recessão. O aumento da desigualdade na renda do trabalho foi contínuo por 17 trimestres consecutivos —um recorde de permanência.

Hoje em dia, quando se fala em classe média, talvez estejamos falando mais de uma classe média tradicional e menos dessa classe C.

A classe C hoje é mais enxuta do que era nos anos 2000 e 2010? Sim. Isso é um ponto importante. Não é que desfizemos totalmente os ganhos que existiram. Basicamente vivemos uma década perdida. Se olharmos, por exemplo, a desigualdade de renda do trabalho —que é motor importante de mudanças, por ser mais estrutural— nós estamos na mesma média de renda que tínhamos em 2012.

Tem se falado agora em redução de desemprego, aumento de carteiras assinadas —que antigamente era o símbolo dessa nova classe média. Isso de fato está acontecendo e são notícias boas.

Mas, quando olhamos a média de renda per capita do trabalho, que é uma espécie de resumo da ópera trabalhista, nós não só estamos num nível tão ruim quanto 2012, como não estamos tendo um bom desempenho nos últimos trimestres.
O efeito da inflação tem sido mais forte. As pessoas têm perdido rendimento, tem havido uma certa precarização ao mesmo tempo em que há esse ganho de ocupação.

O senhor falou sobre uma classe B que caiu para classe C durante a pandemia. Até onde isso é relevante na comparação com aquela nova classe média dos anos 2000? Aquilo foi um processo contínuo. [Naquele período] A classe média tradicional, passando pela B e chegando na A, vinha crescendo. Talvez tenha sido a que, percentualmente, cresceu mais.

Apesar da desigualdade ter diminuído, foi um período de tendências contínuas, mudanças sobre mudanças. Foi um ciclo virtuoso.

No processo de queda da classe B, temos segmentos mais ligados ao setor externo, como ramo de commodities. Por exemplo, nós fizemos estudo sobre alta renda, e se destacou o município de Nova Lima —na periferia de Belo Horizonte— que é a capital da mineração. Onde há a maior concentração entre os municípios dessa classe alta.

Então é importante distinguir. Essa classe alta perdeu, muito por causa do isolamento social. Também não teve auxílio emergencial, que ajudou as classes mais baixas.
Esse episódio acho que é interessante de recuperar, pois podemos estar vivendo algo semelhante hoje, com esse auxílio de R$ 600.

Olhando as estimativas de pobreza, logo no começo da pandemia havia 64,5 milhões de pobres. No auge do auxílio caiu para 42 milhões. Esses 23 milhões de pessoas subiram. No entanto, seis meses depois, em janeiro de 2021, voltamos a ter 67 milhões de pobres. Foi uma bate-volta.

No fundo, a classe C cresceu por duas forças na pandemia. De um lado, a perda do topo, porque a classe alta também perdeu. E por um impulso na base, em função do auxílio emergencial.

O senhor diria que a parcela de pessoas que caíram da classe B para a classe C é hoje maior do que durante os governos do PT? Foi algo muito concentrado. Isso também depende do lugar. O crescimento da nova classe média foi muito forte no Nordeste, onde havia uma velha pobreza que virou nova classe média em alguma medida.

Pernambucano foi onde a pobreza mais aumentou nos últimos dois anos. Cresceu 8,14 pontos percentuais. Se olharmos no governo Lula, foram 17 pontos percentuais de queda de pobreza. De pessoas que subiram. Se considerarmos 2014, em vez de 2010, a queda foi de 25 pontos percentuais.

Nos oito anos de governo Fernando Henrique Cardoso, a pobreza caiu 8 pontos percentuais —que é mais ou menos o que perdemos agora na pandemia.

O que fez toda a diferença foi o fato de ser um período longo, de crescimento sobre crescimento. Os três fatores macro por trás disso são: crescimento do PIB, crescimento da renda acima do PIB e, no topo disso, uma redução de desigualdade contínua, que durou 13, 14 anos seguidos. Vinha antes do governo Lula e continuou até 2014.

Em geral, na maioria dos países emergentes, o crescimento era positivo, mas a desigualdade subia. No caso brasileiro a desigualdade caiu, como caiu na América Latina. Só que a renda média das pessoas aqui no Brasil subiu acima do PIB. Isso levou a um crescimento do potencial de consumo.

A carteira de trabalho era o grande símbolo dessa nova classe média, e acho que esse é um tempo que já foi. Estamos mais numa época de empreendedorismo, uberização, não é mais a carteira assinada.

Outro ponto importante da nova classe média é a existência dos primeiros da família que conseguiram acessar certos itens de consumo —como colocar o filho numa escola privada ou contratar um plano de saúde privado.

Hoje, mesmo que haja uma volta do crescimento, não teremos os primeiros [consumidores]. Os primeiros não esquecem. Tem um efeito mais marcante na trajetória, que depois fica refém desses picos de consumo do passado.

Quem come carne uma vez por semana hoje vai estar mais satisfeito se não comia carne antes, do que se ele comia carne três vezes por semana.

Existe hoje uma parcela da classe C que não viveu uma escassez. O que isso muda? Não ter vivido [a escassez], como é o caso das novas gerações, ou já ter experimentado no passado, faz com que a pessoa se ressinta mais. Os sociólogos falam que um pico prévio de consumo é um motivo de infelicidade presente. Assim como o efeito da “grama do vizinho ser mais verde”.

Talvez o maior concorrente do Bolsonaro hoje, para fazer o Auxílio Brasil de R$ 600, seja o próprio Bolsonaro em 2020, quando ele deu o Auxílio Emergencial. Fica prisioneiro dessa situação.

No auge do programa havia 67 milhões de beneficiários. Um terço da população recebia. Na passagem, algumas pessoas perderam.

O senhor falou de alguns símbolos da classe média daquele período, como a carteira assinada. Qual é o símbolo da atual classe média? Talvez tenhamos perdido aquele elemento de nova classe média, dos primeiros [a acessar certos itens de consumo]. Eu diria que hoje é uma tendência mais de conservadorismo, uma apologia da época do Milagre Econômico.

A nova classe média surgiu nesse período de boom de commodities, com redução de desigualdade, crescimento de emprego formal etc. A classe média tradicional, que são as classes A e B, em boa medida surgiu na época do Milagre, quando [a economia] crescia, mas com aumento da desigualdade.

Talvez o nosso conceito de classe média hoje seja mais de uma classe média tradicional, dessa que ascendeu lá atrás, e menos de uma classe média pioneira, que consumiu pela primeira vez certos bens e serviços.

E muitos desses bens e serviços são importantes. Um plano de previdência, um plano de saúde, escola privada para os filhos… São elementos que permitem a ascensão social. Não era uma busca do consumo, mas uma obtenção de capacidade de geração de renda.

Marcelo Neri, 59
Economista, Marcelo Neri é diretor do FGV Social e fundador do Centro de Políticas Sociais da FGV. Foi ministro-chefe da SAE (Secretaria de Assuntos Estratégicos), da Presidência da República, e presidente do Ipea. É doutor em economia pela Universidade de Princeton (EUA), mestre e bacharel em economia pela PUC-Rio (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro). Também é professor no doutorado, no mestrado e na graduação da EPGE (Escola Brasileira de Economia e Finanças), da FGV, no Rio de Janeiro.

Dowbor: A tirania do mérito e como superá-la

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A ideia de que todo esforço será recompensado esconde a filosofia neoliberal de guerra de todos contra todos. Justifica a captura das riquezas pelo 0,01% e impõe o fardo da culpa aos mais pobres. Enfrentá-la exigirá combates políticos e éticos

OUTRASPALAVRAS – Ladislau Dowbor – 29/07/2022

“O ideal meritocrático não é remédio para desigualdades;
ele é justificativa para desigualdade.” – Sandel, p.181

A desigualdade tem de estar no centro das nossas preocupações. Para muita gente, basta se preocupar com o seu próprio bem-estar, e da sua família. É o nível em que a insegurança joga um papel determinante na indiferença relativamente ao que acontece com os outros. No caso dos empresários, predomina a busca do lucro apenas, sem pensar nos impactos sociais e ambientais. É uma visão de curto prazo. Como escreveu Peter Drucker, “não haverá empresa saudável numa sociedade doente”. Quanto aos muito ricos, com fortunas acima de 30 milhões de dólares, ganhar mais já não é questão de bem-estar seu ou da empresa, pois têm muito mais do que jamais poderão gastar, e sim de sentimento de dominância: basta ver o comportamento surrealista, de mandar um carro para o cosmos, de subir no espaço com o seu próprio foguete, de batalhar o seu ranking na Fortune ou na Forbes. Considerando os dramas que se acumulam no planeta, econômicos, sociais e ambientais, bem conhecidos no andar de cima dos afortunados, isso já é área do patológico. É a tirania do ego, e burrice social.

Estamos num mundo em que nem os pobres merecem a sua pobreza, nem os ricos a sua riqueza. Os pobres, evidentemente, porque não foram eles que montaram esse sistema em que os direitos sobre o excedente que a sociedade produz sai da mão deles e vai para os mais ricos. O botijão de gás que a família mais pobre paga pelo absurdo preço de 130 reais gera lucro adicional para acionistas em qualquer parte do mundo, sem precisarem produzir mais. Cobrar taxas de juros mais elevadas – até o botijão já é vendido a prazo – ou ainda, e particularmente, extrair mais dividendos das empresas, asseguram enriquecimento com o esforço dos outros. Na era do dinheiro virtual, o enriquecimento dos improdutivos é generalizado.

Sandel insiste no crescente papel das finanças: “A financeirização da economia pode ser mais destrutiva para a dignidade do trabalho e mais desmoralizante. Isso porque oferece talvez o mais elucidativo exemplo, em uma economia moderna, da distância entre o que o mercado recompensa e o que realmente contribui para o bem comum…Isso não seria problema se toda atividade financeira fosse produtiva, se aumentasse a capacidade da economia de produzir bens e serviços de valor. Mas esse não é o caso…Cada vez mais envolve engenharia financeira complexa que resulta em grandes lucros para pessoas envolvidas, mas que não fazem qualquer coisa para tornar a economia mais produtiva.”(306) Equivale a ganhar dinheiro com dinheiro.

O argumento moral tem muito peso. Porque há um imenso esforço da mídia comercial, seja tradicional ou utilizando as mídias sociais, de apresentar o enriquecimento como legítimo, portanto merecido, ainda que não corresponda à contribuição produtiva. O merecimento tornou-se uma questão central: sou rico porque batalhei, por que você não se esforça mais? A grande justificativa moderna do sistema grotesco em que vivemos é que quem é rico é porque se esforçou, e, portanto, quem é pobre é porque não soube batalhar. A grande vitória da comunicação dos mais ricos não é só de aparecer como merecedores da sua fortuna, mas de acusar os pobres de serem incapazes de seguir o seu exemplo. Ao orgulho da riqueza, acrescentam o desprezo da pobreza. Mas de que os donos de grandes fortunas têm de se orgulhar? Mereceram?

Michael Sandel traz no centro do seu livro este tema: a tirania do mérito. Não está sozinho nesta indignação. Gar Alperovitz e Lew Daly traçaram os mecanismos no Unjust Deserts: how the rich are taking our common inheritance; Emmanuel Saenz e Gabriel Zucman apresentam os mecanismos mais escandalosos no The Triumph of Unjustice: how the rich dodge taxes and how to make them pay; Marjorie Kelly e Ted Howard mostram como os dividendos se tornaram um dreno sobre a economia, Joseph Stiglitz protesta contra o rentismo irresponsável e improdutivo, Thomas Piketty assentou as bases teóricos do novo sistema de exploração, Michael Hudson detalha o FIRE (Finance, Insurance, Real Estate), Mariana Mazzucato detalha a fratura entre gerar valor econômico e dele se apropriar, no seu The Value of Everything: making and taking in the global economy. A indignação cresce, e podemos aqui alongar muito a lista, com Rana Foroohar e tantos outros. Está se gerando um novo consenso nas teorias econômicas, e a indignação cresce.

A força de Sandel está no desmonte dos argumentos com os quais os mais ricos se protegem. O importante para os afortunados é defender o seu merecimento, que traz implicitamente a ideia de que os que não sobem na vida não devem culpar o dreno de riqueza no topo, mas a sua própria incapacidade de imitá-los. Ou seja, os pobres são pobres por sua culpa. Sandel insiste muito no sentimento de humilhação que se gera na base da sociedade. Explorados de maneira ostensivamente injusta pelos aristocratas, pelos senhores da terra em diversos sistemas, os servos eram obrigados a se submeter, mas tinham a compreensão da injustiça que sofriam. Atualmente, não só são reduzidos à pobreza e privados de oportunidades, mas têm de arcar com a narrativa que isso resulta de sua própria incapacidade, ou falta de vontade de trabalhar. Sempre há alguns exemplos de pobres que subiram na vida. Sandel restabelece o bom senso: “Ser bom em ganhar dinheiro não mede nem nosso mérito nem o valor de nossa contribuição.” (201)

“A tirania do mérito é resultado não só da retórica da ascensão. Ela consiste em um conjunto de comportamentos e circunstâncias que, agrupadas, tornaram a meritocracia tóxica. Sob condições de desigualdade desenfreada e mobilidade barrada, reiterar a mensagem de que nós somos responsáveis por nosso destino e merecemos o que recebemos corrói a solidariedade e desmoraliza pessoas deixadas para trás pela globalização… Quando o 1% mais rico recebe mais do que toda a metade inferior da população, quando a receita média fica estagnada por quarenta anos, a ideia de que esforço e trabalho árduo o levará longe começa a parecer vazia.”(105) Mais do que desespero por pobreza “é um descontentamento mais desmoralizante, porque sugere que, no caso das pessoas deixadas para atrás, o fracasso é culpa delas.”(106) “Se, numa sociedade feudal, você nascesse em condição de servidão, sua vida seria dura, mas não se sentiria oprimido ou oprimida pelo pensamento de que a responsabilidade por estar nessa posição de subordinação é sua.” (173) Os ricos não só causam e aprofundam a pobreza, como ensinam os pobres a lamentar as causas.

A inclusão produtiva desempenha aqui um papel fundamental. Não se trata apenas de permitir a ascensão por diploma universitário, e sequer apenas de assegurar igualdade de oportunidades à partida. Trata-se de mais igualdade como resultado final. Muito mais do que assegurar acesso ao consumo, é preciso assegurar a inclusão produtiva, dimensão essencial do sentimento de pertencimento e de dignidade que resulta do fato de contribuir para a sociedade. O trabalho “é uma atividade de integração social, uma arena de reconhecimento, uma forma de honrar nossa obrigação de contribuir para o bem comum.”(299) Neste sentido o governo “tem obrigação de organizar instituições econômicas e sociais para que pessoas possam contribuir com a sociedade de forma que respeite sua liberdade e a dignidade do seu trabalho.”(298)[i]

Sandel insiste muito na ilusão de que o acesso à educação superior resolve a questão da mobilidade social. “Quando as elites meritocráticas colocam sucesso e fracasso tão próximos da habilidade de uma pessoa em conquistar um diploma universitário, de forma implícita, culpam quem não tem diploma por estar em condições difíceis na economia global.”(132) É igualmente forte o argumento de que diplomas podem assegurar capacidades técnicas sem a capacidade moral correspondente: é preciso distinguir o que Aristóteles chamou de sabedoria prática e virtude cívica. “John F. Kennedy montou uma equipe com credenciais brilhantes que, com todo seu brilhantismo tecnocrático, levou os Estados Unidos para a insensatez da guerra do Vietnã.” (133)

Por outro lado, tanta pressão por “sucesso”, inclusive com envolvimento dos pais, da sociedade em geral, leva à impressionante elevação de suicídios entre jovens: “Um em cada cinco estudantes universitários relataram pensamentos suicidas no ano anterior, e um em cada quatro foi diagnosticado com algum transtorno de saúde mental ou foi tratado. O índice de suicídios entre pessoas jovens (20 a 24 anos) aumentou de 36% de 2000 a 2017 – hoje em dia, morrem mais em decorrência de suicídio do que homicídio.”(251) Esses são números referentes aos Estados Unidos, mas há estatísticas convergentes em númerosos países, como a Coréia do sul. Estamos todos correndo para onde?

As implicações políticas são fortes também para quem não tem acesso ao diploma, ao criar uma profunda divisão social. A redução das políticas de inclusão à estreita escada do diploma “distanciou pessoas da classe trabalhadora de partidos dominantes, sobretudo os de centro-esquerda, e polarizou a política ao longo da linha educacional. Uma das mais profundas divisões na política hoje é entre pessoas com e pessoas sem diploma universitário.” (145) Sandel liga essas divisões ao sucesso da política do ódio em numerosos países, em particular com a eleição de Trump nos
Estados Unidos, mas se referindo a numerosos outros países, inclusive à eleição de Bolsonaro.

No conjunto, ao desmontar a farsa do mérito, Sandel nos traz uma visão de reorientação política mais ampla, centrada nos valores, nos resultados efetivos para a sociedade. As soluções não podem se limitar à dimensão econômica. O congelamento da maioria da população na pobreza e na imobilidde social leva por sua vez aos desastres políticos, com tantos oportunistas que se elegem com o discurso do ódio, alimentados pela frustração na base da sociedade. As mudanças que buscamos no sentido do aprofundamento da democracia, da expansão das dimensões colaborativas, da generalização de políticas inclusivas, do deslocamento da filosofia absurda da guerra de todos contra todos – tudo isso envolve mudanças civilizatórias mais amplas. É uma mudança cultural, no sentido mais profundo. Não se trata de sonhos: experiências dessas diversas dimensões já demonstraram os seus resultados em numerosos países. São soluções práticas que necessitam batalhar mais espaço político, buscando mudanças sistêmicas.

Escolhas políticas

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A integração econômica e a interdependência entre as nações vêm crescendo de forma acelerada desde a Revolução Industrial, aumentando a produtividade das economias, aumentando a competição e a concorrência entre os Estados Nacionais, empresas e indivíduos, transformando trabalhadores servis em assalariados e contribuíram ativamente para impulsionar a urbanização e trazendo novos desafios, oportunidades e a necessidade de escolhas cotidianas, gerando conflitos, preocupações e desesperanças.

As escolhas políticas são fundamentais para construirmos novos instrumentos de acumulação, criando modelos econômicos e produtivos, angariando novos espaços de empregabilidades e criando as bases para o desenvolvimento econômico das nações, reduzindo as desigualdades e construindo novos estilos de vida e novas formas de consumo, alterando as estruturas familiares, os hábitos e a convivência nas comunidades.

O conceito de desenvolvimento ganha relevância na sociedade da época e os intelectuais ganham espaços para estimular debates e reflexões para a construção de novos formatos de desenvolvimento econômico e a melhora do bem-estar social da sociedade, abrindo espaço para o desenvolvimento da ciência e para a construção do conhecimento que, na contemporaneidade, ganha relevância e centralidade para a melhora social e econômica.

Nesta trajetória, percebemos a importância e a urgência das decisões políticas, a construção de lideranças conscientes e capacitadas, tanto política como tecnicamente, para vislumbrar novos horizontes para suas nações, buscando a construção de um modelo econômico que inclua todos os grupos sociais, reduzindo as desigualdades, estimulando os investimentos produtivos e a geração de emprego, impulsionando suas economias para melhorarmos as estruturas produtivas.

Os investimentos produtivos prescindem de estabilidade, previsibilidade e racionalidade, conceitos econômicos fundamentais para criar as bases para que os setores produtivos incorram em riscos em seus investimentos, estimulando o espírito animal, como destacou o economista britânico John Maynard Keynes ao descrever as emoções que influenciam o comportamento humano e podem ser medidos em termos de confiança do consumidor.

Ao analisar a economia brasileira nas últimas décadas, destacamos o baixo crescimento do produto interno bruto (PIB), vislumbramos dificuldades para a construção de novos espaços de crescimento econômico, neste cenário percebemos a ausência de estabilidade, de previsibilidade e de racionalidade na gestão econômica e a construção de instabilidades políticas, levando os recursos monetários e financeiros para investimentos improdutivos, que acabam reduzindo a capacidade produtiva, gerando empregos de baixa qualificação, gerando e estimulando uma redução da renda da população, diminuindo o mercado interno, postergando a recuperação consistente da economia e, contribuindo, para o aumento da desigualdade que assola a sociedade brasileira à décadas.

Vivemos numa sociedade internacional marcada por grandes incertezas e volatilidades, depois de uma pandemia que vitimou mais de 15 milhões de cidadãos na comunidade global, percebemos uma guerra que pode gerar mais transtornos humanitários, além de destruição da infraestrutura das nações, problemas de desabastecimento de produtos alimentares, energéticos e combustíveis, que eleva os preços e, neste ambiente, os fantasmas da inflação se espalham para todas as regiões da comunidade internacional.

Muitos analistas acreditam que temos problemas econômicos que degradam o ambiente dos negócios e postergam a recuperação da economia e o funcionamento salutar das estruturas econômicas e produtivas. Embora acreditemos que tenhamos problemas econômicos na sociedade brasileira contemporânea, as maiores dificuldades são políticas, com escolhas equivocadas e imediatistas, discussões ultrapassadas, ausência de projeto nacional, discursos fora da realidade, políticas sociais degradadas, gestão patrimonialista e instituições inoperantes, posturas populistas e sem visão de futuro. Neste ambiente, como reativar a economia, alavancar os investimentos produtivos e a geração de empregos se percebemos, cotidianamente, que vivemos numa verdadeira bagunça institucional?

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 27/07/2022.

É a favor do mérito, mas vive da herança, por Michael França.

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Não é fácil separar o que é fruto do esforço individual daquilo que foi trabalho de terceiros

Michael França, Ciclista, doutor em teoria econômica pela Universidade de São Paulo; foi pesquisador visitante na Universidade Columbia e é pesquisador do Insper.

Folha de São Paulo, 26/07/2022

A construção de um país mais justo e próspero passa pelo processo de diminuir o peso da origem familiar nos resultados alcançados pelos cidadãos e, ao mesmo tempo, empoderá-los para que maior proporção de suas conquistas seja de acordo com suas escolhas e esforços.

Esse não parece ser o caminho buscado pela sociedade brasileira ou, pelo menos, por parte de sua elite. A profunda desigualdade verificada no país confere a um conjunto de famílias vantagens que deturpam a competitividade e limitam o progresso.

Vários daqueles que nascem em famílias ricas não precisam fazer muito esforço para apenas reproduzir a posição social alcançada por seus pais. Em determinados casos, mesmo os mais medíocres precisariam de muito empenho para conseguir piorar consideravelmente seus padrões de vida.

Entretanto, crescer em uma família rica e usufruir do que o dinheiro pode comprar está fora do controle das pessoas. Isso faz parte da loteria do nascimento. Apesar disso, cabe aos mais afortunados escolher o grau de solidariedade que terá com aqueles que, por ordem do destino, nasceram em condições desfavoráveis.

Ao contrário do que alguns acreditam, parte da elite está preocupada em ajudar a criar condições mais justas para os cidadãos brasileiros. Contudo, não raramente, a concordância com políticas que podem transformar positivamente a sociedade vai até o ponto em que não comece a mexer com seus privilégios.

A transmissão de recursos dos pais para os descendentes é um exemplo disso. O Brasil é um dos países do mundo com uma das menores taxações da herança. Enquanto aqui a alíquota média não chega a 4%, na França é de 60%, e, no Japão, 55%. Essa profunda diferença nas alíquotas representa uma pequena ilustração do sequestro do sistema político brasileiro pelos mais ricos que moldam a forma como tributamos com o objetivo de atender a seus próprios interesses.

Além disso, é curioso ver aqueles que fervorosamente advogam a favor do mérito e, ao mesmo tempo, defenderem o privilégio e nada meritocrático recebimento de heranças. É difícil encontrar o esforço individual aqui, visto que essa poderosa parte da acumulação de capital dos filhos da elite vem, em certa medida, dos esforços dos seus pais, que, em muitos casos, também herdaram uma quantidade considerável de patrimônio de outras gerações.

O simples acidente do nascimento não deveria dar às pessoas o direito de automaticamente obter riquezas as quais elas não se esforçaram para formar. Enquanto muitos ricos vivem de propriedades herdadas e nunca precisarão trabalhar para sobreviver, milhões de brasileiros passam fome.

Mesmo que um filho da elite se esforce e ultrapasse os limites atingidos por seus pais, em muitos casos parte de suas conquistas não deixa de ser reflexo de uma acumulação de capital de gerações anteriores que lhe permitiu a ampliação do seu conjunto de oportunidades e privilégios.

Não há culpa em nascer em uma família rica, assim como os mais pobres não deveriam ser profundamente punidos por terem nascido em ambientes desestruturados. Contudo, existem responsabilidades individuais e coletivas que poucos parecem compreender em nossa sociedade.

E, no final, não raramente, a preocupação social no Brasil costuma ficar apenas no campo do discurso. No fundo, de forma consciente ou não, há um grande dilema moral interno aos filhos da elite, visto que a inércia do atual estado das coisas reproduz condições que tendem a sistematicamente favorecê-los.

Visibilidade da luta de mulheres negras não diminui violência que as atinge, diz historiadora

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Para Ynaê Lopes dos Santos, situação é paradoxal e faltam políticas públicas voltadas a essa população

Priscila Camazano – Folha de São Paulo, 25/07/2022

“Existem avanços significativos na questão da visibilidade das particularidades que constituem a vida da mulher negra, mas isso não diminui a violência que atinge essas mulheres”, afirma Ynaê Lopes dos Santos, autora do livro “Racismo Brasileiro: Uma história da Formação do País”, recém-lançado pela editora Todavia.

Em referência a 25 de julho, quando se celebra o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra e o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, a Folha conversou com a historiadora sobre racismo e as situações que atravessam a existência das negras.

Para Santos, houve um avanço na luta dessas mulheres, sobretudo em relação ao reconhecimento de que as demandas do feminismo branco não abarcam as questões das negras –que são múltiplas. No entanto, é uma situação paradoxal, pois as negras continuam no pior lugar da estrutura social, em uma confluência de violências da sociedade patriarcal, racista e misógina.

“Acho que uma das principais [demandas atuais], e que eu considero fundamental, é justamente a ampliação de mulheres negras em espaços de poder”, afirma.

Não é à toa que a líder quilombola do século 18 Tereza de Benguela foi escolhida para ser celebrada em 25 de julho. “Essa liderança está muito vinculada com a necessidade de pensarmos nas mulheres negras nesse espaço de decisão”, diz Santos.

Segundo ela, ter uma negra em cargo de liderança na política abre a possibilidade de transformações efetivas, pois a experiência dessas mulheres pode ajudar na criação de políticas públicas.
“Na minha opinião, é isso que falta para o Brasil, esse tipo de transformação efetiva, mas eu não acho que isso aconteça [em breve].”

Na conversa com a Folha, a historiadora falou também sobre o papel da mulher negra ao longo da história de formação do país e sobre a normalidade com que as negras são postas como subalternas.

Houve avanço na luta das mulheres negras? Eu acho que existem avanços significativos, sim, sobretudo na questão da visibilidade das particularidades que constituem a vida da mulher negra, de uma forma geral. Acho que o principal avanço foi este: da compreensão de que esse lugar criado pelo feminismo branco não abarca as questões que atravessam as mulheres negras. Na verdade, não abarcam as questões que atravessam quaisquer mulheres não brancas.

E essa percepção acabou também ampliando a visibilidade das múltiplas lutas que as mulheres negras travam. Agora, essa visibilidade não diminui a violência que atinge essas mulheres, infelizmente.

Acho que é uma situação um pouco paradoxal. Temos um aumento da visibilidade, um aumento inclusive do pertencimento. Isso fica muito evidente no Brasil pelo aumento no número de mulheres se autodeclarando negras, além de toda uma transformação estética, que fez com que até a indústria cosmética tivesse que se render a isso.
Mas, ao mesmo tempo, a mulher negra continua no pior lugar da estrutura social, sofrendo o atravessamento de violências da sociedade patriarcal, racista e misógina.

Quais são as principais demandas atuais das mulheres negras? Tem múltiplas demandas. Uma das principais, e que eu considero fundamental, é justamente a ampliação de mulheres negras em espaços de poder, como no Congresso e chefiando empresas.

O racismo se constitui a partir de um jogo de poder, que é determinado a partir do que foi construído como raça. E as mulheres negras acabaram ficando no pior lugar, então colocá-las no lugar de decisão eu acho que é a principal pauta.

Não no lugar do homem branco —acho também que precisamos tomar cuidado para não querer transformar a vítima em algoz—, mas colocar a mulher negra no lugar de decisão justamente para que, desse lugar, ela possa pensar o mundo a partir da sua experiência e ajudar na transformação.

A data de 25 de julho celebra também Tereza de Benguela, líder quilombola. O que representa a escolha dessa liderança para este dia? Essa liderança está muito vinculada com o que eu acabei de dizer, com essa necessidade de pensarmos nas mulheres negras nesse espaço de decisão.

Tereza de Benguela foi a principal liderança de um quilombo no que era a capitania de Mato Grosso, recém anexada à colônia. Uma história que de certa forma está vinculada ao movimento das bandeiras e também à descoberta do ouro e ao incremento do tráfico transatlântico para o Brasil e, consequentemente, ao aumento de fugas de escravizados e a criação de quilombos.

Então, ter uma mulher negra à frente [em 25 de julho], ao que tudo indica africana, é muito simbólico, porque ela justamente reforça essa necessidade de pensar a mulher negra nesse lugar que é historicamente negado a ela.

Conseguimos imaginar algumas concessões que são dadas às mulheres negras, mas elas são muito limitadas, haja vista o que foi feito com Marielle Franco (1979-2018). Quando se tem uma mulher que efetivamente está disputando o poder, temos o Estado, a sociedade, que assassina essa mulher —e não é a primeira vez que isso acontece.

Qual o papel da mulher negra ao longo da história de formação do Brasil? Essa pergunta é profunda. A mulher negra historicamente foi colocada em um lugar de subalternidade, muito vinculada ao mundo doméstico. Era a mulher que servia e cuidava da casa, que alimentava e amamentava os filhos dos seus senhores —isso durante a vigência da escravidão.

Depois da abolição, não temos mais essa condição, mas temos a manutenção de uma série de práticas e, sem sombra de dúvida, quem mais sofre com essa continuidade são as mulheres negras.

Há também muitas vezes o lugar de afeto, mas é o lugar de uma exploração atroz, de um não reconhecimento do trabalho, haja vista toda a polêmica em torno da aprovação da PEC das domésticas. É uma categoria em que a sua imensa maioria é ocupada por mulheres negras.

De certa maneira elas são mantenedoras da sociedade brasileira, são realmente a base da sociedade, porque essas mulheres que são absolutamente exploradas também são o arrimo das suas próprias famílias.

Em uma passagem do livro “Racismo Brasileiro”, você afirma que o racismo no Brasil é grande parte daquilo que consideramos normal. Que situações “normais” são essas que atravessam as mulheres negras? A exploração das mulheres negras no universo doméstico, por exemplo. Não achamos estranho ver babás negras vestidas de branco. Achamos normal
que a imensa maioria das mulheres negras estejam servindo sempre, trabalhando nessa condição.

Achamos normal o distanciamento da ideia do feminino com a mulher negra. A ideia do feminino que foi construída, sobretudo na virada do século 19 para o século 20, não abarca as mulheres negra. As descrições que são feitas sobre o que é a mulher não têm nada a ver com a experiência de mulheres negras.

O lugar de subalternidade no qual as negras estão é a normalidade. É isso, estamos acostumados a ver mulher negra sofrer.

Eu penso muito no caso da Mirtes [Renata Souza], mãe do Miguel [menino de 5 anos que morreu, em 2020, ao cair de um prédio de luxo no Recife enquanto estava aos cuidados da patroa da mãe]. Aquilo dificilmente teria acontecido se ela fosse uma mulher branca, e o Miguel, uma criança branca. A violência experimentada pelas mulheres negras que veem seus filhos serem assassinados também é normal.

O podcast A Mulher da Casa Abandonada fala sobre uma empregada doméstica negra que viveu 20 anos em situação de trabalho análogo à escravidão na casa de uma família brasileira que se mudou para os EUA. O que aconteceu ao longo da história do Brasil que permitiu que até hoje negras passem por situações assim? Ausência de políticas públicas que permitam que as mulheres negras, mas não só, tenham condições mínimas de trabalho.

Temos a manutenção das mulheres negras nesse lugar de subserviência, no universo do trabalho doméstico, o que faz com que até hoje tenhamos alguns casos de mulheres negras que vivem em situações análogas à escravidão.

Não fazer política pública é fazer política pública —e é essa a forma como o racismo opera muito no Brasil, que é diferente do que acontece nos EUA. Lá as políticas são segregacionistas, as coisas estão muito bem ditas. No Brasil, isso não acontece.

Em outros países, mulheres negras têm conquistado lugares de liderança na política, como, na Colômbia, com a vice-presidente Francia Márquez, e, nos EUA, com a vice-presidente Kamala Harris. No Brasil há chance de termos em breve uma liderança nesse sentido? Em breve é quanto tempo? Eu acho que em uma década, final de uma década talvez. Acho que antes disso, não.

Qual a importância de ter uma liderança negra? Desse tamanho, ocupando uma presidência ou vice-presidência?
Sim. Sendo uma pessoa progressista, porque pode acontecer de não, mas acho difícil, é a possibilidade de transformações efetivas.

Além da perspectiva da representatividade, que é muito importante, ela por si só não é suficiente para mudar a estrutura: tem que ser uma representatividade que tenha acesso à formação das políticas públicas.

Mulheres negras têm uma outra experiência, seriam outras trajetórias de vida pensando o país. É isso que falta para o Brasil, esse tipo de transformação efetiva.

O que as mulheres negras latinas-americanas e caribenhas têm em comum? Nossa ancestralidade africana, em primeiro lugar. Elas veem desse lugar que tem um quê de mito, mas tem uma estrutura tradicional cultural muito forte que é essa grande África.

E também uma condição que é, sem dúvida, atravessada pelo processo de escravização e violência sexual do período colonial.

Temos também essa ideia da mulher negra como a batalhadora, a que não sofre, a que aguenta o tranco. Também é fundamental começarmos a desconstruir isso. É fundamental recuperarmos a história de resistência e luta das mulheres negras, mas é preciso querer mais.

Ynaê Lopes dos Santos, 40
Doutora em história social pela USP (Universidade de São Paulo), é professora no Instituto de História da UFF (Universidade Federal Fluminense) e autora do livro “Racismo Brasileiro: Uma História da Formação do País” (Todavia)

Sem ciência não há futuro, por Márcia Castro

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O atual corte de verbas em pesquisa e em educação progressivamente afundará o Brasil na ignorância

Márcia Castro, Professora de demografia e chefe do Departamento de Saúde Global e População da Escola de Saúde Pública de Harvard

Folha de São Paulo, 25/07/2022

Imagine, por um minuto, sua vida sem os benefícios das descobertas científicas dos últimos dois séculos…

A importância da ciência passa despercebida. Mas não deveria.

A ciência é fundamental para a construção e manutenção de uma sociedade saudável e para o desenvolvimento de uma nação. Hoje desfrutamos de vidas mais longas e melhores do que nossos antepassados. No Brasil, a esperança de vida ao nascer era cerca de 30 anos em 1900 e a cada mil nascidos vivos em 1940, cerca de 200 morriam antes de completar um ano de idade. Avanços na medicina, saúde pública, comunicação, transporte e energia, dentre outros, mudaram esse cenário.

Historicamente, alguns casos ressaltam a importância da ciência na saúde pública.

Primeiro, o desafio da ausência da ciência, exemplificado pela mais letal pandemia da história, a peste bubônica, que se estendeu de 1347 a 1351. Àquela época, não se conhecia a forma de transmissão da doença. A ausência do conhecimento científico deu espaço para crenças de que a doença tinha origens sobrenaturais, que era uma punição divina, uma retribuição por pecados contra Deus, como ganância, blasfêmia, heresia e mundanismo. Cerca de um terço da população da Europa morreu nessa pandemia.

Em contraste, o suporte político e o investimento em pesquisa no Brasil no início do século 20 exemplificam a importância da ciência para o desenvolvimento e para uma sociedade mais justa. Carlos Chagas, por exemplo, foi pioneiro ao propor que a transmissão da malária era domiciliar e o primeiro a usar borrifação intradomiciliar como estratégia de controle vetorial. Hoje, as principais medidas de controle da malária no mundo são fruto dessa descoberta.

O mesmo Carlos Chagas descobriu a doença que carrega seu nome e, até hoje, é o único cientista no mundo que descreveu por completo o ciclo de uma doença infecciosa: o agente causador, o vetor de transmissão, os hospedeiros, as manifestações clínicas e a epidemiologia.

Expedições lideradas por Oswaldo Cruz, Carlos Chagas, Artur Neiva e Belisário Pena mudaram o curso da saúde pública ao expor o abandono do Brasil rural, com péssimas condições sanitárias e carência de assistência governamental.

O contexto rural foi considerado um problema econômico e social, cuja mitigação impulsionou o movimento sanitário e a criação de centros de profilaxia rural e do Departamento Nacional de Saúde Pública. Sem apoio político e investimento em ciência, nada disso teria sido possível.

A pandemia de Covid-19 é um exemplo do custo social de se ignorar a ciência. Ao contrário da pandemia de peste bubônica, o conhecimento foi gerado de forma rápida, mas foi ignorado por muitos governantes. Prevaleceram opiniões, e não a ciência. A pandemia de Covid-19 ocorreu em um cenário político que exemplifica como o desgoverno aniquila o conhecimento e a descoberta científica.

Como disse Hipócrates, considerado o pai da medicina, “Há, de fato, duas coisas: ciência e opinião; a primeira gera conhecimento; a última, ignorância”.

Sem ciência não há futuro. O atual corte de verbas em pesquisa e em educação progressivamente afundará o Brasil na ignorância com um custo social inadmissível. Que em outubro a ciência vença a opinião, e o Brasil escolha o caminho do conhecimento e não da ignorância.

Esta coluna foi escrita para a campanha #ciêncianaseleições, que celebra o Mês da Ciência. Em julho, colunistas refletem sobre o papel da ciência na reconstrução do Brasil.

Gastança como bandeira eleitoral, por Rolf Kuntz.

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Candidatos prometem eliminar ou reformar o teto de gastos, sem discutir questões fiscais mais importantes e sem cuidar da credibilidade.

Rolf Kuntz, O Estado de São Paulo – 24/07/2022

Pior que a saúva, a taxa de juros e o verbo no subjuntivo, o maior inimigo do povo brasileiro é o teto de gastos, a julgar pelas promessas dos mais vistosos candidatos à Presidência da República. Liberdade para gastar é uma grande bandeira comum. Não se discutem, no entanto, velhos e bem conhecidos problemas, como o engessamento das finanças federais. Mais de 90% das verbas orçamentárias são comprometidas com despesas obrigatórias. Mas ninguém fala em eliminar as vinculações, tornar o Orçamento mais flexível e usar o dinheiro público de modo mais eficiente.

Vinculação torna o dispêndio inevitável, mesmo sem planejamento, e escancara porteiras para corrupção e para malandragens. Se a Constituição manda gastar xis por cento em saúde, vamos cumprir a obrigação e comprar ambulâncias superfaturadas. Se é preciso destinar recursos à educação, que tal comprar um monte de computadores para uma escola onde faltam até banheiros? Nenhum dos dois exemplos é imaginário.

Criado em 2016, depois de uma enorme lambança fiscal e de uma dura recessão, o teto de gastos foi concebido para durar 20 anos, com uma reforma possível no meio do caminho. Sua principal função seria restabelecer, na rotina do poder público, o respeito à disciplina financeira. Limitar a variação do dispêndio à inflação do ano anterior seria parte do esforço de reconstrução. Seria uma forma de carimbar, na administração brasileira, a marca da seriedade na gestão de suas contas. Seriedade é diferente, nesse caso, de mero conservadorismo. Denota, além de outros predicados, credibilidade.

Credibilidade é fundamental para quem deve cuidar do Tesouro e, portanto, dos custos de seu financiamento. Comparem-se as condições do poder público brasileiro e as de governos da Zona do Euro, onde os Tesouros se financiam, facilmente, a taxas muito moderadas e até inferiores à inflação.

Na quinta-feira o Banco Central Europeu (BCE) anunciou um aumento dos juros básicos. A elevação – de 0,5 ponto porcentual – afetou imediatamente a remuneração dos títulos públicos. Papéis alemães de dez anos passaram a render 1,352% ao ano. Títulos franceses com igual vencimento passaram a pagar 1,928%. No caso dos italianos, a alta foi para 3,614%.

No Brasil, a taxa básica de juros, a Selic, está em 13,25%. No fim do ano deverá estar em 13,75%, talvez 14%, segundo projeções de economistas do setor financeiro. A mediana das estimativas para 2023 apontou 10,75%, segundo levantamento do Banco Central divulgado na segunda-feira passada. Em abril, 63,6% da dívida líquida do governo federal eram vinculados à Selic.

Os Tesouros europeus pagam a seus financiadores, normalmente, juros inferiores às taxas de inflação, mas oferecem segurança. Assemelham-se, nesse ponto, ao Tesouro dos Estados Unidos. Títulos públicos americanos atraem capitais de muitos outros mercados, incluído o Brasil. Confiabilidade é um valor muito importante, com potencial para atrair grandes volumes de recursos, mesmo quando os juros são baixos e até negativos em termos reais. A atração tende a aumentar quando a incerteza cresce em outros países.

Incerteza tem sido, no Brasil, um poderoso espantalho de capitais. O dólar supervalorizado reflete, com frequência, os sustos impostos ao mercado pelo presidente Jair Bolsonaro. Não há escassez de reservas cambiais nem desajuste importante nas contas externas, mas as cotações são instáveis.

A balança comercial continua superavitária, como há muitos anos, graças ao agronegócio e à mineração. Há um volume razoável de reservas e as transações correntes, mesmo deficitárias, permanecem seguras e administráveis. Surtos de insegurança, no entanto, são rotineiros, provocando saídas de capitais e fortes oscilações do câmbio. Ao mesmo tempo, o mercado impõe ao Tesouro custos mais altos, encarecendo a rolagem dos títulos públicos e amarrando parcelas maiores do Orçamento a despesas financeiras.

O pacote eleitoreiro recém-aprovado é mais um importante fator de insegurança, por seus efeitos imediatos e, principalmente, por seus desdobramentos no próximo ano. O presidente Bolsonaro e aliados do Centrão preparam um perigoso legado para quem ocupar o Palácio do Planalto em 2023.

A isso é preciso somar o risco político. O presidente atacou o sistema eleitoral e o Judiciário perante embaixadores estrangeiros. Ficou claro o perigo de repetição, no Brasil, da convulsão provocada por Donald Trump, quando tentou impedir a confirmação, pelo Congresso, da eleição de Joe Biden.

Não há como separar, na gestão de Bolsonaro, a incerteza fiscal, a irresponsabilidade econômica e a tensão política permanente. Um novo mandatário contribuirá, quase certamente, para algum apaziguamento e para a retomada de metas econômicas e sociais de médio e de longo prazos. Mas terá de enfrentar, de imediato, inflação e desarranjos fiscais legados pela atual administração. Credibilidade será essencial. Mas terá credibilidade suficiente quem chegar defendendo, como alguns candidatos, livre gastança, controle de juros e intromissão nos preços da Petrobras?

JORNALISTA